Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
74988/18.9YIPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ EUSÉBIO ALMEIDA
Descritores: COMPRA E VENDA COMERCIAL
DENÚNCIA DOS DEFEITOS
PRAZO DE CADUCIDADE
ÓNUS DE ALEGAÇÃO E PROVA
Nº do Documento: RP2020090874988/18.9YIPRT.P1
Data do Acordão: 09/08/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Quer o prazo previsto no artigo 471 do Código Comercial quer o previsto no artigo 916, n.º 2 são prazos de caducidade e, por isso, a alegação e prova de ter sido exercida fora de prazo a denúncia da desconformidade ou do defeito cabe ao vendedor.
II - Só a falta de reclamação de numa eventual desconformidade da coisa vendida (no ato de entrega ou nos oito dias posteriores) torna perfeito o contrato.
III - Se não pode dizer-se que o comprador, que deu a conhecer ao vendedor a desconformidade da coisa vendida, reclamou fora do prazo, pois não se apurou a intempestividade da sua reclamação, não pode ser o mesmo condenado no pagamento do preço, pois tal obrigação pressupunha a perfeição contratual.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 74988/18.9YIPRT

Recorrente – B…, S.A.
Recorrida - C…, Lda.
Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto:

Relator: José Eusébio Almeida;
Adjuntos: Carlos Gil e Carlos Querido.
I - Relatório
1 – C…, Lda. instaurou injunção, reclamando da ré B…, S.A. o pagamento da quantia de 6.591,37€ e juros.

2 – Fundamentando a sua pretensão, alegou que “é uma empresa que se dedica á compra e venda de cortiça e produtos derivados desta, o que faz com fins lucrativos”. Por seu lado, a requerida dedica-se á compra e venda de cortiça e produtos derivados desta, o que faz com fins lucrativos. Refere que, no exercício da sua atividade, forneceu á requerida, a pedido desta, bens do seu comércio, nomeadamente vários tipos de rolhas, de diversos calibres e qualidades, o que aconteceu durante largo período de tempo, mas a requerida recebeu os bens constantes das diversas faturas, integrou-os no seu património e não pagou o preço respetivo, encontrando-se em dívida o montante de 6.591,37€, ao qual acrescem juros legais, devidos até efetivo e integral pagamento.

3 – A ré deduziu Oposição. Suscitou a nulidade da citaçaÞo e a ineptidão do requerimento injuntivo. Impugnando, referiu que as rolhas fornecidas “não correspondiam ao acordado entre as partes. Não detinham as caraterísticas acordadas, quer por sofrerem de anomalias severas no que concerne á sua integridade física, quer porque foram assinaladas com uma marca diferente da solicitada pela opoente”, como bem sabe a requerente. Acrescenta que o estado das rolhas fornecidas pela requerente “inviabilizavam e inviabilizam a sua utilizaçaÞo para o fim a que se destinam, como bem sabe a requerente, isto é, obturação de bebidas alcoólicas, uma vez que, além do mais, o seu desempenho como vedante – no domínio da sua funcionalidade e estanquicidade – era, como é, inexistente” e disse deu conhecimento à requerente, tanto mais que “perdeu a encomenda e o cliente, pelo que não tem qualquer interesse na manutenção do negócio, pelo que apenas a recolha das rolhas poderá terminar com o avolumar de prejuízos por parte da oponente que continua ter depositadas as rolhas nas suas instalaçoÞes”. Entende que os putativos créditos da requerente são inexistentes, atento o seu incumprimento contratual, já que esta jamais “observou o que fora contratado – e a que estava vinculada – relativamente á qualidade e marcação das rolhas fornecidas”, sendo certo que, constatada tal situação, a oponente “informou e reclamou junto da requerente todos os defeitos elencados que inutilizaram por completo que as rolhas servissem para o fim a que se destinavam”. Assim, “fosse qual fosse o valor a considerar, sempre a requerida tinha, nas relaçoÞes comerciais existentes, como tem, um saldo credor, cuja determinaçaÞo importa apurar, considerando os prejuízos provocados”.

4 - Conforme despacho de fls. 190 do processo eletrónico (p.e.) foi facultada à autora a possibilidade de responder às exceções deduzidas (“... por razões de celeridade e economia processual, entendo ser admissível que o Autor prévia e antecipadamente possa responder por escrito a tais questões, o que até agiliza a posterior realizaçaÞo da audiência de julgamento, obviando a delongas desnecessárias. Nessa medida, determino a notificaçaÞo do Autor para se pronunciar sobre a exceçaÞo invocada pela Ré”) o que não aconteceu e, em sede própria, sem que tenha havido impugnação do decidido, julgou-se improcedentes as invocadas nulidade e ineptidão[1] e os autos prosseguiram para julgamento.

5 – Depois do adiamento da audiência, veio a mesma a ter lugar a 17.01.2020 (fls. 102 do p.e.) com produção de prova documental e testemunhal e proferiu-se sentença que julgou a ação procedente e condenou a ré a pagar aÌ autora a quantia de 6.591,37€, acrescida de juros legais aÌ taxa comercial desde 20JUL2018 e até efetivo e integral pagamento.
II – Do Recurso
6 – Inconformada, a ré veio apelar. Entende que deve ser revogado “o decisório recorrido, com a consequente procedência da oposiçaÞo nos termos ai peticionados” e formula as seguintes Conclusões:
Nulidade da sentença pelos fundamentos estarem em oposição com a decisão – Alínea c), 1.ª parte, do artigo 615 do Código de Processo Civil.
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7 – A autora respondeu ao recurso, tendo concluído:
- Nas alegaçoÞes de recurso não se vislumbram quais as normas jurídicas violadas, pelo que em ultima análise o que se pode concluir eì que nenhuma norma jurídicas foi violada.
- A matéria de facto dada como provada na sentença considera-se fixada, uma vez que não foi alvo de recurso por parte da ré.
- A sentença posta em crise considerou, e bem, que o contrato é um contrato de compra e venda comercial previsto no artigo 463, n.º 1 do Código Comercial.
- Da conjugaçaÞo dos artigos 463, n.º 1 e artigo 471 ambos do Código Comercial e conforme consta da sentença, o comprador tem o prazo de 8 dias após o conhecimento dos defeitos da coisa comprada para reclamar dos mesmos, sendo que tal prazo se deve contar da data de receçaÞo dos produtos ou, quando assim não seja possível, deverá contar-se do momento em que o comprador podia ter tomado conhecimento desses defeitos se utilizasse a devida e normal diligência.
- A lei prevê, assim, um prazo de denúncia mais curto que o estipulado no regime civil a lei pretende tornar mais segura e estável a compra e venda comercial - "quer que o estado de incerteza quanto aÌ perfeição do contrato seja de curta duraçaÞo - quer que ela seja o mais curta possível", Ac. da RL, de 26/10/95, in CJ, Ano XX, 1995, Tomo IX, pag. 130.
- A propoìsito do referido prazo de denúncia e do momento de inicio da sua contagem a doutrina e a jurisprudência são do entendimento maioritário que, no caso de impossibilidade ou dificuldade de exame no ato da entrega ou nos 8 dias seguintes, atenta a concreta mercadoria, se deve atender ao momento que o comprador, agindo com a diligência devida, descobre o vicio da coisa, sendo seu ónus provar que só então lhe foi percetível os defeitos que a coisa apresenta,
– Nos termos do artigo 342 do Código Civil: “1. Aquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado. 2. A prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete aquele contra quem a invocação é feita. 3. Em caso de duvida, os factos devem ser considerados como constitutivos do direito”. Assim, é sobre a ré que recai o onus de provar que, conforme consta da sentença “- a impossibilidade de exame das rolhas ou deteçaÞo dos vícios/defeitos alegados no momento das entrega/receçaÞo delas; - o momento em que cessou a impossibilidade de deteçaÞo dos vícios; - a data em que detetou os defeitos; - e a data em que os reclamou perante a Autora”.
– A ré não logrou fazer tal prova, não carreando para os autos os fatos concretos que permitissem apurar tal, não cumpriu o ónus da prova que sobre si recai.
– Era á ré que incumbia tal prova, sendo certo que o deveria ter feito na contestaçaÞo, atento o estabelecido no artigo 574, n.º 1 do C.P.C.
– Na contestaçaÞo não apresentou qualquer facto a datar o conhecimento dos pretensos defeitos bem como o porquê de apenas nessa data ter tido a possibilidade de os conhecer.
– Da matéria de facto dada como provada, fixada na sentença, nomeadamente o vertido no ponto 8, apenas é provado que a ré do supra exposto deu conhecimento á autora solicitando que esta recolhesse as rolhas.
- Nada é dado como provado que a ré denunciou os defeitos dentro do prazo que a lei lhe concede para o fazer, que é de oitos dias a contar da receçaÞo da mercadoria.
– A sentença ao não dar como provado por um lado que a ré denunciou os defeitos dentro do prazo que a lei lhe concede bem como por outro lado de que entre a data da compra e venda ja há muito decorreu o prazo de seis meses, teria necessariamente de concluir pela procedência da exceçaÞo de caducidade do direito de peticionar o que quer que fosse com fundamento nos defeitos das rolhas em causa, o que efetivamente aconteceu e, assim, bem andou o tribunal em condenar a ré.
- No caso de se entender que a sentença é nula pelos fundamentos estarem em oposiçaÞo com a decisão, o que não se concede, sempre se dirá o seguinte: No caso da sentença dar como provado que os defeitos denunciados pela reì o foram dentro do prazo de 8 dias que a lei lhe confere para o efeito, nomeadamente por email datado de 26 de dezembro de 2017;
- Nos presentes autos a ré pretende exercer o direito aí exceção do não cumprimento, pretendendo eximir-se ao pagamento do preço alegando para o efeito que a coisa vendida apresentava defeitos que impossibilitavam o seu uso para o fim normal a que se destinavam e ainda uma indemnizaçaÞo pelo cumprimento defeituoso a quantificar no momento próprio.
- Estabelece o artigo 916 do Código Civil: N.º 1 - “ O comprador deve denunciar ao vendedor o vício ou a falta de qualidade da coisa, exceto se este houver usado de dolo.” N.º 2 – A denúncia será feita até trinta dias depois de conhecido o defeito e dentro de seis meses após a entrega da coisa” e ainda estabelece o artigo 917 do Código Civil: “A açaÞo de anulaçaÞo por simples erro caduca, findo qualquer dos prazos fixados no artigo anterior sem o comprador ter feito a denúncia ou decorridos sobre esta seis meses , sem prejuízo neste ultimo caso do disposto no n.º 2 do artigo 287”.
- O prazo de caducidade de seis meses previsto no artigo 917 do Código Civil deve aplicar-se não só ás ações de anulaçaÞo/reduçaÞo, mas também ás que visem obter a reparação ou substituiçaÞo da coisa, ou, ainda, a redução do preço e o pagamento de uma indemnizaçaÞo pela violaçaÞo contratual.
- Tal justifica-se pelo facto de quer nas açoÞes de anulaçaÞo quer nas que visam obter a reparaçaÞo ou substituiçaÞo da coisa ou a reduçaÞo do preço e o pagamento de uma indemnizaçaÞo pela violaçaÞo contratual, reside na constataçaÞo de que em todas as açoÞes se fazem valer pretensões no quadro da garantia pelos vícios. Ou seja, permanece-se em matéria de direitos decorrentes do contrato por virtude de vícios da coisa – Ac. do STJ de 16 de março de 2011, in www.dgsi.pt.
- Assim, caso a sentença desse como provado que a ré denunciou tempestivamente os defeitos, o que teria acontecido pelo menos em 26 de dezembro de 2017, verifica-se que a presente açaÞo intentada pela autora deu entrada em juízo em 18 de dezembro de 2018, sendo certo que até tal data nunca a ré intentou qualquer açaÞo invocando os defeitos da coisa.
- Assim, desde a data que a ré teria denunciado os defeitos há muito decorreu o prazo de seis meses para que esta intentasse a ação judicial respetiva: o direito da ré caducou.
– A douta sentença fez correta aplicaçaÞo do direito ao caso, aplicando corretamente o vertido nos artigos 463 e 471 do Código Comercial e 916 e 917 do Código Civil.

8 – O recurso foi recebido nos termos legais, entendendo o tribunal recorrido que a nulidade invocada pela ré não ocorre (“Por estar em tempo e ter legitimidade, admito o recurso interposto, o qual é de apelação, a subir nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo (artigos 644, n.º 1, alínea a), 645, n.º 1, alínea a) e 647, n.º 1, do Coìdigo de Processo Civil). Resta ainda dizer que não se vislumbra nenhuma nulidade, muito menos a invocada pela Recorrente. De todo o modo, V.Exas., como sempre, melhor decidirão”).

9 – Nesta Relação, nada se alterou ao despacho que recebeu o recurso e os autos correram Vistos. Nada obsta à apreciação do mérito da apelação.

10 – O objeto do recurso, atentas as conclusões apresentadas pela apelante, consiste em saber se a decisão padece de nulidade nos termos do artigo 615, n.º 1, alínea c), 1.ª parte e, mesmo que assim não se considere, se o apelante denunciou tempestivamente a desconformidade e os defeitos da mercadoria, podendo deixar de pagar, por ter havido incumprimento contratual da apelada.
III – Fundamentação
III.I – Fundamentação de Facto
11 - O tribunal recorrido deu como assente a seguinte matéria de facto, que não se mostra impugnada:
11.1 - A autora é uma empresa que se dedica á compra e venda de cortiça e produtos derivados desta, o que faz com fins lucrativos (artigo 1.º do requerimento injuntivo).
11.2 - Por seu lado, a ré é uma empresa que se dedica á compra e venda de cortiça e produtos derivados desta, o que faz com fins lucrativos (2.º).
11.3 - No exercício da sua atividade, a autora forneceu aÌ, a pedido desta, bens do seu comércio, nomeadamente vários tipos de rolhas, de diversos calibres e qualidades, o que aconteceu durante largo período de tempo (3.º).
11.4 - A ré recebeu os bens constantes das diversas faturas, integrou-os no seu património e não pagou o preço respetivo na data do vencimento de cada uma das faturas (4.º).
11.5 - As rolhas que a autora forneceu á ré não correspondiam ao acordado entre as partes, pois sofriam de anomalias físicas e foram assinaladas com uma marca diferente da solicitada pela ré (artigo 49.º da oposiçaÞo).
11.6 - As rolhas em questão encontravam-se e encontram-se maioritariamente afetadas por fissuramentos, descontinuidades e perda de material; inclusão de materiais/objetos estranhos no corpo aglomerado; perda de conformaçaÞo cilíndrica do vedante; alteraçoÞes cromáticas á superfície do vedante e marcaçoÞes distintas (resposta conjunta aos artigos 50.º, 52.º e 53.º).
11.7 - O descrito em 11.5) e 11.6) inviabilizou e inviabiliza a sua utilizaçaÞo para o fim a que se destinam as rolhas – obturação de bebidas alcoólicas –, pois o seu desempenho como vedante revelou-se inexistente (54.º).
11.8 - Do supra exposto deu a ré conhecimento aÌ autora, solicitando que esta recolhesse as rolhas (55.º).
11.9 - O descrito em 11.5) e 11.6) levou a perda da encomenda, por parte da ré (56.º).
11.10 - A ré está sujeita a ser eventualmente demandada por terceiros, devido ao erro na marcaçaÞo das rolhas e ao seu estado (57.º).

12 - A demais matéria configura matéria de direito e/ou de natureza conclusiva.
III.II – Fundamentação de Direito
13 – Começa a apelante por invocar a nulidade da sentença, entendendo que os fundamentos estão em oposição com a decisão - artigo 615, n.º 1, alínea c), 1.ª parte, do Código de Processo Civil (CPC).

14 – O vício apontado constitui um “vício lógico da sentença: o juiz elegeu deliberadamente determinada fundamentação e seguiu um determinado raciocínio para extrair uma dada conclusão; só que esses fundamentos conduziriam logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a um resultado oposto a esse, isto é, existe contradição entre os fundamentos e a decisão”[2].

15 – Com todo o respeito, parece-nos que a apelante está longe de ter razão na invocação de nulidade que faz, e parece confundir a sentença que queria – e outros factos que a suportariam -, com a sentença proferida, tanto mais que insiste na alegação de ter demonstrado que tempestivamente (e no prazo de oito dias, como a própria acrescenta) denunciou a desconformidade ou defeito da mercadoria, quando a sentença recorrida não considera esse facto como provado e, em razão disso – como com clareza o diz – veio a julgar procedente a ação.

16 – Efetivamente, da leitura da sentença (“... face a ausência, por um lado, de qualquer facto concreto a datar o conhecimento, pela Ré, dos aludidos defeitos e a respetiva denúncia/reclamaçaÞo aí Autora e, por outro, aí evidência de que a oposiçaÞo foi apresentada muito depois do prazo de seis meses contado a partir da data da entrega das ditas rolhas (...) manifesto se apresenta que a Ré não fez a prova, que lhe competia, da tempestividade dos defeitos que ali alegou (e que parcialmente ficaram provados). Deste modo, outro desfecho não pode ter a argumentação que a Ré apresentou na sua oposiçaÞo que não seja a respetiva improcedência, por terem caducado todos os direitos que ela poderia invocar com base nos defeitos das ditas rolhas se os tivesse denunciado/reclamado tempestivamente. Em virtude do que fica exposto, fica a Ré obrigada ao pagamento do capital em dívida”) fica claro que não há qualquer contradição entre o fundamento da decisão – falta de denúncia tempestiva pelo comprador – e a própria decisão – condenação no pagamento da mercadoria.

17 – Se a sentença é a mais acertada aplicação do Direito ao caso é o que tentaremos refletir mais adiante; seja-o ou não, porém, tal mérito ou demérito não é confundível com o vício de nulidade apontado pela apelante e que, decididamente, não ocorre.

18 – Como oportunamente se deixou dito, a factualidade apurada no tribunal recorrido não foi objeto de impugnação. É certo que a apelante vem dizer que o tribunal devia ter considerado a data em que reclamou da mercadoria. Aliás, diz mesmo que o tribunal a considerou, e daí a contradição que já dissemos não existir. Não tem razão, porém.

19 – Efetivamente, essa pretensa data não consta dos factos, mas a apelante não recorre da sua omissão e a mesma nunca foi alegada, como decorre da Oposição da apelante.

20 – Daí resultaria, quase imediatamente, a improcedência do recurso, porquanto a recorrente entende que a sua razão deriva do facto de se ter provado que denunciou a desconformidade ou os defeitos no prazo de oito dias, o que não é certo, pois sequer o alegou.

21 – Mas o entendimento anterior, dá por adquirido – como a sentença proclama – que é ao comprador que cumpre provar a tempestividade da reclamação, ou melhor, o cumprimento do prazo de oito dias e não distingue entre desconformidade (para efeitos do artigo 471 do Código Comercial – Com.) e defeito (para efeitos do artigo 916 do Código Civil – CC), quando é certo que a apelante não deixa de sublinhar, na alínea “EE” das suas conclusões “que “Celebrado um contrato comercial de compra e venda por amostra (arts. 469 e 471 do Com), o ónus, que incumbe ao comprador, de invocar e demonstrar a desconformidade entre a mercadoria entregue e a amostra que serviu de base ao contrato não se confunde com a denuncia de defeitos, respeitando, antes, a verificação da condiçaÞo negativa a que se encontra subordinado o contrato – a condiçaÞo de a coisa ser conforme aí amostra –, da qual depende a consideraçaÞo do negócio como perfeito” – Ac. STJ 5539/04.6TVLSB.L2.S1, disponível em dgsi”.

22 – Ora, concordando com a citação precedente, e não estando em causa no recurso a natureza do contrato celebrado entre as partes, entendemos que é relevante, e que importa resolver, a questão do ónus de prova, uma vez que a procedência da ação, que a apelante contesta, deriva essencialmente de se ter considerado que (e citamos) “A Ré, contudo, na oposiçaÞo que deduziu, não alegou, em parte alguma, o ou os momentos em que a deteçaÞo dos defeitos das rolhas que referiu (e que, em parte, ficaram provados, conforme se deixou enunciado nos pontos 5) a 8) dos factos provados) se lhe tornou possível, a ou as datas em que os detetou e a ou as datas em que os reclamou perante a Autora”, tendo-se dito também que “a jurisprudência eì unânime e considera que cabe, naturalmente, ao comprador a prova sobre a tempestividade da denuncia dos defeitos”[3].

23 – Aqui chegados, devemos fazer uma distinção relativamente aos prazos de denúncia (do defeito ou da desconformidade) e também quanto ao ónus de prova.

24 - Esclarecendo que os “artigos 469.º e 470.º do Código Comercial regulam especialmente os contratos de compra e venda comercial não à vista”, Maria de Fátima Ribeiro[4] conclui (a págs. 32/33) o que ora se transcreve: “O artigo 469.º do Código Comercial determina que a venda se considera sempre feita “debaixo da condição de a coisa ser conforme à amostra ou à qualidade convencionada. E o artigo 471.º do mesmo Código dispõe que o negócio se torna perfeito se o comprador examinar as coisas no ato de entrega e não reclamar, ou se, não as examinando logo, não reclamar no prazo de oito dias a contar dessa data, por se considerar “não verificada” a desconformidade de que trata o artigo 469.º. A solução legal prevista no artigo 469.º do Código Comercial visa tutelar os interesses do comprador, que corre o risco de adquirir mercadoria que não tem presente – e espera que a mercadoria que lhe venha a ser entregue corresponda à mercadoria que ele compraria se pudesse tê-la tido perante si e examinado aquando da celebração do contrato. Por seu turno, o artigo 471.º do Código Comercial visa conciliar a proteção especial que a lei confere ao comprador da coisa não à vista com a tutela dos interesses do vendedor – para que este não suporte, durante um período muito alargado, a incerteza relativamente à transação em causa. Embora a doutrina discuta o alcance da estatuição do artigo 469.º, deve entender-se que a existência de desconformidade e a consequente reclamação do comprador não produz os efeitos da não verificação de uma condição suspensiva, mas antes de um incumprimento do contrato por parte do vendedor, por ser esse o único entendimento que acautela devidamente os interesses do mesmo. Também na situação regulada no artigo 470.º deve entender-se que existe negócio perfeito desde a respetiva conclusão, cabendo ao comprador, no caso de inconveniência, um direito potestativo extintivo. A desconformidade e a inconveniência a que se refere o artigo 471.º consiste em vícios identificáveis à vista, ou através de simples exame que um comprador, atuando com normal diligência (a exigível ao comerciante do ramo), realizaria ordinariamente se estivesse a comprar as coisas em causa à vista, pois a tutela que a lei lhe confere é precisamente a de o proteger do risco de ter celebrado um contrato de compra e venda de coisas não à vista. Deste modo, o disposto no artigo 471.º é estritamente aplicável à desconformidade entre a mercadoria comprada e a mercadoria entregue e à inconveniência – e não aos defeitos de que a mesma mercadoria possa padecer, a menos que se trate de defeitos tão aparentes que teriam impedido a compra à vista da mesma mercadoria” (sublinhado nosso).[5]

25 – Dos factos apurados (nomeadamente: As rolhas sofriam de anomalias físicas e foram assinaladas com uma marca diferente da solicitada; encontram-se maioritariamente afetadas por fissuramentos, descontinuidades e perda de material; inclusão de materiais/objetos estranhos no corpo aglomerado; perda de conformação cilíndrica do vedante; alteraçoÞes cromáticas aÌ superfície do vedante e marcaçoÞes distintas) podemos concluir que, ou estamos também, estamos perante defeitos e não propriamente perante uma desconformidade ou inconveniência, no sentido previsto pelo artigo 471 do C.Com, ressalvando o caso das marcações ou inscrições nas rolhas que mais parecem um caso de não conformidade, possível de ser imediatamente percecionado.

26 – É certo que a aplicação da lei civil altera o prazo de oito dias, mas também, para quem entenda que a tempestividade da reclamação no prazo de oito dias é ónus do comprador, o ónus de prova.

27 - Mas temos por certo que o próprio prazo de oito dias do artigo 471 do C.Com., visto como um prazo de caducidade, onera o comerciante vendedor, não o comprador, ou seja, a distinção que fizemos entre desconformidade ou inconveniência e defeito (tornando ainda mais claro que a caducidade da denúncia prevista no artigo 916, n.º 2 onerará necessariamente o vendedor) não afasta as regras especiais do artigo 471 do CCom., que aqui relevam, ou seja, de tudo decorre que, no caso presente, não está demonstrada a caducidade do direito de denúncia da apelante, nem sequer nos termos decorrentes do regime previsto no citado artigo 471 do CCom.

28 – E, por ser assim, havemos de concluir pela procedência do recurso. É certo que a apelante não invocou a exceção de não cumprimento do contrato, limitando-se na sua oposição a descrever defeitos da mercadoria, alegando que a apelada não cumpriu o contratado.

30 – Sucede que, como decorre do citado artigo 471 do CCom., ao não poder dizer-se que o comprador, que deu a conhecer ao vendedor a desconformidade e defeitos da coisa vendida, reclamou fora do prazo (pois não se apurou a intempestividade da sua reclamação) não pode afirmar-se a perfeição do contrato[6].

31 – Não verificada a condição de perfeição negocial, o vendedor não tem direito à contra prestação, no caso, ao preço dos bens (desconformes) que vendeu à recorrente.

32 – Daí, e com tal fundamento, há que revogar a sentença, pois procede a apelação.

33 – As custas do recurso são devidas pela apelada, atento o seu decaimento.
IV - Dispositivo
Pelas razões ditas, acorda-se na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto em julgar procedente a presente apelação e, em conformidade, revogando a sentença apelada, absolve-se o recorrente do pedido.

Custas pela recorrida.

Porto, 8.09.2020
José Eusébio Almeida
Carlos Gil
Carlos Querido
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[1] “A Ré, na sua oposição, começou por suscitar a questão de não ter sido notificada da documentação a que se refere o requerimento injuntivo. De seguida, invocou a ineptidão do requerimento injuntivo.Não lhe assiste razão.Em primeiro lugar, neste tipo de processos, as provas são apresentadas pelas partes em audiência de julgamento – cfr. o artigo 3.º, n.º 4 do Decreto-Lei no 269/98, de 1SET. Logo, a Autora não está obrigada a apresentar, nesta fase, qualquer documento. E, assim sendo, nenhum reparo há a fazer ao requerimento injuntivo que foi apresentado nos autos, termos em que o foi. Quanto à ineptidão (...) Da análise do requerimento injuntivo, consegue verificar-se que a Autora identifica no pedido minimamente o que originou o crédito que alega a seu favor e articula os factos correspondentes. Também se diga que a Ré compreendeu o alcance do pedido, deduzindo a competente e esclarecida oposição. Por outro lado, também não é de exigir um descritivo mais elaborado e profundo, no que toca à causa de pedir, atento o valor do pedido formulado e, mais a mais, tratando-se de um procedimento legal que visa a celeridade dos litígios comerciais de pequeno valor, sem grande complexidade – seja a nível dos articulados, seja a nível da respetiva sentença. Nessa medida, nos termos do disposto nos artigos 186, n.ºs 1 e 2, alínea a), 278, n.º 1, alínea b), 576, n.º 2, 577, alínea b), todos do Código de Processo Civil, julgo improcedente a arguida exceção de ineptidão do requerimento inicial”.
[2] Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, Volume II, 2.ª Edição, Almedina, 2019, pág. 436.
[3] Com efeito, como se diz no Ac. da Relação de Guimarães de 10.05.2018, dgsi (relator José Cravo) “a interpretação que se tem por correta para o art. 471º do Código Comercial, em conjugação com o que estabelece o art. 916º/1 e 2 do CC, aplicável ex vi da remissão do art. 3º daquele primeiro Código que manda aplicar subsidiariamente este segundo corpo de normas, é a de que o comprador tem 8 dias, após o conhecimento respectivo ou após o momento em que podia conhecê-los se fosse devidamente diligente, para denunciar os defeitos que detete na coisa adquirida no âmbito de um contrato de compra e venda comercial, reclamando deles junto do vendedor. No entanto, tal denúncia ou reclamação nunca pode exceder o prazo de seis meses, contado após a data da entrega/recepção da coisa. Cabendo ao comprador a prova sobre a tempestividade da denúncia dos defeitos, já que só em face de uma denúncia tempestiva poderá o comprador exercer junto do vendedor os direitos daí decorrentes: opor-lhe os vícios para obstar ao pagamento do preço da coisa, exigir a eliminação desses vícios e/ou exigir dele uma indemnização por prejuízos derivados dos mesmos”.
[4] “A desconformidade e o artigo 471.º do Código Comercial: âmbito e aplicação do regime”, in AB INSTANTIA, Ano I, n.º 2, Almedina, Abreu Advogados, págs. 13 e ss.
[5] Dizendo noutro passo, ainda na pág. 32, que se o defeito não pode ser detetado à primeira vista já não estamos perante uma desconformidade, mas perante um incumprimento do contrato, regulado nos artigos 913 e ss. do CC, porquanto “qualquer vício da mercadoria comprada não à vista que consista num defeito não identificável através de exame que tipicamente se realiza na compra à vista não é desconformidade ou inconveniência, nem defeito aparente – pelo que o regime aplicável será, no caso, aquele que resulta da lei civil”.
[6] José A. Engrácia Antunes, Direito dos Contratos Comerciais, Almedina, 2009, pág. 354.