Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2678/17.7YLPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANA PAULA AMORIM
Descritores: DESPEJO
OPOSIÇÃO
CAUÇÃO
APOIO JUDICIÁRIO
DISPENSA
Nº do Documento: RP201805302678/17.7YLPRT,P1
Data do Acordão: 05/30/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 675, FLS.262-269)
Área Temática: .
Sumário: I - A norma do art.º 10 da portaria 9/2013 de 10 de Janeiro contraria o art.º 15.º F n.º 3 do NRAU e estando em causa um conflito entre duas normas - uma lei ordinária da Assembleia da República e outra ínsita em portaria que é regulamento de fonte governamental - o mesmo apenas pode ser resolvido pela prevalência da fonte de hierarquia superior.
II - Beneficiando de apoio, na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo, o arrendatário está isento de demonstrar o pagamento da caução normalmente exigida como condição de admissibilidade da oposição ao pedido de despejo, deduzido com fundamento no art. 1083º/3/4 CC.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: BNA-Caução-2678/17.7YLPRT.P1
Comarca do Porto
Juízo Local CV Vila Nova de Gaia – Juiz 1
Proc. 2678/17.7YLPRT
Recorrente: B…
Recorrido: C…
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Juiz Desembargador Relator: Ana Paula Amorim
Juízes Desembargadores Adjuntos: Manuel Fernandes
Miguel Baldaia de Morais
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I
Relatório
No Balcão Nacional de Arrendamento C… residente na Avenida …, nº …., …, …. - … Vila Nova de Gaia requereu contra B… residente na rua …, nº …, …, …. - … … o procedimento especial de despejo, com fundamento em resolução do contrato de arrendamento pelo senhorio, por falta de pagamento de rendas, nos termos do art. 1083º/4 CC.
Instruíram o pedido com cópia do contrato de arrendamento, carta com aviso de receção a comunicar a resolução do contrato e comprovativo do pagamento do imposto de selo.
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Notificada a requerida por carta com aviso de receção veio informar que requereu a concessão de apoio judiciário, na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça e demais encargos e nomeação de patrono.
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O Instituto da Segurança Social, IP, Centro Distrital do Porto veio a fls. 19 e 20 comunicar o teor da decisão que recaiu sobre o pedido de apoio judiciário formulado pela requerida, constando de tal informação que o benefício foi concedido na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo e ainda, nomeação e pagamento da compensação de patrono.
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A fls. 27 consta o ofício com indicação do patrono nomeado à requerida.
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A requerida veio deduzir oposição, defendendo-se por exceção. Alega o pagamento das rendas e a caducidade do direito de resolução do contrato.
Termina por pedir a improcedência do procedimento especial de despejo.
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Em 18 de dezembro de 2017 foram os autos remetidos à distribuição, ao abrigo do disposto no art. 9º/3 da Portaria 09/2013 de 10 de janeiro.
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Em 20 de dezembro de 2017 proferiu-se o seguinte despacho:
“ Notifique o senhorio da contestação apresentada para, em 10 dias, responder (art. 15º- H/2, do NRAU).
Em igual prazo poderão as partes pronunciar-se sobre as consequências da não prestação da caução prevista no art. 15º-F/3, do NRAU”.
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O requerente veio exercer o direito de resposta sobre a matéria das exceções suscitadas pela requerida na contestação (pagamento e caducidade do direito de resolução do contrato).
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Na contracapa dos autos encontra-se agrafado um requerimento apresentado pela requerida em 08 de janeiro de 2018, no qual vem pronunciar-se sobre as consequências da não prestação de caução prevista no art. 15º-F/3 do NRAU.
Alegou para o efeito que conforme documento nº 8 junto com a com a oposição foi concedido à requerida o apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo e ainda, nomeação e pagamento da compensação com patrono.
Mais referiu que nos termos do art. 15º-F/3 a requerida está dispensada do pagamento de uma caução do valor das rendas em atraso porque conforme alegou na oposição não há rendas em atraso e beneficia de apoio judiciário.
Termina por pedir o prosseguimento da ação para apreciação do pagamento das rendas efetuado pela requerida.
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Proferiu-se sentença com o seguinte teor:
“C… veio interpor, contra B… procedimento especial de despejo, com base na falta de pagamento de rendas.
A requerida veio deduzir oposição, não tendo procedido ao pagamento da caução prevista no art. 15º-F/3, da Lei 6/2006, de 27-02, o que aqui se impunha, atento o fundamento do pedido de despejo. E o facto de gozar de apoio judiciário não a isenta da prestação de tal caução.
De facto, o elemento histórico não consente tal interpretação da norma.
Como refere Abílio Neto (em “Despejo de Prédios Urbanos Anotado”, 2016, pág. 103), em exposição que pela sua particular clareza se passa a transcrever “Na proposta (inicial) da Lei n. 38/XII, o n.º3 do art. 15º-F tinha a seguinte redação: “com a oposição, deve o requerido proceder à junção do documento comprovativo da taxa de justiça e, nos casos previstos nos n.ºs 3 e 4 do artigo 1083º do Código Civil, ao pagamento de uma caução no valor das rendas, encargos ou despesas em atraso, nos termos a definir por portaria do membro do Governo responsável pela área da Justiça”, acrescentando o n.º 4 que “na falta de junção do documento comprovativo do pagamento da taxa de justiça ou do pagamento da caução prevista no número anterior, a oposição tem-se por não deduzida”.
“No Parecer que emitiu sobre a Proposta em apreço, datada de 15-03-2012, o Conselho Superior da Magistratura salientou, em dado passo do item 3.3, que “o art. 15º-F impõe o pagamento de uma taxa de justiça para o exercício de defesa de um direito fundamental relativo à habitação sem cuidar, no mesmo preceito de assegurar a proteção do Estado para situações de impossibilidade ou insuficiência económica para cumprimento desse encargo atenta a sanção fulminante do n.º 4 da norma em causa. A salvaguarda do art. 15º-T (“ao procedimento especial de despejo aplica-se o regime de acesso ao direito e aos tribunais”) resulta um pouco contraditório com este preceito, matéria que conviria esclarecer”. Ou seja – acrescentamos nós, a dúvida que o texto suscitava e que importava esclarecer reportava-se apenas à taxa de justiça, com exclusão da caução.
“E foi esse o objetivo que levou o legislador à inclusão, no texto inicial [desta norma] do inciso “salvo nos casos de apoio judiciário, em que está isento”, mantendo a última parte do mesmo n.º3 – “nos termos a definir por portaria do membro do Governo responsável pela área da justiça” -, essa apenas reportada ao “pagamento da caução”, quer porque a sua natureza e função não estava englobada no âmbito do apoio judiciário, quer porque não tinha sido objeto de crítica por parte do mencionado e autorizado Parecer (…).
“Tratando-se de obrigações civis aparentemente incumpridas, estabelecidas entre particulares, bem se compreende que a admissão da oposição, deduzida pelo arrendatário à resolução do contrato e consequentes despejo e pagamento de tais valores, seja condicionada à prestação de uma caução, em ordem a garantir a seriedade daquela oposição e que não se trata de mero expediente dilatório.
Desta forma, não é a concessão de apoio judiciário que liberta o arrendatário da obrigação de prestação de caução. Aliás, em coerência, determina o art. 10º/2, da Portaria 9/2013, de 10-01, que o documento comprovativo do pagamento da caução deve ser apresentado juntamente com a oposição, independentemente de ter sido concedido apoio judiciário ao arrendatário.
Devendo o intérprete da lei presumir que o legislador soube exprimir de forma adequada o seu pensamento (art. 9º/3, do CCivil), também a atual redação deste artigo 10º/2, leva a concluir o que já resultava do elemento histórico de interpretação da norma.
Desta forma, mais não resta do que, ao abrigo do disposto no art. 15º-F/4, da Lei 6/2006, de 27-02, ter a oposição como não deduzida, o que aqui se determina.
Notifique”.
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A requerida veio interpor recurso da sentença.
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Nas alegações que apresentou a apelante formulou as seguintes conclusões:
A) – O recorrido propôs no Balcão Nacional do Arrendamento Processo Especial de Despejo contra a Recorrente.
B) – O recorrido resolveu o contrato de arrendamento nos termos do Nº 4 do artigo 1083º do Código Civil, invocando uma renda em mora e, em virtude dessa renda em mora, invocou que a arrendatária se constituiu em mora superior a oito dias, no pagamento da renda, por mais de quatro vezes, seguidas, num período de 12 meses.
C) – A recorrente apresentou oposição no Balcão Nacional do Arrendamento invocando nada dever. Não aceita que se tenha constituído em mora superior a oito dias, no pagamento da renda, por mais de quatro vezes seguidas num período de 12 meses.
D) – Distribuído o requerimento de Processo Especial de Despejo, decidiu o Meritíssimo Juiz do Tribunal a quo, ao abrigo do disposto no art. 15º - F/4, da Lei 6/2006, de 27-02, ter a oposição como não deduzida, por a Recorrente não ter prestado a caução prevista no art.º 15º - F/3, do NRAU, não obstante ter beneficio de apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo.
Todavia,
E) – Resulta da letra da Lei, nº 3 do art.º 15º - F do referido diploma que com a oposição deve o Requerido proceder à junção do documento comprovativo do pagamento de uma caução no valor das rendas, encargos ou despesas em atraso, até ao valor máximo correspondente a seis rendas, salvo nos casos de apoio judiciário.
Aliás
F) – Foi assim que foi decidido no Ac. Rel., de 19.2.2015; Proc. 4118/14, consultável em dgsi, net: “A norma do art.º 10º da P.ª nº 9/2013, de 10-1, ao estabelecer que o documento comprovativo do pagamento da caução deve ser apresentado juntamente com a oposição, independentemente de ter sido concedido apoio judiciário ao arrendatário, contraria o art. 15º - F, nº 3, do NRAU, que, incontornavelmente, isenta de tal ónus de prestação de caução o requerido que beneficie de apoio judiciário. Estando em causa um conflito entre duas normas de direito infraconstitucional, o mesmo apenas pode ser resolvido pela prevalência da fonte de maior hierarquia”.
G) – De forma igual foi decidido no AC. RL., de 10.2.2015; Proc. 1958/14 consultável em dgsi, NET: “ Impõe-se interpretar o art. 15º - F nº 3 do NRAU, aprovado pela Lei nº 6/2006, de 27/2, com as alterações introduzidas pela Lei nº 31/2012, de 14-8 no sentido de que o legislador pretendeu isentar o arrendatário que goza de beneficio do apoio judiciário da obrigação de demonstrar, aquando da apresentação do articulado de oposição (ao pedido de despejo), que pagou a taxa de justiça devida (responsabilidade perante o Estado) e que pagou caução no valor das rendas, encargos ou despesas em atraso (responsabilidade perante o senhorio). II – É por isso de afastar a regulação que, em contrário, emana do art.º 10º da Pª nº 9/2013 de 10-1, verificando-se uma invalidade da portaria aludida, porquanto o seu conteúdo é incompatível com a respetiva fonte de produção.”
H) – O Tribunal a quo, ao decidir não deduzida a oposição com fundamento na não prestação da caução prevista no artigo 15º - F/3 do NRAU, apesar da Recorrente ter apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos no processo, entre outros, violou o disposto nos artigos números 3 e 4 do artigo 15º - F da Lei 6/2006, de 27-02.
Termina por pedir a revogação do despacho e a sua substituição por decisão que considere deduzida a oposição e o prosseguimento dos autos nos termos do art.º15º - i do referido diploma legal.
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Não foi apresentada resposta ao recurso.
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O recurso foi admitido como recurso de apelação.
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Dispensaram-se os vistos.
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II. Fundamentação
1. Delimitação do objeto do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso – art. 639º do CPC.
A questão a decidir consiste em saber se deduzida oposição e beneficiando a requerida de apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo está obrigada à prestação de caução, como condição de admissibilidade da oposição.
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2. Os factos
Com relevância para a apreciação das conclusões de recurso cumpre ter presente os factos que resultam do relatório.
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3. O direito
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Nas conclusões de recurso considera a apelante, com apoio em jurisprudência do Tribunal da Relação de Lisboa que beneficiando de apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça e demais encargos do processo está dispensada do depósito da caução, prevista no art. 15º-F/3 Lei 6/2006 de 27/02, alterado pela Lei 31/2012, de 14/08, diploma que foi objeto de nova alteração com a publicação da Lei 79/2014 de 19 de dezembro.
A decisão recorrida entendeu que tal benefício não é extensivo ao depósito da caução e uma vez que não está demonstrado o seu depósito com a apresentação da oposição, julgou-se não admitida a oposição.
A questão a apreciar consiste em determinar se requerido procedimento especial de despejo, com fundamento em resolução do contrato, por falta de pagamento das rendas, deduzida oposição e beneficiando o requerido de apoio judiciário, na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça e demais encargos do processo, mesmo assim, está obrigado a juntar com a oposição depósito da caução, a que alude o art. 15º-F/3 Lei 6/2006 de 27/02, alterado pela Lei 31/2012, de 14/08 e Lei 79/2014 de 19 de dezembro, para ser admitida a oposição.
O presente procedimento especial de despejo foi instaurado ao abrigo do art. 15º/1/2 e) da Lei 6/2006 de 27/02, alterado pela Lei 31/2012, de 14/08 e pela Lei 79/2014 de 19 de dezembro.
O requerente instaurou o procedimento com fundamento em resolução do contrato pelo senhorio, nos termos do art. 1083º/4CC.
O procedimento especial de despejo, como decorre do art. 1º do citado diploma, constitui um meio processual que se destina a efetivar a cessação do arrendamento, quando o arrendatário não desocupe o locado na data prevista na lei ou na data fixada por convenção entre as partes.
Este procedimento admite oposição, como decorre do art. 15ºF, a qual deve ser deduzida no prazo de 15 dias a contar da notificação.
Contudo, prevê-se no art. 15º-F/3, que com a oposição deve o requerido nos casos previstos no nº3 e nº4 do art. 1083º CC, juntar comprovativo do pagamento de uma caução no valor das rendas, encargos ou despesas em atraso, até ao valor máximo correspondente a seis rendas, salvo nos casos de apoio judiciário, em que está isento, nos termos a definir por portaria do membro do Governo responsável pela área da justiça.
A Portaria 09/2013 de 10 de janeiro veio prever, no art. 10º, a forma como se processa o pagamento da caução, determinando o pagamento pelos meios eletrónicos previstos no art. 17º da Portaria 419-A/2009 de 17 de abril, após a emissão do respetivo documento único de cobrança.
Este mesmo preceito, no seu nº2, veio precisar que o documento comprovativo do pagamento deve ser apresentado juntamente com a oposição, independentemente de ter sido concedido apoio judiciário ao arrendatário.
Não se mostrando paga a caução, a oposição tem-se por não deduzida, em conformidade com o disposto no art. 15º-F/4 da Lei 6/2006 de 27/02, alterado pela Lei 31/2012, de 14/08 e pela Lei 79/2014 de 19 de dezembro.
Da conjugação destes preceitos decorre que a prestação de caução constitui uma condição de admissibilidade da oposição[1], pois na sua falta a oposição tem-se por não deduzida. A prestação da caução visa garantir a posição do senhorio e por isso, não tem qualquer repercussão sobre o mérito da causa. Pretende-se desta forma obstar à prática de atos dilatórios e a oposições infundadas.
O valor da caução é devido, ainda que se verifique um motivo justificado para suspender o pagamento da renda e é calculado em função do valor das rendas em atraso[2], apesar de constituir matéria controvertida o montante devido a título de renda, pois a lei manda juntar comprovativo do pagamento de uma caução no valor das rendas, encargos ou despesas em atraso. Bem se compreende que assim seja, uma vez que a caução não produz efeitos sobre a relação controvertida, ao contrário do que ocorre com o depósito de purgação da mora.
Contudo, beneficiando o arrendatário-opoente do benefício de apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça e demais encargos do processo, em conformidade com a previsão do art.15-F/3 da Lei 6/2006 de 27/02, alterada pela Lei 31/2012, de 14/08 e pela Lei 79/2014 de 19 de dezembro está isento do depósito da caução.
Porém, o regime da portaria que veio determinar o momento e a forma como proceder ao depósito da caução está em contradição com o regime da lei, na medida em que se prevê que o documento comprovativo do pagamento deve ser apresentado juntamente com a oposição, independentemente de ter sido concedido apoio judiciário ao arrendatário.
A oposição entre os dois diplomas é objetiva e tem suscitado por parte da jurisprudência diferentes interpretações.
No Ac. Rel. Lisboa de 17 de dezembro de 2015, Proc. 274/15.2YLPRT.L1-2, considerou-se que uma sociedade comercial, apesar de beneficiar de isenção de custas judiciais, não estava dispensada do depósito da caução, porque a isenção de custas não se equipara ao regime do benefício de apoio judiciário.
No sentido de considerar que o benefício de apoio judiciário concedido ao requerido não o dispensa do depósito de caução, como será o entendimento do juiz do tribunal “a quo” no despacho recorrido, pronunciou-se, entre outros, o Ac. Rel. Évora de 25 de setembro de 2014, Proc. 1091/14.2YLPRT-A.E1 ( www.dgsi.pt ) com argumentos que foram acolhidos no voto de vencido proferido no Ac. Rel. Porto 26 de outubro de 2017, Proc. 342/16.3YLPRT-A. P1(www.dgsi.pt).
Segundo tal entendimento o apoio judiciário, a que alude o art. 15-F/3, respeita apenas ao pagamento da taxa de justiça, e nunca da caução do valor das rendas atrasadas, porque o regime do apoio judiciário não isenta de dívidas ou encargos de que o seu beneficiário seja titular, mas apenas daqueles para que foi expressamente previsto na lei. A obrigação de prestar caução constitui matéria reservada à esfera das relações privadas. Para precaver casos de parcos recursos dos inquilinos, ou de dívidas de rendas já de alto valor, a fim de não inviabilizar a sua oposição, e manter o seu direito constitucional de defesa, fixou um teto para o depósito da caução “até ao valor máximo correspondente a seis rendas” (citado artigo 15.º-F, n.º 3).
Argumenta-se, ainda, que o n.º 5 desse referido artigo 15.º-F se reporte às consequências do indeferimento do pedido de apoio judiciário – oposição tida também por não deduzida se o oponente não pagar a taxa de justiça nos cinco dias seguintes à notificação da decisão definitiva desse indeferimento. Reporta-se apenas à taxa de justiça e não também à caução das rendas.
O regime previsto na Portaria a que se reporta o mesmo preceito (Portaria n.º 9/2013, de 10 de Janeiro) veio estabelecer que o documento comprovativo do pagamento de tal caução do valor das rendas em atraso “deve ser apresentado juntamente com a oposição, independentemente de ter sido concedido apoio judiciário ao arrendatário” veio clarificar o regime e “operacionalizar – tornando-o prático para os seus destinatários” um regime que já constava da Lei que se destinava a regulamentar.
Numa outra posição ou corrente jurisprudencial, acolhida no Ac. Relação do Porto 03 de março de 2016, Proc. 3055/15.0YLPRT.P1 e Ac. Rel. Porto 26 de outubro de 2017, Proc. 342/16.3YLPRT-A. P1 (este com u voto de vencido) (ambos em www.dgsi.pt) considera-se que o benefício de apoio judiciário isenta o requerido do depósito da caução, por se entender que a norma do art.º 10 da portaria 9/2013 de 10 de Janeiro contraria o art.º 15.º F n.º 3 do NRAU e estando em causa um conflito entre duas normas - uma lei ordinária da Assembleia da República e outra ínsita em portaria que é regulamento de fonte governamental - o mesmo apenas pode ser resolvido pela prevalência da fonte de hierarquia superior. Considera-se que beneficiando de apoio, na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo, o arrendatário está isento de demonstrar o pagamento da caução normalmente exigida como condição de admissibilidade da oposição ao pedido de despejo.
Neste sentido podem, ainda, consultar-se os Ac. Rel. Lisboa 10 de fevereiro de 2015 Proc. 1958/14.8YLPRT.L1-1 e Ac. Rel. Lisboa de 19 de fevereiro de 2015, Proc. 4118/14.4TCLRS.L1.-2 (citados pela apelante) e ainda, os Ac. Rel. Lisboa 09 de dezembro de 2015, Proc. 451/15.6YLPRT.L1-2; Ac. Rel. Lisboa 26 de abril de 2016, Proc. 4024/15.5YLPRT.L1-7 e Ac. Rel. Coimbra 12 de setembro de 2017, Proc. 686/16.4T8CBR.C1, todos disponíveis em www.dgsi.pt..
O Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre a interpretação destes preceitos no Ac. 779/2013 de 19 de novembro de 2013 (acessível em www.tribunalconstitucional.pt) afastando a apreciação da conformidade das normas com os preceitos constitucionais por entender estar em causa um conflito que “[…]não é subsumível a uma questão de constitucionalidade de que este Tribunal possa e deva conhecer. […]estando em causa um conflito entre duas normas de direito infraconstitucional, mormente a violação de uma lei por um ato regulamentar – como sucede in casu - existe um vício de ilegalidade[…]”.
Entendemos ser nesta vertente que a questão deve ser apreciada e na interpretação das normas não se pode ignorar os critérios de hierarquização, atento o disposto no art.112º CRP e nessa medida, o regime previsto na Portaria não pode suplantar o regime da Lei de onde aquela promana e que se destina a regulamentar. Sendo esta a interpretação que defendemos e que conduz à revogação do despacho recorrido.
Como se observa no Ac. Rel. Lisboa de 28.04.2015, Proc. º 1945/14.6YLPRT-A.L1-7 (acessível em www.dgsi.pt):”a interpretação do nº 3 do dito art. 15º-F do NRAU, com recurso aos elementos gramatical – ou letra da lei – e lógico - espírito da lei –, leva-nos a concluir que, com ele, o legislador isentou o beneficiário de apoio judiciário da prestação de caução, em moldes a regulamentar por ulterior Portaria.
De facto “o texto é o ponto de partida da interpretação. Como tal, cabe-lhe desde logo uma função negativa: a de eliminar aqueles sentidos que não tenham qualquer apoio, ou pelo menos qualquer “correspondência” ou ressonância nas palavras da lei.” Ora, a expressão verbal do preceito “Com a oposição, deve o requerido proceder à junção do documento comprovativo do pagamento da taxa de justiça devida e, nos casos previstos nos nºs. 3 e 4 do artigo 1083.° do Código Civil, ao pagamento de uma caução no valor das rendas, encargos ou despesas em atraso, até ao valor máximo correspondente a seis rendas, salvo nos casos de apoio judiciário, em que está isento (…)” […] não consente outro sentido que não seja o desígnio de isentar o arrendatário que beneficia de apoio judiciário do pagamento da caução no valor descrito, tanto mais que a inexigibilidade do pagamento da taxa de justiça resulta já da Lei do apoio judiciário – cfr., entre outros, o art. 16º, nº 1, alínea a), da Lei nº 34/2004, de 29.07.
Por outro lado, também o elemento teleológico ou racional – o que terá sido o fim visado pelo legislador - aponta no mesmo sentido.
Disse-se na Proposta de Lei nº 38/XII, Exposição de Motivos, além do mais, o seguinte “(…) Por sua vez a transferência para o arrendatário do ónus de impugnação do despejo, de prestação de caução e de pagamento de taxa de justiça no âmbito do procedimento especial visa dissuadir o uso deste procedimento apenas como meio dilatório para a efetivação do despejo”.
Isto mostra que, no intuito de evitar que a oposição seja usada apenas como meio dilatório da efetivação do despejo, o legislador fez impender sobre o arrendatário o ónus de pagar, tanto a taxa de justiça, como a caução em valor que especifica. Ciente, porém, de que sujeitar a admissibilidade da oposição à prestação de caução pode equivaler a coartar ou anular o direito de defesa de arrendatário que se encontre em precária situação económica, bem se entende que, concomitantemente, tenha querido assegurar o exercício desse direito fundamental aos arrendatários mais carenciados, isentando-os de prestar a caução, em termos a definir por portaria.
Constata-se, então, que, enquanto aquele art. 15º F, nº 3 isenta o beneficiário de apoio judiciário de efetuar o pagamento da caução normalmente exigida como condição de admissibilidade da oposição, a Portaria que, segundo o mesmo preceito, deveria definir os termos dessa isenção, acabou por, contrariando aquela norma, exigir o pagamento da caução, independentemente de o arrendatário gozar daquele benefício.

Ultrapassar o regime excecional e de benefício antes concedido, é o desígnio que transparece deste ato regulamentar.
Somos, assim, confrontados com um conflito de normas de hierarquia diversa. Uma de lei ordinária da assembleia da República - cfr. art.º 112º, n.º 2, 161º, alínea c), 165º, n.º 1, alínea h), 166º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa - e outra ínsita em Portaria que é regulamento de fonte governamental.
Uma vez que são emanadas por fontes diversas, “prefere a norma de fonte hierárquica superior (critério da superioridade: lex superior derogat ligi inferiori”.
Estando em causa um conflito entre duas normas de direito infraconstitucional, o mesmo apenas pode ser resolvido pela prevalência da fonte de maior hierarquia.
Nos termos do art.º 112º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa:[n]enhuma lei pode criar outras categorias de atos legislativos ou conferir a atos de outra natureza o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos”.
GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA[3] em anotação ao art. 112º CRP observam: “[s]alvo os casos expressamente previstos na Constituição (cfr. art. 169°), uma lei só pode ser afetada na sua existência, eficácia ou alcance por efeito de uma outra lei. Quando uma lei regula uma determinada matéria, ela estabelece ipso facto uma reserva de lei, pois só uma lei ulterior pode vir derrogar ou alterar aquela lei (ou deslegalizar a matéria).”.
Referem os mesmos AUTORES:”[o] que a Constituição proíbe é que uma lei estabeleça um certo regime normativo e do mesmo passo autorize que um regulamento possa vir modificar, suspender ou revogar o regime instituído ( autodeslegalização)”.
Acrescentam, ainda, que no caso de reenvio da lei para regulamento, “a norma regulamentar é uma norma de diferente natureza da norma legal, e a intervenção regulamentar visa regular aquilo que a lei se absteve de regular, e não «integrar» a regulamentação legislativa (o n.º 5 exclui
expressamente os regulamentos integrativos), pelo que o regulamento nunca pode intervir sub specie legis[…]. Em segundo lugar, o reenvio da lei para regulamento está também sujeito aos limites constitucionais da reserva de lei, não podendo a lei, no âmbito da reserva de lei, deixar de esgotar toda a regulamentação «primária» das matérias, só podendo remeter para regulamento os aspetos «secundários» (isto, independentemente do facto de as leis de bases deverem ser desenvolvidas por decretos-leis e não por atos regulamentares)”.
No caso presente o âmbito da regulamentação estava definido na Lei e consistia em determinar quando e como proceder ao depósito da caução.
O legislador não teria necessidade de se referir ao regime de apoio judiciário se estivesse em causa apenas regular o pagamento da taxa de justiça, porque o regime do apoio judiciário prevê o regime da dispensa, independentemente do procedimento que esteja em causa. A utilidade do preceito visa alargar o âmbito do benefício à prestação de caução, por estar em causa o mesmo raciocínio de carência económica para fazer face às despesas de uma ação, sobretudo porque a caução está prevista como condição de admissibilidade da oposição.
Conclui-se, assim, que na hierarquia das normas, prevalecendo o regime da Lei sobre a Portaria, é de afastar a aplicação do art. 10º/2 da Portaria 09/2013 de 10 de janeiro, por ilegal.
Apurou-se que a requerida beneficia do apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo, e ainda, nomeação e pagamento de compensação a patrono.
Por efeito, do regime previsto no art. 15-F/3 da Lei 6/2006 de 27/02, alterada pela Lei 31/2012, de 14/08 e pela Lei 79/2014 de 19 de dezembro está isenta do depósito da caução.
Desta forma, a oposição deve ser admitida, prosseguindo os autos os ulteriores termos.
Procedem as conclusões de recurso, revogando-se a decisão recorrida.
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Nos termos do art. 527º CPC as custas são suportadas pelo apelado.
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III. Decisão:
Face ao exposto acordam os juízes desta Relação em julgar procedente a apelação e revogar a decisão e nessa conformidade admitir a oposição, porque beneficiando a requerida de apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça e demais encargos do processo está isenta do depósito da caução, prevista no art. 15º-F/3 da Lei 6/2006 de 27/02, alterado pela Lei 31/2012, de 14/08 e pela Lei 79/2014 de 19 de dezembro, prosseguindo os autos os ulteriores termos.
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Custas a cargo do apelado.
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Porto, 30 de maio de 2018
(processei e revi – art. 131º/5 CPC)
Ana Paula Amorim
Manuel Domingos Fernandes
Miguel Baldaia de Morais
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[1] RUI GONÇAVES PINTO Manual da Execução e Despejo, 1ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, agosto de 2013, pag. 1187.
[2] MARIA OLINDA GARCIA Arrendamento Urbano Anotado – Regime Substantivo e Processual (alterações introduzidas pela Lei 31/2012), 2ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, maio de 2013, pag. 208-209.
[3] J. J. GOMES CANOTILHO – VITAL MOREIRA Constituição da República Portuguesa, Anotada, Vol. II, 4ª Ed. Revista Reimpressão, Coimbra Editora, Coimbra, Outubro 2014, págs. 67, 70-71.