Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
4288/12.6TBPRD-C.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: CARLOS QUERIDO
Descritores: CONTRATO DE MÚTUO
CONTRATO DE SEGURO
EXECUÇÃO
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: RP201807114288/12.6TBPRD-C.P1
Data do Acordão: 07/11/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 678-A, FLS 121-132)
Área Temática: .
Sumário: I - Verificando-se os pressupostos do instituto do abuso de direito (art.º 334.º CC), ainda que não tenha sido invocado pela parte que dele se pode prevalecer, o mesmo é de conhecimento oficioso por estar em causa um interesse de ordem pública.
II - No abuso de direito não há falta ou ausência de direito, tratando-se do exercício de um direito conferido pela ordem jurídica, a priori legítimo, tornando-se ilegítimo se for exercido de forma que ofenda manifestamente a boa-fé, os bons costumes ou o seu fim social ou económico, em suma, o sentimento jurídico socialmente dominante, daí advindo a paralisação dos respetivos efeitos, tudo se passando como se aquele direito não existisse na esfera patrimonial do titular.
III - Provando-se que os executados celebraram um contrato de mútuo junto de um banco, e um contrato de seguro de crédito junto de uma seguradora cujo capital social era detido em 50% pelo referido banco, que o mutuário segurado veio a falecer, e que a seguradora, apesar de ter sido entregue toda a documentação exigida, sem qualquer razão justificativa, apenas procedeu ao pagamento seis anos decorridos, constitui abuso de direito a prossecução da execução instaurada pelo banco contra a executada viúva, baseada na livrança subscrita por ambos os executados aquando da celebração do contrato de mútuo.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 4288/12.6TBPRD-C.P1

Sumário do acórdão:
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório
B..., SA., instaurou ação executiva comum contra C... e D..., a qual corre termos no Juízo de Execução de Lousada - Juiz 7, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este, sob o n.º 4288/12.6TBPRD.
Os executados deduziram oposição por embargos, alegando em síntese: a executada D... e o marido E..., celebraram em 12 abril de 2007 com o exequente um contrato de Crédito Individual com o número .......... pelo montante de € 16.318,36, através do balcão do executado sito em ...r e com o número .....; através do referido contrato, foi estipulado que o pagamento do montante mutuado seria realizado em 84 prestações mensais e sucessivas de € 297,90; em simultâneo os executados celebraram com o F... um contrato de seguro de proteção do crédito do exequente; em 2.11.2008, o titular do contrato de crédito e de seguro – E... – faleceu; o óbito foi comunicado á seguradora e ao exequente; apenas em 30.03.2009 a seguradora solicitou os documentos para acionar a apólice de proteção do crédito; atenta a delonga que o assunto tomou, a executada D... em 09/04/2009 reiterou a comunicação do falecimento do seu Marido através de fax do balcão do banco exequente, solicitando celeridade no assunto; volvidos cerca de 8 anos, os ora executados oponentes foram surpreendidos pelos presentes autos de execução no montante total de € 22.476,66; procurando informações junto de agência do exequente, os executados obtiveram a informação que, por estes titulado, apenas existe o contrato de financiamento supra referido; na verdade, a livrança que serve de título executivo aos presentes autos, foi dada como caução ao contrato de Crédito Individual com o número .........., celebrado em 07/04/2007, juntamente com o qual foi contratado o Seguro de Proteção de Crédito Individual, corresponde à apólice n.º ../......; atenta a existência do referido seguro de crédito, os executados contactaram a F1..., S.A., que em 06/02/2014 a fim de saber se a mesma procedeu à liquidação do montante em débito ao Exequente de acordo com o contrato celebrado; a F1..., S.A., em 10/02/2014 comunicou ao Ilustre Mandatário dos ora executados que na data de 23/01/2014 procedeu à liquidação do montante de € 14.222,45; consta da apólice de seguro junta aos autos (fls. 9) que “As importâncias seguras são pagas ao Beneficiário após a entrega do Bilhete de identidade do Segurado e do Certificado de óbito deste”; os executados procederam em harmonia com a referida cláusula; por motivos que os mesmos desconhecem mas que não lhe poderão ser imputáveis, o contrato de crédito em crise apenas foi regularizado em 23/01/2014; à exequente foram pagas todas as quantias em débito pelos ora executados, atenta a liquidação do contrato de seguro; não obstante a data da referida liquidação ser muito posterior à morte do executado E..., tal sucedeu por motivos que não poderão ser imputados aos aqui executados oponentes; o pagamento tardio deveu-se a inércia da entidade seguradora e da entidade bancária.
Admitidos os embargos, foi determinada a citação do exequente, que contestou, alegando em síntese: confirma a celebração de um contrato de crédito com a executada, cujo pagamento estava garantido por livrança subscrita pela executada, sendo que associado a tal contrato estava igualmente um contrato de seguro de proteção ao crédito individual; a executada deixou de proceder ao pagamento do capital em dívida em novembro de 2008, ficando a dever a quantia de € 13.945,54 a título de capital, a que acresceram juros de mora entretanto vencidos à taxa de 12,5% acrescido da sobretaxa de 2%; a companhia de seguros procedeu ao pagamento do capital em dívida em 06/02/2014, numa altura em que a livrança já tinha sido preenchida, não tendo procedido ao pagamento dos juros que entretanto se venceram; conclui pela improcedência dos embargos.
Em 12.10.2017 realizou-se audiência prévia, no âmbito da qual: foi proferido despacho em que se fixou à causa o valor de € 22.566,32; se declararam verificados todos os pressupostos formais que permitem o conhecimento do mérito da causa; se definiram o objeto do litígio e os temas de prova, e se designou data para a audiência de julgamento.
Em 5.12.2017 realizou-se a audiência final, após o que, em 14.12.2017 foi proferida sentença, na qual: foi declarada verificada a exceção dilatória do caso julgado (art.º 577.º, alínea i), do C.P.C.) relativamente ao executado C... e, consequentemente, relativamente a este foio exequente absolvido da instância de embargos de executado; foram julgados procedentes os embargos, relativamente à executada D..., determinando-se a extinção a execução, no que concerne a esta executada.
Não se conformou o exequente/embargado e interpôs recurso de apelação, apresentando alegações, findas as quais formula as seguintes conclusões:
1) Os autos de execução a que o presente apenso de embargos de executado corre por apenso tem por título uma livrança subscrita por E... e pela recorrida D... e avalizada pelos co- executados C... e G..., no valor de € 22.476,66, vencida em 16.11.2012.
2) A referida livrança foi subscrita e avalizada pelos executados em caução de um contrato de financiamento, intitulado "crédito ao consumo F...", celebrado em 09.04.2007, junto como Doc. 1 da contestação e que se dá por reproduzido.
3) A Recorrida foi interveniente no referido contrato, sendo sua uma das assinaturas dele constantes, e assinou a livrança dos autos, no local destinado aos subscritores, que foi entregue ao Recorrente em caução do financiamento supra aludido.
4) Sendo que a livrança foi preenchida posteriormente pelo Banco recorrente, no que se refere à data e valor, conforme foi autorizado expressamente pela Recorrida, em virtude do incumprimento do contrato por aquela garantido.
5) Incumprimento que se verificou a partir de 07.11.2008, data da última prestação
6) Pelo que, a partir daquela data passaram a acrescer os respetivos juros, à taxa e sobretaxa contratualmente previstas, até efetivo e integral pagamento.
7) A quantia aposta na livrança é, assim, a quantia devida em virtude do aludido contrato de crédito, e corresponde a € 13.945,94 de capital vencido e não pago e € 8.530,72 de juros de mora vencidos na pendência do contrato e devidos desde 07.11.2008 até 16.11.2012, à taxa contratual de 12,5%, acrescida da sobretaxa de 2% ao ano.
8) Também em 09.04.2007 foi celebrado um contrato de seguro entre os executados mutuários e a sociedade "F1..., S.A.", com o número de apólice ../......, denominado "Contrato do Seguro de Proteção ao Crédito Individual", no montante financiado de € 16.318,36 associado ao contrato de mútuo supra identificado.
9) O mutuário E... faleceu em 02.11.2008, tendo a Recorrida comunicado tal facto junto dos funcionários da agência ... do Banco Recorrente nos dias que se seguiram, no intuito de ser promovido o acionamento do referido seguro.
10) Uma vez tomado o conhecimento dessa ocorrência, logo os funcionários do Banco recorrente pediram à Recorrida toda a documentação necessária para o acionamento do seguro, remetendo a mesma, assim que recebida, para a mencionada seguradora
11) Tanto mais que, a Recorrida não era uma cliente normal do Banco, mas sim alguém do conhecimento direto de todos os funcionários da agência ... por lá realizar serviços de limpeza, o que, naturalmente, contribuiu para que fosse dada uma especial atenção a esta situação.
12) O envio dessa documentação pelo Banco para acionamento do seguro foi, inclusive, confirmada pela própria sociedade seguradora "F1...", através de carta remetida aos "Herdeiros de E..." em 30.03.2009, através da qual acusa "a receção da documentação enviada relativamente ao processo em assunto, a qual mereceu a nossa melhor atenção".
13) Sucede, porém, que, nessa mesma missiva a seguradora expõe que “De Forma a darmos continuidade à análise do processo de sinistro, e porque os documentos rececionados não correspondem ao solicitado, vimos por este meio solicitar os seguintes elementos: Relatório do médico assistente indicando quando se manifestaram os primeiros sintomas das patologias de Insuficiência Renal, Obesidade, Hipertensão, Hábitos Tabágicos e Alcoólicos, natureza, tratamentos feitos e datas dos mesmos, meios auxiliares de diagnóstico e datas dos mesmos assim como identificação da(s) Instituição(ões) Hospitalar(es) onde foi seguido desde o início”,
14) Acrescentando que, "sem estes elementos não poderemos levar a cabo a respetiva análise/conclusão do processo de sinistro”.
15) Sendo este pedido efetuado em conformidade com as prerrogativas previstas nas condições especiais do citado contrato de seguro de vida,
16) Mostrando-se, desde logo, necessário para análise da eventual verificação dos riscos de exclusão do seguro, previstos nesse contrato.
17) Em resposta, a Recorrida limitou-se a enviar um fax à "F1...", datado de 09.04.2009, negando qualquer informação adicional.
18) Impedindo a promoção completa do acionamento do seguro e, consequente pagamento do prémio em tempo útil, apesar das iniciativas (várias) comprovadamente realizadas pelo Recorrente,
19) Tendo este ficado impossibilitado de, por si só, poder dar continuidade ao processo de acionamento do seguro que iniciou e que estava a levar a cabo, porquanto os elementos em falta não lhe foram disponibilizados pela Recorrida, não tendo aquele possibilidades de os poder obter sem a colaboração da Recorrida por falta de legitimidade para o efeito.
20) Resulta claro que o Banco nunca se recusou a diligenciar pelo acionamento do seguro de vida. Muito pelo contrário, desde o inicio recolheu toda a documentação necessária e reencaminhou-a para a companhia de seguros,
21) E, segundo as palavras da Recorrida, fê-lo por diversas vezes, pois durante as primeiras semanas foram vários os documentos que lhe solicitou e que reencaminhou para o respetivo processo de sinistro,
22) Contudo, após o acionamento do seguro e tal como resulta do respetivo contrato, todas as comunicações que se seguem são efetuadas diretamente entre a seguradora e a segurada, e tendo aquela exigido a apresentação de documentação complementar e essencial para a aprovação do sinistro, e tendo esta negado essa resposta, ficou impossível para o Recorrente ultrapassar essa barreira, porquanto, repete-se, a documentação em falta apenas se encontrava da disponibilidade da Recorrida e herdeiros do executado falecido.
23) Nessa medida, não se compreende, e muito menos se aceita, que a sentença recorrida considere que a conduta do Banco Recorrente configura uma manifestação de abuso de direito.
24) Na verdade, não existe qualquer abuso de direito.
25) O Banco recorrente sempre pautou a sua conduta com respeito pelos mais elementares princípios da boa-fé contratual, tendo agido em todos os momentos em completa sintonia com os deveres que se lhe impunham, quer nas relações com a Recorrida, quer nas relações com a seguradora.
26) O que o Banco sabe e afirma é que, apenas em 06.02.2014, recebeu daquela seguradora a quantia de € 14.222,45 para pagamento do valor de capital associado ao contrato de mútuo segurado, não tendo recebido qualquer outro quantitativo por conta das responsabilidades em apreço.
27) Pelo que, permaneceram em dívida o valor referente a juros vencidos calculados sobre o capital em dívida desde a data da última prestação paga referente ao contrato (07.11.2008) até à indicada data de 06.02.2014, e cujo pagamento não se encontrava protegido pelo aludido contrato de seguro.
28) O referido pagamento permitiu a redução significativa do valor da dívida exequenda, mas não permitiu a sua integral liquidação.
29) Facto que o Banco exequente já teve a oportunidade de expor nos autos principais de execução, a que os presentes embargos correm por apenso, tendo a esse propósito sido proferido o douto despacho de fls. (Ref. Citius 68593906), datado de 02.12.2015, transitado em julgado, que veio confirmar o entendimento de que "se mantêm em dívida os juros peticionados, não podendo aqui discutir-se se a responsabilidade agora é da Companhia de Seguros. Tal matéria caberá no âmbito de uma qualquer ação declarativa (a haver fundamento factual e jurídico) que os executados pretendam eventualmente propor”,
30) Concluindo, que a execução prossegue “para pagamento do montante ainda em dívida, que inclui os indicados juros”.
31) Razão pela qual, muito se estranha, e menos se aceita, que venha agora a sentença recorrida dar o dito pelo não dito, invertendo por completo o apuramento jurídico que resulta da realidade dos factos (e que inclusive já tinha avaliado na execução), assacando ao Recorrente um alegado abuso de direito nas suas relações com a Recorrida, em concreto, por estar a demandar nestes autos aquilo a que tem direito, derivado das responsabilidades não pagas por quem tinha o dever de as pagar e que, ademais, se mostram tituladas na livrança exequenda subscrita pelos mutuários e garantida por avales dos demais executados.
32) Caberia à sentença recorrida dar por demonstrados factos que eventualmente conduzissem à não exigibilidade do pagamento da livrança e que, naturalmente, redundassem na procedência dos embargos.
33) Mas isso é algo que, definitivamente, não acontece, limitando-se a sentença recorrida a por em causa a validade e a existência da obrigação cambiária com recurso a elementos estranhos ao título e que, ademais, se mostram indevidamente apreciados, como acima se teve a oportunidade de evidenciar.
34) Acresce que, é falso que a contratação de tal seguro de vida constituísse uma imposição do Banco recorrente aos mutuários e, muito menos, que tal seguro tivesse de ser contratado pelos mutuários junto da seguradora "F1..." e "H...",
35) Desde logo porque a contratação desse seguro não resulta como condição necessária para a celebração do tipo de financiamento em causa, nem tal emerge do teor da cláusula 73 das condições gerais do contrato (ao contrário do que vem afirmado no ponto 5 dos factos provados da sentença recorrida), nem da prova testemunhal apresentada em juízo,
36) Pelo que, atendendo ao vindo de expor, impugna-se o ponto 5 da matéria de facto dada como provada, quando refere "por imposição prevista na cláusula 73 do contrato de crédito", devendo esta expressão ser eliminada desse ponto.
37) Na verdade, para o tomador do seguro, o referido seguro de vida funciona apenas como reforço de garantia de pagamento em caso de incumprimento do contrato.
38) O Banco mutuante passa assim a gozar de duas garantias, uma resultante da livrança subscrita pelos mutuários e avalizada por terceiros, e outra proveniente da celebração do contrato de seguro de vida, valendo este, apenas, quando o sinistro previsto se concretizar.
39) Mesmo que se admita que a seguradora tinha por dever garantir a obrigação da Recorrida e o Banco Recorrente o dever de tudo fazer para que essa prerrogativa se verificasse (como o fez), esse dever não elimina nem substitui a obrigação assegurada, não ficando o Banco recorrente impedido de exigir da Recorrida e dos demais executados/avalistas o cumprimento da obrigação de restituir a quantia mutuada e a remuneração convencionada.
40) Sendo certo que, uma vez satisfeita parte ou a totalidade da obrigação exequenda através do posterior pagamento do prémio de seguro, apenas se impõe ao exequente o dever de imputar esse pagamento à amortização da dívida exequenda, como, de resto, sucedeu nos autos principais de execução.
41) Por seu turno, se a obrigação exequenda fosse liquidada diretamente pelos executados, sempre teriam estes a possibilidade de demandar a seguradora com vista a dela exigir a indemnização correspondente ao que tivessem pago (eventual direito de regresso).
42) Razão pela qual, caso a Recorrida entendesse ainda ser devido o pagamento de qualquer outro montante ao abrigo daquele contrato de seguro de vida, ainda que a título de responsabilidade civil contratual, e tendo em conta tudo o que atrás foi exposto, sempre deveria exigir àquela seguradora, em processo autónomo, tal quantia, não sendo os presentes embargos de executado o meio próprio para o fazer,
43) Não sendo exigível que Banco recorrente ficasse à espera do resultado dessa ação, ou de outras eventuais iniciativas da Recorrida junto da seguradora, sobretudo quando era já manifesta a atitude indulgente da Recorrida no tratamento deste assunto, para se poder fazer cobrar pelos valores que comprovadamente se encontravam em mora.
44) Não tendo assim qualquer fundamento nem sustentação legal a tese sufragada na sentença recorrida de que "a conduta do exequente violou as mais elementares regras da boa-fé, sendo totalmente contrária aos ditames do direito, pelo que e por força do instituto do abuso de direito a sua pretensão não pode proceder", pois que esta conclusão é não só inversa à factualidade demonstrada nos autos, como divergente das soluções legais que, inegavelmente, conferem ao Recorrente o direito em demandar os executados nos termos em que o fez por via desta ação executiva, sem que com isso a sua conduta possa ser entendida como abusadora, de má-fé e contrária ao direito.
45) Salvo melhor opinião, a sentença recorrida padece de falta de fundamento legal, mostrando-se contrário ao disposto na legislação em vigor e aos fins do processo executivo.
46) Constando do processo meios de prova plena que, só por si, implicariam decisão diversa da proferida.
Termos em que deverá ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a sentença e substituindo-se por outra que julgue os embargos de executado totalmente improcedentes, nos termos e com os fundamentos acima alegados e conclusos, com o que se fará justiça.
Os embargantes não apresentaram resposta às alegações de recurso.

II. Do mérito do recurso
1. Definição do objecto do recurso
O objeto do recurso delimitado pelo recorrente nas conclusões das suas alegações (artigos 635.º, n.º 3 e 4 e 639.º, nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil), salvo questões do conhecimento oficioso (artigo 3.º, n.º 3, do diploma legal citado), consubstancia-se nas seguintes questões:
i) apreciação da impugnação da decisão da matéria de facto;
ii) apreciação da questão do abuso de direito e do caso julgado (invocado pelo recorrente apenas nesta sede).

2. Apreciação da impugnação a decisão da matéria de facto
O recorrente restringe a sua impugnação da factualidade provada ao ponto 5. do elenco factual[1], com os fundamentos que se reproduzem:
34) Acresce que, é falso que a contratação de tal seguro de vida constituísse uma imposição do Banco recorrente aos mutuários e, muito menos, que tal seguro tivesse de ser contratado pelos mutuários junto da seguradora "F1..." e "H...",
35) Desde logo porque a contratação desse seguro não resulta como condição necessária para a celebração do tipo de financiamento em causa, nem tal emerge do teor da cláusula 73 das condições gerais do contrato (ao contrário do que vem afirmado no ponto 5 dos factos provados da sentença recorrida), nem da prova testemunhal apresentada em juízo,
36) Pelo que, atendendo ao vindo de expor, impugna-se o ponto 5 da matéria de facto dada como provada, quando refere "por imposição prevista na cláusula 73 do contrato de crédito", devendo esta expressão ser eliminada desse ponto.
Aderindo ao critério acolhido pelo STJ (vide acórdão de 19.02.2015, proferido no processo n.º 299/05.6TBMGD.P2.S1, acessível no site da DGSI), a especificação dos concretos pontos de facto deve constar imperativamente das conclusões recursórias.
Cumpre decidir.
Consta do ponto 5.: «Por sugestão dos funcionários do exequente, os mutuários subscreveram o contrato de seguro de proteção ao crédito individual, tendo tal contrato, por imposição prevista na cláusula 7.º do contrato de crédito, sido efetuado na seguradora F1... (morte ou invalidez absoluta) e H... (incapacidade para o trabalho), com as condições gerais e pessoais previstas nos documentos de fls. 69 a 71 cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais».
Consta da cláusula 7.ª do contrato de crédito “Crédito ao Consumo F... Condições Gerais” (fls. 118 dos autos):
«7. Seguros
O Beneficiário/1.º Titular da Conta Empréstimo poderá subscrever os seguros referentes a este Contrato, conforme acordado entre as partes contratantes. Em caso de adesão, encontra-se em anexo a estas Condições uma Nota Informativa com o resumo das Condições Gerais e Especiais dos Seguros Contratados».
Constava do referido anexo a “Nota Informativa Sobre as Condições Gerais e Especiais do Seguro de Vida Grupo Temporário Contributivo”, junta aos autos a fls. 71, que veio a ser subscrita pelo marido da embargante D... – E... (vide fls. 69).
Conclui-se da documentação citada, junta aos autos, que não era imperativa a subscrição do contrato de seguro, sendo antes “recomendada” pelos funcionários do Banco exequente, o que se compreende, face ao ponto 7 da factualidade provada [As ações da sociedade F1... eram detidas partes iguais pela exequente e pelo I..., fazendo tal sociedade parte do grupo F...].
Decorre do exposto a procedência da impugnação, pelo que o questionado ponto 5. passará a ter a seguinte redação: «Por sugestão dos funcionários do exequente, os mutuários subscreveram o contrato de seguro de proteção ao crédito individual, nos termos previstos na cláusula 7.ª do contrato de crédito, tendo celebrado o contrato de seguro com a seguradora F1... (morte ou invalidez absoluta), com as condições gerais e pessoais previstas nos documentos de fls. 69 a 71 cujo teor se dá por integralmente reproduzido».

3. Fundamentos de facto
É a seguinte a factualidade relevante que o Tribunal considerou provada na sequência da realização da audiência de julgamento:
1 - A exequente apresentou à execução, como título executivo, a livrança constante do requerimento executivo, cujo teor se dá por integralmente por reproduzido para todos os efeitos legais.
2 – Tal livrança foi subscrita pela embargante, visando garantir o cumprimento do contrato de crédito celebrado em 09/04/2007, entre exequente e executada D... e o seu marido E....
3 - Nos termos do contrato, a exequente mutuou à embargante a quantia de € 15.000, a qual seria paga em 84 prestações mensais e sucessivas, conforme condições de fls. 117, 118 e 122 a 123, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
4 – A taxa de juro devida pela concessão de crédito foi de 12,5%.
5 – Por sugestão dos funcionários do exequente, os mutuários subscreveram o contrato de seguro de proteção ao crédito individual, nos termos previstos na cláusula 7.ª do contrato de crédito, tendo celebrado o contrato de seguro com a seguradora F1... (morte ou invalidez absoluta), com as condições gerais e pessoais previstas nos documentos de fls. 69 a 71 cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
6 – Tal contrato tinha um prémio único de 1.220,45€, figurando o exequente como beneficiário das referidas apólices e foi celebrado nas instalações da exequente, nunca tendo a embargante contactado diretamente com algum representante das companhias de seguros.
7 – As ações da sociedade F1... eram detidas partes iguais pela exequente e pelo I..., fazendo tal sociedade parte do grupo F....
8 - O executado E... faleceu em 02/11/2008, tendo a embargante, nos dias que lhe seguiram, comunicado tal falecimento ao balcão do exequente sito em ..., Paredes.
9- Os funcionários da exequente receberam tal comunicação e encaminharam-na para a respetiva companhia de seguros.
10 – Em 30 de Março de 2009 a Companhia de Seguros enviou à embargante a carta de fls. 11 verso, que mereceu resposta da embargante em 09/04/2009, enviada pelos serviços do exequente em ..., dando-se as respetivas missivas por integralmente reproduzidas para todos os efeitos legais.
11 – A embargante ainda procedeu ao pagamento da prestação vencida em 07/11/2008, não tendo pago qualquer outra prestação.
12 - Em 26/11/2012, a exequente interpelou a embargante e o executado C... da denúncia do contrato, fixando-lhe um prazo para pagamento da quantia de € 13.945,94, acrescido de juros vencidos 8.530,72€ sob pena de preenchimento da livrança.
13- Em 06/02/2014 a Companhia de Seguros F1... procedeu ao pagamento ao exequente da quantia de € 14.222,45, por força da apólice de seguro melhor identificada em 5.

4. Fundamentos de direito
Na sentença recorrida, o Mº Juiz começa por referir «[l]ogo, temos que a embargada tinha direito ao pagamento da quantia peticionada, que a mesma era exigível e que a executada, enquanto mutuária e obrigada solidária é responsável pelo seu pagamento», concluindo, depois, que os embargos terão de proceder, porque «a conduta do exequente violou as mais elementares regras de boa-fé, sendo totalmente contrária aos ditames do direito, pelo que e por força do instituto do abuso de direito a sua pretensão não pode proceder».
No trecho que se transcreveu se define a questão recursória: haverá ou não abuso de direito?
Começamos por referir que é, no mínimo, estranha, a atuação do exequente F... e da seguradora F1....
Vejamos os factos que nos causam a maior perplexidade.
1) Conforme consta do facto 7, o exequente F... era titular de 50% da seguradora F1... e tal facto não é irrelevante;
2) Consta das condições gerais e especiais do contrato de seguro subscrito pelo marida da executada (fls. 70):
«Liquidação das importâncias seguras
As importâncias seguras são pagas ao Beneficiário após entrega do Bilhete de Identidade do Segurado e do Certificado de Óbito deste.
Em caso de Invalidez Absoluta e Definitiva deverá ser enviado um atestado do médico assistente indicando o início, as causas, a natureza e a evolução do estado de incapacidade. Este atestado deve se enviado à F1... nos 60 dias que se seguirem à constatação da Invalidez Absoluta e Definitiva, e nunca antes de decorridos três meses sobre a data em que a invalidez se declarar.
A F1... reserva-se o direito de exigir qualquer justificação complementar, para determinação exacta do estado de saúde do Segurado, mandando-o examinar pelos seus médicos se assim o entender».
2) Consta da declaração de “Adesão ao contrato de seguro”, assinada pelo marido da embargante (fls. 69: «O Segurado autoriza expressamente a Seguradora a inquirir junto de qualquer entidade que o tenha tratado e/ou examinado, a pedir todos os elementos clínicos e/ou médicos, e/ou hospitalares…».
3) O marido da executada/embargante faleceu em 2.11.2008 (assento de óbito junto a fls. 74);
4) Nos dias seguintes ao falecimento, a embargante comunicou-o no balcão do exequente (F...) sito em ..., Paredes, tendo os funcionários do exequente recebido tal comunicação, encaminhando-a para a seguradora (F1...) – factos provados 8 e 9.
5) Em 30.03.2009, a seguradora F1... remeteu à embargante a carta junta aos autos a fls. 75, na qual refere:
«Acusamos a recepção da documentação enviada relativamente ao processo em assunto, a qual mereceu a nossa melhor antenção
De Forma a darmos continuidade à análise do processo de sinistro, e porque os documentos rececionados não correspondem ao solicitado, vimos por este meio solicitar os seguintes elementos:
Relatório do médico assistente indicando quando se manifestaram os primeiros sintomas das patologias de Insuficiência Renal, Obesidade, Hipertensão, Hábitos Tabágicos e Alcoólicos, natureza, tratamentos feitos e datas dos mesmos, meios auxiliares de diagnóstico e datas dos mesmos assim como identificação da(s) Instituição(ões) Hospitalar(es) onde foi seguido desde o início”».
6) Em 4.09.2009, através do Fax n.º ........., remetido à seguradora F1... a partir do balcão do exequente F... (fls 76), a embargante declara:
«A participação da morte do meu marido foi comunicada em Novembro de 2008, tendo desde essa altura entregue por diversas vexes documentos solicitados, situação bastante desagradável para mim. Agora vou-me ausentar do país por tempo indeterminado (cerca de 6 meses), pelo que a única forma de me contactar é via telemóvel, por esse motivo solicito a V. Exas o favor de anotarem o meu número a fim de uma vez por todas ver esse processo resolvido e encerrado.
Logo que tenham a indemnização efectuada agradeço que entrem em contacto com o meu n.º ........., a fim de descansar de uma vez por todas.
Encontro-me numa situação delicada, pois recebo várias chamadas do meu banco a solicitar o dinheiro para as prestações em atraso…».
7) Em 10.02.2014, a seguradora F1... remeteu o fax junto aos autos a fls. 78, dirigido ao Fax n.º ........., referindo que procedeu ao pagamento, conforme comprovativo anexo, do qual consta (fls. 79), que no mês anterior procedera à liquidação da quantia de € 14.222,45, referente ao “Crédito Individual, Sinistro Por morte do Cliente marido E...”.
8) Entretanto, no tempo de permeio, em 26/11/2012, o banco exequente interpelou a embargante da denúncia do contrato, fixando-lhe um prazo para pagamento da quantia de € 13.945,94, acrescido de juros vencidos 8.530,72€ sob pena de preenchimento da livrança (facto 12).
Em suma: nesta relação triangular [F... – F1... - Embargante], o F1... demora seis anos a responder ao fax remetido a partir do balcão do F..., e a proceder ao pagamento do seguro (que era devido desde o início), permitindo ao F... denunciar o contrato por falta de pagamento das prestações (em dívida pelo F1...) quatro anos após a interpelação da seguradora, e exigir à embargante a prestação e juros vencidos durante esse período.
Registamos o que alega o recorrente na conclusão 11.ª: «… a Recorrida não era uma cliente normal do Banco, mas sim alguém do conhecimento direto de todos os funcionários da agência de ... por lá realizar serviços de limpeza…».
Esta relação estreita justifica o fax junto a fls. 76, subscrito pela embargante apesar de redigido pelos funcionários do F... e de remetido do equipamento n.º ......... existente no balcão desta entidade.
O que é absolutamente extraordinário, é que, conforme transcrição da respetiva cláusula que antecede [ponto 2)], para o pagamento não se exigia qualquer elemento para além do BI e do certificado de óbito (ao invés do que sucedida para a incapacidade permanente – leia-se a referida cláusula – fls. 70), a embargante remeteu os documentos que a cláusula contratual exigia, e a seguradora, apesar da desnecessidade de outros documentos, apenas seis anos depois transferiu a quantia devida.
Reiteramos a afirmação da desnecessidade dos documentos que a F1... exigiu, por duas razões muito simples: i) tal exigência não consta do contrato e sempre poderia ser suprida com a autorização expressamente concedida à seguradora para obter quaisquer elementos sobre a saúde do segurado; ii) a embargante não juntou os documentos exigidos (nem tinha de os juntar) e, ainda assim, seis anos decorridos, e após a denúncia do contrato e a liquidação dos juros, a seguradora, tranquilamente, paga o que deveria ter pago há muito.
Diz o exequente que a executada deveria ter pago, porque a obrigação lhe era exigível.
Esquece, no entanto, que se demonstrou que a seguradora estava ilegalmente em falta com o pagamento devido, a pretexto da exigência de documentos que, afinal, não eram necessários, tanto que acabou por pagar sem os ter recebido.
Neste contexto, à luz das regras da boa fé, era exigível o pagamento por parte da executada?
Outra questão se suscita, a qual nos leva ao instituto do abuso de direito: no mesmo contexto, era legítima a denúncia do contrato com a exigência à executada do capital e dos juros, entretanto vencidos durante o período de incumprimento da seguradora?
Na sentença recorrida, o Mº Juiz fundamenta assim a decisão no que concerne a este segmento:
«Desde Novembro de 2008 que o exequente sabia do falecimento do mutuário.
Em 28/12/2012 a exequente intentou o presente processo executivo, com base na livrança, que preencheu pela quantia de 22.566,32, sendo que apenas 13.945,94€, correspondiam a capital em dívida por força de tal contrato e o restante de juros e despesas diversas.
Em 06/02/2014 a Companhia de Seguros F1... procedeu ao pagamento ao exequente da quantia de 14.222,45€, acrescido de juros vencidos 8.530,72€
A exequente nunca pediu a redução da quantia exequenda.
Com estes factos há desde logo algumas circunstancias que se evidenciam.
Assim o exequente sabia perfeitamente do incumprimento, dos motivos do incumprimento e nunca se preocupou em declarar resolvido o contrato, aproveitando-se de uma taxa de juro quase 10% superior aquela que beneficiaria caso resolvesse logo o contrato.
Por outro lado e sabendo os motivos de tal incumprimento e a responsabilidade de pagamento que poderia recair sobre uma empresa do seu grupo, nunca procurou indagar do motivo da demora do pagamento da apólice de seguro, ficando na cómoda posição de um sujeito que perante a inércia de uma determinada entidade estava a ganhar muito dinheiro.
Essa posição é tão mais criticável se tivermos em conta que quem demorou a decidir e actuar foi uma empresa que pertence à exequente, empresa essa com que o mutuário obrigatoriamente teve de contratar.
Ou seja e de um modo resumido, o exequente obrigou os mutuários a contratarem com uma seguradora do seu grupo, sendo que perante o sinistro, aproveitou-se do atraso da empresa do próprio grupo, para ganhar 8.000€ em juros.
Essa conduta é tão mais contrária aos ditames da boa-fé e do direito se atentarmos ainda no pormenor de, quando finalmente a companhia de seguros resolveu pagar o prémio relativo aquela apólice, o exequente não comunicou tal pagamento ao caso em apreço e não reclamou junto da seguradora o valor pago, nomeadamente o montante pago a título de juros, continuando a exigir tal valor à embargante e não o exigindo, nem tampouco o pedindo, à seguradora que pertence ao seu grupo.
Nessa conformidade, verifica-se que o comportamento do exequente é permissivo com a referida companhia de seguros e totalmente intransigente com o seu cliente, aproveitando-se da inércia da empresa que lhe pertence e com quem obrigou a embargante a contratar para ganhar mais de 8.000€ em juros. Inércia essa que, como empresa detentora do capital da seguradora, certamente poderia ter evitado.
Além disso, ao não declarar vencidas mais cedo as prestações em dívida, demorando cerca de 4 anos a efectuar a denuncia do contrato, a perda do beneficio do prazo e a interpelar a embargante para pagar, a conduta do exequente foi susceptível de criar na embargante, como o era para qualquer cidadão normal, a legitima expectativa de que a mesma já nada lhe devia por força daquele contrato e que a companhia de seguros, repita-se da própria exequente, tinha assegurado o pagamento do montante em dívida, conforme a sua obrigação contratual.
Por fim, também não se duvida da boa-fé da embargante que face ao infortúnio da morte do marido e face ao teor do contrato de seguro que celebrou, certamente sempre esperou nada mais ter a pagar relativamente ao contrato de crédito celebrado com o exequente. Ainda a propósito da posição da embargante há ainda mais um facto que convém esclarecer.
Conforme parece transparecer da posição do exequente, a embargante podia e pode, em sede de acção judicial, peticionar à companhia de seguros todas as quantias que eventualmente tivesse pago por força do contrato de crédito.
Porém, ao obrigar a embargante a proceder dessa forma, estaríamos a subverter totalmente a finalidade dos contratos de seguro, estando mais uma vez o exequente a abusar da sua posição dominante e a adoptar uma conduta contrária a todos os princípios da boa-fé e da razoabilidade, apenas observando critérios estritamente contabilísticos e não se importando com as pessoas, indo contra todos os princípios de justiça enraizados da nossa sociedade.
Com efeito, este tipo de contrato de seguros destinam-se, não só mas também, a proteger uma parte de possíveis sinistros que possam limitar a sua capacidade de ganho ou a do seu agregado familiar. Acontecendo tal infortúnio, a parte deixa de ter capacidade de ganho, não conseguindo ou tornando-se muito mais difícil amealhar riqueza para proceder ao pagamento das prestações que deve.
Quando esse contrato de seguro, nomeadamente a entidade seguradora, é estranha ao seu tomador compreende-se, embora não se repute como sendo a atitude mais correcta, que a entidade concedente do crédito apenas se importe em receber o montante que lhe é devido, não se importando de o receber de A, B ou C, nem querendo saber de eventuais direitos de regresso.
Agora, quando a companhia de seguros lhe pertence (em 50%, fazendo parte do mesmo grupo) e, por conseguinte mais tarde ou mais cedo e de forma directa ou indirecta o dinheiro a pagar sairá do próprio exequente (o facto de serem pessoas colectivas distintas e autónomas não deixa de fazer com que, em última instancia a empresa detentora do capital social da outra empresa, seja afectada por eventuais pagamentos a efectuar – mais despesa, menos lucro e o contrário) a circunstância de exigir apenas aos executados e não á companhia de seguros o montante em dívida, não deixa de constituir uma conduta censurável e injusta, abusando da sua posição de parte mais forte para obrigar a embargante a uma prestação que, em ultima ratio não lhe incumbe, por força do contrato de crédito. Por fim, não nos podemos esquecer que a dívida de juros apenas surgiu por um atraso na companhia de seguros e não por qualquer conduta da embargante, pelo que não é justo exigir-lhe uma prestação (juros) que apenas surgiu por factos que lhe eram alheios e que nada podia fazer para os evitar (pode-se argumentar em contrário que a embargante poderia ter pago as prestações que se iam vencendo, valendo como contra-argumento tudo aquilo que supra referimos, ao que se pode adicionar a posterior dificuldade em ser ressarcida desses valores).
Ora, face a estes factos, não temos quaisquer dúvidas em concluir que a conduta do exequente violou as mais elementares regras de boa-fé, sendo totalmente contrária aos ditames do direito, pelo que e por força do instituto do abuso de direito a sua pretensão não pode proceder, sendo inexigível à embargante e a qualquer outra pessoa que não aquela que se atrasou no pagamento da prestação que estava obrigada por força do contrato de seguro (companhia de seguros F1...), o pagamento dos juros em dívida por força do contrato de crédito».
Recapitulando a factualidade relevante: em 2008, a executada comunicou à seguradora F1... o falecimento do marido, remetendo BI e assento de óbito; a seguradora exigiu a entrega de documentação que, afinal não era necessária[4]; por fax de 9.04.2009, remetido do balcão do exequente (F...), a executada insistiu pelo pagamento da indemnização; em resposta para o mesmo fax, em 10.02.2014 a seguradora informa o F... de que pagou, juntando comprovativo; em 26/11/2012, a exequente interpelou a embargante da denúncia do contrato, fixando-lhe um prazo para pagamento da quantia de € 13.945,94, acrescido de juros vencidos 8.530,72€ sob pena de preenchimento da livrança (facto 12); em 06/02/2014 a Companhia de Seguros F1... procedeu ao pagamento ao exequente da quantia de € 14.222,45, por força da apólice de seguro (facto 13).
A questão coloca-se nestes termos: no contexto provado, durante a mora da seguradora fará algum sentido a denúncia do contrato com as consequências (capital e juros) a cargo da executada?
Vejamos o instituto do abuso de direito.
De acordo com o entendimento pacífico nos tribunais superiores, verificando-se os pressupostos do instituto do abuso de direito (art.º 334.º CC), ainda que o mesmo não tenha sido invocado pela parte que dele se pode prevalecer, o mesmo é de conhecimento oficioso por estar em causa um interesse de ordem pública[6].
A questão está em saber se se verificam os pressupostos do instituto invocado.
Estipula o artigo 334.º do Código Civil: “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
Como refere o Professor Antunes Varela[7], este instituto é uma das válvulas de segurança mais úteis do sistema, que, ao lado da ‘correcção do enriquecimento sem causa’, da redução equitativa da cláusula penal excessiva e de outras soluções afins, melhor garantem a sobrevivência de inúmeros ‘direitos subjectivos’, “não obstante o seu carácter essencialmente formal, perante o sentimento implacável da justiça que habita permanentemente no espírito do homem de recta consciência”.
Escreve o citado Professor que o artigo 334.º “aponta de modo inequívoco para as situações concretas em que é clamorosa, sensível, evidente, a divergência entre o resultado da aplicação do direito subjectivo, de carga essencialmente formal, e alguns dos valores impostos pela ordem jurídica para a generalidade dos direitos ou, pelo menos, dos direitos de certo tipo”.
Lê-se no acórdão de 30.01.2003, do Supremo Tribunal de Justiça, de 30.01.2003[8], citando Castanheira Neves, que se deverá entender juridicamente por exercício abusivo do direito “um comportamento que tenha a aparência de licitude jurídica - por não contrariar a estrutura formal-definidora (legal ou conceitualmente) de um direito, à qual mesmo externamente corresponde - e, no entanto, viole ou não cumpra, no seu sentido concreto materialmente realizado, a intenção normativa que materialmente fundamenta e constitui o direito invocado, ou de que o comportamento realizado se diz exercício”.
Refere-se no acórdão do STJ, de 18.12.2012 (Processo n.º 5608/05.5TBVNG.P1.S1, acessível no site da DGSI): «… O sentido da boa - fé assenta, (…) no princípio de que “as pessoas devem ter um certo comportamento honesto, correcto, leal, nomeadamente no exercício dos direitos e deveres, não defraudando a legítima confiança ou expectativa dos outros”.
No abuso de direito não há falta ou ausência de direito, tratando-se do exercício de um direito conferido pela ordem jurídica, a priori legítimo, tornando-se ilegítimo se for exercido de forma que ofenda manifestamente a boa-fé, os bons costumes ou o seu fim social ou económico, em suma, o sentimento jurídico socialmente dominante, daí advindo a paralisação dos respetivos efeitos, tudo se passando como se aquele direito não existisse na esfera patrimonial do titular (na realidade, a sua existência será tão-só aparente).
Como se conclui no aresto que citámos, entende-se juridicamente por exercício abusivo do direito “um comportamento que tenha a aparência de licitude jurídica - por não contrariar a estrutura formal definidora (legal ou conceitualmente) de um direito, à qual mesmo externamente corresponde - e, no entanto, viole ou não cumpra, no seu sentido concreto - materialmente realizado, a intenção normativa que materialmente fundamenta e constitui o direito invocado, ou de que o comportamento realizado se diz exercício”.
Há um fator particularmente perturbante na situação sub judice: a relação entre a seguradora F1... e o exequente F... [o F... detinha 50% do capital social da F1...], e a correspondência entre as duas entidades – o pedido de pagamento, após a informação do óbito e a entrega dos documentos necessários, apesar de subscrito pela executada, é feito através do fax do balcão do F... em 9.04.2009, e a resposta (afirmativa) que chegou em 10.02.2014, é enviada para o mesmo fax.
Entenderá o recorrente que no contexto provado continua a ser legítima a exigência do pagamento à executada, vítima da estranha inércia da seguradora e do seu banco (entidades com a ligação referida), uma vez demonstrado que o incumprimento (abusivo) foi da seguradora?
Formalmente, assiste razão ao recorrente (embargado) – a executada subscreveu a livrança e autorizou o seu preenchimento -, mas em sede de abuso de direito, não falamos de razão formal, mas de boa fé, de lisura contratual e de justiça material.
Salvo todo o respeito devido, entendemos que a situação provada nos autos constitui exemplo paradigmático de abuso de direito por parte do exequente, sendo, por essa razão, de confirmar a sentença recorrida.
Invoca o recorrente o caso julgado alegadamente decorrente da decisão proferida em embargos instaurados por C....
Reiterando o respeito devido, não se vislumbra qualquer fundamento para invocação do caso julgado.
A situação apreciada na sentença recorrida é muito específica, reportando-se exclusivamente à embargante D... e à concreta relação (triangular, como a definimos supra) entre esta executada, o banco F... e a seguradora F....
Decorre da argumentação aduzida, a manifesta improcedência do recurso.

III. Dispositivo
Com fundamento no exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso, ao qual negam provimento e, em consequência, em manter a decisão recorrida.
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Custas do recurso a cargo do recorrente.
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A presente decisão compõe-se de vinte e quatro páginas e foi elaborado em processador de texto pelo relator.
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Porto, 11 de julho de 2018
Carlos Querido
Correia Pinto
Ana Paula Amorim
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[1] Aderindo ao critério acolhido pelo STJ (vide acórdão de 19.02.2015, proferido no processo n.º 299/05.6TBMGD.P2.S1, acessível no site da DGSI), a especificação dos concretos pontos de facto deve constar imperativamente das conclusões recursórias.
[2] Veja-se o que alega o recorrente na conclusão 20), onde refere que «desde o inicio recolheu toda a documentação necessária e reencaminhou-a para a companhia de seguros». Em suma, desde o óbito que a F1... tinha todos os documentos necessários para o pagamento, enviados pelo próprio banco F..., face à relação que tinha com a executada – sua funcionária de limpeza – ver conclusão 11.
[3] Conclusão que emerge de forma incontornável do facto de ter acabado por pagar sem ter recebido tal documentação.
[4] A seguradora F1... está, obviamente, em incumprimento temporário para com o exequente F..., pelo facto de não realizar o pagamento que era devido, refugiando-se em razões absolutamente inconsistentes (exigência de documento que, afinal, não eram necessários, como se comprova com o facto de ter pago sem os ter recebido).
[5] Nesse sentido, vejam-se os seguintes acórdãos: Ac. STJ, de 25 de Novembro de 1999, CJ, Acs. STJ, Ano VII, Tomo 3, 1999, pág. 124, e acórdão deste tribunal, de 22.01.2008, Proc. 665/1998.C1, acessível em http://www.dgsi.pt.
[6] Revista de Legislação e de Jurisprudência, 128º, 241.
[7] Proferido no Processo n.º 02B4367, acessível no site da DGSI.