Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0411116
Nº Convencional: JTRP00034124
Relator: MANUEL BRAZ
Descritores: BURLA
Nº do Documento: RP200404280411116
Data do Acordão: 04/28/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO.
Área Temática: .
Sumário: Não comete o crime de burla previsto e punido no artigo 217 do Código penal, aquele que entrega ao ofendido cheques para pagamento de letras de câmbio e que, antes das datas neles apostas, comunica ao banco o extravio desses cheques, a fim de assim obter o não pagamento dos mesmos.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto:

Na comarca de C...., “O....., Ldª” apresentou queixa contra o sócio-gerente da sociedade “V....., Ldª”, a quem imputou factos que não qualificou juridicamente.
Foi aberto inquérito e, no final, o Mº Pº proferiu despacho de arquivamento em relação aos factos praticados nessa comarca, entendendo que não integravam o crime que à primeira vista poderiam preencher – o de emissão de cheque sem provisão – e ordenou o envio de certidão do processo para a comarca de D....., com vista a tomar-se ali posição sobre a eventual existência de um crime de burla.
Na comarca de D....., onde entretanto a queixosa se constituiu assistente, o Mº Pº arquivou o inquérito, considerando não haver indícios da prática de qualquer crime de burla.
A assistente requereu a abertura da instrução.
Realizada esta, durante a qual foi constituído arguido B....., foi proferida decisão de não pronúncia.

Dessa decisão interpôs recurso a assistente, sustentando, em síntese, na sua motivação:
Os factos indiciados integram a prática por parte do arguido de um crime de falsificação de documento p. e p. pelo artº 256º, nºs 1, alínea b), e 3, do CP;
Um crime de burla p. e p. pelo artº 217º.
Ou um crime de emissão de cheque sem provisão p. e p. pelo artº 11º, nº 1, alínea b), do DL nº 454/91, de 28/12.
Deve, pois, proferir-se decisão de pronúncia.

O recurso foi admitido.
Respondendo, o Mº Pº na 1ª instância defendeu a manutenção da decisão recorrida.
Nesta instância, o senhor procurador-geral-adjunto pronunciou-se no mesmo sentido.
Foi cumprido o artº 417º, nº 2, do CPP.
Corridos os vistos, cumpre decidir.

Fundamentação:

Defende o recorrente estarem suficientemente indiciados factos integradores de um crime de falsificação de documento, de burla ou de emissão de cheque sem provisão, devendo por isso a decisão instrutória ser de pronúncia.
Vejamos.
Pelo crime de emissão de cheque sem provisão nunca poderia haver aqui decisão de pronúncia, na medida em que esse crime não está em causa nestes autos. Em relação a ele correu um processo na comarca de C....., que terminou na fase de inquérito com o despacho de arquivamento por parte do Mº Pº. Quanto a esse ilícito, a assistente só podia requer instrução e eventualmente conseguir decisão de pronúncia naquele processo de C...... Por esse crime, só pode ser accionada a perseguição criminal do arguido nesse processo da comarca de C....., e se houver reabertura do inquérito, nos termos do artº 279º do CPP. Aos presentes autos é alheio o crime de emissão de cheque sem provisão, em relação ao qual já houve decisão noutro processo, decisão essa que foi aceite pela ora assistente. Esta, se pretendia a pronúncia do arguido por esse crime, devia ter reagido contra o despacho de arquivamento proferido no inquérito que correu termos na comarca de C.....
Para haver crime de burla, é necessário que, além do mais, o agente, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determine outrem à prática de actos que lhe causem ou causem a outra pessoa prejuízo patrimonial. Di-lo claramente o artº 217º, nº 1, do CP.
No requerimento de abertura de instrução, a recorrente alegou os seguintes factos:
o arguido emitiu e entregou à assistente os cheques para pagamento de letras de câmbio;
antes das datas apostas nos cheques, o arguido comunicou o extravio destes ao banco;
isso implicou que o banco recusasse o pagamento dos cheques;
o arguido sabia que o facto comunicado ao banco – o extravio dos cheques – era falso;
com esse comportamento, o arguido forçou o banco a apor no verso dos cheques a declaração de que eram extraviados.
Como é evidente, estes factos não constituem um crime de burla, desde logo porque falta o tal acto da assistente, determinado por erro ou engano provocado pelo arguido, causador de prejuízo para ela ou para outrem. Efectivamente, se, como a assistente diz, os cheques se destinavam a pagar dívidas e, com o estratagema urdido, o arguido impediu que a assistente recebesse os montantes titulados pelos cheques, ou seja, o pagamento dessas dívidas, a assistente não foi levada, por esse estratagema, a praticar qualquer acto que lhe tenha causado prejuízo. Em consequência da conduta do arguido apenas não viu saldada uma dívida. E nisso é que consistiu o seu alegado prejuízo. Mas, esse prejuízo não resultou de um acto da assistente determinado pelo estratagema do arguido. O prejuízo integrador da burla tem de resultar de um acto do próprio ofendido, enganado ou induzido em erro pelo arguido.
É, assim, claramente infundada a pretensão da recorrente de ver o arguido pronunciado pelo crime de burla.

Este crime estaria em o banco, forçado pela comunicação do arguido de extravio dos cheques, ter aposto no verso de cada de um dos títulos a declaração de que recusava o pagamento “por motivo de extravio”. Mas, ao lavrar essa declaração em cada um dos cheques, o banco não afirmou ele próprio que os cheques eram extraviados, até porque ele não pode saber se isso aconteceu. Quem sabe se houve extravio é o titular da conta. Por isso, aquela declaração exarada pelo banco apenas quer dizer que este não pagou os cheques porque estes haviam sido dados como extraviados por quem tinha a titularidade da conta a que respeitavam. E isso não é falso; corresponde à verdade: os cheques haviam sido dados como extraviados pelo titular da conta respectiva. É isso que se diz no acórdão de fixação de jurisprudência do STJ de 19/01/2000, publicado no DR I série-A de 17/2/2000, a propósito de situação idêntica, embora no domínio do CP de 1982:
“O caso é, claramente, o de uma contra-ordem de pagamento ou revogação do cheque, com fundamento em alegado extravio, com o qual o banco sacado se conformou, recusando o pagamento ao tomador, no prazo de apresentação.
Logo, o sentido da declaração do sacado, mais ou menos imperfeitamente expressa no verso do cheque, só pode ser: recusado o pagamento em virtude de o sacado ter revogado o cheque com a alegação de que estava extraviado.
Já se vê, portanto, que o que o sacado afirma não é propriamente que o cheque se extraviou, mas, sim, que o sacador lhe comunicou que isso tinha acontecido. Ora, na realidade, foi essa, exactamente, a comunicação que lhe foi feita pelo sacador.
Mas, se assim é, se o declarado coincide com o realmente acontecido, então, da declaração do sacado não consta nenhum facto falso e, portanto, pelo facto de este a ter exarado no verso do título, o sacador não cometeu o crime previsto e punido pelo artigo 228º, nºs 1, alínea b), e 2”.
O que é falso é o facto comunicado pelo arguido ao banco; não os cheques. Mas, esse facto é exterior aos cheques.
A falsificação concretiza um atentado contra o documento enquanto meio de prova. E a referida declaração aposta no verso dos cheques não prejudica o cheque na sua função de meio de prova de uma ordem de pagamento. Essa declaração apenas lesa o cheque enquanto meio de pagamento. Por essa razão só releva no campo dos crimes contra o património, designadamente em sede de crime de emissão de cheque sem provisão, que aqui não pode ser tido em conta pelas razões já vistas. Na verdade, a conduta do arguido é um dos comportamentos típicos previstos na alínea b) do nº 1 do artº 11º do DL nº 454/91, de 28/12.
Ainda que fosse de entender que o caso se situava no campo da falsificação de documento, para ela poder ser imputada subjectivamente ao arguido seria necessário que ele soubesse ou representasse, conformando-se, que o banco, para recusar o pagamento dos cheques, lavraria no seu verso a declaração que lavrou.
E tal facto, independentemente de saber se está suficientemente indiciado, não tendo sido alegado no requerimento de abertura da instrução e sendo necessário para se poder imputar ao arguido a “falsificação” dos cheques, sempre representaria uma alteração substancial dos factos descritos no requerimento do assistente de abertura a instrução, pelo que a sua inclusão na pronúncia seria proibida pelo artº 309º, nº 1, do CPP.
Foi, pois, correcta a decisão de não pronunciar o arguido também pelo crime de falsificação de documento.

Decisão:

Em face do exposto, acordam os juizes desta Relação em negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
A recorrente vai condenada a pagar 3 Ucs de taxa de justiça.

Porto, 28 de Abril de 2004
Manuel Joaquim Braz
Luís Dias André da Silva
Fernando Manuel Monterroso Gomes