Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
449/14.1TBMAI.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA
Descritores: DISSOLUÇÃO DE SOCIEDADE
LIQUIDAÇÃO
FALSA AFIRMAÇÃO DE INEXISTÊNCIA DE PASSIVO SOCIAL
RESPONSABILIDADE DOS SÓCIOS
Nº do Documento: RP20150108449/14.1TBMAI.P1
Data do Acordão: 01/08/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Ao deliberarem a dissolução da sociedade e procederem à sua imediata liquidação mediante a falsa afirmação da inexistência de passivo social, os sócios podem tornar-se responsáveis pela satisfação do passivo social afinal existente.
II - Em regra essa responsabilidade terá como fundamento legal o disposto no artigo 163.º do Código das Sociedades Comerciais e como limite, nos termos da própria norma, o montante que os sócios receberam na partilha, situação que se deve considerar preenchida sempre que os sócios hajam, independentemente da forma, beneficiado pessoalmente de património social que deveria ter respondido pelo passivo social.
III - Essa responsabilidade pode ainda preencher a previsão da segunda parte do artigo 483.º do Código Civil ou afirmar-se com recurso ao instituto do abuso do direito, à violação do princípio ético-jurídico da proibição da causação intencional de danos a terceiros ou por aplicação analógica do disposto no artigo 158.º do Código das Sociedades Comerciais.
IV - Em qualquer destas situações torna-se necessário demonstrar o nexo de causalidade entre a actuação dos sócios e o prejuízo dos credores, para o que é indispensável demonstrar que a sociedade tinha bens com os quais podia, ainda que apenas parcialmente, satisfazer o crédito destes.
V - Esse facto é constitutivo do direito dos credores pelo que, querendo responsabilizar os sócios da sociedade pelo seu crédito, caberá aos credores insatisfeitos o respectivo ónus da prova.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso de Apelação
Processo n.º 449/14.1TBMAI.P1 [Comarca do Porto – Instância Central da Póvoa do Varzim]

Acordam os Juízes da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

I.
B… e C…, casados, contribuintes n.º ……… e ………, respectivamente, residentes em …, Maia, instauraram na então Comarca da Maia, acção judicial contra D…, casado, contribuinte n.º ………, residente em …, Santo Tirso, e E…, casado, contribuinte n.º ………, residente em …, Valongo, formulando os seguintes pedidos:
a) Ser reconhecido que na data da liquidação e encerramento da sociedade vendedora da fracção, os réus tinham perfeito conhecimento dos direitos dos autores, tendo mesmo assim procedido à liquidação e encerramento da sociedade; b) Que nos termos do estatuído no nº 1 do artigo 78º do CSC os réus, face à sua actuação, são responsáveis pelos prejuízos causados a credores da extinta sociedade, ou seja aos aqui autores; c) Face a tal responsabilidade devem os réus ser condenados a reparar e eliminar na totalidade os defeitos de construção existentes na habitação sita na Rua … n.º .. na freguesia …, concelho da Maia; b) Devem ainda os réus ser condenados no pagamento de uma indemnização, relativa aos danos morais sofridos pelos autores em quantia nunca inferior a €40.000,00.
Para o efeito, alegaram que em 28.03.2008 compraram à sociedade por quotas F…, Lda., pessoa colectiva nº ………, um prédio urbano para habitação, construído por aquela sociedade da qual os réus foram sócios. Sucede que esse imóvel veio a apresentar diversos defeitos de construção que os autores denunciaram aos réus, os quais, inclusivamente, procederam a algumas reparações. Em 23.01.2013, através de carta registada, os autores comunicaram os defeitos do imóvel, tendo o réu D… reconhecido os defeitos e apresentado uma proposta de pagamento de uma verba que os autores não aceitaram por ser muito inferior ao necessário para reparar os defeitos. Os autores vieram entretanto a descobrir que em 25.07.2011, no período de garantia do imóvel, através de Assembleia-geral convocada para o efeito, os réus deliberaram a dissolução e encerramento da sociedade construtora, a qual se encontra encerrada, liquidada e com a matrícula cancelada desde 26.07.2011. Os réus sabiam da existência de defeitos no imóvel e que estava a decorrer o prazo de garantia e actuaram dolosamente ao deliberarem a dissolução e encerramento da sociedade, pelo que respondem perante os autores nos termos do art. 78º n.º 1 do Código das Sociedades Comerciais.
A acção foi contestada pelos réus que batalham pela improcedência total do pedido, impugnando parte dos factos alegando e excepcionando que quando foi dissolvida a sociedade não possuía qualquer activo pelo que os sócios não respondem pelo passivo social quando nem sequer foi alegado que os réus tivessem recebido algum património da sociedade aquando da respectiva liquidação, sendo certo que os autores não concretizam em que consistiu a alegada conduta dolosa dos réus e que a dissolução da sociedade é um acto lícito; que o direito dos autores caducou por falta de denúncia dos defeitos no prazo legal, porque em relação a um dos réus a denúncia nunca foi feita e porque, de todo o modo, entre a alegada denúncia e a instauração da acção decorreram mais de 6 meses.
Na audiência prévia, não tendo obtido a conciliação das partes, o Mmo. Juiz a quo conheceu de imediato do mérito, julgando a acção improcedente e absolvendo os réus do pedido.
Do assim decidido, os autores interpuseram recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
(…) XIII. (…) a liquidação da sociedade só ocorreu face à omissão das obrigações que a Sociedade detinha perante os Autores.
XIV. Tendo os Réus, na qualidade de gerentes da sociedade liquidada, quer antes quer depois da liquidação, inclusive a responsabilidade em reparar os defeitos de construção que conheciam, reconheceram e assumiram.
XV. Os Réus ao afirmarem que a sociedade não tinha activo nem passivo, não procederam à liquidação da sociedade segundo os parâmetros legais, ou seja falsearam a verdade dos factos, pois que bem sabiam que a sociedade tinha obrigações a cumprir - proceder às reparações dos defeitos de construção existentes na moradia vendida aos AA., ou seja, actuaram dolosamente quando disseram que a sociedade não tinha activo nem passivo, bem sabendo que tal não correspondia à verdade, motivo pelo qual os mesmos assumiram a responsabilidade pessoal nas obrigações da sociedade liquidada;
XVI. Salvo o devido respeito não compete aos Autores fazer prova da existência da partilha de património da sociedade dissolvida, porque não a houve, são sim os Réus que têm de provar que actuaram diligentemente quer na dissolução quer na liquidação da sociedade, o que efectivamente não fizeram;
XVII. A liquidação da sociedade foi efectuada em Julho de 2011;
XVIII. Porém os responsáveis legais, aqui Réus em 23 de Janeiro de 2013, na qualidade de gerentes da sociedade, acusaram a recepção da denúncia dos defeitos de obras, reconhecem-nos e inclusive apresentaram uma proposta de pagamento da reparações dos mesmos;
XIX. Os Réus desde sempre que tiveram conhecimento dos defeitos tendo inclusive procedido a pontuais reparações, que não eliminaram os defeitos existentes;
XX. Encerrando e liquidando a empresa, tendo pendentes a reparação e eliminação dos defeitos os Réus agem com dolo, pela inobservância culposa das disposições contratuais destinadas à protecção dos Autores e consequentemente assumem os mesmos tal responsabilidade – vide art. 78º do CSC;
XXI. A dissolução e liquidação da sociedade não afasta a responsabilidade dos sócios perante as obrigações existentes e pendentes à data da liquidação;
XXII. Preceitua o art. 78º. e 79º. do CSC e o art. 1020º do C.C, os sócios são responsáveis perante terceiros pelo pagamento dos débitos e pelo cumprimento das obrigações como não tivesse existido dissolução;
XXIII. Assim e salvo o devido respeito não pode o pedido improceder face á fundamentação invocada pelo Tribunal “ a quo”;
XXIV. Atendendo a que os Réus dissolveram e liquidaram a sociedade, declarando a inexistência de ativo e passivo, bem sabendo que tal não correspondia à verdade, por força do estatuído nos artigos 78º. e 79º. do C.S.C. e 1020 do C.C., agiram dolosamente e consequentemente assumiram eles mesmos a obrigação que a Sociedade detinha perante os Autores.
XXV. A decisão do Tribunal “a quo”, deveria ter sido diversa.
XXVI. Estando a Sociedade Outorgante, dissolvida e liquidada, e perante a actuação dolosa dos Réus enquanto Gerentes, quer na dissolução quer na liquidação da Sociedade, impõe-se o prosseguimento dos autos para apurar responsabilidades dos mesmos perante os AA.;
XXVII. Os elementos dos autos, permitem-nos concluir que existiu um erro do Mmo. Juiz do Tribunal “ a quo”;
XXVIII. Motivo pelo qual deve a sentença recorrida ser revogada e em sua substituição proferida outra que ordene o prosseguimento dos autos para julgamento.
XXIX. Improcedendo as exceções alegadas.
XXX. Dúvidas não restam que face à actuação a todos os títulos dolosa dos Réus, a Decisão absolver os mesmos, do pedido de condenação como responsáveis pelos actos/obrigações da Sociedade anteriores à sua Liquidação, está em contradição com os supra citados preceitos legais, nomeadamente os arts. 78º, 79º e 158º, ambos do CSC e 102 do C.C..
Os recorridos responderam a estas alegações defendendo a falta de razão dos fundamentos do recurso e pugnando pela manutenção do julgado.
Após os vistos legais, cumpre decidir.

II.
Devidamente interpretadas as conclusões das alegações de recurso colocam este Tribunal perante o dever de resolver a seguinte questão: por terem deliberado a dissolução e procedido de imediato à liquidação da sociedade de que eram sócios, declarando então que a mesma não tinha activo nem passivo, os réus são responsáveis pelas dívidas da sociedade cuja existência os réus afinal conheciam.

III.
A 1.ª instância julgou já provados, por acordo das partes e documentos, os seguintes factos:
1- Os réus foram sócios da sociedade por quotas designada por F…, Lda., pessoa colectiva n.º ………, com sede na Rua …, n.º …, Valongo.
2- A empresa supra mencionada da qual os réus eram sócios procedeu à construção e venda de um prédio urbano destinado à habitação composto por cave, rés do chão e andar, tipologia T3, sito na Rua …, n.º .., na freguesia …, concelho da Maia.
3- O referido prédio está inscrito desde o ano de 2008, na respectiva matriz sob o artigo 8034.
4- Os autores compraram à empresa dos réus através de escritura pública outorgada a 28 de Março de 2008, no Cartório Notarial de G…, a descrita habitação pelo preço de €245.000,00 (duzentos e quarenta cinco mil euros).
5- O 1ª réu compareceu e outorgou a referida escritura pública na qualidade de sócio gerente da supra mencionada empresa.
6- Em 25 de Julho de 2011, os réus através de Assembleia-geral convocada para o efeito, deliberaram pela dissolução e encerramento da empresa construtora.
7- Tal empresa encontra-se encerrada e liquidada, com cancelamento de matrícula desde 26.07.2011.

Além destes estão ainda provados, por documento, os seguintes factos que relevam para a decisão a proferir:
8- A gerência da sociedade estava atribuída ao sócio e aqui réu D….
9- Na acta da Assembleia-geral referida em 6 consta que estavam presentes os dois sócios representativos da totalidade do capital social da sociedade, os quais manifestaram
“a vontade que a Assembleia se constituísse e deliberasse sobre a seguinte ordem de trabalhos: Ponto 1: Dissolução da sociedade; Ponto 2: Aprovação das contas e do balanço do exercício final, reportados à data de dissolução, com declaração de liquidação simultânea da sociedade, por inexistência de activo e passivo.
Entrando no Ponto 1 da ordem de trabalhos, o sócio-gerente D…, pediu a palavra e informou a assembleia que, deve a sociedade ser dissolvida, visto já não ter viabilidade económica, face aos sucessivos prejuízos anuais apresentados e à forte concorrência do sector. Foi colocada à discussão e votação a proposta de dissolução da sociedade, tendo sido aprovada por unanimidade.
Seguidamente passou-se ao Ponto 2 da ordem de trabalhos, tendo o sócio-gerente D..., informado a assembleia que, em virtude da sociedade na presente data, já não ter qualquer activo nem passivo, se encontra em condições de poder ser dada como liquidada, conforme tudo decorria da contabilidade social.
Nestes termos, propôs que fossem aprovados os documentos de prestação de contas e balanço do exercício final, reportados à data de dissolução e reconhecida a inexistência de activo e passivo, ficando os livros e demais escrituração comerciai da sociedade, confiados à guarda de D…, a qual será encarregue de proceder aos respectivos actos de registo comerciais (…)
Postas à votação, foram aprovadas por unanimidade, as contas e o respectivo balanço do exercício final assim como a declaração de encerramento da liquidação, por inexistência de activo e passivo…”

IV.
A questão que está colocada a este Tribunal em via de recurso é estritamente jurídica e situa-se em sede de responsabilidade dos sócios da sociedade dissolvida e liquidada pelas dívidas sociais que não foram satisfeitas pela sociedade antes da sua extinção.
A solução dessa questão depende, assim, da determinação dos casos em que essa responsabilidade existe e dos respectivos pressupostos, de modo a saber se a factualidade alegada nos autos pelos autores preenche tais pressupostos, caso em que a acção terá condições para prosseguir com vista à determinação da existência da dívida social que se mostra impugnada, ou não, caso em que se mostrará correcta a decisão de julgar de imediato a acção improcedente.
Os autores configuraram a acção nos seguintes termos: compraram um imóvel a uma sociedade comercial, o imóvel apresenta defeitos que exigem reparação, denunciaram os defeitos e reclamaram a sua reparação, a sociedade foi dissolvida por deliberação dos sócios aqui réus e liquidada de imediato com fundamento na inexistência de passivo e de activo, sem ter sido assegurada previamente a satisfação do crédito dos autores, apesar de os réus terem conhecimento da existência desse passivo da sociedade.
Daqui retiram os autores a conclusão de que podem exigir dos réus a satisfação do direito de crédito que tinham sobre a sociedade. Inerente a esta construção está pois a ideia de que os réus são responsáveis pelo passivo da sociedade não satisfeito porque sabiam desse passivo e declararam falsamente que o mesmo não existia, não tendo assegurado a sua satisfação antes do encerramento da sociedade.
Esta configuração da acção tem um dado incontornável: os autores, para além de confessarem expressamente que não houve partilha de património social pelos sócios, não alegam que a sociedade possuía activos que pudessem permitir a satisfação, total ou parcial, do seu crédito, ou, ao menos, que possuía (quaisquer) activos, e sustentam mesmo que não lhes incumbe alegar esse facto, antes são os réus que para afastarem a sua responsabilidade têm de alegar e provar que a sociedade não tinha activos.
Cabe referir que a acção foi decidida na audiência prévia sem previamente se convidar os autores a aperfeiçoarem a sua petição inicial. Nas suas alegações de recurso, os autores não apenas não contestam esse procedimento, melhor dizendo, a falta de convite ao aperfeiçoamento, como não invocam qualquer nulidade processual traduzida nessa falta, pelo que nos é vedado abordar essa questão.
Acresce, por fim, que nas suas alegações de recurso os autores reiteram que não têm de alegar que a sociedade tinha activos, forçando, portanto, que a acção seja decidida com base nesse pressuposto, isto é, o pressuposto de não ter sido (intencionalmente) alegado que a sociedade tinha bens que pudessem permitir satisfazer, total ou parcialmente, o direito dos autores, e impedindo assim a suscitação da hipótese da ampliação da matéria de facto.
Na petição inicial, para fundamentar juridicamente a responsabilidade que imputam aos réus, os autores invocam o disposto no artigo 78.º do Código das Sociedades Comerciais. Salvo melhor opinião, não parece que este preceito legal possa alicerçar a responsabilidade que se quer atribuir aos réus.
O artigo 78.º prevê a responsabilidade dos gerentes ou administradores da sociedade para com os credores sociais, estipulando que os gerentes ou administradores respondem para com os credores da sociedade quando, pela inobservância culposa das disposições legais ou contratuais destinadas à protecção destes, o património social se torne insuficiente para a satisfação dos respectivos créditos.
Como afirma Carneiro da Frada in A business judgement rule no quadro dos deveres gerais dos administradores, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 67, vol. I, a função do gerente ou administrador é “comandar a sociedade, geri-la, prosseguir o interesse social, fazendo frutificar os meios de que a sociedade dispõe em ordem à criação de lucro para os sócios”. Por isso, “ao administrador cabe, não um simples dever de cuidado (na sua actividade de administração), mas o dever de cuidar da sociedade, ou seja, o dever de tomar conta, de assumir, o interesse social. Esse é que é o seu dever específico”.
O artigo 64.º do Código das Sociedades Comerciais vincula o gerente ou administrador a actuar com cuidado, ou seja, a praticar uma administração cuidada e com zelo, a adoptar nessas funções as melhores práticas, denotando competência e conhecimento para o efeito. Essa actuação visará essencialmente a maximização do lucro com a prossecução do interesse social, mas não tem de o ter como único critério ou referencial absoluto. Com efeito, o preceito em causa vincula os gerentes ou administradores a levarem também em conta “os interesses dos outros sujeitos relevantes para a sustentabilidade da sociedade, tais como os seus trabalhadores, clientes e credores”.
A violação destes deveres por parte do gerente ou administrador poderá fazê-lo incorrer em responsabilidade civil. Nos termos do n.º 1 do artigo 72.º os gerentes ou administradores respondem para com a sociedade pelos danos a esta causados por actos ou omissões praticados com preterição dos deveres legais ou contratuais, salvo se provarem que procederam sem culpa. Acrescenta o n.º 2 que essa responsabilidade é excluída se provar que actuou em termos informados, livre de qualquer interesse pessoal e segundo critérios de racionalidade empresarial. Estamos no domínio da responsabilidade perante a sociedade, pelos danos causados à sociedade em resultado de uma actuação sem a diligência própria do gestor criterioso e ordenado.
Quanto à responsabilidade perante os credores, a que respeita o mencionado artigo 78.º, Carneiro da Frada, loc. cit., refere que “nenhum sócio, credor ou terceiro pode reclamar do administrador uma indemnização por prejuízos (próprios) derivados de uma má administração. O dever de administrar (com cuidado) não existe perante nenhum deles, e nenhum deles tem uma pretensão mediante a qual possa exigir, pessoalmente, o seu cumprimento. Deste modo, a exclusão de responsabilidade com base na actuação informada e no interesse social, assim como de acordo com a racionalidade empresarial não opera (qua tale) perante eles. Nenhum deles, repete-se, podia reclamar do administrador uma conduta conforme com o art. 72, n.° 2, em ordem à satisfação do seu interesse. Certamente: o administrador tem também deveres perante credores, sócios e terceiros. Só que esses deveres são normalmente, ou deveres específicos sem autonomia no cumprimento (normalmente especificados na lei ou, em casos mais raros, no contrato), ou deveres (comuns) de boa fé e lealdade para com aqueles que estão, têm ou instauraram um relacionamento específico (uma Sonderverbindung) com os administradores. Na realidade, a responsabilidade perante credores e outros terceiros (sócios, trabalhadores, clientes) era, foi e será sempre uma responsabilidade condicionada, requerendo factores especiais. Segundo o art. 78.º, que tutela os credores, requer-se a violação de uma disposição legal ou contratual destinada a proteger interesses alheios, e que, por via dessa violação, o património social se tenha tornado insuficiente para a satisfação dos credores”.
O objecto da previsão do artigo 78.º é assim o modo como o gerente ou administrador gere ou administra a sociedade. E a sua responsabilidade surge quando, por na sua administração não ter observado alguma disposição legal ou contratual destinada à protecção dos credores, a sua actuação tem como consequência que o património social se tenha tornado insuficiente para satisfazer os respectivos créditos.
Como se afirma no Código das Sociedades Comerciais em Comentário, coord. de J. Coutinho de Abreu, I, Almedina, pág. 94 e seguintes, “O art. 78.º, 1, consagra a responsabilidade directa dos administradores para com os credores sociais. A essa responsabilidade corresponde acção autónoma ou directa dos credores, titulares de direito de indemnização, não acção sub-rogatória (prevista no art. 78º, 2) para proveito directo da sociedade. Pressuposto primeiro da responsabilidade em análise é a inobservância das “disposições legais ou contratuais destinadas à protecção” dos credores sociais. A ilicitude, aqui, compreende a violação, não de todo e qualquer dever impendendo sobre os administradores, mas tão-só dos deveres prescritos em “disposições legais ou contratuais” de protecção dos credores sociais. (…) Sofre um dano patrimonial puro o credor cujo crédito não é satisfeito, em razão insuficiência do património social. O credor lesado terá direito de exigir o ressarcimento se, além dos outros pressupostos, o administrador tiver violado normas de protecção dos credores sociais. (…) A inobservância de normas de protecção leva à responsabilização dos administradores para com os credores sociais desde que tal inobservância cause (nexo causalidade) uma diminuição do património social (dano directo da sociedade) o torne insuficiente para a satisfação dos respectivos créditos (dano indirecto dos dores sociais). Tem de haver, portanto, dano para a sociedade. E decorrente da violação de normas de protecção dos credores sociais. Um dano causado à sociedade pela violação de outras normas é susceptível de conduzir à responsabilidade para com a sociedade, não para com os credores sociais - ainda que estes sejam afectados, mediatamente, por aquele danou. Depois, não é qualquer dano para a sociedade que funda a responsabilidade perante os credores sociais. Há-de consistir em uma diminuição do património social em montante tal que ele fica sem forças para cabal satisfação dos direitos dos credores. Só quando se verifica esta insuficiência do património social existe dano (mediato) relevante para os credores da sociedade”.
Ora nada disso se ajusta à situação dos autos. Nesta não está em causa a actuação do gerente no exercício da administração da sociedade, está em causa a decisão dos sócios de dissolver a sociedade e de operar a sua extinção sem liquidação com a alegação falsa da inexistência de passivo. Nesta não está sequer alegado que existisse património social e este se tivesse tornado insuficiente para satisfazer os créditos da sociedade, ainda que obviamente a menção de que a liquidação da sociedade foi feita com a declaração dos sócios de não existir passivo a satisfazer nem activo a repartir entre eles tenha implícita a afirmação da inexistência de activos da sociedade que possam responder pelo crédito dos autores.
Até podemos admitir que ao declararem falsamente que inexistia activo social os sócios tenham violado as disposições legais que regem a forma de operar a liquidação das sociedade e que compreendem designadamente o dever de acautelar o passivo social, as quais podem e devem ser vistas como normas de protecção. Só que para fazer actuar a responsabilidade do artigo 78.º era necessário mais, era necessário estabelecer uma relação de causa-efeito entre a actuação ilícita e a situação de insuficiência do património, a qual não decorre daquela decisão e declaração dos sócios porque essa insuficiência podia bem ser preexistente e derivar de outras causas, como podia mesmo não existir na eventualidade de a falsidade da declaração não abranger somente o passivo mas também o activo, ambos declarados como inexistentes.
A interpretação de que as disposições legais que regem a forma de operar a liquidação da sociedade são normas de protecção dos credores, designadamente quando consagram o dever de acautelar o passivo social, remete-nos, aliás, também para o campo de aplicação do artigo 483.º do Código Civil. Este preceito divide a ilicitude geradora da obrigação de indemnização em duas modalidades básicas: a violação de um direito de outrem e a violação de qualquer disposição legal destinada à protecção de interesses alheios. No primeiro caso, a ilicitude advém da ofensa perpetrada a um bem jurídico que a lei qualifica como direito da pessoa, no segundo, a ilicitude provém de uma actuação desconforme com a regra de conduta que a lei impõe como forma de tutela de interesses de outrem.
Sucede, contudo, que o enquadramento da responsabilidade na previsão do artigo 483.º do Código Civil torna-a dependente da demonstração da totalidade dos requisitos da responsabilidade civil, que como sabemos, usando as palavras incontornáveis de Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral, vol. I, 5ª ed., página 478, são: a) o facto; b) a ilicitude; c) a imputação do facto ao lesante; d) o dano; e) um nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Ora, no caso, para se poder afirmar a existência de um nexo de causalidade entre a decisão dos sócios de dissolverem a sociedade e a declararem de imediato liquidada por ausência de passivo ou activo e a impossibilidade de os autores obterem a satisfação do seu direito de crédito, era indispensável que estivesse demonstrado que antes da deliberação dos sócios a sociedade tinha com que satisfazer o crédito dos autores e que essa situação apenas se alterou por causa, em virtude, como consequência adequada desse comportamento dos sócios violador das normas de protecção.
Se antes da actuação dos sócios, a sociedade já não tinha activos – bens ou crédito - que permitissem satisfazer o direito de crédito dos autores, não se poderá considerar que a deliberação dos sócios fosse adequada a provocar os danos sofridos pelos autores, isto é, que aquando da deliberação os sócios deviam prever que segundo o curso normal das coisas o seu comportamento seria apto para, em abstracto ou em geral, produzir o dano dos autores e que este de outra forma não teria lugar. A causa adequada desse dano terá sido, nesse caso, o desaparecimento do activo da sociedade, não a deliberação dos sócios.
Nessas circunstâncias, sendo certo que ninguém questiona que no âmbito da responsabilidade extracontratual o ónus da prova dos pressupostos do instituto da responsabilidade civil cabe ao lesado, salvo havendo presunção legal, o esforço de integrar a responsabilidade que os autores imputam aos réus no instituto da responsabilidade civil está igualmente condenado ao insucesso. Isso mesmo é igualmente defendido por Carolina Cunha in Responsabilidade dos sócios pelo passivo superveniente após a extinção da sociedade nos casos de ausência de liquidação, III Congresso do Direito das Sociedades em Revista, Almedina, Outubro de 2014, pág. 188, ao afirmar que essa hipótese levantará seguramente dificuldades no que respeita à prova dos danos e do nexo de causalidade, “desde logo, na medida em que, se a sociedade não dispunha de activo à data da respectiva extinção, a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento lesivo (a extinção alicerçada em declarações falsas) seria, à partida, idêntica: os credores não teriam conseguido a satisfação dos seus créditos porque, mesmo que a sociedade não se houvesse extinguido, não havia com que os satisfazer.”[1]
Esta mesma dificuldade (e outras relativas aos requisitos mais específicos dos institutos jurídicos que os autores não configuraram no desenho da sua acção) conduz ao afastamento de duas outras possíveis fontes de responsabilidade delitual consideradas por alguma doutrina.
Referimo-nos em primeiro lugar ao instituto do abuso do direito, na eventualidade de se entender, como admitimos, que a declaração falsa da inexistência de passivo constitua um exercício abusivo do direito dos sócios de dissolver e extinguir a sociedade. Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral, Vol. I, 5ª edição, Almedina, Coimbra, pág. 497, defende peremptoriamente que se o exercício abusivo do direito causou algum dano a outrem, haverá lugar à obrigação de indemnização. No mesmo sentido, Pedro Pais de Vasconcelos, in Teoria Geral do Direito Civil, 5ª edição, Almedina, 2008, pág. 277, entende que o abuso do direito dá origem a responsabilidade civil. Sinde Monteiro, in Comemorações dos 35 Anos do Código Civil e dos 25 Anos da Reforma de 1977, Vol. III, Direito das Obrigações, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, pág. 463, defende igualmente que a conduta do agente é ilícita e gera obrigação de indemnização quando de uma forma ofensiva para os bons costumes se causam dolosamente danos a outrem. O mesmo autor, in Responsabilidade por Conselhos, Recomendações ou Informações, Almedina, Coimbra, 1989, pág. 551 e seguintes, afirma que a responsabilidade delitual por abuso do direito constitui um sistema móvel ou aberto mas, no mínimo, tem de se considerar que fica obrigado a reparar os danos aquele que de uma forma ofensiva para os bons costumes causa intencionalmente um dano a outrem.
A outra fonte de responsabilidade civil que se podia conjecturar no caso é defendida por Carneiro da Frada, in Uma «Terceira Via» no Direito da Responsabilidade Civil?, Almedina, Coimbra, 1997, págs. 61 e seg., e in Teoria da Confiança e Responsabilidade Civil, Almedina, Coimbra, 2007, pág. 167, nota 121, e pág. 250, nota 223. Este autor recusa a ideia de que o abuso do direito possa constituir uma fonte de responsabilidade aquiliana, que o artigo 334.º do Código Civil constitua em si mesmo uma norma de responsabilidade civil relativamente a condutas danosas praticados no exercício de uma liberdade genérica de agir. Todavia, para este autor, deve ser reconhecida a existência no nosso sistema jurídico, fruto de uma exigência indeclinável de justiça, de um limite imposto pelo mínimo ético-jurídico reclamável de todos os membros da comunidade jurídica e que se traduz numa proibição genérica de condutas danosas contrárias aos bons costumes. A entender-se que a actuação dos sócios teve por objectivo não a resolução da situação em que se encontrava a sociedade, mas a intenção directa de impedir os autores de obter a satisfação do seu direito, poder-se-ia equacionar esta via de enquadramento jurídico da pretensão dos autores.
Todavia, em qualquer destas duas situações, seria necessário aos autores alegar e demonstrar os restantes pressupostos da responsabilidade civil, entre os quais se conta o nexo de causalidade entre o facto ilícito e os danos, para o que, como já acentuámos, era indispensável alegar ao menos que a sociedade possuía bens que podiam ser afectos à satisfação, total ou parcial, do crédito dos autores, pois só nessa circunstância se poderia considerar que a actuação dos réus foi causa adequada do dano suportado pelos autores[2].
Outra hipótese de eventual responsabilização pelo passivo da sociedade encontra-se no artigo 158.º do Código das Sociedades Comerciais que prevê a responsabilidade dos liquidatários para com os credores sociais.
Segundo esta norma, os liquidatários que, com culpa, nos documentos apresentados à assembleia para os efeitos do artigo anterior indicarem falsamente que os direitos de todos os credores da sociedade estão satisfeitos ou acautelados, nos termos desta lei, são pessoalmente responsáveis, se a partilha se efectivar, para com os credores cujos direitos não tenham sido satisfeitos ou acautelados.
Independentemente da questão de saber se esta norma pode ser aplicada, directamente[3] ou por analogia[4] à situação dos autos, certo é que essa aplicação não pode ser feita sem respeitar os requisitos de responsabilidade civil consagrados na própria norma, isto é, não se pode, a coberto da aplicação analógica, estender a previsão de responsabilidade a terceiros não directamente abrangidos pela norma em condições distintas e mais desfavoráveis do que as pessoas directamente visadas na norma. Significa isso que a aplicação da norma aos sócios que deliberaram a extinção sem proceder previamente às operações de liquidação previstas no Código das Sociedades Comerciais não poderá nunca prescindir do requisito de ter havido distribuição de activos sociais pelos sócios a responsabilizar (se a partilha se efectivar).
A esse propósito não temos dúvidas de que a afirmação dos sócios constante da deliberação de extinção imediata por ausência de activos a liquidar não faz prova plena desse facto[5]. Diremos mesmo que não constitui sequer um princípio de prova desse facto porquanto se trata de um facto favorável aos declarantes, claramente ao arrepio das regras da experiência e que serviu de fundamento para a postergação de normas legais que regem sobre a liquidação das sociedades, pelo que deve ser interpretado com desconfiança pelo julgador.
Nessa medida, nada obsta a que na acção de responsabilidade civil se faça a prova de que afinal sempre existia activo social e que o mesmo foi distribuído pelos sócios. Não será necessário nem demonstrar que essa distribuição constituiu uma efectiva partilha (a distribuição pode ser escamoteada através de actos jurídicos diversos) nem que a mesma foi contemporânea da deliberação, porquanto pode perfeitamente suceder que os sócios hajam anteriormente procedido à dissipação do património da sociedade em seu proveito pessoal (repartindo entre si não os bens que constituíam o património social quae tal mas a receita da sua alienação a terceiros) já com a intenção de logo a seguir a declararem extinta com fundamento na inexistência de activos. Fundamental ao preenchimento do mencionado pressuposto da responsabilidade (a partilha, leia-se, a apropriação pelos sócios dos bens sociais) será assim a demonstração de que os sócios se aproveitaram de património social, que de outra forma responderia pelo passivo social, em benefício pessoal e prejuízo dos credores e que foi essa situação que motivou e permitiu a deliberação de extinção imediata da sociedade.
Sendo assim, como nos parece, parece seguro que para viabilizar este possível enquadramento jurídico, é indispensável que os credores aleguem, ao menos, que, ao contrário do que os sócios declararam, a sociedade tinha efectivamente bens que redundaram em proveito dos sócios ou que os bens que a sociedade possuíra anteriormente foram dissipados pelos sócios em seu proveito pessoal ou com vista a possibilitar a liquidação imediata da sociedade sem satisfazer ou acautelar previamente os credores sociais. O que vale por dizer que, no caso em apreço, uma vez que os autores não alegaram esse circunstancialismo de facto, está igualmente afastado este possível fundamento jurídico da sua pretensão.
E com isto somos chegados àquele que podemos considerar o lugar natural da responsabilidade que os autores pretendem imputar aos réus: o artigo 163.º do Código das Sociedades Comerciais.
Este artigo rege sobre aquilo que designa por “passivo superveniente”. Contudo, não define o que se deve entender por superveniência do passivo. Ainda que os próprios actos de liquidação possam gerar encargos e, subsequentemente passivo[6], não parece que a norma se reporte ao passivo posterior à deliberação de dissolução da sociedade. Para efeitos da norma, até porque a mesma não restringe e a teleologia da sua previsão assim o aponta, passivo superveniente é o passivo social que posteriormente à liquidação se vem a apurar que existia (ou porque era desconhecido anteriormente ou porque era litigioso e se tornou certo apenas após o encerramento da liquidação) e não foi satisfeito ou assegurado na liquidação, não havendo mais bens sociais (bens ainda da titularidade da sociedade) que possam responder por ele.
De acordo com o n.º 1 do preceito, encerrada a liquidação e extinta a sociedade, os antigos sócios respondem pelo passivo social não satisfeito ou acautelado, até ao montante que receberam na partilha, sem prejuízo do disposto quanto a sócios de responsabilidade ilimitada.
Comenta Carolinha Cunha, loc. cit., pág. 173 e 174, e in Código das Sociedades Comerciais em Comentário, n.º 2, pág. 668, acompanhando Raul Ventura, in Dissolução e liquidação de sociedades - Comentário ao Código das Sociedades Comerciais, 2ª reimpressão da 1.ª edição de 1987, Almedina, Coimbra, 1999, pág. 480, que “por circunstâncias várias, envolvendo ou não culpa (ou dolo) dos liquidatários, pode a sociedade vir a ser extinta sem que estejam satisfeitos todos os credores sociais. Os interesses dos credores e do tráfico jurídico em geral opõem-se fortemente a que a extinção da sociedade acarrete a extinção das dívidas sociais. Ora, permanecendo as dívidas, há que determinar quem responde por elas. A regra geral é a consagrada pelo art. 163.º: a responsabilidade dos antigos sócios, embora limitada pelo montante que receberam em partilha. O fundamento da solução legalmente consagrada radica na ideia de sucessão na titularidade daquela relação jurídica, embora de âmbito limitado pela extensão do direito de cada sócio relativamente ao antigo património social. Os sócios têm direito ao saldo da liquidação distribuído pela partilha; mas, se houverem recebido mais do que era seu direito porque havia débitos sociais insatisfeitos, terão de ser eles a satisfazê-los, agora à custa dos bens que receberam.”
Como se vê, excepto no tocante aos sócios de responsabilidade ilimitada, a responsabilidade dos sócios tem limites e não abrange, independentemente do mais, a totalidade dos débitos sociais insatisfeitos. Tão pouco tem a medida da sua participação no capital social da sociedade extinta. A responsabilidade dos sócios pelo passivo social não satisfeito ou acautelado depende de terem recebido na liquidação mais bens do que aqueles que podiam ter sido distribuídos aos sócios na liquidação e, como tal, tem como medida o montante que receberam na partilha. Sendo assim, é requisito insuprível de responsabilização dos sócios a demonstração de que os sócios beneficiaram pessoalmente de património social que deveria ter respondido pelo passivo social e foi antes, indevidamente, transferido para a titularidade dos sócios.
Vale aqui, naturalmente, tudo quanto acima se afirmou a propósito da responsabilidade dos liquidatários prevista no artigo 158.º, quanto ao que se deve entender sobre a partilha dos bens sociais e à equiparação à mesma das possíveis modalidades informais e dissimuladas de transferência para os sócios do património social.
A questão que se coloca, e que os recorrentes colocam nos autos, é a de saber a quem compete o ónus (de alegação e) da prova desse requisito, concretamente se são os credores que têm de fazer a prova de que os sócios receberam em partilha património da sociedade que poderia responder total ou parcialmente pelo seu crédito ou, pelo contrário, são os sócios que têm de fazer a prova de que não receberam em partilha bens sociais. A resposta absolutamente maioritária na jurisprudência vai no sentido da primeira das alternativas colocadas.
Sustentaram que esses factos são constitutivos do direito dos credores e como tal são os credores que têm de fazer a prova de que os sócios receberam em partilha património da sociedade designadamente os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 15-11-2007 (Salvador da Costa), de 26-06-2008 (Santos Bernardino), de 06-03-2012 (Fonseca Ramos), de 07-02-2013 (Bettencourt de Faria) e de 12-03-2013 (Garcia Calejo), da Relação do Porto de 23-01-2012 (Caimoto Jácome), de 05-07-2012 (Teles de Menezes e Melo), de 04-06-2013 (Fernando Samões) e de 14-01-2014 (Márcia Portela), da Relação de Lisboa de 11-07-2013 (Vaz Gomes), de 12-07-2012 (Luís Lameiras) e de 24-06-2014 (Manuel Marques), e da Relação de Coimbra de 22-03-2011 (Carlos Querido), todos in www.dgsi.pt.
Entendendo, pelo contrário, que os factos são impeditivos do direito dos credores a obterem dos sócios a satisfação dos seus créditos e, como tal, que cabe aos sócios demonstrar que não receberam bens sociais, conhecemos os Acórdãos da Relação de Lisboa de 09-03-2010 (Afonso Henrique), de 15-03-2011 (Graça Araújo), e de 12-06-2014 (Maria Teresa Albuquerque), e o voto de vencido (Pinto Hespanhol) no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23-04-2008 (Sousa Peixoto), in www.dgsi.pt. Pertence ao Acórdão de Graça Araújo o mérito do melhor esforço argumentativo no sentido da defesa desta posição, tendo recebido a adesão de Carolina Cunha, in in Responsabilidade dos sócios pelo passivo superveniente …, loc. cit, pág. 193.
Essa argumentação tem como vértice essencial a defesa que de a relação jurídica que o credor social traz à lide é aquela que o liga à sociedade, posto que nenhuma outra, diversa e autónoma, se constitui com os respectivos sócios, pelo que o credor apenas tem de demonstrar os factos constitutivos do seu direito sobre a sociedade. É fácil de demonstrar onde soçobra este argumento.
O artigo 163.º do Código das Sociedades Comerciais consagra uma situação de responsabilidade dos sócios pelas dívidas sociais, ou seja, constitui uma fonte específica de responsabilidade de alguém por dívidas que não eram suas. Quando, com recurso a este normativo, os credores sociais demandam os sócios já não é a responsabilidade da sociedade que querem ver reconhecida mas a responsabilidade dos próprios sócios[7]. Obtida a sentença condenatória dos sócios, é o património destes que os credores vão poder executar coercivamente. E isso sem restrição aos bens concretamente recebidos na partilha dos bens sociais, já que o normativo não cria no património dos sócios uma espécie de património autónomo restringindo a acção dos credores a esse património, apenas estabelece que os sócios respondem, com a totalidade do seu património, até ao limite do valor que receberam na partilha. Sendo assim, aos credores não basta obviamente demonstrar os factos constitutivos do seu direito sobre a sociedade, é ainda necessário que demonstrem que esse direito foi transferido para os sócios, isto é, que no caso estão preenchidos os pressupostos e requisitos legais dessa transferência, no fundo os factos constitutivos do seu direito sobre os sócios, pois são estes que vão ser responsabilizados pela dívida e chamados com todo o seu património a satisfazer essa dívida.
Em defesa da mencionada posição, argumenta-se ainda com a dificuldade do credor em apurar a situação da sociedade para poder alegar e fazer a prova da existência de bens e da sua partilha pelos sócios e com o acréscimo de custos e dificuldades, em comparação com a demanda da sociedade, com que se confrontam os credores perante a situação gerada pela dissolução e imediata liquidação da sociedade da responsabilidade dos sócios. Não há dúvida de que estamos perante um contexto de dificuldades acrescidas para os credores, mas não cremos, à luz do que sucede, por exemplo, com a prova dos factos negativos, que tal possa servir de fundamento para inverter as regras legais do ónus da prova.
É absolutamente insofismável que o facto de poderem demandar a sociedade não assegurava aos credores a efectiva satisfação do seu crédito. Se for verdade o que os sócios declararam quanto à inexistência de activo social, mesmo que demandassem a sociedade e esta fosse condenada, os credores continuariam com os seus créditos insatisfeitos ainda que instaurassem uma execução já que nesta apenas poderiam penhorar património da sociedade e este não existia. Logo, não prevendo o artigo 163.º do Código das Sociedades Comerciais a responsabilidade total, plena, incondicional dos sócios pelo passivo não satisfeito, não se vê porque haverão os credores de ficar, ao demandarem os sócios, à margem do risco e da dificuldade de não haver mesmo património provindo da sociedade que possa satisfazer os seus créditos[8].
Não vemos, pois, bons argumentos que permitam afastarmo-nos da tese preponderante que impõe aos credores o ónus da prova da existência de bens da sociedade de que os sócios se apropriaram em prejuízo dos credores. Note-se que não sustentamos que para obter a procedência da acção os credores tenham de fazer a prova da suficiência desses bens para pagar totalmente o seu crédito. O requisito da responsabilidade dos sócios é eles terem recebido na liquidação do património social bens da sociedade que respondiam pelo crédito. Basta por isso que os credores demonstrem que os sócios fizeram seus bens da sociedade. Aos sócios já caberá, contudo, caso pretendam ser condenados a pagar menos do que o valor do crédito, o ónus da prova da insuficiência desses bens para a satisfação total dos créditos.
Fazendo aplicação destes considerandos jurídicos ao presente caso, uma vez que os autores não alegaram que a sociedade devedora tivesse bens (alguns, poucos que fossem) e que os sócios se tivessem aboletado com esses bens em prejuízo dos credores sociais e que sustentam mesmo, erradamente, como acabamos de justificar, que não têm de o fazer para fundamentar a sua pretensão, só nos resta concluir que nesse contexto a decisão de julgar de imediato a acção improcedente está em conformidade com os dados legais e tem de ser confirmada. Improcede, por isso, o recurso.

V.
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso improcedente e, em consequência, negando provimento à apelação, confirmam a sentença recorrida.
Custas pelos recorrentes (tabela I-B).
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Porto, 8 de Janeiro de 2014.
Aristides Rodrigues de Almeida (Relator; Rto 178)
José Amaral
Teles de Menezes
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[1] A mesma autora afirma depois, a pág. 198, a propósito da possibilidade de chamar à colação o artigo 78.º do Código das Sociedades Comerciais para responsabilizar os sócios que também sejam gerentes ou administradores pela violação culposa das normas de protecção dos credores, fundamento que como vimos se aproxima radicalmente da segunda modalidade de responsabilidade prevista no artigo 483.º do Código Civil, ser “claro que, para o efeito, não basta ao credor alegar que os sócios, no momento em que dissolveram a sociedade e declararam que não havia nada a liquidar, sabiam que existia o passivo referente ao crédito cuja satisfação assim pretenderam culposamente impedir.”
[2] A propósito da questão do nexo de causalidade nos casos, que apresentam aspectos similares à questão que nos ocupa, de responsabilidade bancária por devolução do cheque na sequência de revogação ilegítima do sacador quando a conta sacada não tem provisão que permitisse o pagamento do cheque cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 21.03.2013 (Abrantes Geraldes) e de 14.10.2014 (Alves Velho), in www.dgsi.pt.
[3] Essa aplicação foi feita no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 16.11.2010, no processo n.º 655/04.7 TBMTJ-B.L1-1, in www.dgsi.pt sob o argumento de que “os sócios liquidatários são pessoalmente responsáveis para com os credores da sociedade, por não terem junto aos autos as contas finais da sociedade executada, isto após se terem remetido ao silêncio na sequência da notificação que lhes foi feita para, no prazo de dez dias «juntarem aos autos as contas finais e documentos que apresentaram, sob pena de, não o fazendo, se entender que actuaram culposamente quanto à indicação de que os créditos dos credores da sociedade se encontravam satisfeitos»”. Cremos, no entanto, que esta posição é insustentável porquanto, com todo o devido respeito, se nos afigura uma heresia jurídica associar, sob a capa de cominações processuais por não acatamento de um despacho judicial a mandar juntar aos autos documentos, consequências de direito material não previstas na norma de direito substantivo que consagra o fundamento específico de responsabilidade civil.
[4] Pode entender-se que existe analogia de situações entre o liquidatário nomeado que não paga ou assegura o passivo social e os sócios que declaram a extinção imediata da sociedade prescindindo intencionalmente da nomeação de um liquidatário e, em simultâneo, daquele que seria o objectivo legal da actuação do liquidatário: proceder à satisfação ou ao acautelamento do passivo social (assim por Carolina Cunha in Responsabilidade dos sócios pelo passivo superveniente após a extinção da sociedade nos casos de ausência de liquidação, loc. cit., pág. 186).
[5] Nesse sentido, que parece ser unânime na jurisprudência, cf. os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 26-06-2008 (Santos Bernardino), da Relação de Guimarães de 18-01-2011 (Maria Luísa Ramos), da Relação de Coimbra de 19-12-2000 (Custódio Costa), da Relação de Lisboa de 11-07-2013 (Vaz Gomes) e da Relação do Porto de 01-02-2011 (Henrique Araújo) e de 05-07-2012 (Teles de Menezes e Melo), in www.dgsi.pt.
[6] Nos termos do artigo 146.º, n.º 2, a sociedade em liquidação mantém a sua personalidade jurídica. E nos termos do artigo 152.º, n.º 2, o liquidatário pode ser inclusivamente autorizado por deliberação dos sócios a “continuar temporariamente a actividade anterior da sociedade” e a “contrair empréstimos necessários à efectivação da liquidação”.
[7] Razão pela qual o artigo 163.º refere que os liquidatários demandados são considerados representantes legais dos sócios e não da sociedade, que a sentença proferida constitui caso julgado em relação aos sócios, e que os sócios que pagarem têm direito de regresso contra os outros, de maneira a ser respeitada a proporção de cada um nos lucros e nas perdas.
[8] É obvio que esta situação já devia ter obtido uma resposta do legislador, sobretudo nos casos, como sucede na acção, em que estão em causa contratos de aquisição de bens relevante do ponto de vista económico e pessoal (a habitação de uma família) e em que os direitos dos credores podem surgir num prazo relativamente distante da celebração do contrato (prazo de garantia de defeitos de 5 anos).