Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
780/13.3GALSD.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: VITOR MORGADO
Descritores: NULIDADE DA SENTENÇA
CONHECIMENTO OFICIOSO
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
INJÚRIA
Nº do Documento: RP20160427780/13.3GALSD.P1
Data do Acordão: 04/27/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 998, FLS.180-186)
Área Temática: .
Sumário: I – As nulidades da sentença referidas no art. 379.º do CPP não são de conhecimento oficioso.
II – Ocorrendo a absolvição pelo crime (público) de Violência doméstica, mas persistindo provados factos consubstanciadores de um crime de Injúria – também constantes da acusação pública acompanhada pelo assistente –, a falta de cumprimento do formalismo da acusação prévia da assistente por este crime particular [acusação particular - art. 285.º, CPP] não obsta ao conhecimento do crime “residual”.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso nº 780/13.3GALSD.P1
Origem: comarca do Porto Este- instância local criminal de Lousada- J1

Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal da Relação do Porto

I – RELATÓRIO
O Ministério Público acusou B…, nascido a 18/02/1985, imputando-lhe a prática, em autoria material, de um crime de violência doméstica previsto e punido pelo artigo 152°, n.°s 1, alínea b), e 2, do Código Penal.
A assistente, C…, deduziu acusação pelos mesmos factos descritos na acusação do Ministério Público e deduziu contra o arguido acusação particular, nos moldes que constam de folhas 89 e seguintes.
Formulou, ainda, pedido de indemnização civil, pedindo a condenação do arguido ao pagamento da quantia de € 750,00 (setecentos e cinquenta euros), para compensação dos danos não patrimoniais sofridos em consequência da atuação do arguido, acrescida dos juros desde a data da notificação até integral pagamento.
Realizada a audiência de julgamento, a final da mesma foi proferida sentença, em que o Tribunal de 1ª instância decidiu:
a) absolver o arguido da imputada prática de um crime de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152.º, n.ºs 1, al b), e 2, do Código Penal;
b) condenar o arguido, pela prática de um crime de injúria, previsto e punido pelo artigo 181.º, nº 1, do Código Penal, na pena de 80 (oitenta) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros), num global de multa de € 480,00 (quatrocentos e oitenta euros);
c)- julgar o pedido de indemnização civil deduzido pela demandante contra o demandado procedente, em consequência do que condenou o arguido/demandado a pagar à assistente/demandante a quantia global de € 750,00 (setecentos e cinquenta euros), a título de compensação pelos danos não patrimoniais sofridos e, bem assim, os juros de mora calculados à taxa legal e contabilizados desde a data desta sentença até pagamento integral.
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Não se conformando com o assim decidido, o arguido veio interpor o presente recurso, cujos fundamentos sintetizou nas seguintes conclusões:
«1ª- Nos presentes autos, a Meritíssima Juiz a quo entendeu que a factualidade apurada não permitia concluir que o arguido tivesse cometido o crime que lhe vinha imputado (o crime de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152°, n's 1, al. b) e 2 do Código Penal), mas que estavam verificados os elementos típicos do crime de injúrias, p. e p. pelo artigo 181° do C.P., alterando desta forma a qualificação jurídica dos factos.
2ª- Sucede que, o crime de injúrias reveste natureza particular, sendo necessário que o ofendido apresente queixa, se constitua assistente e deduza acusação particular, nos termos do artigo 50° do C.P.P..
3ª- Sendo que o "Ministério Público só pode iniciar a investigação relativa a estes factos após a apresentação da queixa e a constituição como assistente por parte do titular do direito e só pode deduzir acusação depois de o assistente ter deduzido acusação particular."
4ª- Ora, nos presentes autos, a ofendida não requereu a sua constituição como assistente no momento oportuno, apenas o tendo requerido após a dedução da acusação pelo Digno Magistrado do Ministério Público, tendo sido admitida como tal apenas na primeira sessão da audiência de julgamento, sendo que apenas deduziu acusação, não nos termos do artigo 285° do C.P.P. como sucede no caso dos crimes particulares, mas nos termos do artigo 284°, nº l, do C.P.P. após a dedução da acusação pública.
5ª- Assim, não tendo o Ministério Público legitimidade para promover o processo penal nos crimes particulares sem a observância sequencial daquelas formalidades, e tendo sido o mesmo a promovê-lo quando deveria ter sido a assistente, não pode o arguido ser condenado pela prática de crime de natureza particular.
6ª- Devendo o arguido ser também absolvido da prática do crime de injúrias.
7ª- Pelo que, a meritíssima juiz a quo, ao condenar o arguido pela prática de um crime de injúrias previsto e punido pelo artigo 181°, nº l do C.P., violou o disposto nos artigos 48°, 50° e 285°, todos do CPP e o artigo 188°, nº l do C.P.
Termos em que, concedendo provimento ao presente recurso, se requer a V.ªs Ex.ªs que, nestes termos e nos melhores de direito que doutamente serão supridos, seja revogado a douta sentença e substituída por outra que absolva o arguido.»
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A assistente respondeu ao recurso interposto, dizendo, em síntese:
- as normas que punem o crime de violência doméstica e de injúria estão numa relação de especialidade por toda a matéria de facto subsumível à norma especial caber inteiramente no âmbito mais vasto da norma geral;
- desta forma, ainda que os comportamentos em causa não integrem o crime de violência doméstica, mas antes o crime de injúria, a verdade é que os factos integradores deste último, já constavam da investigação, por corresponderem a um “minus” do primeiro;
- e pelos factos integradores do crime de injúria houve a devida queixa, dentro do prazo legal;
- e, se não houve a acusação particular pela prática do crime de injúria, foi porque os factos respetivos foram considerados, pelo Ministério Público, integradores de um crime (público) de violência doméstica;
- no entanto, certo é que a Assistente/Recorrida acompanhou a acusação do Ministério Público, o que deverá ser entendido como uma acusação implícita do crime de injúria, estando assim ultrapassados os obstáculos formais que o Arguido/Requerente pretende impor;
- em face de tudo quanto foi exposto, cabe concluir pela falta manifesta de fundamento do presente recurso que, assim, deve ser julgado improcedente.
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Já nesta 2ª instância, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer em que pugna por que seja negado provimento ao recurso do arguido e confirmada a sentença recorrida.
Cumpre decidir.
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II- FUNDAMENTAÇÃO
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar ([1]), sem prejuízo das de conhecimento oficioso.
Assim, a única questão a decidir, essencialmente de natureza procedimental, é a de saber se – ocorrendo a absolvição pelo crime público de violência doméstica, mas persistindo provados factos substanciadores de um crime de injúria também constantes da acusação pública acompanhada pela assistente – a falta de cumprimento do formalismo de acusação prévia da assistente por este crime particular (o formalismo previsto no artigo 285º do Código de Processo Penal), obsta ao conhecimento do mesmo crime ‘residual’.
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Conquanto os sujeitos processuais não centrem as respetivas divergências em questões relacionadas com a prova ou não prova dos factos ajuizados, ainda assim, vê-se interesse em reproduzir a decisão de facto em que assentou a sentença recorrida, que apresenta o seguinte teor:
«1)- Durante os meses de Janeiro e Fevereiro de 2012, o arguido, B…, e a assistente, C…, viveram como marido e mulher, habitando na Rua … n.º …, em …, Lousada.
2)- Naquele período, com o casal, habitaram os três filhos da assistente: D…, nascido a 19/05/1997, E… e F…, nascidas a 19/04/2002.
3)- O filho da assistente, D…, é portador de síndrome de Down.
4)- No período compreendido em 1., a assistente explorava, por conta própria, uma pastelaria, atividade com a qual não concordava o arguido, o que gerava desentendimentos entre ambos.
5)- Em finais de fevereiro ou início de março de 2012, o arguido e a assistente deixaram de viver como marido e mulher e mantiveram uma relação de namoro que durou até setembro de 2013.
6)- No período compreendido entre fevereiro de 2013 e setembro de 2013, arguido e assistente encontravam-se, diariamente, no curso de operador de armazenagem que ambos frequentavam no Núcleo Operacional de G….
7)- Em 14/10/2013, o arguido enviou para o telemóvel da assistente dois sms, que esta recebeu, com o seguinte teor:
a)- “ fodi a minha vida por causa de uma gaja ke não vale nenhum ke es tu a unic2 coisa ke tu es boa é para foder nem mae sabes ser em condições arependome tanto de ter continuado contigo tu so sabes estragar vidas kuando eu era para ir para espanha e não fui devia ter ido ainda tinha a minha carinha”.
b)- “penas?? k eu não topava ma maneira como olhavas para o bruno e a riste e também para o rapaz de lousada no meu ver a unicam pessoa ke respeitasse foi o teu ex es mesmo uma pega”.
8)- Em 20/10/2013, o arguido enviou para o telemóvel da assistente um sms, que esta recebeu, com o seguinte teor:
a)- “eu não tinha trabalho de cortar as xamadas até mudava de numero e se eu te fizer a vida negra ke fazes”.
9)- O arguido agiu do modo descrito no propósito, que concretizou, de ofender a assistente na sua honra e consideração, humilhando-a e desconsiderando-a.
10)- O arguido agiu sempre de modo livre, deliberado e consciente, bem sabendo ser a sua conduta proibida e punida por lei.
Provou-se ainda que:
11)- Em consequência da atuação do arguido, a assistente sofreu profunda tristeza e vergonha, sentindo-se humilhada e vexada.
Mais se provou que:
12)- O arguido trabalha como polidor de móveis.
13)- Aufere retribuição mensal de € 504,00.
14)- Vive com os pais.
15)- É solteiro e não tem filhos.
16)- Tem o 6.º ano de escolaridade.
17)- Não tem antecedentes criminais.
18)- Confessou os factos descritos de 7. a 10.
Com relevo e interesse para a discussão da causa, não se provou que:
A) Nos meses de janeiro e fevereiro de 2012, diariamente, o arguido dirigiu à ofendida, repetidas vezes, as expressões “filha da puta”, “vaca”, “pega”, “andas com amantes”, “és boa para estar na Serra da Agrela a dar o pito” e, por diversas vezes, agrediu a assistente, desferindo-lhe murros nas faces e costas e pontapés nas pernas.
B) A descrita conduta do arguido ocorria no domicílio comum, frequentemente, na presença dos filhos da assistente, que se agarravam à mãe e pediam ao arguido que parasse de bater na mãe.
C) No período referido em 4., frequentemente, o arguido agrediu a assistente com murros nas faces e pontapés nas pernas, provocando-lhe dores que lhe afetavam a mobilidade e que determinaram, por diversas vezes, em espaços temporais diferentes, vários dias de doença.
D) Tais agressões ocorriam, umas vezes num café que ambos frequentavam em Felgueiras e, outras vezes, quando se encontravam no veículo da assistente, em Felgueiras ou em Lousada, durante o dia.
E) Em dia não concretamente apurado do mês de agosto ou do início de Setembro de 2013, imediatamente antes a relação de namoro entre ambos terminar, no centro de Felgueiras, quando o arguido e a assistente se encontravam sozinhos na viatura desta, o arguido agarrou-a pelos pulsos, levantou-os para cima da cabeça e forçou-a a ter relações sexuais consigo, consumando-as durante cerca de cinco minutos.
F) No dia seguinte a este episódio, a assistente telefonou ao arguido, pondo termo à relação de ambos e não voltou a frequentar o curso, temendo estar perto do arguido.
G) Desde este último episódio e até ao final de outubro de 2013, o arguido perseguiu, de forma constante, a assistente, dizendo que se não fosse dele não era de mais ninguém e que a matava.
H) Ao agir do modo supra descrito, o arguido atuou com a intenção de, reiterada e persistentemente, violentar a saúde corporal da assistente, provocando-lhe medo e sobressaltos.
I) Em consequência da atuação do arguido, a assistente sofreu hematomas e dores, sentiu medo, vivendo amedrontada e nervosa.
J) A assistente nunca sofreu assistência médica por ter vergonha de dar a conhecer as agressões de que era vítima, e que a levavam a fechar-se em casa por ter vergonha de mostrar aqueles ferimentos no seu local de trabalho.
K) Por diversas vezes, a assistente sentiu necessidade e receber assistência médica, só o não fazendo por se sentir extremamente envergonhada e por recear que o arguido a castigasse por se deslocar às Urgências.
L) O arguido agiu sabendo que, sendo a assistente sua mulher, estava obrigado a respeitá-la e a cooperar com a mesma, e que as suas condutas são proibidas e punidas por lei.
M) A assistente manteve por um longo período um relacionamento com o arguido.
N) No início da vida a dois, em união de facto, a assistente iniciou atividade por conta própria, gerindo uma pastelaria, que o arguido frequentava, uma vez que se encontrava desempregado, embriagando-se grande parte das vezes.
O) O arguido, acusando a assistente de dar muita atenção aos clientes, tomou uma postura extremamente agressiva com esta, conduzindo-se conforme descrito de A) a C).
P) No decorrer do período de vida em comum, o arguido provocou, na assistente, com o seu comportamento, grande temor pela sua vida, sentindo-se aniquilada no seu desenvolvimento pessoal e relações sociais.
Q) Preocupada com o ambiente de violência em que os filhos estavam a crescer, e tendo em conta que a habitação onde residiam lhe pertencia, a assistente conversou com o arguido que saiu de casa.
R) O descrito ambiente que o arguido desenvolveu no lar comum causou na assistente tristeza, medo e vergonha.
S) Apesar de ter terminado com a união de facto, e mesmo magoada e extremamente atacada na sua honra e dignidade pessoal, a assistente prolongou, por mais alguns meses, o relacionamento de namoro com o arguido.
T) Viam-se agora esporadicamente.
U) A convivência diária entre assistente e arguido, nas circunstâncias descritas em 6., permitiu ao arguido retomar a sua postura violenta, discutindo com a assistente, mesmo em frente aos colegas de curso, num café que todos frequentavam em Felgueiras, e mesmo agredindo-a com murros nas faces e pontapés nas pernas.
Motivação
No que toca à factualidade dada por apurada, o tribunal formou a sua convicção, apreciando, conjugada e criticamente:
- as declarações do arguido e da assistente, que, em síntese, confirmaram aquelas circunstâncias da sua união de facto, na companhia dos filhos da assistente, em casa desta, e bem assim, a condição de D…; ainda, confirmaram a atividade profissional da assistente, a discordância do arguido quanto ao seu exercício (fundada, no entender do arguido, na incompatibilidade dos horários com a vida familiar e ainda fundada nos comportamentos desadequados/atrevidos de alguns clientes para com a companheira), o fim da relação, ao cabo de 2 meses de vida em comum, e o envio das mensagens em causa, com a explicação apresentada pelo arguido de que seriam uma resposta irrefletida a algumas mensagens provocatórias enviadas pela assistente, e admitindo saber que, desse modo, a ofendia na sua honra e consideração;
- as declarações do arguido, quanto à sua situação pessoal, por nada os autos as infirmar;
- o teor dos registos telefónicos (sms), documentados nos registos fotográficos de fls. 17 e 18;
- o teor dos assentos de nascimento de fls. 64 a 71;
- o teor da informação da G… - Núcleo de … de fls;
- o teor do CRC de fls. 123.
A factualidade não apurada foi como tal considerada uma vez que, no demais, o Tribunal não logrou ultrapassar as dúvidas que se instalaram do confronto das versões (opostas) de arguido e assistente e; sobretudo, por terem surgido, ao longo da audiência de julgamento, alguns dados que atingiram a credibilidade e idoneidade do depoimento da assistente, dúvidas essas que não se lograram ultrapassar, nem face ao depoimento das testemunhas H…, seu pai, e I…, sua vizinha, nos moldes que mais detalhadamente se expõe.
Assim, o arguido B…, pese embora admitindo a existência de desentendimentos com a assistente, que determinaram o fim da união de facto ao cabo de dois meses de vida em comum (ditado, na versão do arguido, pelo próprio), e, admitindo, mais tarde, já finda a relação de namoro que mantiveram, o envio daquelas mensagens à assistente, negou sempre tê-la insultado, verbalmente, e/ou agredido, nos moldes descritos na acusação deduzida, sempre defendendo que o processo-crime surge como uma vingança da assistente pelo fim da relação entre ambos.
Por seu turno, a assistente, embora verbalizando alguns episódios de agressões, em sua casa na Rua …, enquanto viveram juntos, e mais tarde, decorrendo o curso de operador de armazenagem que ambos frequentaram, em Felgueiras, num café, apresentou sempre um discurso pouco assertivo e circunstanciado, e incoerente e contraditório em alguns aspetos, como, por exemplo, quanto às descritas possessividade e agressividade do arguido, quando viviam juntos, em confronto com a descrita facilidade com que este aceitou o termo da coabitação, acatando, de imediato, o seu pedido de abandono daquela residência, ou, por exemplo, quanto ao descrito terror em que vivia, bastando o arguido olhar para si que logo ficava a tremer, em confronto com o facto de ter continuado a manter com o mesmo uma relação de namoro, não aproveitando, como seria normal, o fim da coabitação para arredar por completo qualquer possibilidade de episódios semelhantes ocorrerem. A acrescer, no que toca ao sucedido dentro do veículo, em que a assistente teria sido manietada e, por essa via, forçada, contra sua vontade, a manter relações sexuais com o arguido, as versões apresentadas pela assistente foram-se sucedendo e alterando à medida que depunha, desde logo, relativamente ao local em que decorrem os factos (elemento que, por contextualizar o sucedido, dificilmente se apaga da memória das vítimas, salvas as situações excecionais em que as mesmas estejam/sejam incapazes de objetivar o contexto que as rodeia, porque estejam sob a influência de substâncias, ou privadas dos seus sentidos, por ex. vendada, o que, no caso, não foi sequer aventado). Assim, na sua participação junto das autoridades a assistente disse terem ocorrido os factos no centro da cidade de Felgueiras, já no início do seu depoimento, em audiência, os factos teriam ocorrido na rotunda à entrada de Lousada, perto do Hospital, e, no decurso do seu depoimento, vem a esclarecer que vinham (assistente e arguido) de Felgueiras, quando, tivesse sido por sua iniciativa, tivesse sido a pedido do arguido, conduziu o veículo, à direita, por uma estrada de terra, onde parou e aí, no interior do veículo ligeiro de mercadorias, o arguido a teria violado, segurando-lhe, com uma das mãos, as suas mãos sobre a cabeça, e com a mão livre despiu-lhe as calças e a roupa interior, que vestia, puxou-lhe uma perna para o lado e penetrou-a durante cerca de 5 minutos. Além de afastada das regras da normalidade, quanto ao modo de atuação do arguido, sobretudo estando a assistente na posição do condutor do veículo ligeiro de mercadorias, onde permaneceu na posição de sentada enquanto o arguido sobre si agia, a sua descrição dos factos foi, uma vez mais, pautada por inúmeras hesitações, inflexões, correções, admitindo que, embora não quisesse manter com o arguido relações sexuais porque estavam zangados, nada lhe disse nesse sentido. Por último, a assistente frisou que, depois deste episódio, ligou ao arguido pondo fim ao relacionamento entre ambos, por temer os comportamentos deste, inclusive, a perseguição que lhe movia, em sucessivos sms e telefonemas, como os que se deram por apurados, não mais voltando a encontrar-se até ao presente. No entanto, do teor da mensagem, documentada nos registos fotográficos juntos pelo arguido em audiência de julgamento, e que a assistente confirma ter enviado ao arguido, resulta que a assistente faltou à verdade, omitindo o facto de que, pelo menos, em outubro de 2014, mantiveram um relacionamento, nos moldes aí explicitados. Sendo certo que o facto de a assistente ter voltado a relacionar-se com o arguido não significa que não pudesse por ele ter sido agredida, insultada e humilhada; tanto é que, é típico da degradação imposta pelo contexto de violência doméstica uma dependência emocional relativamente ao agressor, o certo é também que tal omissão à verdade, apreciada no sobredito contexto, não pode deixar de constituir um óbice à credibilidade global da assistente, não podendo o Tribunal, ressalvado o respeito por opinião em contrário, retalhar a factualidade imputada ao arguido, consoante a credibilidade que, relativamente a cada situação, a assistente mereça. A ambivalência de sentimentos revelada pela assistente relativamente ao arguido, e a capacidade de relatar os factos de acordo com esses sentimentos, não deixam de constituir um importante óbice à sua capacidade de dizer a verdade, e, bem assim, colocar no cenário das possibilidades a hipótese dos factos denunciados serem, pelo menos, em parte, produto de ressentimento da assistente para com o arguido, como este defende. Ainda que às vítimas de violência doméstica se reconheçam algumas dificuldades de contextualização dos factos, seja pela reiteração da atuação do agressor, seja pelo contexto em que surge, seja ainda pela ambivalência de sentimentos, tais limitações têm de ser apreciadas num contexto global e, em concreto, ponderados outros meios de prova produzidos. Ora, no caso, nem dos depoimentos das testemunhas D… e I…, foi possível suplantar aquelas dificuldades, desde logo, porque não tinham conhecimento direto dos factos. A primeira testemunha, pai da assistente, apenas pode ver-lhe nódoas negras no braço e no peito, pontos do corpo que a assistente não apontou como sendo atingidos pela atuação do arguido. A segunda testemunha, vizinha da assistente, recorda um episódio em que as filhas da assistente pediam socorro da varanda, tendo depois o arguido saído, de rompante, daquela habitação, nada mais tendo apurado; cenário que é, de facto, compatível com um quadro de violência doméstica, mas também é compaginável com outros cenários que abstraiam da intervenção do arguido, não tendo sido possível apurar outros indícios que, somados àqueles, deem consistência ao relato das testemunhas.
A demais factualidade dada por não apurada assim foi considerada por, em decorrência do que se disse supra, não ter sido produzido prova e/ou prova suficiente e/ou idónea para conduzir no imputado sentido
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A questão controvertida
Nas suas conclusões, o recorrente sustenta, basicamente, que:
- não se provando os factos consubstanciadores do crime público de violência doméstica, há que efetuar retroativamente a verificação dos pressupostos procedimentais dos eventuais crimes particulares cujos requisitos materiais, residualmente, resultem provados;
- na medida em que o crime de injúria reveste natureza particular, é necessária a apresentação de queixa e constituição de assistente para que o Ministério Público promova a investigação;
- é ainda necessária a oportuna dedução de acusação particular pelo assistente, prévia à acusação pelo Ministério Público;
- nestes autos, a queixosa requereu a sua constituição como assistente e deduziu acusação só após a dedução da acusação pelo Ministério Público;
- assim, na ausência do cumprimento das formalidades previstas no artigo 285º do Código de Processo Penal, o Ministério Público não tinha legitimidade para promover a ação penal por factos integradores de um crime de natureza particular, pelo que não pode o arguido ser condenado pela prática de um crime de injúria.
Vejamos.
Antes de entrarmos propriamente na análise da questão suscitada pelo recorrente, cabe fazer uma referência genérica à posição que vimos adotando em sede de conhecimento das nulidades da sentença previstas no artigo 379º do Código de Processo Penal.
Com efeito, reveste-se de alguma importância para o caso o posicionamento que temos vindo a assumir de que as nulidades da sentença carecem de ser arguidas pelos sujeitos processuais, não sendo de conhecimento oficioso, como afirmado no AUJ nº 1/94 e mesmo depois da redação dada ao nº 2 do citado artigo 379º pela Lei nº 59/98, de 25/8, que (ao invés do opinado por forte corrente jurisprudencial) pensamos ter consagrado o entendimento daquele acórdão uniformizador ([2]).
Na verdade, o recorrente não arguiu qualquer das nulidades da sentença previstas no nº 1 do artigo 379º do Código de Processo Penal e, mormente, a incluída na respetiva alínea b), isto é, a decorrente da eventual alteração substancial ou não substancial dos factos descritos na acusação ‘fora das condições previstas nos artigos 358º e 359º’.
Tal significa que, a existir a referida nulidade, a mesma se encontraria, no presente caso, sanada.
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Focando-nos agora mais incisivamente na questão a dirimir neste recurso, há que reconhecer que a jurisprudência das relações, perante questão aparentemente idêntica, tem assumido soluções diversas.
Embora de difícil catalogação, face às diversas nuances dos casos concretos, pode dizer-se, resumidamente, que, desde que o crime de violência doméstica adquiriu natureza procedimental pública, a jurisprudência das relações tem-se repartido por uma das três posições que a seguir se enumeram.
A primeira delas (a que mais cedo se manifestou) vem entendendo que, encontrando-se o arguido(a) acusado(a) ou pronunciado(a) como autor(a) de um crime de violência doméstica e não se apurando, em julgamento, factos bastantes para o preenchimento dos requisitos típicos de tal crime, mas apenas suficientes para lhe atribuir a autoria de um crime particular contra a honra (injúria ou difamação) e não se tendo o(a) queixoso(a) constituído assistente e/ou não tendo deduzido acusação particular (nos termos do artigo 285º do Código de Processo Penal), o Ministério Público carece de legitimidade para fazer prosseguir a ação penal, devendo o(a) arguido(a) ser absolvido(a) definitivamente de tal crime particular.
Embora com alguns cambiantes, parecem aderir a esta posição, nomeadamente, os seguintes acórdãos (acedidos na base de dados eletrónica da DGSI): da Relação de Coimbra, de 10/12/2008, no recurso 679/05.7GAMMV.C1; da Relação de Évora, de 28/1/2014, no recurso 1617/11.3PBFAR.E1 e de 30/9/2014, no recurso 556/12.0PBSTB.E1, e da Relação do Porto de 25/11/2015, no recurso 848/13.6TAVFR.P1 (este com a particularidade de, apesar de a assistente ter acompanhado a acusação pública, ter sido declarada a existência da nulidade insanável do artigo 119º/b do C.P.P., por acusação do Ministério Público não poder ser, nesta parte, considerada, por a acusação particular não poder ser tida como ‘dominante’, por não ter prévia, como exige, designadamente, o artigo 285º mesmo C.P.P.).
Uma outra corrente jurisprudencial, embora reconhecendo legitimidade do(a) ofendido(a) para exercer a ação penal pelo crime particular residual, apenas permite que a mesma se exerça após o cumprimento do artigo 359º do C.P.P., no atual (não havendo oposição) ou num novo processo (em caso de oposição ao prosseguimento), em que se dê cumprimento ao disposto no artigo 285º do C.P.P.
Aparentam aderir a esta orientação, designadamente, os seguintes acórdãos (acedidos na base de dados eletrónica da DGSI): da Relação de Coimbra de 28/1/2010, no recurso 361/07.0PBL.C1, e da Relação de Évora de 29/5/2012, no recurso 157/11.5GDFAR.E1, e de 14/10/2014, no recurso 717/13.0PBFAR.E1 (admite apenas que a alteração nos termos do artigo 359º valha como denúncia para novo procedimento criminal).
Surpreende-se ainda uma terceira posição que, não só reconhece o cumprimento dos requisitos de legitimidade do(a) ofendido(a) no caso de aquele(a) se ter previamente constituído como assistente e aderido à acusação pública pelo (inicial e abrangente) crime de violência doméstica – em que se continham também os factos que se vieram a provar, consubstanciadores do crime particular contra a honra – como entende como desnecessário o cumprimento das formalidades previstas nos artigos 358º ou 359º do C.P.P. ([3]).
Sustentam esta orientação o acórdão da Relação do Porto de 30/1/2013, proferido no recurso 1743/11.9TAGDM.P1 (este, implicitamente), e o acórdão da Relação de Lisboa de 17/6/2015, proferido no recurso de 17/6/2015 (também nesta data acedidos na base de dados eletrónica da DGSI).
A nossa posição aproxima-se desta última, pois sendo, a nosso ver, irrefutável a existência de prévia manifestação de vontade do(a) assistente de pretender fazer responder o(a) arguido(a) por aqueles factos, não cremos que sejam, assim, violadas quaisquer expetativas atendíveis da defesa.
Na verdade, o crime de violência doméstica é suscetível, dada a complexidade e abrangência de bens protegidos que o seu desenho típico permite albergar, por consunção, constitui um “maius” relativamente a todas as ofensas singulares à saúde da vítima (integridade física, mental, ataques à autoestima) que – desfeitas, pelo parcial soçobro probatório, as eventuais ‘sinergias’ entre as diversas violações de bens jurídicos que permitiam o preenchimento do conceito de maus tratos – são ainda singularmente puníveis como crimes autónomos, necessariamente menos graves.
Assim, no citado acórdão da Relação do Porto de 30/1/2013 (em que se trata de um caso em que a assistente não acompanhou a acusação pública), pondera-se: “Poderá também dizer-se que a assistente vê cerceado o seu direito de acusação particular pelos crimes de injúria de que terá sido vítima. Nunca deduziu acusação particular pela prática desses crimes, porque os factos respetivos foram considerados, pelo Ministério Público, integradores de um crime (público) de violência doméstica. Ou seja, nunca poderia ter deduzido tal acusação particular. Mas poderia ter acompanhado a acusação pública (nos termos do artigo 284º do Código de Processo Penal) e poderia considerar-se que este acompanhamento continha implicitamente a acusação pela prática de crimes de injúria. Se assim fosse, penso que poderia estar superado o obstáculo processual que impede, no caso vertente, a condenação do arguido pela prática de crimes de injúria. (…)” ([4]).
Ora, como se refere no também citado acórdão da Relação de Lisboa de 17/6/2015, “manifestando-se a vontade de persecução penal, inequivocamente, por outra via – a única compatível com a indiciação processual à data da acusação – não há fundamento que permita ignorá-la, em benefício de uma pura formalidade processualmente descabida, em face dessa indiciação processual e das normas processuais vigentes à referida data, que excluíam a possibilidade de dedução de uma acusação particular."
Pelo que acima se disse, não há razões para considerar operante a exceção de ilegitimidade invocada pelo recorrente, entendendo-se que bem andou o Tribunal recorrido ao considerar presentes todos os pressupostos formais da instância e, assim, poder conhecer do mérito do crime particular de injúria, pelo qual condenou o arguido.
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O arguido não questiona, pelo menos diretamente, a dosimetria da pena aplicada, nem põe em causa a indemnização fixada (o que, aliás, não poderia fazer, em razão do valor).
Não se nos afigura que o Tribunal recorrido tenha desrespeitado, a tal nível (substantivo), os critérios legais e jurisprudenciais vigentes, pelo que a sentença merece confirmação.
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III – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto, em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido B…, confirmando a sentença recorrida.
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Custas, nesta instância, a cargo do arguido, fixando-se em 3 U.C.s a taxa de justiça criminal.
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Porto, 27 de abril de 2016
Vítor Morgado
Raul Esteves
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[1] Tal decorre, desde logo, de uma atenta interpretação do disposto no nº 1 do artigo 412º e nos nºs 3 e 4 do artigo 417º. Ver também, nomeadamente, Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, III, 3ª edição (2009), página 347 e jurisprudência uniforme do S.T.J. (por exemplo, os acórdãos. do S.T.J. de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, página 196, e de 4/3/1999, CJ/S.T.J., tomo I, página 239).
[2] Neste sentido, de que as nulidades da sentença referidas no artigo 379º do C.P.P. não são de conhecimento oficioso, vejam-se, na doutrina, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, volume III, 3ª edição, Verbo, 2009, páginas 298-299, Simas Santos e Leal Henriques, Código de Processo Penal Anotado, volume II, Lisboa, Rei dos Livros, página 576, Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 17ª edição, 2009, Almedina, página 873, e Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal (…), 4ª edição, páginas 984-985, e, na jurisprudência, designadamente, o acórdão da Relação do Porto de 9/6/2010, in C.J., ano XXXV, tomo III, página 218.
[3] Para além de desnecessário, o acórdão da Relação do Porto de 30/1/2013, a seguir melhor identificado, entende que o cumprimento do artigo 359º, não seria legalmente viável: “(…) não podemos dizer que os factos integradores de um eventual crime de injúria sejam autonomizáveis em relação aos factos integradores do crime de violência doméstica. A absolvição pela prática de factos integradores deste crime impede, por força do caso julgado, uma futura condenação pela prática dos mesmos factos qualificados como crimes de injúria.”A possibilidade de, nestes casos, se recorrer à extinção da instância no primeiro processo (possibilidade outrora sustentada por grande parte da doutrina e da jurisprudência) está hoje vedada pela redação (decorrente da reforma de 2007) do nº 1, in fine, do referido artigo 359º”.
[4] Sublinhado nosso.