Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
28/16.9T8FLG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: OLIVEIRA ABREU
Descritores: LEGITIMIDADE ACTIVA
LOCATÁRIO FINANCEIRO
ACIDENTE DE VIAÇÃO
Nº do Documento: RP2016121528/16.9T8FLG.P1
Data do Acordão: 12/15/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 639; FLS.387-396)
Área Temática: .
Sumário: I - A legitimidade processual é o pressuposto adjectivo através do qual a lei selecciona os sujeitos de direito admitidos a participar em cada processo trazido a Juízo, sendo que ressalta da respectiva previsão adjectiva civil que o critério para apreciar da legitimidade activa, prende-se com o “interesse directo em demandar” manifestado na utilidade que resulta da procedência da acção, enquanto sujeito da relação material controvertida tal como é configurada pelo Autor.
II - Embora não tendo o título jurídico de proprietário, o locatário exerce, durante o período do contrato, um domínio sobre o bem dado em locação financeira – ou seja, um direito de o usar, retirando, em exclusividade, as suas utilidades – em termos de poder praticamente excluir o proprietário jurídico.
III - O locador, na locação financeira, não explora o bem, não tem intenção de correr os riscos próprios do proprietário, nomeadamente o risco económico da não rentabilidade da coisa e do seu perecimento. Ele desinteressa-se da coisa. Não escolhe o bem, não determina as suas características. O locador só comprou o bem para o dar em locação.
IV - Há no contrato de locação financeira, um desmembramento do direito de propriedade, sendo que em relação ao locador, conquanto seja titular de um direito real, não suporta os danos inerentes ao uso do bem, obrigando-se, somente a “conceder o gozo” de uma coisa sem sequer ter tido qualquer tipo de contacto material com ela, ao passo que em relação ao locatário, este dispõe de um direito de gozo do bem, tendo um direito de natureza obrigacional, apesar de onerado com os riscos que normalmente impendem sobre o típico proprietário
V - Durante o tempo por que perdura o contrato, o locatário entra na posse material do bem dado em locação e, tal como um mero arrendatário, tem poderes de fruição temporária, pelo que, qualquer acto ilícito praticado contra o bem locado, não pode deixar de conferir-lhe legitimidade para demandar quem com tais actos o prejudicou.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº. 28/16.9T8FLG.P1
3ª Secção Cível
Relator - Juiz Desembargador Oliveira Abreu (168)
Adjunto - Juiz Desembargador António Eleutério
Adjunta - Juíza Desembargadora Isabel São Pedro Soeiro
Tribunal de Origem do Recurso - Tribunal da Comarca do Porto Este - Instância Local de Felgueiras - Secção Cível – Juiz 2
Apelante/B… Lda.
Apelada/C…, SA.,

Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto

I – RELATÓRIO

No Tribunal da Comarca do Porto Este - Instância Local de Felgueiras - Secção Cível – Juiz 2 – B…, Lda., intentou a presente acção contra, C…, SA., peticionando a condenação desta a pagar-lhes a quantia de €5839,02 (€5238,73+€600,29), acrescida de juros desde a citação até efectivo e integral pagamento.
Articulou, com utilidade, ter celebrado, em Julho de 2011, um contrato de locação financeira com D…, sucursal Portuguesa, para aquisição do automóvel ligeiro de passageiros, de marca BMW, modelo …, com a matrícula ..-LX-.., a que foi atribuído o número ……, em que esta se obrigou, mediante retribuição, a ceder à B…, Lda., o gozo temporário da aludida viatura adquirida por indicação da B…, Lda, e que esta última a poderia comprar pelo preço e critério contratualmente fixados, e nos demais termos constantes do ajuizado contrato junto aos autos a fls. 16 e 17, repetidos a fls. 98 e 99.
Acontece que no pretérito dia 25 de Janeiro de 2013, o veículo automóvel com a matrícula ..-LX-.., de que é locatária, em razão do aludido contrato de locação financeira celebrado com D…, sucursal Portuguesa, interveio num acidente de viação, ocorrido na estrada municipal … que liga … a …, em Felgueiras, sendo que o acidente ocorreu por culpa exclusiva da condutora do veículo automóvel com a matrícula ..-IJ-.., segurado da Ré/C…, SA.
Em consequência do acidente, o veiculo ..-LX-.., sofreu danos que importaram a privação temporária do respectivo uso, cujo ressarcimento, condizente com o pedido formulado, a Autora/B…, Lda. reclama.
Conclui pela procedência da presente demanda.

Regularmente citada, a Ré/C…, SA., arguiu a excepção de ilegitimidade activa da Autora/B… Lda., sustentando que esta, enquanto locatária do veículo automóvel, não tem legitimidade para intentar a presente acção, porquanto tal legitimidade cabe ao proprietário, impugnando, no mais, a existência do ajuizado embate entre a viatura com a matrícula ..-IJ-.. e a viatura com a matrícula ..-LX-...
Conclui pela improcedência do pedido,
Notificada a Autora/B…, Lda., para, querendo, se pronunciar sobre a arguida excepção, apresentou esta, articulado no qual não contesta o facto de ser locatária, e não proprietária do veículo interveniente no ajuizado acidente, pugnando, isso sim, pela sua legitimidade, referindo que o contrato de locação financeira além de lhe conferir responsabilidade pela manutenção, conservação e defesa do veículo ..-LX-.., também lhe reconhece o direito, nos termos do art.º 10.º do DL 194/95 de 24/5, de defender a integridade do bem e o seu gozo.
Conclui pela improcedência da invocada excepção de legitimidade.

Aquando do saneamento da causa o Tribunal recorrido conheceu da invocada excepção de ilegitimidade activa da Autora/B…, Lda., tendo concluído nos termos que passamos a consignar:
“Decisão.
Pelo exposto, julgo procedente a exceção de ilegitimidade deduzida e, consequentemente, absolvo a ré da instância, a qual declaro extinta - arts. 277.º, al. a), 278.º, n.º1, al. d) e 577.º, al. e), todos do Código de Processo Civil).
Custas pela autora (art.º 527.º do CPC).
Notifique e registe.”
É contra esta decisão que a Autora/B…, Lda., se insurge, formulando as seguintes conclusões:
1.º Sobe o presente recurso da sentença proferida no âmbito da acção declarativa intentada pela demandante contra a demandada “C…” - pedindo a condenação desta no pagamento àquela da quantia global de Euros 5839,02 acrescida de juros desde a citação até efectivo e integral pagamento - que julgou procedente a excepção de ilegitimidade processual activa da demandante, e em consequência absolveu a demandada da instância, a qual declarou extinta.
2.º Na contestação apresentada pela demandada, veio a mesma, entre outros argumentos, invocar a excepção de ilegitimidade processual activa da demandante, com o fundamento de que esta não era proprietária da viatura sinistrada, cujo valor da reparação dos danos causados pelo segurado daquela seguradora na viatura LX melhor identificada nos autos e integralmente suportados por esta (demandante) reclamava.
3.º Notificada para se pronunciar sobre a alegada excepção de ilegitimidade processual a demandante fê-lo nos termos constantes do requerimento de fls… apresentado em juízo em 12/05/2016. E que aqui mais uma vez se dá por integralmente reproduzido.
4.º Sendo que a demandante invocou o já previamente por si alegado em 1.º, 31.º, 32.º e 33.º da p.i.
5.º Tendo assim invocado factos de onde resulta que à data do sinistro, era a mesma legitima possuidora do bem em causa, e que agia sobre o aludido bem com animus possidendi, e como proprietária do mesmo se tratasse.
6.º Tendo invocado ainda o constante do art.º 10.º n.º 2 alíneas a) e b) do DL 194/95 de 24/05, no sentido de que o locatário tem o direito de usar e fruir o bem locado, bem como tem o direito a defender a integridade do bem e o seu gozo nos termos do seu direito.
7.º Igualmente invocou que, nos termos previstos no art.º 7.º, 8.º e 9.º do contrato celebrado com a “D…” (cfr doc 1 da p.i., tendo naquele requerimento de 12/05/2016 requerido a junção aos autos do mesmo documento mas com melhor qualidade de digitalização, por forma a permitir mais facilmente a sua análise), resulta a responsabilidade da A. pela manutenção, conservação, deterioração, imobilização, e defesa da integridade do LX.
8.º E tendo concluído pelo interesse que a demandante tem em demandar pelos factos constantes da p.i. (cfr art. 33.º da p.i.). Verificando-se a sua legitimidade processual activa nos termos do previsto no art. 30.º do CPC.
9.º Não obstante tudo o invocado pela demandante, tanto de facto como de direito, a sentença proferida veio a julgar esta parte ilegítima para a demanda, com o fundamento de que nos termos da clausula 10.º n.º 4 do contrato de locação financeira celebrado entre a demandante e a locadora da viatura, “… patente de torna que no âmbito do contrato de locação financeira firmado entre as partes, o locador e locatário acordaram reservar para a locadora o direito de exigir a indemnização em caso de perda parcial do bem, ou seja, foi acordado entre as partes, excluir à locatária a possibilidade de exigir tal reparação.” (cfr pág 5 da sentença).
10.º É dentro das complexas relações entre locadore locatário que a locação financeira verdadeiramente se define nos seus elementos essenciais, assumindo-se como um contrato sinalagmático, e como um acto de comércio objectivo, dada a sua analogia com o aluguer mercantil (cfr., art. 481º, CCom.) e a venda comercial (nesta linha, Vasco da Gama Lobo Xavier, Direito Comercial - Sumários das Lições ao 3º Ano, Coimbra, 1977/78, pags. 67-68).
11.º Importa, ainda, chamar à colação o regime legal previsto no art. 15º do DL n.º 149/95, de 24/06, segundo o qual, salvo disposição em contrário, o risco de perda ou deterioração do bem corre por conta do locatário.
12.º O que igualmente sucede no contrato de locação financeira junto aos autos.
13.º.º Conforme nos diz Gravato Morais, in Manual da Locação Financeira, p. 163 e 164, a razão de ser desta solução legal consiste, na perspectiva do locatário, na circunstância de este ser o proprietário económico do bem, gozando-o na vigência do contrato, suportando concomitantemente os custos com a sua manutenção e com a sua conservação, assim como todos os encargos a ela relativos, daí que, como princípio geral, os riscos relativos ao gozo do bem fiquem a seu cargo, na perspectiva do locador, no facto de a propriedade jurídica da coisa servir apenas para tutelar os seus específicos interesses, designadamente o assegurar o risco do inadimplemento do locatário, limitando-o ao financiamento concedido.
14.º E note-se que a referida disposição legal não restringe o risco do locatário a factos que lhe sejam imputáveis, pelo que, mesmo que os factos não lhe sejam atribuíveis, o risco da perda da coisa corre sempre por sua conta.
15.º Daí que o art. 10º, n.º 1, al. j), do citado DL n.º 149/95, imponha a obrigação do locatário efectuar seguro do bem locado, contra o risco da sua perda ou deterioração e dos danos por ela provocados.
16.º No caso dos autos, afigura-se que a Julgadora não interpretou correctamente nem o conteúdo do contrato, nem tão pouco a clausula e alínea que invocou na fundamentação da sua decisão, ou sequer considerou a factualidade alegada pela demandante em 31.º e 32.º da p.i.. e novamente invocada por esta no requerimento em que se pronunciou sobre a ilegitimidade invocada pela demandada.
17.º Conforme resulta evidente do mero cotejo da cláusula 10.º do aludido contrato de locação financeira, com a epígrafe “Seguros”, tal cláusula dispõe sobre os contratos de seguro que deverão existir relativamente ao bem locado. Ou seja, seguro contra terceiros e de danos próprios (vulgarmente designado “contra todos os riscos”).
18.º Dito de outra forma, tal cláusula impõe a obrigação de o locatário contratar e manter um seguro contra terceiros e de danos próprios sobre a viatura locada.
19.º Tal cláusula não se refere a eventuais indemnizações devidas por terceiros em virtude de responsabilidade civil extra contratual. Como é o caso dos autos.
20.º Aliás, dispõe sim o art 8.º, sob a epígrafe “Responsabilidade pelo bem”, designadamente no seu número “1”, que os riscos de perda, deterioração, defeito de funcionamento e imobilização do bem correm por conta do locatário, o qual será responsável por tais factos perante o locador. O que aliás vai de encontro ao supra referido acerca da previsão legal concernente ao risco recair sobre o locatário.
21.º E igualmente no número “2” da aludida cláusula está convencionado que o locatário está obrigado à prática de todos os actos que se mostrem adequados à supressão de qualquer deterioração anormal do bem.
22.º Tendo a demandada agido com respeito por tal obrigação contratual aquando da eliminação dos danos causados no bem locado (viatura LX) pelo segurado da demandada.
23.º Igualmente se lê na cláusula “9” do aludido contrato de locação financeira que o locatário é expressamente designado de “… fruidor e de defensor do bem locado…”.
24.º Não há dúvidas que a cláusula “10.º” do contrato de locação financeira em causa se reporta a contratos de seguro sobre a viatura locada, e não a situações de danos causados por terceiros na viatura (como é o caso dos autos).
25.º Tão pouco, em nenhum ponto ou cláusula do contrato de locação financeira em causa, se limita apenas para a locadora o direito de exigir qualquer indemnização por danos causados por terceiros na viatura. Seja na cláusula 10.º invocada pela Julgadora na fundamentação da sua decisão, ou em qualquer outra do contrato em causa.
26.º Até porque, se expressamente se contratualizou a obrigação e responsabilidade do locatário por perdas e deteriorações no bem locado, e bem assim a prática, por este, de actos conducentes à eliminação daqueles, a interpretação e entendimento levado a cabo pela julgadora na sentença, equivaleria a negar a possibilidade de o locatário vir a ser ressarcido pelos danos sofridos na viatura locada e por si suportados nos termos contratuais (como é o caso dos autos), pois alegadamente apenas a locadora poderia demandar para tal efeito! O que não se afigura correcto, coerente, ou sequer encontra qualquer correspondência literal com o expressamente clausulado no contrato em causa, nem na lei (DL 194/95 de 24/05).
27.º Verificando-se assim, que a sentença recorrida violou as regras de interpretação dos negócios jurídicos previstas nos art. 236.º, e 237.º (caso se entenda estarmos perante um caso duvidoso, o que apenas para efeitos académicos se concebe), ambos do Código Civil. Pois que a interpretação efectuada pela Meritíssima Julgadora do contrato de locação financeira constante dos autos, não só é errada pelos motivos supra expostos, como não encontra qualquer correspondência no elemento literal do contrato.
28.º Igualmente face ao alegado em 31.º e 32.º da p.i (reproduzido no requerimento em que a demandante se pronunciou sobre a alegada ilegitimidade processual), a demandante alegou factos que a verificarem-se sempre demonstram que não obstante existir a reserva de propriedade sobre a viatura em causa a favor da locadora, certo é que o contrato de locação financeira foi celebrado com vista à aquisição do LX, e a demandante agia sobre o mesmo como se proprietária se tratasse. Verificando-se assim, salvo melhor entendimento, que além da posição que a mesma detinha em virtude do contrato celebrado, a mesma era igualmente possuidora de boa fé da viatura em causa.
29.º Concluindo-se assim igualmente pelo interesse que a mesma tem enquanto possuidora em ser indemnizada pelos prejuízos causados na coisa e por si eliminados.
30.º Defende Joel Timóteo Ramos Pereira, in “Prontuário de formulários e trâmites – Volume III”, Quid Iuris, 2007, pág 619, “Tendo o autor invocado uma determinada relação jurídica, ainda que essa relação não exista de facto, a alegação dos factos subjacentes que impliquem efectivamente um benefício/prejuízo para as partes, estas gozam de legitimidade. Caso essa relação substancial não se vier a provar, constitui uma questão de mérito, implicando a absolvição da instância, caso se tivesse ab initio sido julgada parte legitima. Ou seja, a legitimidade é um simples pressuposto processual e não um requisito de procedência da acção.”
31.º Igual foi o entendimento do STJ, entre outros, no douto Acórdão de 04/02/1997, Relator Fernandes Magalhães, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/a52cd1c7c322aa9f 802568fc003b6023 “A legitimidade tem de ser apresentada e determinada pela utilidade (ou prejuízo) que da procedência (ou da improcedência) da acção pode advir para as partes, face aos termos em que o autor configura o direito invocado e a posição que as partes, perante o pedido e a causa de pedir, têm na relação controvertida, tal como a apresenta o autor.”
32.º No caso dos autos, e tendo em conta a alegação efectuada pela demandante na p.i. no que concerne à relação jurídica, verifica-se, atento todo o supra exposto, que nos termos da lei de processo a demandante tem, por si só, legitimidade processual activa para a demanda em causa. Pois a mesma pretende ser ressarcida do prejuízo que teve com a eliminação dos danos culposamente causados pelo segurado da demandada no LX, cuja reparação assumiu, nos termos do contrato de locação financeira que subscrevera com a locadora do LX, pois a tal estava obrigada (cfr clausulas 7.º. 8.º e 9.º do contrato de locação financeira junto aos autos), ou se assim se não entender, enquanto possuidora do bem à data da eliminação dos danos por si operada (conforme alegou).
33.º Verificando-se assim a utilidade que da procedência da acção a demandante pretende obter. E concluindo-se assim pela legitimidade processual activa da demandante, nos termos do art. 30.º do CPC. 34.º Verificando-se assim igualmente, que a decisão recorrida violou o previsto no art. 30.º do CPC. O que se invoca.
35.º Bem como violou igualmente os arts. 277.º al. a), 278.º n.º 1 al. d), e 577.º al. e), todos do CPC, invocados na sentença (cfr última página da sentença recorrida), porquanto tais normativos foram aplicados pressupondo uma situação de ilegitimidade processual da demandante, quando tal ilegitimidade não se verifica. Verificando-se, isso sim, a legitimidade processual activa da demandante na presente lide.
Termos em que atento todo o supra exposto, Deverá a decisão recorrida que julgou a demandante parte ilegítima ser revogada, e proferida decisão que julgue a demandada parte legitima para demandar nos termos em que o fez. Tudo com as legais consequências. O que expressamente se invoca e requer.
Assim se fazendo inteira e sã Justiça!

Houve contra-alegações, tendo a Recorrida/Ré/C…, SA., pugnado pela manutenção do julgado.

Foram colhidos os vistos.

Cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO

II. 1. A questão a resolver, recortada das alegações apresentadas pela Apelante/Autora/B…, Lda., consiste em saber se:

(1) Há fundamento para alterar a decisão recorrida uma vez que, contrariamente ao decidido, e tendo em conta a alegação da demandante, na petição inicial apresentada, no que concerne à relação jurídica ajuizada, verifica-se que a Autora tem legitimidade processual activa para o pleito em causa?

II. 2. Da Matéria de Facto

A matéria de facto apurada é a que consta do relatório antecedente.

II. 3. Do Direito

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da Recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - artºs. 635º, 639º, e 663º, todos do Código Processo Civil.

II. 3.1. Há fundamento para alterar a decisão recorrida uma vez que, contrariamente ao decidido, e tendo em conta a alegação da demandante, na petição inicial apresentada, no que concerne à relação jurídica ajuizada, verifica-se que a Autora tem legitimidade processual activa para o pleito em causa (1)?
Delimitado o objecto do recurso, passemos à questão vertida nas conclusões das doutas alegações da Apelante, e, nesta medida importará apreciar se, considerados os factos jurídicos apresentados em Juízo e a pretensão arrogada, a subsunção jurídica, deverá ser diversa da sustentada pelo Tribunal “a quo”.
No caso em escrutínio, o aresto proferido em 1ª Instância encerra um processo cognitivo inteligível, conquanto, desde já o adiantamos, não possamos estar de acordo com a decisão tomada, e, neste sentido, estará em causa a bondade da solução encontrada no presente litígio, em razão da argumentação adiante consignada.
Vejamos.
O Tribunal apelado, ao proferir despacho saneador, conheceu da excepção de legitimidade activa invocada, entendendo que a mesma é procedente, conduzindo à absolvição da instância da Ré, porquanto, conforme sustenta “No caso dos autos, estamos perante um contrato de locação financeira. De facto, tal como a Autora configurou a pretensão, constata-se que o veículo está na posse da mesma na sequência da realização de um contrato de locação financeira com o proprietário de tal veículo. (…) uma eventual acção de indemnização pela perda parcial do bem terá, necessariamente, de ser intentada pela proprietária do mesmo. Por outro lado, sendo a autora detentora de um mero direito de gozo sobre o bem, a procedência, ou não, da acção não tem para si qualquer utilidade, porquanto a indemnização eventualmente a arbitrar está reservada ao proprietário da coisa, enquanto sujeito da relação material controvertida. Termos em que, a autora, na qualidade de locatária, carece de legitimidade para a presente demanda.”
No fundo, o aresto apelado sustenta a procedência da excepção invocada de legitimidade activa partindo do pressuposto de que no âmbito do ajuizado contrato de locação financeira, locador e locatário acordaram reservar para a locadora o direito de exigir a indemnização em caso de perda parcial do bem, ou seja, foi acordado excluir à locatária a possibilidade de exigir tal reparação, razão pela qual, a acção de indemnização pela perda parcial do bem terá, necessariamente, de ser intentada pela proprietária do mesmo, ou seja, os danos articulados pela Autora, que o Tribunal “a quo” entende corresponder à perda parcial do veiculo locado, não poderão ser reclamados pela locatária, B… Lda., ora Autora.
Como sabemos, dita o nosso direito adjectivo civil que, findos os articulados, se conheça da fase do saneador e da condensação, apreciando, os pressupostos da regularidade e validade da instância, sem deixar de apreciar quaisquer questões prévias, excepções dilatórias e peremptórias, quando deduzidas ou do conhecimento oficioso, bem como, seja apreciado o mérito da causa quando, fundamentadamente, se entenda ser o caso.
É precisamente a bondade do proferido despacho saneador, que conheceu da invocada excepção de legitimidade activa, está em causa.
Ora o que descortinamos do escrutínio dos articulados apresentados é que o Tribunal apelado, ao julgar procedente a invocada excepção de legitimidade activa, com consequente absolvição da Ré da instância, não cuidou de ter em conta, salvo o devido respeito, todos os factos relevantes para o pretendido conhecimento, além de que fez uma enviesada subsunção jurídica que, de todo, tem a nossa aprovação.
Vejamos.
Estatui o artº. 30º, do Código Processo Civil sobre o conceito de legitimidade (mantendo o regime já anteriormente adoptado no direito adjectivo civil) “1 – O autor é parte legítima quando tem interesse directo em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse directo em contradizer. 2 – O interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da acção e o interesse em contradizer pelo prejuízo que dessa procedência advenha. 3 – Na falte de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor.”
Daqui decorre que a legitimidade processual é o pressuposto adjectivo através do qual a lei selecciona os sujeitos de direito admitidos a participar em cada processo trazido a Juízo, sendo que ressalta da previsão adjectiva civil consignada que o critério para apreciar da legitimidade activa, prende-se com o “interesse directo em demandar” manifestado na utilidade que resulta da procedência da acção, enquanto sujeito da relação material controvertida tal como é configurada pelo autor.
Donde, será suficiente uma afirmação alicerçada em factos da titularidade dum interesse directo e pessoal, designadamente, por ter sido lesada por acto (acção e/ou omissão), nos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, para se reconhecer um juízo positivo sobre o reconhecimento da legitimidade activa.
Nesta sede o preenchimento do requisito da legitimidade processual (entendido como condição para a obtenção de uma pronúncia sobre o mérito da causa, e não como uma condição de procedência da acção) não exige a verificação da efectiva titularidade da situação jurídica invocada pelo demandante, bastando a alegação dessa mesma titularidade, elegendo-se a titularidade da “relação material controvertida” tal como a mesma foi alegada no articulado inicial, como critério definidor do referido pressuposto processual.
Neste sentido, Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o novo processo civil, Lex, 1997, defende que a legitimidade, enquanto pressuposto processual geral, constitui uma condição cuja verificação é indispensável à obtenção da pronúncia judicial sobre o mérito da causa. Esta consiste numa posição concreta da parte perante uma causa, por isso, a legitimidade “não é uma qualidade pessoal, é antes uma qualidade posicional da parte face à acção”, apurando-se em função da titularidade dos interesses emergentes da relação controvertida tal como ela é configurada pelo autor no momento da sua propositura (isto é, na petição inicial).
Assim, a legitimidade processual caracteriza a concreta posição de quem é parte numa causa, “perante o conflito de interesses que aí se discute e pretende resolver”, posição essa que é “o ser-se a pessoa (ou pessoas) cuja procedência da acção lhes atribui uma situação de vantagem (autor) ou a pessoa ou as pessoas a quem essa procedência causa uma desvantagem”, o réu, cfr. Remédio Marques, Acção Declarativa à Luz do Código Revisto, 3.ª edição, Coimbra Editora, 2011, páginas 372/373.
Revertendo ao caso “sub iudie” importa saber se face à relação controvertida tal como ela é configurada pela Autora, se esta tem interesse directo em demandar, traduzido na utilidade/vantagem que provirá da procedência da acção.
No caso em análise estamos perante uma acção em que se reclama uma indemnização em razão da alegada responsabilidade civil da Ré, enquanto seguradora do veiculo que interveio em acidente, do qual decorreu danos no veículo automóvel ligeiro de passageiros, de marca BMW, modelo …, com a matrícula ..-LX-.., sobre o qual a B…, Lda., detinha o respectivo gozo temporário, cedido pela D…, sucursal Portuguesa, que o havia adquirido por indicação da B…, Lda, mediante o pagamento de ajustada retribuição a pagar pela B…, Lda, e que poderia comprar pelo preço e critério contratualmente fixados, e demais termos constantes do contrato ajuizado.
Importa, assim, subsumir juridicamente a relação estabelecida entre a Autora/B…, Lda., e a D…, sucursal Portuguesa, decorrente da enunciada facticidade (concretamente alegada na petição inicial dos autos que somos chamados a conhecer), essencial para reconhecermos a qualidade em que a B…, Lda., demanda a Ré/C…, SA., e nesse pressuposto, aferir se aquela tem interesse directo em demandar, traduzido na utilidade/vantagem derivada da procedência da acção intentada.
Vejamos.
O contrato de locação financeira rege-se pelas disposições do Decreto-Lei nº. 149/95, de 24 de Junho, com as alterações introduzidas pelos Decreto-Lei nº. 265/97, de 02 de Outubro, Decreto-Lei nº. 285/01, de 3 de Novembro, e Decreto-Lei nº. 30/08, de 25 de Fevereiro.
Assim, o artº. 1º, do Decreto-Lei nº. 149/95, de 24 de Junho (alterado pelo Decreto-Lei nº. 265/97, de 2 de Outubro, e pelo Decreto-Lei nº. 285/2001, de 3 de Novembro), define a locação financeira como “o contrato pelo qual uma das partes se obriga, mediante retribuição, a ceder à outra o gozo temporário de uma coisa, móvel ou imóvel, adquirida ou construída por indicação desta, e que o locatário poderá comprar, decorrido o período acordado, por um preço nele determinado ou determinável mediante simples aplicação dos critérios nele fixados”.
A consignada noção de locação financeira assume um cariz mais económico que jurídico e da qual podemos retirar os seguintes elementos: - a cedência temporária de uma coisa pela locadora: - a aquisição ou construção dessa coisa por indicação do locatário; - a retribuição correspondente à cedência; - a fixação de um prazo para a cedência; - a possibilidade de compra, total ou parcial, por parte do locatário; e - determinação ou determinabilidade do preço a pagar pela compra, nos termos do contrato.
O contrato de locação financeira, como esta própria denominação o revela, tem uma finalidade creditícia.
Como defende Diogo Leite de Campos, apud, Ensaio de Análise Tipológica do Contrato de Locação Financeira, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade Católica, volume XXIII, página 10, “a locação financeira pode ser definida como o contrato a médio ou a longo prazo dirigido a financiar alguém, não através da prestação de uma quantia em dinheiro, mas através do uso de um bem. Proporciona-se ao locatário não tanto a propriedade de determinados bens, mas a sua posse e utilização para determinados fins”.
Ou, como sustenta Abrantes Geraldes, apud, Temas da Reforma do Processo Civil, Procedimentos Cautelares Especificados, IV volume, 4ª edição revista e actualizada, Almedina, páginas 338, 339, “o contrato de locação financeira reúne elementos que normalmente caracterizam outros tipos de contratos mas que aqui se encontram conjugados: por um lado, a cedência temporária de um bem adquirido ou construído por indicação do locatário; por outro, a opção de compra, findo o período contratual, mediante o pagamento de um valor previamente definido ou, ao menos, determinável de acordo com critérios prefixados. Através de tal contrato conseguem-se alcançar benefícios de ordem económica e financeira, na medida em que se associam formas de financiamento e modos capazes de proporcionar a fruição de bens, sem que o fruidor tenha de desembolsar imediatamente a totalidade do preço”.
No mesmo sentido, entre outros, Calvão da Silva, apud, Locação Financeira e Garantia Bancária, Estudos de Direito Comercial, páginas 14 e 15; Sebastião Pizarro, O Contrato de Locação Financeira, páginas 27 e seguintes; Gravato de Morais, Manual da Locação Financeira, página 114.
Acerca das especificidades do regime do contrato de locação financeiras, e porque ao caso interessa, consignamos o que a propósito defende Diogo Leite de Campos, apud, Ensaio de análise tipológica do contrato de locação financeira, publicado no Boletim da Faculdade de Direito da Universidade Católica, volume LXIII, ao enunciar que “resulta do regime do contrato, tal como consta da lei, a sociedade de locação financeira entrega ao locatário um bem (fracção autónoma), escolhido por este e adquirido para o efeito por aquela, que o locatário usará e fruirá durante todo o tempo de duração do contrato, ficando ainda investido no direito de, no final do contrato, exercer a opção de compra do bem, por um valor residual.
O risco de perecimento da coisa corre por conta do locatário. E bem se compreende que assim seja: a coisa é-lhe apenas dada em locação; mas é-o por ter sido comprada para ele, no seu interesse (em atenção às suas necessidades de investimento) e não oferecida em locação pelo locador.
É sobre o locatário que recai o dever de conservar e reparar a coisa.
O locador, na locação financeira, não explora o bem. Não tem intenção de correr os riscos próprios do proprietário, nomeadamente o risco económico da não rentabilidade da coisa e do seu perecimento. Ele desinteressa-se da coisa. Não escolhe o bem, não determina as suas características, não se preocupa com a sua rentabilidade: são tudo assuntos que respeitam ao locatário.
(…) Os riscos de exploração da coisa são assumidos pelo locatário. É este que a escolhe, de acordo com as suas necessidades. O locador só comprou o bem para o dar em locação.
Na locação financeira há (economicamente) uma obrigação única do locatário, correspondente, “grosso modo”, ao custo do bem, com prestações fraccionadas no tempo.
O locatário aparece, pois, como o “proprietário” (económico) do bem que paga integralmente durante o preço do contrato, e cujos riscos assume.
O locatário procura, não obter o uso de um bem durante um período mais ou menos longo, mas obter o próprio bem, durante toda a sua vida útil. O contrato é dirigido a oferecer ao locatário a faculdade de aceder à propriedade do bem – faculdade que este exerce normalmente.
(…) é ao locatário que incumbe a obrigação de efectuar o seguro do bem locado, contra o risco da sua perda ou deterioração e dos danos por ela provocados.
Pode, pois, afirmar-se que, embora não tendo o título jurídico de proprietário, o locatário exerce, durante o período do contrato, um domínio sobre o bem dado em locação financeira – ou seja, um direito de o usar, retirando, em exclusividade, as suas utilidades – em termos de poder praticamente excluir o proprietário jurídico.
Não é, juridicamente, o proprietário do bem locado; mas é, como acima ficou referido, o “proprietário” económico desse bem, de que, por via de regra, se tornará verdadeiro dono no termo do contrato”.
Há no contrato de locação financeira, como defende a Doutrina e Jurisprudência, um desmembramento do direito de propriedade, sendo que em relação ao locador, conquanto seja titular de um direito real, não suporta os danos inerentes ao uso do bem, obrigando-se, somente a “conceder o gozo” de uma coisa sem sequer ter tido qualquer tipo de contacto material com ela, apenas lhe sendo legítimo ceder a sua posição no contrato de locação financeira, transmitindo a propriedade da coisa, em todo o caso não pode dispor isoladamente da coisa dada em locação, ao passo que em relação ao locatário, este dispõe de um direito de gozo do bem, tendo um direito de natureza obrigacional, apesar de onerado com os riscos que normalmente impendem sobre o típico proprietário, neste sentido, Gravato de Morais, apud, Manual da Locação Financeira, páginas 260-262, 163-164 e 114-115.
O direito de propriedade do locador está na proporção inversa do aumento da “propriedade útil” do locatário.
Pela celebração do contrato de locação financeira, reconhece a Doutrina, a locadora assume uma “vocação de intermediária financeira, de capitalista, de financiadora, a propriedade da coisa dada em leasing financeiro apenas representa uma garantia de pagamento do financiamento que a locadora fez, à semelhança (de algum modo) da compra e venda com reserva de propriedade”.
O locatário financeiro “comunga da propriedade económica” do bem, como defende Rui Pinto Duarte, apud, O Contrato de Locação Financeira – Uma Síntese, Themis - Ano X - n.º 19 – 2010, páginas 7 a 10.
O locador só “reserva” a propriedade da coisa a título de garantia, como reserva da propriedade.
Na locação financeira é o locatário que suporta o risco de perecimento da coisa (artº. 15.° do Decreto-Lei nº. 149/95 de24 de Junho).
Outrossim, o dever de conservar e reparar a coisa incumbe, na locação financeira, ao locatário (artº. 10.° do Decreto-Lei nº. 149/95 de24 de Junho).

O locador não tem a intenção de usar o bem, de correr os riscos próprios do proprietário, ao passo que o locatário, não pretende obter o (simples) uso de um bem disponível no mercado de locação, operando, isso sim, um investimento, traduzido em parte ou na totalidade do valor do bem, correndo o risco equivalente do seu perecimento.
Assim, defende a Doutrina e Jurisprudência, o locador desinteressa-se da coisa, sob o ponto de vista económico-financeiro que não sob o ponto de vista jurídico, ao passo que, sob o ponto de vista económico-financeiro, o locatário tem uma “verdadeira” “propriedade útil” do bem.
O locatário aparece, pois, como “proprietário económico” do bem que paga integralmente, ou na sua maior parte, durante o período do contrato, e cujos riscos assume.
O contrato de locação financeira, conquanto pressuponha que em campos jurídicos distintos se situam o dono/locador da coisa e o locatário financeiro/fruidor, constitui uma realidade económica que tendo de muito relevante o financiamento da aquisição de bens, estabelece um regime legal que visa, em função do nodal aspecto de fruição económica em vista da expectativa de aquisição do direito de propriedade que constitui um direito potestativo do locatário contra o qual o locador nada pode, impõe ónus e riscos que, na pura lógica do direito de propriedade, ainda que comprimido por outro direito real ou obrigacional, mal se compreenderiam.
A enunciada particularidade e ampla protecção dispensada ao locatário, enquanto “dono económico” da coisa na vigência do contrato, mereceu do Professor Calvão da Silva o seguinte comentário que se retira da sua obra, Direito Bancário, 2001, página 425, e passamos a consignar:
“Por um lado, a vocação principal do locador é a de intermediário financeiro, de “capitalista” financiador.
Por outro lado, foi o locatário que fez a prospecção do mercado, que escolheu o equipamento destinado à sua empresa e é ele que o vai utilizar, com opção de compra findo o contrato.
Nada mais natural, portanto, do que a transferência legal para o locatário dos riscos e responsabilidades conexos ao gozo e disponibilidade material da coisa que passa a ter após a entrega, incluindo a sua manutenção e conservação (artº. 10.º, nº l, als. q) e f), do Decreto-Lei 149/95 de 24 de Junho) e o risco do seu perecimento ou da sua deterioração (ainda que) imputável a força maior ou caso fortuito (artº. 15.° do Decreto-Lei 149/95 de 24 de Junho).
No fundo é co-natural ao leasing que a sociedade locadora se obrigue a adquirir e a conceder o gozo da coisa ao locatário mas se desinteresse ou exonere dos riscos e da responsabilidade relativos à sua utilização”.
Durante o tempo por que perdura o contrato, o locatário entra na posse material do bem dado em locação e, tal como um mero arrendatário, tem poderes de fruição temporária, pelo que, qualquer acto ilícito praticado contra o bem locado, não pode deixar de conferir-lhe legitimidade para demandar quem com tais actos o prejudicou.
Revertendo ao caso dos autos, reconhecemos que na presente acção onde se reclama indemnização em razão de danos sofridos no bem locado (acidente de viação em que interveio o veiculo locado, cuja locatária é a Autora, e o veiculo segurado da Ré), não divisamos fundamento para que a demanda não tenha que ser proposta pela própria locatária, pois, a locatária tem interesse directo na demanda, que lhe advém da verificada transferência legal dos riscos e responsabilidades conexos ao gozo e disponibilidade material do veiculo locado, de matrícula, 95-LX-84, cuja manutenção e conservação lhe incumbe após a respectiva entrega (artº. 10.° do Decreto-Lei nº. 149/95 de 24 de Junho e artºs. 7º, 8º e 9º do contrato de locação ajuizado), sendo que tal interesse directo na demanda, torna-a nos termos do consignado enquadramento jurídico e doutrinal, parte legítima para intentar o presente pleito.
Sem reservas reconhecemos que o Tribunal “a quo“ andou mal ao julgar procedente a invocada excepção de legitimidade activa, confundindo a nosso ver, a perda parcial do bem locado, que não foi reclamada pela Autora, com danos sofridos na decorrência do gozo e disponibilidade material do ajuizado veículo locado, entretanto reparados pela Autora, porquanto, o gozo e disponibilidade do aludido veiculo locado, implicam para a locatária, Autora/B…, Lda., como adiantamos, responsabilidades conexas, mormente a sua manutenção e conservação.
De todo o exposto se conclui que a Autora/B…, Lda., enquanto locatária financeira do veículo ..-LX-.., interveniente no acidente ajuizado, é titular de interesse relevante para efeitos de reclamar, em Juízo, o ressarcimento com os invocados danos sofridos, alegadamente praticados pelo veículo automóvel segurado da Ré/C…, SA., e, neste sentido a Autora/B…, Lda., é parte legítima na presente acção, nos termos do artº. 30º, nºs. 1, 2 do Código Processo Civil.
Na procedência da argumentação esgrimida e trazida à discussão pela Autora/Recorrente/B…, Lda., nas suas alegações de recurso, e na decorrência do consignado enquadramento jurídico normativo, a invocada excepção de ilegitimidade activa, terá, necessariamente, de ser julgada improcedente, devendo os autos prosseguir os seus termos para apreciação das demais questões neles suscitadas.

III. SUMÁRIO (artº 663º nº. 7 do Código Processo Civil)

1. A legitimidade processual é o pressuposto adjectivo através do qual a lei selecciona os sujeitos de direito admitidos a participar em cada processo trazido a Juízo, sendo que ressalta da respectiva previsão adjectiva civil que o critério para apreciar da legitimidade activa, prende-se com o “interesse directo em demandar” manifestado na utilidade que resulta da procedência da acção, enquanto sujeito da relação material controvertida tal como é configurada pelo Autor.
2. Embora não tendo o título jurídico de proprietário, o locatário exerce, durante o período do contrato, um domínio sobre o bem dado em locação financeira – ou seja, um direito de o usar, retirando, em exclusividade, as suas utilidades – em termos de poder praticamente excluir o proprietário jurídico.
3. O locador, na locação financeira, não explora o bem, não tem intenção de correr os riscos próprios do proprietário, nomeadamente o risco económico da não rentabilidade da coisa e do seu perecimento. Ele desinteressa-se da coisa. Não escolhe o bem, não determina as suas características. O locador só comprou o bem para o dar em locação.
4. Há no contrato de locação financeira, um desmembramento do direito de propriedade, sendo que em relação ao locador, conquanto seja titular de um direito real, não suporta os danos inerentes ao uso do bem, obrigando-se, somente a “conceder o gozo” de uma coisa sem sequer ter tido qualquer tipo de contacto material com ela, ao passo que em relação ao locatário, este dispõe de um direito de gozo do bem, tendo um direito de natureza obrigacional, apesar de onerado com os riscos que normalmente impendem sobre o típico proprietário
5. Durante o tempo por que perdura o contrato, o locatário entra na posse material do bem dado em locação e, tal como um mero arrendatário, tem poderes de fruição temporária, pelo que, qualquer acto ilícito praticado contra o bem locado, não pode deixar de conferir-lhe legitimidade para demandar quem com tais actos o prejudicou.

IV. DECISÃO

Pelo exposto e decidindo, os Juízes que constituem este Tribunal, julgam procedente a apelação interposta pela Autora/B…, Lda..
Assim, acordam os Juízes que constituem este Tribunal:
1. Em julgar procedente o recurso de apelação deduzido pela Autora/B…, Lda., revogando-se, em consequência, o aresto recorrido que conheceu da invocada excepção de legitimidade, julgando-a procedente e absolvendo a Ré/C…, SA., da instância, importando, em sua substituição, a prolação de decisão que consubstancie a prossecução dos presentes autos, com vista à apreciação das demais questões suscitadas.
2. Custas pela Recorrida/C…, SA.
Notifique.

Porto, 15 de Dezembro de 2016
Oliveira Abreu
António Eleutério
Isabel São Pedro Soeiro

(A redacção deste acórdão não obedeceu ao novo acordo ortográfico).