Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
448/20.4T9VLG-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO PEDRO PEREIRA CARDOSO
Descritores: DISPENSA DO DEVER DE SIGILO
ADVOGADO
VERDADE MATERIAL
GARANTIAS DE DEFESA DO ARGUIDO
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
Nº do Documento: RP20230419448/20.4T9VLG-A.P1
Data do Acordão: 04/19/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: JULGADO PROCEDENTE O PEDIDO DE DISPENSA DE SIGILO PROFISSIONAL REQUERIDO PELA ARGUIDO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A descoberta da verdade revelada na sentença não se constrói no processo penal com a busca seletiva de prova no sentido factual da acusação ou da pronúncia, nem a partir, abstrata e aprioristicamente, do questionamento da veracidade dos factos trazidos pela defesa, coartando-lhe os factos e as provas admissíveis que apresenta.
II - O dever de fidelidade à verdade e a imparcialidade do julgador no decorrer da audiência deverão consentir entre as garantias de defesa do arguido e o princípio do contraditório (art.32º, nº1 e 5, da C.R.P.) no direito à produção da prova do seu sentido de verdade quando, confrontado com o segredo profissional, dificilmente o conseguiria obter por outro meio.
III - Ressalvados os casos em que essa prova se prefigura como irrelevante, inadequada ou dilatória, até ao final do julgamento o juiz não pode recusar a sua produção apoiando-se nas próprias considerações antecipadas de que o resultado da prova não alterará sua convicção.

[sumário elaborado pelo Relator]
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 448/20.4T9VLG-A.P1

Acordam, em conferência, os Juízes da 2.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

I – Relatório.
No Processo nº448/20.4 T9VLG, que corre termos nos Juízo Local Criminal de Valongo - Juiz 1, foi pedido pela arguida AA a dispensa do sigilo profissional invocado pela Dra BB, advogada, nos termos do artigo 92.º do Estatuto da Ordem dos Advogados, relativamente à prestação de depoimento em audiência de julgamento na qualidade de testemunha arrolada pela arguida.
Fundamentou o seu pedido, ao abrigo do artigo 135.º do C.P.P., invocando que o depoimento da testemunha acima identificada, contribuirá decisivamente para a descoberta da verdade material, ficando aquela irremediavelmente prejudicada, caso a testemunha não deponha.
Concretizando, afirma a arguida que “a testemunha acompanhou todo o processo referente aos factos subjacentes à alegada conduta criminosa imputada a arguida, tendo tomado conhecimento do negócio alinhavado de cessão de quotas, aventado entre esta e a assistente e a testemunha CC durante o decurso do ano de 2018, bem como tomou conhecimento directo dos motivos que levaram à não consumação do negócio pela Arguida, e por último, por ter sido esta, perante os factos que lhe foram relatados, que remeteu à Arguida, a proposta de uma carta de resposta à missiva enviada pela Assistente a 31 de julho de 2019 (vide doc n.º 1 que aqui se junta), subscrita pela Arguida, e que serve de fundamento à acusação publica, para consubstanciar a motivação subjacente à acção enganosa que lhe é imputada, constando tal documento como prova junta pela acusação a fls 14”.
Relevância maior do depoimento decorrente da circunstância da arguida vir pronunciada por crime de burla qualificada, previsto e punido pelo artigo 218.º n.º 1 do Código Penal, punível com pena de prisão superior, no seu máximo, a 3 anos de prisão, cujo bem jurídico protegido é bem superior ao interesse salvaguardado pelo segredo profissional.
Isto porque, diz, “as consequências do crime imputado à Arguida causarão, seguramente, um elevado e notório impacto social, uma vez ser relativo à actividade profissional desta num colégio conhecido desta comarca, quando, por outro lado, decorrente da quebra do sigilo profissional da aludida testemunha, inexistirá qualquer necessidade social que seja posta em crise, pelo que deverá prevalecer a salvaguarda do primeiro”.
Esclarece não haver outro meio alternativo à quebra do sigilo, que permita apurar a verdade, até porque para se valorar a importância do depoimento em crise, não se pode descurar, que a base da prova produzida até à presente data, foram as declarações da Arguida, da Assistente, e de uma testemunha com a qual a Arguida assumidamente não tem boas relações.
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Regularmente notificado, o Ministério Público não se opôs ao pedido de dispensa de sigilo profissional.
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Ouvida a Ordem dos Advogados, nos termos do n.º 4 e 2.º do artigo 135.º, do Código Processo Penal, esta pronunciou-se pela legitimidade da escusa da testemunha com base na preponderância do invocado sigilo profissional.
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Autuado tal incidente por apenso, com os elementos necessários, foram os respetivos autos remetidos a este Tribunal da Relação para decisão.
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Assegurada a prévia audição da Ordem dos Advogados, foi efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos, com submissão à conferência.
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II – Fundamentação
A respeito do segredo profissional, dispõe o artigo 135.º do CPP o seguinte:
1 – Os ministros da religião ou confissão religiosa e os advogados, médicos, jornalistas, membros de instituições de crédito e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo podem escusar-se a depor sobre os factos por ele abrangidos.
2 – Havendo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias. Se, após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene, a prestação do depoimento.
3 – O tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado, ou no caso de o incidente ter sido suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça, o pleno das secções criminais, pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de proteção de bens jurídicos. A intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento.
4 – Nos casos previstos nos n.ºs 2 e 3, a decisão da autoridade judiciária ou do tribunal é tomada ouvido o organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa, nos termos e com os efeitos previstos na legislação que a esse organismo seja aplicável.
5 – O disposto nos n.ºs 3 e 4 não se aplica ao segredo religioso.”
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Este preceito regulamenta a resolução do conflito entre dois interesses socialmente relevantes. Por um lado, o interesse no segredo relativamente ao conhecimento resultante do exercício de certas profissões ou atividades. Por outro, o interesse na descoberta da verdade e na boa administração da justiça penal [1].
No caso em apreço, os interesses em conflito são, por um lado, o dever de sigilo dos profissionais do foro, mais concretamente dos advogados, legalmente tutelado e consagrado como uma das dimensões constitucionais do patrocínio forense, considerado como “um elemento essencial à administração da justiça” [art.º 208.º, da Constituição] e, por outro lado, o dever e o interesse público do Estado em exercer o seu “jus puniendi” e realizar a justiça penal [art.º 202.º da Constituição].
Tanto numa dimensão, como na outra está em causa o direito fundamental e constitucional de acesso ao direito [art.º 20.º, da Constituição] que implica, entre outras coisas, o correspondente patrocínio judiciário, com a particular relação de confiança entre o advogado e o seu cliente, a defesa de dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes.
Deste modo, dado que o segredo abrange os factos "conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste" ou por revelação de outros sujeitos a quem o advogado deve reserva”, como referido na pronúncia do Conselho Regional da AO, este dever é visto, quer como um dever para com o cliente, quer como um dever recíproco dos advogados, que “convola uma regra fundamental da profissão enquanto garantia de confiança, quer para a administração da justiça, quer para a sociedade” [2].
O nº3, do citado art.135º, prevê as situações em que o interesse no segredo deve ceder relativamente à descoberta da verdade e na boa administração da justiça penal, estabelecendo que o tribunal pode decidir pela quebra do segredo “sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de proteção de bens jurídicos” (n.º 3 da citada norma).
Ainda que a norma se refira à recusa “a depor” por parte de certas pessoas detentoras do “segredo profissional”, a amplitude deste abrange também as informações escritas [3][4] e, naturalmente, os documentos que as suportam.
No que respeita especificamente aos advogados, dispõe o artigo 92.º do Estatuto da respetiva Ordem que o advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços.
Clarificando, essa “obrigação do segredo profissional existe quer o serviço solicitado ou cometido ao advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, quer deva ou não ser remunerado, quer o advogado haja ou não chegado a aceitar e a desempenhar a representação ou serviço, o mesmo acontecendo para todos os advogados que, direta ou indiretamente, tenham qualquer intervenção no serviço” [5].
Estando os advogados obrigados a segredo profissional, quanto aos factos de que tomem conhecimento no exercício das suas funções, tal obrigação apenas pode ser quebrada, mediante:
- dispensa do segredo profissional previamente autorizada pelo Senhor Presidente do respetivo Conselho Regional, a pedido do advogado que pretenda revelar os factos cobertos pelo sigilo nos casos previstos no art.92º, nº4, do EOA;
ou,
hipótese aqui convocada,
- decisão judicial que levante o segredo profissional, após audição do seu organismo representativo.
Ao regular a dispensa do segredo profissional o citado art.135.º, n.º 3 estabelece a prestação de testemunho, com quebra desse sigilo, apenas quando se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de proteção de bens jurídicos.
Por via de regra, a utilização pelo legislador daquela expressão tem em vista inculcar uma mais exigente ponderação, no plano concreto, dos juízos de necessidade, proporcionalidade, adequação, ou idoneidade do meio probatório em causa, como também uma utilização subsidiária da sua utilização – quando houver outro que conduza ao mesmo resultado, deve ser esse o preferencialmente utilizado.[6]
Não vem questionada a legitimidade da escusa apresentada pela Sra. Dra. BB, com fundamento na circunstância dos factos de que tem conhecimento estão sujeitos a segredo profissional, porquanto advieram ao seu conhecimento no exercício da sua profissão e por causa dela (artigo 92º do E.O.A).
Sabido que o advogado apenas pode revelar factos sujeitos a segredo quando devidamente dispensado por parte do Presidente do Conselho Regional da Ordem dos Advogados, o que no caso não sucedeu, resta saber se a quebra de sigilo se mostra justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante nos termos supra enunciados.
Resulta dos autos que se investiga a eventual prática pela arguida de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelo artigo 218.º, do Código Penal, pelo qual vem pronunciado.
Resumidamente, nos termos remissivos da pronúncia, vem imputado à arguida ter obtido ardilosamente da assistente o total de 20.000 euros, a pretexto de ceder a esta a participação social numa empresa, o que nunca fez, nem alguma vez teve intenção de fazer, negando inclusivamente ter recebido aquela quantia (como se observa no ponto 16º, 37º e 56º da contestação).
Circunstância, aliás, sucedida com a testemunha da acusação CC, pedra angular da prova indiciária que, como se pode ler na decisão instrutória, levou à pronúncia da arguida.
Requer ainda o Ministério Público, nos termos do disposto no artigo 111.º n.ºs 1 a 4 do Código Penal, seja a Arguida condenada a pagar ao Estado a quantia de €20.000,00 (vinte mil euros), alegando ser esse o valor da vantagem que a mesma obteve com a prática dos factos constates do libelo acusatório.
Concomitantemente, foi admitido o pedido de indemnização civil formulado pela demandante DD, a fls 90 a 93.
Contudo, como vem expresso no pedido de levantamento do segredo profissional, melhor esclarecido na contestação da arguida, a referida testemunha CC e a arguida estão de relações cortadas, embora aquela esteja conivente com a assistente, de quem permanece amiga, tendo sido aquela e não a arguida quem propôs a participação social à assistente, recebeu desta o valor pago em numerário e ficou com ele, não obstante a concretização do negócio entretanto se ter frustrado por desentendimento entre as três.
O conhecimento da testemunha, Dra BB, decorre, conforme consta do pedido da arguida, de ter sido esta quem “acompanhou todo o processo referente aos factos subjacentes à alegada conduta criminosa imputada à arguida, tendo tomado conhecimento do negócio alinhavado de cessão de quotas, aventado entre esta e a assistente e a testemunha CC durante o decurso do ano de 2018, bem como tomou conhecimento directo dos motivos que levaram à não consumação do negócio pela Arguida, e por último, por ter sido esta, perante os factos que lhe foram relatados, que remeteu à Arguida, a proposta de uma carta de resposta à missiva enviada pela Assistente a 31 de julho de 2019 (vide doc n.º 1 que aqui se junta), subscrita pela Arguida, e que serve de fundamento à acusação publica, para consubstanciar a motivação subjacente à acção enganosa que lhe é imputada, constando tal documento como prova junta pela acusação a fls 14”.
Neste quadro probatório que se veio a confirmar em julgamento, com a arguida (20220406094732_16120870_2871600) e a testemunha CC (20220406110403_16120870_2871600) a revelarem que estão de relações cortadas, aceita-se que na estratégia da defesa da arguida seja essencial a inquirição da testemunha, Dra BB, advogada, que alegadamente a acompanhou na questionada negociação e desfecho da cessão de quotas.
A descoberta da verdade revelada na sentença não se constrói no processo penal com a busca seletiva de prova no sentido factual da acusação ou pronúncia, nem a partir, abstrata e aprioristicamente, do questionamento da veracidade dos factos trazidos pela defesa, coartando os factos e as provas admissíveis que apresenta.
O dever de fidelidade à verdade e a imparcialidade do julgador no decorrer da audiência deverão consentir entre as garantias de defesa do arguido e o princípio do contraditório (art.32º, nº1 e 5, da C.R.P.) no direito à produção da prova do seu sentido de verdade quando, confrontado com o segredo profissional, dificilmente o conseguiria obter por outro meio.
Ressalvados os casos em que essa prova se prefigura como irrelevante, inadequada ou dilatória, até ao final do julgamento o juiz não pode recusar a sua produção apoiando-se nas próprias considerações antecipadas de que o resultado da prova não alterará sua convicção.
Fazê-lo, implicaria um “pré-julgamento” com clara afronta do direito à prova.
Seria o mesmo que subestimar o contributo da defesa para se chegar, por via da dialética probatória estabelecia em julgamento, à verdade material e, desse modo, assegurar que ninguém é condenado de forma ilegítima e injusta.
Naturalmente que a realização da justiça penal não constitui por si só interesse legitimo para justificar a quebra do segredo profissional, nem a convocação abstrata da descoberta de verdade serve para subtrair a legitima invocação do segredo à ponderação concreta segundo o princípio do interesse preponderante nos termos do citado art.135º, nº3.
Contudo, no caso concreto, por um lado, afigura-se essencial para a descoberta da verdade a obtenção dos esclarecimentos que a respeito a testemunha possa prestar, através da sua inquirição, já que – como sobredito - dificilmente acessíveis por outra via à defesa da arguida.
Por outro lado, são inequívocas a gravidade do crime em causa e as consequências penais dele decorrentes (pena principal, perda de vantagens patrimoniais e indemnização civil), bem como a necessidade de proteção do bem jurídico que com tal incriminação se visa tutelar.
Por tudo isto, entende-se que na situação dos autos o interesse público de descoberta da verdade e da boa administração da justiça é, no caso, superior ao direito à reserva que se pretende proteger com o sigilo profissional da referida causídica.
Assim, considerando-se prevalecer, no caso, o interesse na descoberta da verdade e na boa administração da justiça, impõe-se determinar a inquirição da testemunha, Dra BB, com quebra do segredo profissional, nos termos do n.º 3 do citado artigo 135.º do CPP.
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III - Dispositivo
Nestes termos e com os fundamentos expostos, julga-se procedente o pedido de dispensa de sigilo profissional em análise, determinando-se a inquirição da testemunha, Dra BB.
Sem custas.
Notifique e comunique à Ordem dos Advogados (Conselho Regional do Porto).
(Elaborado e revisto pelo relator – art.º 94º, nº 2, do CPP – e assinado digitalmente).

Porto, 19 de abril de 2023
João Pedro Pereira Cardoso
Raúl Cordeiro
Carla Oliveira