Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
6724/17.6T8VNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FERNANDA SOARES
Descritores: CONTRATO INDIVIDUAL DE TRABALHO
SECTOR PRIVADO
SECTOR EMPRESARIAL DO ESTADO
PRECÁRIOS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
Nº do Documento: RP201801086724/17.6T8VNG.P1
Data do Acordão: 01/08/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÕES EM PROCESSO COMUM E ESPECIAL(2013)
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 4ªSECÇÃO (SOCIAL), (LIVRO DE REGISTOS N.º267, FLS.80-89)
Área Temática: .
Sumário: I - A Lei nº63/2013 de 27.08 – que instituiu a acção de reconhecimento da existência de contrato de trabalho – não faz qualquer distinção entre empregadores do sector privado e empregadores do sector empresarial do Estado, ou seja, não excluiu o legislador da Lei nº63/2013 a sua aplicação às situações em que o empregador é uma empresa do sector público empresarial. E não tinha que o fazer na medida em que ao pessoal de empresas como a Ré se aplica o regime jurídico do contrato individual de trabalho.
II - O programa PREVPAP [regularização dos vínculos precários na Administração Pública e no Sector Empresarial do Estado], previsto na Portaria nº150/2017 de 03.05 não dispensa a ACT do cumprimento do seu dever de fiscalização e igualmente não dispensa o MP de instaurar acções de reconhecimento da existência de contrato de trabalho [deveres atribuídos pela Lei nº63/2013 de 27.08] relativamente a «trabalhadores» contratados por empresa do sector empresarial do Estado, sob pena de violação do determinado no artigo 202º, nº1 e nº2 da Constituição da República Portuguesa.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º6724/17.6T8VNG.P1
Relatora: M. Fernanda Soares – 1515
Adjuntos: Dr. Domingos José de Morais
Dra. Paula Leal de Carvalho
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I
O Ministério Público instaurou, em 08.08.2017, no Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo do Trabalho de Vila Nova de Gaia – Juiz 1, acção de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, contra B… S.A., pedindo a condenação da Ré a reconhecer a existência de um contrato de trabalho com a jornalista C… com início em 12.10.2015.
Alega que a Ré admitiu ao seu serviço, em 12.10.2015, aquela C…, mediante a celebração de contrato intitulado de prestação de serviços, tratando-se, no entanto, de uma falsa prestação de serviços. Com efeito, na sequência de acção inspectiva levada a cabo pela ACT, em 01.03.2017, foi entendido que a referida C… prestava as funções de jornalista por conta da Ré, sob as ordens, controlo e instruções dos seus directores e coordenadores, designadamente de D… e de E…, utilizando equipamentos propriedade da Ré, prestando as suas funções em instalações da Ré, e no exterior, cumprindo um horário de trabalho e auferindo um valor mensal fixo de €1.300,00.
A Ré veio contestar, excepcionando a nulidade da presente acção, com fundamento na proibição à constituição de relações de trabalho subordinado com entidades do sector público empresarial, como é o seu caso, na impossibilidade de a Ré reconhecer eventuais situações de trabalho dependente e na impossibilidade do Tribunal reconhecer eventuais situações de trabalho dependente celebradas pela B… Mais arguiu a invalidade e a extemporaneidade da participação da ACT, a inaplicabilidade da acção de reconhecimento de contrato de trabalho à Ré, a litispendência «especial» e o risco de casos julgados opostos, a suspensão da presente acção durante o PREVPAP, a violação do direito de defesa e a consequente invalidade da acção promovida pelo MP. Conclui pela procedência das excepções e a consequente absolvição da Ré da instância. Subsidiariamente pede a suspensão da instância até à decisão final a produzir no âmbito do PREVPAP. Em sede de impugnação defende a inexistência de qualquer contrato de trabalho celebrado com a jornalista C… com a consequente absolvição da Ré do pedido.
O MP veio responder concluindo pela improcedência das alegadas excepções.
O Mmº. Juiz a quo conheceu das excepções a) Das limitações (proibições) à constituição de relações de trabalho subordinado com entidades do sector público empresarial; b) Da impossibilidade do Tribunal reconhecer eventuais situações de trabalho dependente celebradas pela B…; c) Da invalidade da participação da ACT; d) Da inexistência de ilicitude; e) Da inaplicabilidade da acção de reconhecimento da existência de contrato de trabalho à Ré. Julgou as indicadas excepções procedentes e absolveu a Ré da instância.
O MP, inconformado, veio recorrer pedindo a revogação da decisão e a sua substituição por acórdão que julgue as invocadas excepções improcedentes e determine o prosseguimento dos autos, ou então, a suspensão da instância até à conclusão do PREVPAP concluindo do seguinte modo:
1. De acordo com o disposto no artigo 40º dos Estatutos da Ré, aprovados e republicados pela Lei nº39/2014 de 09.07, é aplicável aos trabalhadores da Ré o regime jurídico do contrato individual de trabalho.
2. Assim, a Ré tem de conformar a sua actuação com as regras do Código do Trabalho, designadamente, com o artigo 12º, que estabelece critérios presuntivos de laboralidade e sanciona a utilização de trabalho dissimulado.
3. Não se vislumbrando fundamento legal para eximir a Ré da aplicação desse normativo e, consequentemente, do procedimento previsto no artigo 15º-A do DL nº107/2009, redacção da Lei nº63/2013 de 27.08. sempre que se verifiquem indícios de dissimulação do contrato de trabalho, como no caso dos autos.
4. Assim, como não pode prejudicar tal reconhecimento o PREVPAP – Programa de Regularização Extraordinário de Precários na Administração e no Sector Empresarial do Estado.
5. Efectivamente, a Lei nº63/2013, de 27.08, que veio substituir no ordenamento jurídico português um mecanismo de combate à utilização indevida do contrato de prestação de serviços em relações de trabalho subordinada não faz qualquer distinção entre empresas públicas ou do sector empresarial do Estado e empresas privadas.
6. E onde a lei não distingue não compete ao intérprete fazê-lo, sendo certo que na fixação do sentido e alcance da lei o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e que soube exprimir o seu pensamento em termos adequados – artigo 9º, nº3 do CC.
7. Logo, tal mecanismo, há-de aplicar-se, até por maioria de razão ao Estado ou seja à Ré.
8. Se assim não fosse estava aberta a porta para que as empresas do sector empresarial do Estado, com os argumentos invocados pela Ré, só terem trabalhadores ao seu serviço, não importa quantos, quiçá todos, como prestadores de serviços, ou seja, a falsos recibos verdes.
9. Dos normativos citados pela Ré – leis que aprovaram o Orçamento de Estado e de enquadramento orçamental – dirigem-se aos órgãos estatutários, máxime aos Conselhos de Administração de tais empresas e não aos trabalhadores.
10. Apesar dessas leis, a Ré tem admitido pessoal, tendo-se verificado por consulta à Base de Dados da Segurança Social, que a mesma admitiu 72 trabalhadores no período compreendido entre 01.01.2016 a 07.07.2017, sendo que 19 deles iniciaram prestação da actividade depois do dia 01.03.2017, data em que a ACT deu início à acção inspectiva da Ré.
11. A violação de tais leis é um assunto a dirimir entre a Administração da Ré e os órgãos que a tutelam.
12. Por outra via, tais leis não podem impedir ou proibir que o Tribunal venha a reconhecer a existência de um contrato de trabalho no caso em apreço caso se venha a provar materialidade fáctica para tanto.
13. Efectivamente, a todo o direito corresponde a acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, a prevenir ou a reparar a violação dele e a realizá-lo coercivamente – artigo 2º, nº2 do CPC.
14. E os Tribunais são órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo – artigo 202º da CRP.
15. E as decisões dos Tribunais são obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas e prevalecem sobre as de quaisquer outras autoridades – artigo 205º, nº2 da CRP e artigo 24º, nº2 da LOJTJ.
16. Das leis orçamentais e de enquadramento orçamental não resulta que uma contratação laboral a tempo indeterminado ou a termo ainda que sob a aparência de um contrato de prestação de serviços, não possa ser judicialmente reconhecida como tal.
17. Se se tratar efectivamente de um contrato de trabalho ele deve ser reconhecido como tal, sendo tal reconhecimento condição necessária para que, eventualmente, se possa afirmar a sua nulidade.
18. O Tribunal a quo não pode deixar de conhecer da causa perante uma pretensa excepção dilatória inominada, uma vez que o eventual reconhecimento de um contrato de trabalho, cujos efeitos retroagem ao início da relação laboral, acarreta efeitos jurídicos – artigo 122º, nº1 do CT.
19. Mostram-se violados o disposto nos artigos 15º-A da Lei nº107/2009 de 14.09, na redacção da Lei nº103/2013 de 27.08, o nº2 do artigo 186º-N do CPT, o artigo 12º e 122º nº1 do CT e artigo 2º, nº2 do CPC.
A Ré veio responder defendendo a manutenção da decisão recorrida, concluindo do seguinte modo:
1. No caso concreto não é legalmente admissível reconhecer a existência de um contrato de trabalho celebrado com a Ré nem fixar a data de início da produção dos respectivos efeitos. Assim o impede a Lei, que expressamente comina a nulidade, originária e insuprível, de contratos de trabalho celebrados pela Ré sem obtenção da prévia obtenção de autorização governamental, sendo que uma decisão judicial nunca seria suficiente para suprir tal nulidade.
2. Trata-se, aliás, de solução, ainda que com enquadramentos distintos, que tem sido seguida na generalidade das sentenças que têm julgado pleitos em tudo idênticos ao presente, conforme cópias que se juntam.
3. A posição sustentada pelo MP revela-se totalmente improcedente, na medida em que desconsidera o quadro legislativo orçamental aplicável à Ré, bem como as razões e motivos subjacentes à estipulação do regime específico relativo à contratação de trabalhadores.
4. A legislação em vigor impede o que o MP pretende com a instauração da presente acção, a qual servindo apenas para declarar a existência de um contrato de trabalho e fixar a data da constituição da relação laboral por ela instituída, não pode a mesma ter como resultado declarar que existe um contrato que a lei expressamente estabelece ser nulo, que, como tal, conduziria à imediata cessação do vínculo contratual e não à regularização da respectiva situação.
5. Improcede também o argumento do MP quando afirma que da declaração de existência de contrato de trabalho nulo acarretariam efeitos jurídicos, tratando-se de fundamento contrário à lei face ao desiderato da presente acção, que não visa o estabelecimento de quaisquer efeitos decorrentes do reconhecimento de um vínculo de natureza laboral, esgotando, ao invés, o seu efeito útil no tal reconhecimento, ou não, de uma relação de natureza laboral.
6. A regularização das situações de errado enquadramento contratual de vínculos estabelecidos com empresas do sector empresarial do Estado, onde se inclui a Ré, só pode ser obtida através do PREVPAP, sendo precisamente para essas situações que tal programa foi estabelecido.
7. Foi o próprio Estado que, tendo instituído limitações à admissão de trabalhadores por empresas do sector empresarial público, criou o PREVPAP, ou seja, um mecanismo destinado a regularizar as situações de errado enquadramento contratual existentes no seu próprio seio e, por essa via, assegurar a regularização dessas situações, a qual não pode ser obtida pelos meios comuns, dada a nulidade dos contratos de trabalho celebrados sem prévia autorização governamental.
8. Em face de tudo o que antecede, não se compreende qual o interesse que deve ser acautelado e que subjaz e justifica a continuação da presente lide, na medida em que através desta jamais se logrará a regularização da situação contratual em apreço, sendo que o próprio Estado, que o MP representa, tem propositada e especificadamente em curso um mecanismo que visa avaliar e regularizar essa mesma situação.
Com a resposta a Ré juntou fotocópias de várias decisões proferidas por diversos Tribunais na 1ª instância, cuja junção se admite nos termos do artigo 651º, nº2 do CPC.
Admitido o recurso cumpre decidir.
* * *
II
Nenhuma factualidade importa aqui referir para além do já exposto.
* * *
III
Objecto do recurso.
Da não verificação dos pressupostos legais que conduziram à absolvição da instância.
Da decisão recorrida consta o seguinte: (…) “1º Das limitações (proibições)
à constituição de relações de trabalho subordinado com entidades do sector público empresarial.
(…) “Ora, às relações de trabalho subordinado com as empresas públicas não se deixa de aplicar o «regime do contrato individual de trabalho», isto é, o regime próprio das relações de emprego privadas, constante do Código do Trabalho e demais legislação complementar. E isso mesmo resulta expressamente, no caso da empresa Ré, do preceituado no artigo 40º dos Estatutos da B… SA aprovados e republicados pela Lei nº39/2014 de 09.07. No entanto, há diversas normas especiais que alteram ou excepcionam o regime laboral comum, estabelecendo soluções específicas para as relações de trabalho subordinado com as empresas públicas (cf. artigos 17º e 18º do RJSPE) e, entre estas, a ora Ré. Uma dessas especificidades respeita à celebração de contratos de trabalho, que, desde 01.01.2013, está legalmente condicionada por força da legislação orçamental. De facto, desde 01.01.2013, que a lei só admite que as empresas do sector público empresarial celebrem contratos de trabalho mediante a prévia obtenção de autorização orçamental. Esta exigência foi instituída no artigo 62º, nº2 da LOE de 2013 (Lei nº66-B/2012 de 31.12) e manteve-se nas leis orçamentais subsequentes (LOE de 2014 – artigo 58º, nº3 da Lei nº83-C/2013 de 31.12; LOE de 2015 – artigo 58º, nº2 da Lei nº82-B/2014 de 31.12; e LOE de 2016 – artigo 28º, nº2 da Lei nº7-A/2016 de 30.03). A exigência de autorização governamental encontra-se hoje estabelecida no artigo 42º da LOE para 2017 (Lei nº42/2016 de 24.12), adiante (OE 2017), sob a epígrafe «Contratação de trabalhadores por pessoas colectivas de direito público e empresas do sector público empresarial», que estabelece que «(…) 2 – As empresas do sector público empresarial só podem proceder ao recrutamento de trabalhadores para a constituição de vínculos de emprego por tempo indeterminado ou a termo, nos termos do disposto no decreto-lei de execução orçamental». O artigo seguinte da mesma Lei Orçamental dispõe ainda que «durante o ano de 2017, as empresas do sector empresarial do Estado prosseguem uma política de ajustamento dos seus quadros de pessoal, adequando-os às efectivas necessidades de uma organização eficiente, só podendo ocorrer aumento de número de trabalhadores nos termos do disposto no decreto-lei de execução orçamental». Por sua vez, no artigo 123º, nº4 do DL nº25/2017 de 03.03, que estatui as regras de Execução Orçamental afirma-se que: «4 – Para efeitos do disposto no artigo 43º da Lei do Orçamento do Estado, os recrutamentos dos quais resulte o aumento do número de trabalhadores, face a 31 de Dezembro de 2016, carecem de autorização prévia do membro do Governo responsável pela área das finanças, após despacho favorável do membro do Governo responsável pelo sector de actividade. 5 – Sempre que do aumento do número de trabalhadores resultar o aumento de gastos com pessoal, o pedido a que se refere o número anterior deve ser acompanhado do pedido de dispensa [de redução de gastos operacionais]. 6 – São nulas as contratações de trabalhadores efectuadas em violação do disposto nos números anteriores. 7 – O disposto no presente artigo prevalece sobre todas as disposições legais, gerais ou especiais, contrárias». Do exposto resulta que à Ré – integrante do sector empresarial do Estado – encontra-se vedada a contratação de trabalhadores, sem a necessária autorização governamental. Ora, considerando que a referida autorização administrativa é um requisito prévio à contratação de um trabalhador por conta de outrem, a respectiva omissão fere o contrato de trabalho de nulidade originária insuprível. Aliás, a nulidade dos contratos de trabalho que hajam sido celebrados sem a prévia autorização governamental está expressamente prevista no OE 2017, artigo 42º, nº5 («As contratações de trabalhadores efectuadas em violação do disposto no presente artigo são nulas»), bem como no artigo 123º, nº6 do Decreto-Lei de Execução Orçamental («6 – São nulas as contratações de trabalhadores efectuadas em violação do disposto nos números anteriores»). Acresce ainda que, como resulta do transcrito artigo 123º, nº7 do DL de Execução Orçamental, as regras administrativas reguladoras da constituição de vínculos laborais no sector empresarial do Estado são imperativas e prevalecem sobre as demais. O que desde logo, diga-se, abala a contra argumentação do MP no sentido de que as «as leis que aprovaram o orçamento de Estado e de enquadramento orçamental dirigem-se aos órgãos estatutários, máxime aos Conselhos de Administração de tais empresas e não aos trabalhadores». Mas, portanto, mesmo que se apurasse que a situação objecto da presente lide configurava um contrato de trabalho, a Ré também não poderia proceder, seja voluntariamente, seja por determinação judicial, à regularização da situação, sob pena de estar a praticar um acto ilegal e nulo – cf. artigos 280º, 286º, 289º e 294º do CC. Aliás, tal significa também que os prestadores ficariam em pior situação do que aquela em que se encontram actualmente – onde conseguem prover pelo seu sustento – porquanto a Ré teria que fazer cessar de imediato todos os vínculos nulos sob pena de estar a violar, actualmente, o artigo 43º do OE 2017. 2º Da impossibilidade do Tribunal reconhecer eventuais situações de trabalho dependente celebradas pela B…” (…) “a limitação imposta pelas referidas normas orçamentais não é apenas aplicável à aqui Ré, antes também ao próprio Tribunal, que não poderá constituir uma relação que se mostra, originariamente, inválida. Com efeito, a regularização da situação também não poderia ser obtida através de uma decisão judicial, que nunca seria suficiente para suprir a nulidade decorrente da falta de autorização governamental e que, por isso, não permitiria obter o resultado visado pela presente acção, isto é, o reconhecimento da existência de contrato de trabalho válido e eficaz, susceptível de permitir a manutenção da relação laboral. De facto, mesmo que este Tribunal concluísse que a relação contratual em apreço poderia configurar um contrato de trabalho, a situação não ficaria regularizada, pois tal contrato seria nulo, por expressa cominação das normas da legislação orçamental atrás referenciadas. Alega o MP, em sentido inverso, que se fosse o próprio trabalhador a intentar acção de reconhecimento do seu vínculo como laboral ninguém duvidaria que o poderia fazer e vir a obter uma sentença condenatória. Contudo, não só nesta acção estão em causa interesses públicos, distintos do interesse particular do trabalhador, como quem desencadeou a acção foi uma entidade da Administração Pública, vinculada a normativos de ordem pública, e não do direito privado, como ainda e sobretudo o Tribunal não poderia, a nosso ver e mesmo numa acção do trabalhador, deixar de concluir pela nulidade do contrato de trabalho que viesse a ficar demonstrado. A diferença é que, numa relação movida pelo trabalhador, porque não limitada ao pedido de reconhecimento a que está limitada a presente (de simples apreciação positiva), o trabalhador poderia, subsidiariamente e para a hipótese de o Tribunal concluir pela nulidade do contrato, formular um pedido de indemnização pelos prejuízos causados com a sua contratação indevida/nula. Por conseguinte, o pedido de reconhecimento de contrato de trabalho – e que é o único admissível neste tipo de acção – não pode, mesmo enquanto dirigido tão só e apenas ao Tribunal, vir a ser julgado como procedente, independentemente da prova e apreciação dos factos alegados na petição; estando nós aqui e mais uma vez perante uma circunstância que obsta à apreciação do mérito, nos termos e com os efeitos do artigo 576º, nº2 do CPC. 3º Da invalidade da participação da ACT Sucede ainda e na senda do que se vem de dizer que a própria participação da ACT que está na base da presente acção, nos termos do artigo 186º-K, nº1 do CPT, está ela própria ferida de nulidade” (…) “o acto de não regularização que deu origem à Participação para o MP (como dela resulta) não se deveu a uma qualquer intenção da B… de não reconhecer aquela relação contratual como tendo natureza laboral, mas, tão só e apenas, ao facto da Ré estar legitimamente impossibilitada de reconhecer tal relação como sendo de trabalho dependente. Efectivamente, perante a situação concreta que a ACT fiscalizou e ainda que aceitasse corresponder a uma situação laboral, a verdade é que a Ré nada podia fazer quanto ao reconhecimento dessa mesma situação/relação” (…) “O que releva e é decisivo para a acção, tal como está legalmente configurada, é que a Ré não pode, no caso e no âmbito da própria acção, regularizar a situação do prestador de serviço, tanto mais que essa regularização teria, para ter lugar como preceituado no âmbito deste processo especial, de se reportar «à data de início da relação» - vd. o nº2 do artigo 15º-A da Lei nº107/2009 e o nº8 do artigo 186º-O do CPT – data em que a Ré não tinha nem poderá obviamente já obter a necessária autorização governamental. Dito de outro modo, podemos dizer que, estando a Ré legalmente impedida de regularizar a situação em apreço, a notificação da ACT para o fazer corresponde à notificação para a prática de um acto nulo e, como tal, a uma actuação contra legem” (…) “Consequentemente, não pode nem deve o Tribunal apreciar uma pretensão deduzida em juízo com base numa participação inválida, já que a apresentação da petição pelo MP e demais actos processuais subsequentes dependem ou pressupõe que houve uma participação, legal ou válida, por parte da ACT” (…) 4º Da inexistência de ilicitude” (…) “a causa de pedir, tal como resulta da petição e da participação com ela junta, assenta no facto de a Ré não ter regularizado a situação fiscalizada, reconhecendo o contrato celebrado com o prestador de serviço como sendo de trabalho desde o seu início, com todas as implicações legais. Porém e ainda que sobre a Ré fosse de entender que recaia tal dever, por a situação real do prestador ser laboral e não de mera prestação de serviço, a verdade é que sobre ela não deixava também de recair o dever de cumprir as disposições orçamentais que proíbem a contratação de trabalhadores sem autorização governamental. Ora, deflui do que já observamos quanto ao artigo 123º, nº7 do Decreto-Lei de Execução Orçamental aplicável em 2017, que as regras administrativas reguladoras da constituição de vínculo laborais no sector empresarial do Estado são imperativas e prevalecem sobre as demais. Como tal e admitindo a coexistência dos sobreditos deveres, daqui resulta que, na hierarquização dos deveres em colisão, a Ré satisfez aquele que tinha valor superior – cumprimento das disposições orçamentais que são imperativas e prevalecem sobre as demais” (…) “Em face do exposto, julgamos ser de concluir que não se verifica, no caso concreto, ilicitude na conduta da Ré que justificaria a propositura e prossecução da presente acção. E, não havendo uma conduta ilícita ou infracção a corrigir ou contrariar, deixa de haver fundamento para que o objecto da lide seja submetido a instrução, discussão e julgamento” (…) “5º Da inaplicabilidade da acção de reconhecimento da existência de contrato de trabalho à Ré Para ultrapassar a impossibilidade da Ré (e, de resto, todas as empresas públicas ou do sector empresarial do Estado) reconhecer contratos de prestação de serviços como sendo verdadeiros contratos de trabalho, o Governo instituiu um programa de regularização extraordinária dos vínculos precários na Administração Pública e no sector empresarial do Estado. Este programa é habitualmente designado pela sigla «PREVPAP», estando previsto no artigo 19º da Lei nº7-A/2016 de 30.03, no artigo 25º da Lei nº42/2016 de 28.12 e na Resolução do Conselho de Ministros nº33/2017 de 09.02 e tendo sido concretizado através da instituição de um procedimento próprio, aprovado pela Portaria nº150/2017 de 03.05” (…) “Ora, dado este enquadramento normativo, o reconhecimento da existência de um contrato de trabalho pela Ré só poderá ocorrer mediante os procedimentos do PREVPAP e no termo deles. Ou seja, enquanto tais procedimentos não estiverem finalizados é legalmente impossível à Ré reconhecer, por sua própria iniciativa e sem prévia autorização governamental, que a situação dos autos configura uma relação de trabalho dependente” (…) “Por conseguinte, sem a prévia autorização governamental ou sem o cumprimento dos procedimentos do PREVPAP nunca se conseguirá regularizar a situação e impedir a subsistência de situações de indevido enquadramento contratual, pois qualquer contrato requalificado como contrato de trabalho de outra forma será um contrato, como vimos, nulo” (…) “Mas, o que nesta sede importa reter é que, enfim, a presente acção de reconhecimento da existência de contrato de trabalho não pode ser aplicada à B… (ou de resto a qualquer empresa do sector público do Estado), até porque ela não supre a falta de autorização governamental prévia ou dispensa o cumprimento do PREVPAP. A utilização desta acção especial pressupõe um quadro legal em que o putativo empregador dispõe de liberdade para celebrar o contrato de trabalho e, por inerência, para, sendo caso disso, reconhecer que a relação contratual que instituiu configura um contrato de trabalho e não uma relação de trabalho autónomo. No caso de relações contratuais com entidades do sector empresarial público, por força das restrições impostas nas leis orçamentais, o putativo empregador não dispõe da faculdade de regularizar a situação. Ou seja, mesmo que a Ré considerasse que o contrato do prestador configurava um contrato de trabalho, não lhe seria permitido, por sua iniciativa e à revela do PREVPAP, regularizar a situação. E, não lhe sendo a ela permitida essa faculdade, também ao Tribunal não será lícito condená-la a fazê-lo, sem ou à margem do procedimento legalmente prescrito para o efeito (o dito PREVPAP) ” (…).
O apelante discorda, argumentando do seguinte modo: Não se vislumbra fundamento legal para eximir a Ré da aplicação do artigo 12º do CT e, consequentemente, do procedimento previsto no artigo 15º-A do DL nº107/2009, sempre que se verifiquem indícios de dissimulação do contrato de trabalho, como no caso dos autos. Assim, como não pode prejudicar tal reconhecimento o PREVPAP – Programa de Regularização Extraordinário de Precários na Administração e no Sector Empresarial do Estado. Efectivamente, a Lei nº63/2013, de 27.08, que veio substituir no ordenamento jurídico português um mecanismo de combate à utilização indevida do contrato de prestação de serviços em relações de trabalho subordinado não faz qualquer distinção entre empresas públicas ou do sector empresarial do Estado e empresas privadas. Logo, tal mecanismo, há-de aplicar-se, até por maioria de razão ao Estado ou seja à Ré. Se assim não fosse estava aberta a porta para que as empresas do sector empresarial do Estado, com os argumentos invocados pela Ré, só terem trabalhadores ao seu serviço, não importa quantos, quiçá todos, como prestadores de serviços, ou seja, a falsos recibos verdes. Dos normativos citados pela Ré – leis que aprovaram o Orçamento de Estado e de enquadramento orçamental – dirigem-se aos órgãos estatutários, máxime aos Conselhos de Administração de tais empresas e não aos trabalhadores. A violação de tais leis é um assunto a dirimir entre a Administração da Ré e os órgãos que a tutelam. Por outra via, tais leis não podem impedir ou proibir que o Tribunal venha a reconhecer a existência de um contrato de trabalho no caso em apreço caso se venha a provar materialidade fáctica para tanto. Efectivamente, a todo o direito corresponde a acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, a prevenir ou a reparar a violação dele e a realizá-lo coercivamente – artigo 2º, nº2 do CPC. E os Tribunais são órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo – artigo 202º da CRP. E as decisões dos Tribunais são obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas e prevalecem sobre as de quaisquer outras autoridades – artigo 205º, nº2 da CRP e artigo 24º, nº2 da LOJTJ. Das leis orçamentais e de enquadramento orçamental não resulta que uma contratação laboral a tempo indeterminado ou a termo ainda que sob a aparência de um contrato de prestação de serviços, não possa ser judicialmente reconhecida como tal. Se se tratar efectivamente de um contrato de trabalho ele deve ser reconhecido como tal, sendo tal reconhecimento condição necessária para que se possa afirmar a sua nulidade. O Tribunal a quo não pode deixar de conhecer da causa perante uma pretensa excepção dilatória inominada, uma vez que o eventual reconhecimento de um contrato de trabalho, cujos efeitos retroagem ao início da relação laboral, acarreta efeitos jurídicos – artigo 122º, nº1 do CT. Analisemos então.
Comecemos por citar o acórdão desta Secção Social, de 23.02.2015, igualmente subscrito pela aqui relatora, onde se expõe a razão de ser da Lei nº63/2013: (…) “ É o seguinte o teor da declaração inicial da iniciativa cidadã que conduziu ao projecto de lei 142/XII (1.ª) que veio culminar na aprovação da Lei 63/2013:“Exposição de Motivos
«Nós, desempregados, “quinhentos euristas”, e outros mal remunerados, escravos disfarçados, subcontratados, contratados a prazo, falsos trabalhadores independentes, trabalhadores intermitentes, estagiários, bolseiros, trabalhadores-estudantes, estudantes, mães, pais e filhos de Portugal»: assim começava o manifesto que convocou a maior mobilização social dos últimos anos, que levou centenas de milhares de pessoas às ruas de várias cidades do país e do estrangeiro. Esta mobilização é um sinal inequívoco que reclama uma mudança e um combate efectivo à precariedade.
A precariedade atinge hoje cerca de 2 milhões de trabalhadores em Portugal e o seu crescimento ameaça todos os outros. Com a situação actual, defrauda-se o presente, insulta-se o passado e hipoteca-se o futuro. (…)”.
O Direito não é de geração espontânea.
Esta mesma exposição de motivos, com poucas adaptações, podia ilustrar a génese do princípio da autonomia privada e da igualdade entre cidadãos, todos com o seu livre direito de escolha da profissão, uns escolhendo empregar os outros e estes escolhendo serem empregados dos primeiros. O princípio da igualdade dos cidadãos foi gerado nas lutas da burguesia contra os privilégios da aristocracia acolhida à sombra do poder divino do Rei da França, com o astuto aproveitamento, pela primeira, do descontentamento das classes mais pobres, acossadas das grandes fomes que nos anos anteriores à Revolução assolaram a França. Não foi o poder absoluto que se rendeu à bondade das ideias dos filósofos das luzes e que pôs fim aos símbolos da sua indemonstrada ligação umbilical a Deus, e aos sistemas dela decorrentes.
O Direito nasce portanto do resultado do jogo de forças e, a partir dos seus momentos constituintes, bem pode convocar a tradição da ciência ou do sistema jurídico e a excelência e proficuidade dos seus peritos, para lograr elaborar um edifício estável, que todavia não pode esquecer o que lhe deu vida, nem o que é a sua origem primeira, sob pena de se transformar numa ruína clássica.
A disciplina do contrato de trabalho vai buscar-se, entre nós, a contratos privados, estabelecidos entre sujeitos autónomos, independentes e livres, em estado de igualdade (ao menos formal) previstos, ao lado de muitos outros contratos, no Código Civil de 1867. Se olharmos para o início do quase século e meio que nos separa de tal meritório diploma, encontramos a Igreja Católica, compungida com tanta miséria, a dar origem à Questão Social, mas encontramos sobretudo os esforços associativos das populações migradas para os subúrbios industriais das cidades, cujas aspirações são consagradas, ainda que quase só formalmente, após 1910. (…)
Portanto, também o Direito do Trabalho tem uma génese. Um século depois das forças que implementam o princípio da igualdade, outras forças estão a reclamar poder e consolidação desse poder através da construção dum correspondente edifício jurídico. E outro século, entretanto, já passou.
O artigo 9º do Código Civil, por isso e muito sabiamente, manda atender ao elemento histórico. O intérprete da lei laboral, e ainda mais o seu aplicador, não pode esquecer o elemento histórico, sobretudo não pode esquecer a génese – que é o fundamento específico – do Direito do Trabalho.
O mínimo que se pode dizer sobre a Lei 63/2013 é que o legislador acolheu, ainda que reformuladas, as pretensões de 35.008 cidadãos eleitores que deram origem à iniciativa legislativa – e que ao fazerem-no se assumem também como integrando a figura do legislador – e que assentam na exposição de motivos acima enunciada, ou seja, o legislador reconheceu que a precariedade laboral, na sua vertente de falsos contratos de prestação de serviços, que afecta milhares de cidadãos, é um verdadeiro e grave problema social e económico. E é um problema porque defrauda o presente, hipoteca o futuro, e sem dúvida é um insulto ao passado de luta que gerou o Direito do Trabalho” (…) O Direito do Trabalho não impõe a ninguém que celebre um contrato de trabalho. Percorrido todo o seu normativo, não se encontra uma única disposição que a tanto obrigue. Nem é esta acção, na sua procedência, que o faz. Tanto assim, que a decisão judicial de declaração de existência dum contrato de trabalho não impõe, nem expressa nem tacitamente, a derrogação dos preceitos relativos à denúncia do contrato pelo trabalhador, nem lhe impede o abandono do trabalho.
O que o Direito do Trabalho faz – e não faz sob uma disciplina essencialmente supletiva – é, mau grado todos os vaticínios sinistros dos seus cultores, estabelecer um corpo de direitos e deveres que põe em equilíbrio efectivo titulares de interesses só formalmente, mas não materialmente, equilibrados. Tenha o perfil do trabalhador obtido autonomia dos modelos taylorista, fordista (…) e estejamos a viver numa economia de serviços e de especulação, os teóricos reconhecem que podendo o desajuste do Direito do Trabalho conduzir à sua morte, a sua sobrevivência depende da capacidade de adaptação normativa às novas realidades, e esta sobrevivência tem como fundamento a, ainda que reduzida, metamorfoseada, efectiva desigualdade entre as partes no contrato de trabalho – veja-se Maria do Rosário Palma Ramalho, Tratado de Direito do Trabalho, Parte I, Almedina, 3ª Edição, 2012, páginas 98 e 99. A sua conclusão final é aliás lapidar: “Perante o quadro exposto, a conclusão não oferece dúvidas: a intervenção normativa nas áreas referidas era essencial para adequar os regimes laborais às necessidades das empresas modernas, mas também para evitar que estes regimes tivessem uma incidência cada vez mais reduzida (…) e para diminuir a fractura crescente entre os trabalhadores protegidos pelo sistema laboral e os que escapam a essa protecção (…). Estes os desafios que se colocam ao Direito do Trabalho português no limiar do séc. XXI. (…)”.
A acção de reconhecimento de contrato de trabalho não constitui o contrato de trabalho. É a “desconstituição” da base do Direito do Trabalho que ela procura combater, declarando, em casos em que existe verdadeiro contrato de trabalho sob a máscara de contrato de prestação de serviços, e com inerente subtracção do trabalhador à protecção laboral, que ali existe um contrato de trabalho. Assentemos portanto que esta acção não é constitutiva de relações laborais, o contrato de trabalho não se celebra por vontade das partes e, agora também, por decisão do tribunal instigada pela intromissiva perseguição do Ministério Público a sujeitos autónomos, independentes e esclarecidos, antes livres de disporem da sua vida – recordemos o Código de Processo Civil, no seu artigo 10º nº 2: “As acções declarativas podem ser de simples apreciação, de condenação ou constitutivas”. E o seu nº 3 define o fim destas espécies, estabelecendo na alínea c) que “As constitutivas, autorizar uma mudança na ordem jurídica existente”. (…) A pretensão da lei nova, ao instituir meios de combate a uma prática generalizada, socialmente danosa pela subtracção à protecção laboral, afectando ainda a Segurança Social e a Administração Fiscal, serve um interesse maior e diverso do interesse privado de cada trabalhador/falso prestador, e não constitui por isso uma discriminação arbitrária. Ora, não há dúvida que o Direito do Trabalho, com maior ou menor acutilância, se justifica a si mesmo pela necessidade de protecção do tal sujeito de Direito Privado que reconhece, apesar de tudo, ser mais fraco. (…)
E se do trabalhador, tirando o contexto da pequena empresa, se pode dizer ou continuar a dizer que se encontra, geralmente, em situação de desigualdade face ao seu empregador, o que dizer então do falso prestador de serviços, permanentemente suspenso da possibilidade de denúncia imediata e livre pelo falso beneficiário, da actividade na qual busca o, ou parte do, seu indispensável sustento? [fim de citação].
Tendo em conta tais considerações podemos então avançar.
Em face do estabelecido nos vários Orçamentos de Estado, conjugados com as regras de Execução Orçamental, concluiu o Mmº. Juiz a quo que fazendo a Ré parte integrante do sector empresarial do Estado está-lhe vedada a contratação de trabalhadores, sem a necessária autorização governamental e se o fizer tal contratação é nula. E assim sendo, conclui aquele Magistrado que mesmo que se apurasse, na presente acção, a existência de um contrato de trabalho, a Ré não poderia proceder à «regularização» da situação por carecer da referida autorização governamental o que determinaria, igualmente, a impossibilidade do Tribunal reconhecer a existência desse vínculo laboral por tal reconhecimento ser insuficiente para o efeito.
Com o devido respeito não podemos concordar com tal argumentação.
A Lei nº63/2013 de 27.08 [que instituiu mecanismos de combate à utilização indevida do contrato de prestação de serviços em relações de trabalho subordinado] alterada pela Lei nº55/2017 de 17.07 [que veio aprofundar o regime jurídico da acção especial de reconhecimento da existência de contrato de trabalho e alargar os mecanismos processuais de combate aos falsos «recibos verdes» e a todas as formas de trabalho não declarado, incluindo falsos estágios e falso voluntariado] não faz qualquer distinção entre empregadores do sector privado e empregadores do sector empresarial do Estado, ou seja, não excluiu o legislador da Lei nº63/2013 a sua aplicação às situações em que o empregador é uma empresa do sector público empresarial. E não tinha que o fazer na medida em que ao pessoal de empresas como a Ré se aplica o regime jurídico do contrato individual de trabalho [artigo 17º, nº1 do Regime Jurídico do Sector Público Empresarial aprovado pelo DL nº133/2013 de 03.10 e artigo 40º dos Estatutos da B…, aprovados pela Lei nº39/2014 de 09.07]. E como sabemos a questão dos «falsos recibos verdes» não diz apenas respeito às empresas privadas, não desconhecendo o legislador essa mesma realidade.
Pois bem, a falta de autorização governamental [a autorização governamental tem a ver, essencialmente, com questões de natureza orçamental, ou seja, com custos que a contratação de trabalhadores acarreta e que podem não estar cobertos pelo OE] a que o Mmº. Juiz a quo alude é, em nosso entendimento, questão que se coloca só após se ter apurado se entre a Ré e a jornalista C…. existiu um contrato de trabalho. Uma coisa é a verificação da existência de uma determinada realidade factual e jurídica, qual seja a existência de um contrato de trabalho, e, outra diferente, a da sua validade ou não, designadamente por falta da referida autorização governamental, questão esta que apenas se colocará em momento posterior, isto é, constada que seja a existência de um contrato de trabalho.
Acresce que, a procedência da presente acção – existência de contrato de trabalho – poderá conduzir à constituição dos titulares do Órgão de Administração da Ré em responsabilidade, civil, criminal e financeira, como determina o nº6 do artigo 25º do DL nº133/2013 de 03.10 [regime jurídico do sector público empresarial], apesar de os subscritores do presente acórdão não terem conhecimento de situações em que tivessem sido accionadas acções com vista à referida responsabilização.
Negar-se a averiguação, na presente acção, da existência de um contrato de trabalho porque ele estaria sujeito à prévia autorização governamental é esquecer completamente a razão de ser da Lei nº63/2013, e que atrás transcrevemos, e «deixar entrar pela janela o que este diploma legal não deixou entrar pela porta». E para além disso é negar o legítimo exercício das funções atribuídas pela mesma Lei ao MP e consagradas no artigo 219º, nº1 da Constituição da República Portuguesa [«Ao Ministério Público compete representar o Estado e defender os interesses que a lei determinar»…].
Mesmo a admitir-se a tese sufragada na decisão recorrida certo é que a presente acção teria de seguir os seus trâmites até à prolação de decisão final tendo em conta o disposto no artigo 122º, nº1 do CT/2009 [«O contrato de trabalho declarado nulo ou anulado produz efeitos como válido em relação ao tempo em que seja executado»].
Ou seja, a presente acção justifica-se ainda por outra razão: se for reconhecido a existência de um contrato de trabalho certo é que a trabalhadora não está impedida de em acção autónoma formular pedido de indemnização – artigo 123º do CT/2009.
E pelas mesmos fundamentos – atrás expostos – se conclui não acompanharmos a decisão recorrida quando refere que a participação da ACT é inválida, por ferida de nulidade.
Na verdade, se a Ré entendia que não podia regularizar a situação da trabalhadora por falta de prévia autorização governamental só o teria que comunicar à ACT – artigo 15º-A, nº1 da Lei nº63/2013 de 27.08. Contudo, essa comunicação não era impeditiva do cumprimento, pela ACT, da demais tramitação processual, nomeadamente a remessa da participação ao MP – artigo 186º-K, nº1 do CPT.
Relativamente à inexistência de ilicitude tratada em 4º lugar pelo Mmº. Juiz a quo afigura-se-nos que tal questão não pode ser conhecida na presente acção mas apenas no procedimento contraordenacional eventualmente instaurado contra a Ré.
Na verdade, a presente acção é tão só uma acção declarativa, de simples apreciação [tais acções visam unicamente a declaração da existência ou inexistência de um direito ou de um facto – artigo 10º nº3, al. a) do CPC].
E finalmente cumpre apreciar a questão da não aplicação da presente acção à Ré por força da existência do programa PREVPAP [regularização dos vínculos precários na Administração Pública e no Sector Empresarial do Estado], o que nos conduz à análise da Portaria nº150/2017 de 03.05.
Do seu preâmbulo consta o seguinte: No âmbito da estratégia plurianual de combate à precariedade, prevista no artigo 19.º da Lei n.º 7 -A/2016, de 30 de Março, procedeu-se, numa primeira fase, ao levantamento de todos os instrumentos de contratação utilizados na Administração Pública e no sector empresarial do Estado. Essa estratégia, mais tarde explicitada pelo artigo 25.ºda Lei n.º 42/2016, de 28 de Dezembro, foi orientada para um programa de regularização extraordinária dos vínculos precários que abranja as situações do pessoal da Administração Pública e do sector empresarial do Estado que desempenhe funções correspondentes a necessidades permanentes, com sujeição ao poder hierárquico, de disciplina ou direcção, e horário completo, sem o adequado vínculo jurídico. Posteriormente, a Resolução do Conselho de Ministros n.º 32/2017, de 28 de Fevereiro, estabeleceu, nomeadamente, regras a que deve obedecer a avaliação dos requisitos de acesso ao programa de regularização extraordinária dos vínculos precários, a realizar por comissões criadas no âmbito de cada área governativa, com participação de representantes sindicais, e que pode ser desencadeada por solicitação dos trabalhadores. O procedimento regulado pela presente portaria corresponde a esta nova fase, na qual se vai proceder à avaliação de situações de exercício de funções que correspondam a carreiras gerais ou especiais, existentes em algum momento do período de 1 de Janeiro de 2017 até à data de entrada em vigor da presente portaria, com subordinação a poderes de autoridade e direcção, que correspondam a necessidades permanentes dos órgãos ou serviços da administração directa e indirecta do Estado ou das entidades do sector empresarial do Estado, e que não tenham o adequado vínculo jurídico. Este procedimento não abrange carreiras em relação às quais exista legislação reguladora da integração extraordinária de pessoal, para evitar duplicações, bem como situações de exercício de funções que, por força de legislação específica, só são tituladas por vínculos de duração limitada. Pretende -se que sejam ponderadas as situações de exercício de funções que correspondam a trabalho subordinado que concorrem para a satisfação de necessidades permanentes e não sejam baseadas num vínculo jurídico adequado (…) No sector empresarial do Estado, a regularização das situações decorre do regime estabelecido no Código do Trabalho. Com efeito, nas situações de exercício de funções que correspondam a necessidades permanentes, aferidas com base no critério de tais situações não permitirem a celebração de contratos de trabalho a termo, e cujo vínculo seja contrato de trabalho, porque as partes assim o celebraram ou os indícios de laboralidade fazem presumir a sua existência, esse contrato de trabalho considera-se sem termo porque qualquer termo que as partes tenham estipulado é vedado no contrato de trabalho cuja execução corresponda à satisfação de necessidades permanentes [sublinhado da nossa autoria].
Por sua vez, o artigo 3º da referida Portaria – sob a epígrafe Competências das Comissões de Avaliação Bipartida – preceitua o seguinte: “ 1. São competências das CAB: a) Admitir os requerimentos que lhe sejam dirigidos por qualquer interessado, bem como as comunicações feitas pelo dirigente máximo de cada órgão, serviço ou entidade, nos termos dos artigos 11.º e 12.º; b) Emitir parecer sobre a correspondência das funções exercidas a uma necessidade permanente do órgão, serviço ou entidade onde em concreto as mesmas são desempenhadas; c) Emitir parecer sobre a adequação do vínculo jurídico às funções exercidas (…) “5. Na apreciação das situações de exercício efectivo de funções em entidade do sector empresarial do Estado que correspondam a necessidades permanentes, caso quem as exerce não esteja vinculado à entidade em causa por contrato de trabalho a termo resolutivo, presume-se a inadequação do vínculo jurídico se, na relação entre o requerente que presta a actividade e a entidade que dela beneficia, se verificarem algumas das seguintes características: a) A actividade é realizada em local pertencente ao seu beneficiário ou por ele determinado; b) Os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pertencem ao beneficiário da actividade; c) O prestador da actividade observa horas de início e de termo da prestação, determinadas pelo beneficiário da mesma; d) É paga, com determinada periodicidade, uma quantia certa ao prestador da actividade, como contrapartida da mesma; e) Dependência económica do prestador da actividade” [sublinhado da nossa autoria].
Do acabado de transcrever decorre que a citada Portaria foi buscar ao artigo 12º do CT/2009 a presunção de inadequação do vínculo jurídico, o que equivale a dizer presunção de existência de contrato de trabalho.
Ora, o que a Portaria veio regular é precisamente matéria que a Lei nº63/2013 de 27.08 atribuiu aos Tribunais do Trabalho.
Não choca que o Governo tente resolver uma situação de precaridade laboral que vem se arrastando no tempo no que respeita ao sector empresarial do Estado, como o faz através da referida Portaria e mais recentemente através da Lei nº112/2017 de 29.12, ao estabelecer o Programa de Regularização Extraordinária dos Vínculos Precários [como não chocaria admitir que determinada entidade empregadora avaliasse a situação dos seus «prestadores de serviços» e concluísse pela «conversão» dessa prestação em contrato de trabalho].
Seja como for, tal regulamentação não significa que a ACT fique dispensada do cumprimento do seu dever de fiscalização e o MP fique igualmente dispensado de instaurar acções de reconhecimento da existência de contrato de trabalho [deveres atribuídos pela Lei nº63/2013 de 27.08]. Se assim fosse, o que não se admite, ocorreria violação do determinado no artigo 202º, nº1 e nº2 da Constituição da República Portuguesa, na medida em que tal reconhecimento, com consagração na Lei nº63/2013 de 27.08, está reservado aos Tribunais.
Assim sendo, e por todos os fundamentos expostos, procede a apelação.
* * *
Termos em que se julga a apelação procedente, se revoga a decisão recorrida – que absolveu a Ré da instância – e se ordena o prosseguimento dos autos.
* * *
Custas da apelação a cargo da Ré/apelada.
* * *
Porto, 08.01.2018
Fernanda Soares
Domingos Morais
Paula Leal de Carvalho