Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
14097/15.5T8PRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JORGE SEABRA
Descritores: EXECUÇÃO DE SENTENÇA
OPOSIÇÃO À EXECUÇÃO E À PENHORA
INEXEQUIBILIDADE DO TÍTULO
INEXISTÊNCIA DA OBRIGAÇÃO
Nº do Documento: RP2018121814097/15.5T8PRT.P1
Data do Acordão: 12/18/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 686, FLS 120-135)
Área Temática: .
Sumário: I – Toda a execução tem por base um título que define o conteúdo e os limites da obrigação exequenda.
II – Sendo oferecido à execução como título executivo uma sentença condenatória, transitada em julgado, cuja obrigação nela incorporada se revele, por interpretação do título, segundo os cânones interpretativos previstos no art.º 236.º n.º1 do C.P.C., sujeita a posterior confirmação, será em razão do caso julgado formado pela sentença, de admitir ao executado discutir, em sede de embargos de executado, não só o montante, como ainda, a própria existência dessa obrigação.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 14097/15.5T8PRT-A.P1- Apelação
Origem: Porto – Juízo de Execução do Porto - J5.
Relator: Des. Jorge Seabra
1º Adjunto Des. Maria de Fátima Andrade
2º Adjunto Des. Fernanda Almeida
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Sumário (elaborado pelo Relator):
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Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto:
I. RELATÓRIO:
1. Na acção declarativa comum, sob a forma prevista (à data) no DL n.º 108/2006 – regime processual experimental –, que B... deduziu, a 3.04.2013, contra C..., D... e E..., enquanto ex-sócios da sociedade dissolvida e liquidada “F..., Lda. “, foi proferida, a 23.06.2014, sentença, transitada em julgado, de cujo dispositivo final consta o seguinte:
Pelo exposto, decide-se julgar a presente acção parcialmente procedente, por provada, e, em consequência, condenam-se os Réus C..., D... e E..., na qualidade de liquidatários da sociedade “F..., Lda.“, até ao limite do que receberam em partilha do activo societário, a quantia de € 8.913,39, acrescida de juros de mora à taxa de juros supletiva legal desde a data da citação, ocorrida em 3 de Maio de 2013, até integral pagamento.”
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2. Com base na aludida sentença, veio a ali Autora/ora exequente B... deduzir execução para pagamento de quantia certa contra os aludidos C..., D... e E..., exigindo o pagamento coercivo da citada quantia de € 8.913,39, acrescida de juros de mora, à taxa legal supletiva, desde a citação (3.05.2013) até integral pagamento, sendo os vencidos no valor de € 741,40, e, ainda, juros à taxa de 5% ao ano, a título de sanção pecuniária compulsória, nos termos do artigo 829º-A, do CC, a liquidar a final.
Mais, ainda, reclamou a exequente o pagamento das “custas de parte” e honorários da Mandatária, no valor de € 250, 00.
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3. Por apenso à execução, veio o executado C... deduzir oposição à execução por meio de embargos, nos quais pugnou pela procedência dessa oposição e consequente extinção da execução ou, caso assim não se entenda, a título subsidiário, pela procedência da oposição à penhora, ordenando-se o levantamento da penhora sobre o saldo bancário de € 5.000,00 e restringindo-se a penhora aos direitos de crédito que ele mesmo recebeu na partilha do activo societário da sociedade “F..., Lda.”.
Como fundamento, invocou o embargante/executado, no essencial, que no âmbito da dissolução e liquidação desta última sociedade nada recebeu em termos líquidos, salvo um direito de crédito no valor de € 10.135,00, crédito que não logrou sequer cobrar.
Por conseguinte, na sua perspectiva, e tal como se mostra deduzida a execução, o título exequendo não é exequível, nem a obrigação exequenda é exigível – cfr. artigo 729º, alíneas a) e e), do Código de Processo Civil).
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4. A exequente respondeu impugnando parte da factualidade alegada pelo embargante, pugnou pela exequibilidade do título dado à execução e exigibilidade da quantia reclamada, concluindo, assim, pela improcedência dos embargos.
Quanto à oposição à penhora pugnou também pela sua improcedência, uma vez que o valor penhorado responde, em seu ver, pela dívida exequenda.
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5. Frustrada a conciliação entre as partes, foi proferido despacho saneador, com dispensa de audiência prévia e dispensa de prolação de despacho de fixação de temas de prova.
Foi admitida a prova oferecida e realizada a audiência de julgamento, com observância do formalismo legal.
Após, foi proferida sentença que julgou os embargos parcialmente procedentes, declarando extinta a execução quanto ao montante de € 250,00, e determinando o seu prosseguimento quanto ao remanescente, “respondendo o embargante C... pela satisfação da quantia exequenda e legais acréscimos, até ao montante máximo de € 10.135,00.
Foi, ainda, julgada improcedente a oposição à penhora.
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6. Inconformado com a sentença, dela veio interpor recurso o embargante C..., oferecendo alegações e deduzindo, a final, as seguintes
CONCLUSÕES
I – A recorrente respeitosamente discorda da douta sentença recorrida.
II – A execução dos autos está limitada aos termos da sentença que lhe serve de título executivo.
III – Para o que agora interessa, essa sentença decidiu:
“Pelo exposto, decide-se julgar a presente acção parcialmente procedente, por provada, e, em consequência, condenar-se os Réus C...” (o agora recorrente); “D... e E... na qualidade de liquidatários da sociedade F..., Ldª, até ao limite do que receberam na partilha do activo societário, a quantia de €: 8.913,39, acrescida de juros de mora.
IV – Este limite não foi transposto para o requerimento executivo e para a respectiva exposição dos factos.
V - Por outro lado, o recorrente nada recebeu na partilha do activo societário que se traduzisse num valor liquido e palpável, recebeu apenas uma parte de um direito de crédito resultante de dívidas à sociedade que, na altura da sua dissolução, estavam a ser judicialmente cobradas.
VI - Ainda por outro lado e tal como consta na acta de dissolução, se esses valores fossem recuperados destinavam-se ao pagamento dos salários que a sociedade devia aos sócios gerentes. Sendo que não existia liquidez ou património que permitisse proceder a esse pagamento, e ao pagamento dos suprimentos e prestações complementares prestados à sociedade pelos sócios, entre eles o recorrente.
VII - O recorrente defende, que nada tendo recebido na partilha do activo societário, devem os embargos à execução ser julgados procedentes e a execução julgada extinta.
VIII - O recorrente discorda frontalmente da douta sentença recorrida, quando ela estabelece que independentemente de constituir um direito de crédito, e independentemente de esse direito ter ou não sido concretizado com a cobrança dos valores em causa, constando na acta de liquidação da sociedade que os sócios liquidatários receberam o tal activo de € 20.270,00, na proporção das respectivas quotas, é essa medida em que cada um deles pode ser executado nos presentes autos de execução.
IX – O recorrente entende que esta posição conduziria a situações de flagrante injustiça e repugnantes à luz do nosso ordenamento jurídico.
X – Entende também que é uma posição contrária à consagrada no n.º 1 do art.º 163.º do C. das Sociedades Comerciais.
XI – Com as certidões judiciais que juntou aos autos na sua petição inicial de embargos, o recorrente fez prova que nada recebeu em consequência dos direitos de créditos que foram partilhados na partilha do activo societário da sociedade.
XII – Neste âmbito, o recorrente também defende que esse ónus não lhe incumbia. Que incumbia à exequente a prova de que o executado recebeu algum valor efectivo na partilha do activo societário. Prova que ela não logrou realizar.
XIII – Pelo exposto, devem os embargos de executado ser julgados procedentes por provados e a execução ser julgada extinta.
XIV – Prevenindo a possibilidade de ser entendido que a matéria exposta não é suficiente para conduzir à procedência dos embargos de executado, subsidiariamente, o recorrente defende que ela deve conduzir à procedência da oposição à penhora, com todas as necessárias e legais consequências, nomeadamente com a estipulação de que apenas podem ser penhorados os direitos de crédito partilhados.
XV – Ao decidir como decidiu, a douta sentença recorrida violou o disposto no n.º 1 do art.º 163.º do C. das Sociedades Comerciais e no n.º 1 do art.º 342.º do C. Civil.
Termos em que (…), deve ser concedido provimento ao presente recurso, e, em consequência, ser a douta sentença recorrida substituída douto acórdão que julgue procedentes os embargos de executado apresentados e extinta a execução, ou caso assim não se entenda, que julgue procedente a oposição à penhora, com a estipulação de que apenas podem ser penhorados os direitos de crédito.
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7. A apelada ofereceu contra-alegações nas quais pugnou pela improcedência do recurso e pela consequente manutenção da sentença recorrida.
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8. Foram cumpridos os vistos legais.
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II. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO:
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. artigos 635º, nº 3, e 639º, n.ºs 1 e 2, do novo Código de Processo Civil, na redacção emergente da Lei n.º 41/2013 de 26.06 [e doravante designado apenas por CPC].
Por outro lado, ainda, sem prejuízo das matérias de conhecimento oficioso, o tribunal de recurso não pode conhecer de questões não antes suscitadas pelas partes em 1ª instância e, por isso, não apreciadas na decisão proferida, sendo que a instância recursiva, tal como desenhada no sistema de recursos vigente no nosso Código de Processo Civil, não se destina à prolação de novas decisões judiciais, mas ao reexame ou à reapreciação pela instância hierarquicamente superior das decisões proferidas pelas instâncias, em função das questões convocadas pelas partes e dos fundamentos da própria decisão recorrida. [1]
Por conseguinte, as questões a decidir no presente recurso são as seguintes:
i. Inexequibilidade do título executivo; Incerteza, inexigibilidade ou iliquidez da obrigação exequenda;
ii. Inexistência da obrigação exequenda;
ii. Da oposição à penhora: - os bens que respondem pela obrigação exequenda.
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III. FUNDAMENTAÇÃO de FACTO:
O tribunal de 1ª instância julgou provados os seguintes factos:
1. Por sentença proferida a 23.06.2014 e transitada em julgado, proferida na acção declarativa nº 2240/13.3TBMTS que correu termos no extinto 1º Juízo Cível de Matosinhos, os executados, incluindo o embargante C... foram condenados na qualidade de liquidatários da sociedade “F..., Lda.”, até ao montantes que receberam na partilha do activo societário (cfr. art. 162º do Código das Sociedades Comerciais), a pagar à autora (aqui exequente/embargada) a quantia de € 6.481,66, referente ao IVA cobrado indevidamente, e a quantia de € 2.431,73, referente aos juros remuneratórios do empréstimo contraído, tudo acrescido de juros vencidos e vincendos, desde a data da citação até efectivo e integral pagamento.
2. Os sócios da sociedade “F..., Lda.” – os aqui executados - deliberaram, por unanimidade, em 21 de Janeiro de 2011, em Assembleia geral que levaram a cabo nessa data – cfr. certidão de fls. 11/13, que aqui se dá por reproduzida – na parte relevante:
«E tendo em atenção que a sociedade não tem quaisquer dívidas a terceiros, apresentando exclusivamente a dívida dos salários aos sócios-gerentes, os sócios deliberaram igualmente por unanimidade e ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 147º do Código das Sociedades Comerciais, proceder à partilha imediata dos haveres sociais, tendo por base os valores constantes do balanço de vinte de Janeiro de dois mil e onze, elaborado para o efeito, sendo o activo restante no valor de setenta e cinco mil oitocentos e trinta e cinco euros e catorze cêntimos, composto por:
--- Dívidas a receber dos clientes:
- G..., Lda. no montante de 9.150,00 euros, capital em divida registada na contabilidade, valor esse reclamado judicialmente no processo n. 1085/10.7TBMTS, que corre termos no 6º Juízo Cível de Matosinhos;
- H..., Unipessoal, Lda., no montante de 4.020,00 euros, capital em dívida registado na contabilidade, valor esse reclamado judicialmente no Processo n.º 1083/10.0TBMTS, que corre termos no 6º Juízo Cível de Matosinhos;
- I..., Unipessoal, Lda., no montante de 7. 100 euros, valor esse reclamado judicialmente no processo 618/09.6PBMTS, que corre termos no 2º Juízo Criminal de Matosinhos.
----- Assim, os sócios deliberaram, por unanimidade, partilhar o mencionado valor do activo de vinte mil duzentos e setenta euros por cada um dos sócios, na proporção das respectivas quotas, cabendo ao sócio D... cinco mil e sessenta e sete euros e cinquenta cêntimos, ao sócio C... dez mil cento e trinta e cinco cêntimos [rectius, dez mil cento e trinta e cinco euros] e à sócia E... cinco mil e sessenta sete euros e cinquenta cêntimos para pagamento dos salários que a Sociedade deve aos respectivos sócios-gerentes.
------ Foi deliberado por unanimidade pelos sócios em relação aos reembolsos dos suprimentos e das prestações suplementares como a sociedade não apresenta património líquido para o reembolso a renúncia ao reembolso dos mesmos.
------- Foi ainda deliberado pela unanimidade dos sócios que, e nos termos do artigo 162º e 164º do Código das Sociedades Comerciais e, porque haverá montantes a partilhar supervenientemente por força das referidas acções pendentes que caberá aos sócios os seguintes créditos:
- D..., cinco mil e sessenta e sete euros e cinquenta cêntimos.------------------------------------------------
- C..., dez mil cento e trinta e cinco cêntimos [rectius, dez mil cento e trinta e cinco euros]. ------
- E..., cinco mil e sessenta e sete euros e cinquenta cêntimos.»
3. Na sequência dessa deliberação, mediante a apresentação nº .. de 2011/02/09 foi lavrado o registo da dissolução da sociedade e encerramento da liquidação, e na mesma data oficiosamente cancelada a matrícula, que estava registada na 3ª Conservatória do Registo Comercial do Porto com o nº ..........
4. Correu termos pelo Juiz 8 da então denominada 1ª Secção de Execução da Comarca do Porto um processo de execução em que foi exequente a sociedade F..., Lda. e executada a sociedade G..., Lda., em que a quantia em dívida era de 11.011,54€, que foi declarada extinta nos termos do n.º 1 do artigo 281º do NCPC.
5. Correu termos pelo extinto 6º Juízo Cível de Matosinhos um processo de execução em que foi exequente a sociedade F..., Lda. e executada a sociedade H..., Lda., em que a quantia em dívida era de 4.821,25€, que foi declarada extinta face à declaração de insolvência da sociedade executada.
6. Correram termos pela extinta 2ª Secção dos Serviços do Ministério Público da Maia uns autos de inquérito com o nº 618/09.PBMTS, pelo crime de burla qualificada, em que constava como ofendida a sociedade F..., Lda. e arguida a sociedade I..., Unipessoal, Lda. e outros, e no âmbito dos quais, com referência à data de 06/11/2015, a ofendida não havia sido ressarcida.
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IV. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA:
Fixado o objecto do recurso e o quadro factual apurado, cumpre decidir.
Todavia, a título prévio e para evitar quaisquer equívocos, cabe deixar algumas notas sobre outras questões que se mostram definitivamente dirimidas.
A primeira nota prévia é que a sentença proferida nos presentes embargos de executado e que constitui o tema do presente recurso refere-se apenas e só ao embargante/executado C....
Como assim, embora se depreenda dos termos das contra-alegações da apelada que foi proferida uma outra sentença nos embargos de executado deduzidos pelos demais executados D... e E... (apenso B), certo é que o presente recurso versa apenas quanto à sentença proferida no apenso A e atinente ao co-executado C... e, consequentemente, o acórdão a proferir nestes autos de recurso tem apenas e só por objecto as questões suscitadas pelo embargante C... nas suas alegações e suscitadas pela apelada em resposta a tal recurso nas suas contra-alegações.
Dito de outra forma, o “thema decindedum” neste recurso reconduz-se às questões suscitadas pelo apelante C... e às questões suscitadas pela apelada B..., respectivamente, nas alegações e nas contra-alegações.
A segunda nota é a de que não constitui objecto do recurso a matéria de facto julgada como provada e não provada na sentença recorrida, pois que, como emerge das conclusões do recurso do apelante C..., não faz parte do dissídio manifestado pelo mesmo esse julgamento, o que, desde logo, se constata pela simples circunstância de não ter sido dada qualquer observância aos ónus previstos no artigo 640º, n.º 1, als. a), b) e c), do CPC.
Sendo assim, importa reter que a factualidade a atender para efeitos decisórios é a que consta da fundamentação de facto da sentença recorrida.
A terceira nota é que, como se assinalou no relatório e emerge do dispositivo da sentença proferida nestes embargos de executado, a sentença contém vários segmentos decisórios, sendo que alguns são desfavoráveis à apelada B..., ou seja, segmentos em que a mesma ficou vencida.
De facto, ali se julgou extinta a execução quanto ao montante reclamado de € 250,00 [a título de honorários da Mandatária da exequente] e se fixou que a responsabilidade do embargante C... perante a exequente terá como limite a quantia de € 10.135,00 [dez mil cento e trinta e cinco cêntimos]; Na verdade, embora na sentença se faça referência ao valor de “ dez mil cento e trinta e cinco cêntimos “ (sic), é evidente que se trata de um ostensivo lapso de escrita (emergente já do teor da acta de fls. 11/13 dos autos), como, aliás, reconhece o próprio embargante no artigo 12º da sua petição de embargos quando ali alega que lhe coube um direito de crédito avaliado no valor de € 10.135,00 (embora nada tenha logrado cobrar desse mesmo crédito).
Ora, como dizíamos, quanto a estes segmentos decisórios, não tendo os mesmos merecido recurso da parte vencida (a exequente B...), tal significa que os mesmos extravasam o objecto do presente recurso, não havendo que deles conhecer.
A questão central reconduz-se, assim, a saber se a execução deve ser julgada extinta, nada tendo a exequente/ora apelada a receber do executado/embargante C... ou, a assim não se entender, se, de todo o modo, deve sempre proceder a oposição à penhora, sendo levantada a penhora sobre o saldo bancário de € 5.000,00 (titulado pelo embargante C...) e restringindo-se a penhora ao direito de crédito que o mesmo recebeu na partilha do activo societário da extinta sociedade “F..., Lda.”.
Trata-se, pois, das mesmas questões que já tinham sido suscitadas no âmbito da petição de embargos deduzida pelo executado C..., ora apelante.
Feitas estas referências prévias, importa, pois, analisar a fundamentação da oposição deduzida pelo embargante, começando pelas questões atinentes à inexequibilidade do título, à certeza, liquidez e exigibilidade.
A construção empreendida pelo embargante na sua oposição por embargos é, nos seus traços essenciais, a seguinte:
a)- o embargante foi condenado na acção que deu origem à sentença (transitada em julgado) dada à execução no pagamento à Autora (ora exequente) da quantia de € 8.913,39, acrescida de juros de mora, à taxa legal supletiva, desde 3.05.2013 e até integral pagamento, até ao limite do que recebeu na partilha do activo societário da sociedade extinta e liquidada “F..., Lda.”;
b)- apesar desta condenação, o embargante nada recebeu no âmbito dessa partilha; assim, nada deve à exequente, pois que nada recebeu;
c)- de todo o modo, a entender-se que recebeu algo, esse algo foi um direito de crédito avaliado no valor de € 10.315,00; assim, a penhora não deve recair sobre a quantia por si detida na conta bancária penhorada nos autos de execução (€ 5.000,00), mas, quando muito, sobre esse direito crédito.
A partir desta argumentação, sustenta o embargante que a sentença não é exequível, pelo menos, tal qual ela foi dada à execução, que a obrigação não é certa, líquida e exigível.
Mais, ainda, caso assim não se entenda, invoca também o embargante que a penhora não pode incidir sobre o referido saldo bancário, mas apenas sobre o crédito que lhe foi atribuído na partilha do activo societário da extinta “F..., Lda.”.
Vejamos.
Preceitua o artigo 10º, n.º 5, do CPC, que toda a execução tem por base um título, o qual determina o fim e os limites da acção executiva; Com efeito, a acção executiva só pode ser intentada se tiver por base um título executivo, o qual, além de documentar os factos jurídicos que constituem a causa de pedir da pretensão deduzida pelo exequente, confere igualmente o grau de certeza necessário para que sejam aplicadas medidas coercivas contra o executado.
Neste sentido, como refere A. Abrantes Geraldes, o título executivo consiste no meio probatório da relação jurídica que constitui a génese do vínculo obrigacional que liga o exequente ao executado. [2]
Em suma, uma coisa é o título executivo, enquanto documento (materialização ou corporização de um direito ou pretensão exequível) e outra a causa de pedir da execução, reconduzindo-se esta ao facto constitutivo da obrigação exequenda, ou, dito de outra forma, aos “factos de aquisição do direito ou poder a uma prestação.” [3]
Com efeito, como se refere no AC STJ de 10.12.2013, “Na execução a causa de pedir não é o próprio título executivo, mas antes os factos constitutivos da obrigação exequenda reflectidos naquele …”, ou, ainda, como também se refere no AC RC de 25.01.2011 “Na acção executiva a causa de pedir é, em rigor, o facto jurídico fonte da obrigação accionada, não sendo o título mais do que a especial condição (probatória, necessária e suficiente) da possibilidade de recurso imediato a tal espécie de acções, enquanto base da presunção da existência do correspondente direito.” [4]
Por conseguinte, o título executivo, além de ser condição necessária para a instauração da execução (pois que não existe execução sem que a mesma se baseie em algum dos títulos executivos taxativamente [5] previstos no artigo 703º, do CPC) é, ainda, condição suficiente da acção executiva.
De facto, pela força probatória especial de que está investido, o título executivo torna dispensável o recurso ao processo declaratório ou a um novo processo declaratório para certificar a existência do direito, ou seja, legitima o exercício da acção executiva de forma abstracta; Por outras palavras, o título executivo apresenta, à partida, uma eficácia incondicional, na medida em que permite dar início à acção executiva sem necessidade de demonstração prévia da existência do direito e apenas encontra limites em face da eventual iniciativa do executado, ao qual a lei reconhece, em função de determinados fundamentos (que variam em função do tipo de título e da certeza que o mesmo representa quanto à existência da causa debendi), a faculdade de provocar uma apreciação jurisdicional acerca da existência do direito de que o credor se arroga titular ou da possibilidade de este mover uma acção executiva, com agressão do património do devedor.
Na verdade, como refere A. Varela, op. cit., pág. 79, provando o título a constituição ou a existência da obrigação e do direito subjectivo correspondente, o título prova, ainda, em princípio, até prova em contrário, a violação da obrigação, visto ser ao devedor que incumbe alegar e provar os factos modificativos, impeditivos ou extintivos da obrigação (artigo 342º, n.º 2 do Código Civil e artigos 729º, 730º e 731º, do CPC).
Dito de outra forma, a lei presume, atenta a especial força probatória dos títulos executivos, maxime a sentença condenatória, a constituição da obrigação, dispensando a instauração de uma prévia acção declarativa ou de uma nova acção declarativa para certificar a existência da obrigação, deixando já ao impulso do executado o afastamento dessa presunção, através da demonstração das respectivas causas modificativas, impeditivas ou extintivas.
Feitas estas considerações quanto à noção, natureza e função do título executivo, cumpre agora conhecer dos fundamentos da oposição deduzida pelo embargante, não deixando de assinalar que a presente execução se funda em sentença proferida em acção de condenação, qual seja a acção que correu termos entre a ora exequente e os ora executados, estes últimos na qualidade de ex-sócios da sociedade “F...“, sociedade esta que foi dissolvida e liquidada, conforme acta lavrada a 21.01.2011 (vide documento a fls. 11/13 dos autos), facto que foi levado a registo a 09.02.2011 (vide certidão do registo comercial a fls. 62/66 destes autos).
Em primeiro lugar, sustenta o embargante que a sentença em apreço é inexequível (artigo 729º, al. a), do CPC).
As condições de exequibilidade da sentença condenatória [6] estão previstas no artigo 704º, n.º 1, do CPC.
Assim, estipula este n.º 1 do artigo 704º que “A sentença só constitui título executivo depois do trânsito em julgado, salvo se o recurso contra ela interposto tiver efeito meramente devolutivo.”
Por conseguinte, este preceito consagra o princípio de que a sentença condenatória só constitui título executivo – sendo, pois, susceptível de ser dada à execução - após o respectivo trânsito em julgado. Todavia, mesmo não transitando em julgado, a sentença pode constituir título executivo se o recurso interposto contra a mesma tiver efeito meramente devolutivo, como, aliás, é hoje a regra – cfr. artigo 647º, n.º 1, do CPC.
No caso em apreço, atento o exposto, a sentença proferida é manifestamente exequível; De facto, a mesma mostra-se transitada em julgado, sendo certo que dela não foi interposto qualquer recurso no prazo legal.
Assim sendo, improcede liminarmente este fundamento de oposição convocado pelo apelante.
Em segundo lugar, sustenta o apelante que a obrigação exequenda é incerta, ilíquida e inexigível.
Como é consabido, a obrigação exequenda deve ser exigível, certa e líquida (artigo 713º, 724º, n.º 1 al. h), 725º, n.º 1 al. c) e 729º, al. e), todos do CPC).
A exigibilidade da obrigação é uma condição relativa à justificação da execução, pois que, se a obrigação ainda não é exigível, não se justifica proceder à realização coactiva da prestação; a certeza e a liquidação são condições respeitantes à possibilidade da execução, dado que sem que se mostre determinada e quantificada a prestação devida, não é possível proceder à sua realização coactiva. [7]
Relativamente à exigibilidade, diz-se exigível a obrigação que está vencida ou que se vence com a citação do executado e em relação à qual o credor não se encontra em mora na aceitação da prestação ou quanto à realização de uma contraprestação. [8]
Como refere Rui Pinto, op. cit., pág. 233, “a obrigação é exigível quando deva ser cumprida de modo imediato e incondicional após interpelação ao devedor. Está nessas condições a obrigação que, à data da propositura da execução, se encontre vencida ou se vença mediante interpelação, ainda que judicial, não estando dependente de contraprestação, nem estando o credor em mora.”
Ora, no caso em apreço, a obrigação de pagamento a cargo dos RR./ora executados da quantia assinalada na sentença proferida na acção declarativa que correu termos entre a Autora (credora) e os RR. (devedores) mostra-se plenamente vencida, na estrita medida em que a sua exigibilidade não depende de nenhuma outra interpelação, nem está dependente de qualquer contraprestação da credora, sendo certo que, não tendo existido pagamento de tal quantia ou sequer o oferecimento da mesma, é patente que inexiste recusa ou mora do credor/exequente quanto ao recebimento da mesma.
Por conseguinte, no caso dos autos, com o devido respeito, não é possível defender-se que, em face do título, qual seja, a sentença condenatória proferida e transitada em julgado, a obrigação exequenda não se mostra vencida e, portanto, não é exigível.
O vencimento da obrigação, no sentido da sua exigibilidade por parte da credora/exequente em face dos executados, não depende de nenhum acto ulterior, sendo, outrossim, bastante, para o efeito, o comando de pagamento dirigido aos executados e ínsito no dispositivo da sentença condenatória proferida.
E também não colhe, salvo o devido respeito por opinião em contrário, sustentar-se que a obrigação não é certa ou ilíquida.
É certa a obrigação cuja prestação se encontra qualitativamente determinada (ainda que esteja por liquidar ou por individualizar).
Como assim, não é certa aquela prestação em que a determinação (ou escolha) da prestação, entre uma pluralidade, está por fazer (artigo 400º do Código Civil).
Tal acontece nos casos de obrigação alternativa (em que o devedor está obrigado a efectuar uma de duas ou mais prestações, segundo escolha a efectuar – artigo 543º do Código Civil) e nos casos de obrigação genérica de objecto qualitativamente indeterminado (o devedor está obrigado a prestar determinada quantidade de um género que contém duas ou mais espécies diferentes – artigo 539º do Código Civil). [9]
Por outro lado, como é consabido, as obrigações ilíquidas são aquelas cuja quantia não está determinada, sendo mister, antes da execução do património do devedor, determinar a quantia devida, isto é a quantia que deve ser prestada. [10]
Ora, sendo assim, é, em nosso ver, patente que, reportando-se a obrigação exequenda ao pagamento da “quantia de 8. 913, 39, acrescida de juros de mora à taxa de juros supletiva legal desde a data da citação, ocorrida em 3 de Maio de 2013, até integral pagamento”, a obrigação nela consignada e a executar é certa e líquida, não carecendo essa prestação a realizar por parte dos devedores de nenhum outro acertamento prévio ou ulterior, salvo, naturalmente, quanto aos juros de mora vencidos até à data da entrada da petição inicial executiva, liquidação que deve ser efectuada pelo exequente – pois que depende de simples cálculo matemático – e quanto aos demais juros de mora vencidos e à sanção pecuniária compulsória devida, liquidação esta que, por seu turno, deve ser efectuada pelo agente de execução, em conformidade com o disposto no artigo 716º, n.ºs 1, 2 e 3 do CPC.
Destarte, em resumo, não só a sentença dada em execução é título executivo exequível, como, ainda, a obrigação exequenda nela plasmada a cargo dos executados é certa, líquida e exigível, improcedendo, pois, nesta parte, os fundamentos invocados pelo apelante em oposição à execução.
Dito isto, em nosso ver, a solução do litígio ter-se-á de colocar sobre outros termos e, em particular, quanto à existência da própria obrigação exequenda incorporada no título, ou seja, se a exequente possui título, entendido este em sentido substantivo, para exigir do executado C... a quantia que do mesmo reclama na presente execução.
Na verdade, como resulta dos embargos de executado deduzidos e das conclusões do presente recurso, o embargante sustenta que não recebeu quaisquer bens ou valores do património ou activo da sociedade liquidada e extinta e, consequentemente, à luz do próprio título executivo dado à execução (sentença), nada lhe pode ser exigido, sendo certo que a sentença consignou expressamente no seu dispositivo que o montante a pagar à Autora/ora exequente dependeria do que tivesse sido por si auferido na partilha do activo societário.
Dito de outra forma, excepcionalmente, a obrigação exequenda teria que ser definida em momento ulterior e esta só existiria se e na medida do que o réu/ora executado, demandado na sua qualidade de ex-sócio da sociedade liquidada e extinta, tivesse obtido na partilha do activo societário da dita sociedade.
O problema é, nesta perspectiva, segundo cremos, um problema de interpretação da sentença e, consequentemente, do caso julgado que dela emerge (e a que este Tribunal está vinculado), pois que, como é patente em face da sentença proferida nos autos de acção declarativa, a mesma sentença não se limitou estritamente e sem mais, como pretende a exequente e ora apelada, a condenar os ali réus no pagamento da quantia de € 8.913,39, acrescida de juros de mora desde a data da citação e até integral pagamento.
Nessa perspectiva, dir-se-á que, de facto, como invoca o apelante, o requerimento executivo deduzido pela exequente não reproduz de forma minimamente fiel o que consta do dispositivo da sentença proferida nos autos de acção declarativa, omitindo por completo qualquer referência à condição e limite previstos na sentença e atinente ao que os ex-sócios receberam na partilha do activo societário, tratando e interpretando, pois, a obrigação exequenda reconhecida no título (título que define o conteúdo e os limites da execução) como se aquela condição e limite nela consignado pura e simplesmente não existisse…
Impõe-se, assim, em nosso ver, interpretar a sentença proferida nos seus precisos termos e sem deixar de ponderar e ter presente que não nos incumbe (nem nos seria lícito, em razão do caso julgado formado com o trânsito de tal sentença) formular um qualquer juízo sobre a bondade ou mérito de tal sentença, que se nos impõe.
No âmbito da interpretação da sentença, vem sendo posição recorrente do Supremo Tribunal de Justiça que o acto decisório, como acto jurídico receptício, deve ser interpretado segundo os critérios interpretativos definidos no artigo 236.º do Cód. Civil, ex vi do disposto no artigo 295.º do Cód. Civil, o que significa que a decisão judicial deve ser interpretada de acordo com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do seu contexto, ou seja, segundo a doutrina da impressão do declaratário, consagrada no citado artigo 236º. [11]
Como se refere, nesta matéria, com plena aplicação ao caso, no AC STJ de 4.10.2018 [12] “De acordo com o artigo 621.º do Cód. Proc. Civil, a sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga, sendo «pelo próprio teor da decisão que se mede a extensão objectiva do caso julgado», ou seja, o seu alcance (do caso julgado) há-de ser encontrado através da interpretação da sentença, já que, «constituindo esta caso julgado nos precisos limites e termos em que julga, há que determinar, em cada caso concreto, qual foi o verdadeiro sentido e alcance do julgamento, tarefa que, como é sabido, não é fácil, nem isenta de dúvidas».
(…)
Partindo da caracterização da decisão judicial como acto jurídico receptício, o Supremo Tribunal de Justiça tem reiterado o entendimento de que à interpretação da sentença são aplicáveis os critérios interpretativos definidos no artigo 236.º do Cód. Civil, ex vi do disposto no artigo 295.º do Cód. Civil, o que significa que a decisão judicial deve ser interpretada de acordo com o sentido que o declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do seu contexto. Contudo, não constituindo a sentença um verdadeiro negócio jurídico, haverá que ter sempre em conta as especificidades próprias dos actos jurisdicionais já que «a decisão não traduz uma declaração pessoal da vontade do julgador, mas antes uma injunção aplicativa do direito (a vontade da lei), correspondente ao resultado de uma operação intelectual de aplicação do direito objectivo a uma situação de facto que se apurou», pelo que, no desenvolvimento da descrita tarefa interpretativa, não importa apurar ou reconstruir a mens judicis, mas antes descortinar o sentido perceptivo que se evidencia no texto do acto processual, a determinação da estatuição nele presente ou, dito de outro modo, o seu sentido juridicamente relevante.
Para além disso, há que ter em consideração que o declarante – o prolator – se situa numa área específica técnico-jurídica e se dirige a declaratários da mesma área especializada e daí que o declaratário normal deva ser encontrado dentro desses parâmetros. No fundo, «trata-se de uma declaração de um ou vários juristas (magistrados) – situados numa específica área técnico-jurídica, investidos na função de aplicadores da lei (que, por sua vez, estão obrigados a interpretar em conformidade com as regras estabelecidas no art. 9.º do CC) – dirigida a outros juristas, também técnicos do direito (os advogados, enquanto representantes das partes)».
Assim, o sentido juridicamente relevante há-de buscar-se, primacialmente, através da análise do segmento decisório (i.e. sobre a decisão em sentido estrito), «não estando, porém, afastada a possibilidade de o intérprete se socorrer, na actividade interpretativa, da motivação da decisão, posto que esta se encontra sempre elaborada por referência a determinados fundamentos de facto e de direito, dos quais constitui silogismo». Acresce que na operação interpretativa a levar a cabo há que atentar ainda que - sendo a decisão judicial um acto formal, amplamente regulamentado pela lei de processo e implicando uma «objectivação» da composição dos interesses nela contida – se deve ter por certo que a declaração não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso.
Com efeito, conforme vem sendo reiterado pelo Supremo Tribunal de Justiça, este princípio, estabelecido para os negócios formais (artigo 238.º do Cód. Civil), que vale igualmente para a interpretação dos actos normativos (artigo 9.º, n.º 2, do CC), tem identicamente, por razões de certeza e de segurança jurídica, de valer igualmente para a fixação do sentido do comando jurídico concreto ínsito na decisão judicial (cfr. acórdão do STJ de 03-02-2011 já citado, que aqui se vem seguindo de perto). “
Delimitados, assim, à luz da jurisprudência do nosso mais Alto Tribunal, os termos aplicáveis à interpretação da sentença que ora constitui título executivo, dela resulta, na perspectiva de um declaratário normalmente atento e sagaz, em particular de um declaratário com formação jurídica, em face da sua fundamentação e do próprio segmento dispositivo final, que nela pretendeu o julgador (mal ou bem é questão que extravasa o âmbito do poderes de reapreciação desta instância, atento o caso julgado formado pela sentença) salvaguardar o posterior apuramento dos montantes que os ali RR., enquanto ex-sócios da sociedade “F..., Lda.”, receberam no âmbito da partilha do activo societário desta última.
Com efeito, para além de na fundamentação da sentença proferida na acção declarativa (que por nós foi analisada por consulta aos autos) nenhuma referência ou pronúncia existir quanto à questão dos valores que foram recebidos pelos ex-sócios (ali RR.) na partilha do activo societário (abordando-se apenas a temática dos pressupostos da responsabilidade civil da sociedade extinta e dos danos causados pelos factos ilícitos invocados) – sinal, pois, de que essa matéria não foi dirimida na sentença e, logicamente, não faz parte do respectivo caso julgado da sentença -, certo é, ainda, que, de forma expressa, no dispositivo final se previu que a condenação ali decretada teria como fundamento e medida o valor que os ex-sócios receberam na partilha do activo societário.
De facto, na fundamentação jurídica da dita sentença escreveu-se, a dado passo, já na sua parte final, o seguinte: “Tudo exposto, deverão os RR ser condenados, na qualidade de liquidatários da sociedade F..., Lda.”, até ao montante que receberam na partilha do activo societário (cfr. Art. 162º do Código das Sociedades Comerciais), a pagar à Autora a quantia de € 6.481,66, referente ao IVA cobrado indevidamente, e a quantia de € 2.431,73, referente aos juros remuneratórios do empréstimo contraído, tudo acrescido de juros vencidos e vincendos, desde a data da citação e até efectivo e integral pagamento.”
Por conseguinte, como já antes se referiu, a condenação dos RR. nos valores dos danos sofridos pela Autora dependia, segundo o raciocínio expendido pelo julgador tal qual ele resulta da interpretação do acto decisório, dos valores que cada um dos RR., enquanto liquidatários da sociedade em causa, teria recebido na distribuição/partilha do activo societário, sendo certo que, à luz dos elementos disponíveis nos autos de acção declarativa, não existiam (pois não foram alegados) elementos para determinar o valor que cada um dos sócios recebeu desse activo.
Ora, sendo assim, a questão, tal como a mesma resulta do título executivo e dos presentes embargos executado é, ao fim e ao cabo, saber-se se, de facto, o executado C... recebeu na partilha do activo societário algum valor e, em caso afirmativo, qual foi esse valor, sendo certo que, como se expôs, a obrigação exequenda, tal qual como definida pelo título executivo, depende desse elemento (que não foi apurado na acção declarativa).
Vejamos.
Segundo o disposto no artigo 163º, n.º 1, do CSC, “Encerrada a liquidação e extinta a sociedade, os antigos sócios respondem pelo passivo social não satisfeito ou acautelado, até ao montante que receberam na partilha, sem prejuízo do disposto quanto a sócios de responsabilidade ilimitada.” (sublinhado nosso)
O fundamento da solução legalmente consagrada quanto à responsabilidade dos ex-sócios pelos créditos sociais não satisfeitos radica numa ideia de sucessão na titularidade da relação jurídica, embora de âmbito limitado pela extensão do direito de cada sócio relativamente ao antigo património social.
Como refere Raúl Ventura, os sócios têm direito ao saldo de liquidação distribuído pela partilha do activo da sociedade; mas se houverem recebido mais do que era o seu direito, porque havia débitos sociais insatisfeitos, terão de ser eles a satisfazê-los, agora, à custa do valor dos bens que receberam.
Assim se compreende que a responsabilidade de cada sócio pelo passivo superveniente (isto é, o passivo que vem a ser reconhecido como existente após a extinção da sociedade) tenha como limite o montante que recebeu em partilha. [13]

Por isso, das duas, uma: - ou existe activo e ele foi distribuído – quando não o devia ter sido, atento o débito social não satisfeito -, respondendo, em tal circunstancialismo, cada um dos sócios pelo valor que, na partilha do activo, lhe coube; - ou não existe activo e, logicamente, não houve distribuição de quaisquer valores, caso em que o credor social não verá o seu crédito ser satisfeito à custa do património pessoal dos ex-sócios, correndo o risco (que, infelizmente, ocorre com frequência, como bem sabemos) de o devedor (pessoa singular ou a sociedade) não possuir bens ou activo que lhe permitam satisfazer esse crédito.
De facto, como resulta de forma clara do preceituado no citado artigo 163º do CSC, a responsabilidade dos ex-sócios e liquidatários só existe na medida em que da dissolução da sociedade tenha resultado um activo, isto é, um resultado positivo, e que este tenha sido distribuído pelos sócios, com o consequente incremento do seu património pessoal, sendo que a responsabilidade de cada um dos ex-sócios afere-se, precisamente, na estrita medida do incremento que cada um auferiu através da partilha.
Dito de outra forma, talvez mais clara: se na partilha o ex-sócio beneficiou de 500 (em valor ou em bens), a sua responsabilidade perante o credor social será 500, mesmo que a dívida não satisfeita ascenda a 2000; Se o ex-sócio nada recebeu na partilha, por inexistir um saldo positivo a distribuir, nada tem a pagar à custa do seu património pessoal, seja qual for o valor da dívida não satisfeita.
E esta medida da responsabilidade dos ex-sócios é, em nosso ver, perfeitamente certa e justa.
De facto, se a sociedade extinta e liquidada possuía débitos sociais, o correcto (e o justo) é que, primeiro, sejam satisfeitos os credores sociais e que só o eventual remanescente (se existir) seja, depois, distribuído pelos ex-sócios.
Ao invés, se a sociedade extinta e liquidada, não obstante possua débitos sociais, não possui activo que lhe permita responder pelos mesmos, à partida, e salvo outras hipóteses de responsabilidade dos ex-sócios (que não estão aqui em equação), o património pessoal dos sócios não responde por esses débitos, sendo certo que, como é pacífico, regra geral, o património societário não se confunde com o património pessoal dos sócios.
Ora, neste contexto, o que emerge da factualidade provada – e que não foi impugnada – é que, de facto, a nenhum dos sócios (embora nos presentes embargos só releve o executado C...) foi distribuído qualquer activo, no sentido de que nenhum viu o seu património acrescido ou enriquecido à custa do património da sociedade.
De facto, como emerge da acta elencada sob o ponto 2 da factualidade provada, ao ora embargante C..., do total do activo de € 20.270,00, composto apenas por créditos da sociedade sobre terceiros [sobre a sociedade “G..., Lda.”, no valor de € 9.150,00; sobre a sociedade “H..., Unipessoal, Lda.”, no valor de € 4.020,00; e sobre a sociedade “I..., Unipessoal, Lda.”, o valor de € 7.100,00], foi adjudicado/distribuído o valor de € 10.135,00, enquanto quota-parte no dito valor dos créditos.
Todavia, se é certo que esse valor poderia representar um acréscimo patrimonial efectivo do dito ex-sócios - em caso de cobrança efectiva/recebimento de tais valores -, também é certo, à luz do evidenciado nos pontos 4, 5 e 6 do elenco dos factos provados, que nada foi cobrado/obtido desses devedores da sociedade extinta e, portanto, não existiu um incremento patrimonial do ex-sócio e ora embargante à custa do património da sociedade extinta, condição essencial à afirmação da sua responsabilidade perante a exequente.
Note-se, nesta sede, que, ao contrário do que parece ter sido o entendimento subjacente à sentença recorrida e que colhe também apoio nas contra-alegações, não basta, para este efeito, um mero activo contabilístico; Ao invés, e como resulta do já exposto, a afirmação da responsabilidade dos ex-sócios, tal como decorre do citado artigo 163º, n.º 1, do CSC, está dependente do que os mesmos efectivamente receberam na partilha, em termos que se possa dizer que dela resultou um real incremento do seu património, qualquer que seja a forma que o mesmo revista. Mas ele tem de existir e estar comprovado.
Sem que este incremento resulte evidenciado não existe responsabilidade dos ex-sócios, à luz do preceituado no artigo 163º, n.º 1, do CSC.
Ora, sendo assim, à luz da sentença proferida (que se nos impõe em razão do seu trânsito em julgado e da sua consequente definitividade) e que serve de título executivo à presente execução – e que, por isso mesmo, também estabelece os limites e o conteúdo da própria obrigação exequenda – e dos factos provados, a única conclusão que se pode extrair é que, como sustenta o apelante, nada tendo recebido na partilha da extinta sociedade, também nada é devido por si à ora exequente/embargada, com a inevitável procedência dos presentes embargos de executado e consequente extinção da execução e levantamento da penhora efectuada nos autos e sobre os bens do ora embargante C....
Destarte, e atento o exposto, procede a apelação, ficando prejudicadas as demais questões suscitadas pelo apelante.
* *
V. DECISÃO:
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto em julgar procedente a apelação, com a consequente procedência dos embargos de executado deduzidos pelo executado C..., julgando-se extinta a execução para pagamento de quantia certa que contra si foi instaurada pela exequente B... e decretando-se o levantamento da penhora realizada nos autos e sobre os seus bens.
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Custas do recurso pela apelada, pois que ficou vencida – art. 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC -, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.
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Porto, 18.12.2018
Jorge Seabra
Fátima Andrade
Fernanda Almeida
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[1] Vide, neste sentido, por todos, FERNANDO AMÂNCIO FERREIRA, “Manual dos Recursos em Processo Civil”, 8ª edição, pág. 147, A. ABRANTES GERALDES, “Recursos no Novo Código de processo Civil”, 2ª edição, pág. 92-93.
[2] A. ABRANTES GERALDES, “Títulos Executivos”, in “Themis – A Reforma da Acção Executiva”, ano IV, n.º 7, 2003, pág. 36
[3] RUI PINTO, “A Acção Executiva”, AAFDL, 2018, pág. 136.
[4] AC STJ de 10.12.2013, relator ANA PAULA BOULAROT, AC RC de 25.01.2011, relator FALCÃO de MAGALHÃES, in www.dgsi.pt. Sobre a distinção entre o título executivo, enquanto documento dotado de força probatória da obrigação exequenda e a causa de pedir, vide, por todos, JOSÉ LEBRE de FREITAS, “A Acção Executiva À luz do Código Revisto”, 2ª edição, 1997, pág. 56-64 e RUI PINTO, op. cit., pág. 136-145.
[5] Sobre o princípio da tipicidade dos títulos executivos, vide, por todos, RUI PINTO, op. cit., pág. 145, MIGUEL TEIXEIRA de SOUSA, “A Acção Executiva Singular”, Lex, 1998, pág. 67-68 e A. VARELA, “Manual de Processo Civil”, 2ª edição, pág. 78.
[6] É discutido na doutrina e na jurisprudência a exequibilidade das sentenças proferidas no âmbito de acções constitutivas e de simples apreciação; Vide, por todos, sobre a matéria, MIGUEL TEIXEIRA de SOUSA, op. cit., pág. 72-74 e RUI PINTO, op. cit., pág. 150-151; No caso dos autos, porém, sendo indiscutido que a sentença dada à execução é uma sentença condenatória, não nos debruçaremos sobre esta matéria, que se apresenta como irrelevante no contexto dos autos.
[7] Vide, neste sentido, MIGUEL TEIXEIRA de SOUSA, op. cit., pág. 95.
[8] Vide, neste sentido, MIGUEL TEIXEIRA de SOUSA, op. cit., pág. 96; No mesmo sentido, vide, ainda, JOSÉ LEBRE de FREITAS, op. cit., pág. 70-71.
[9] Vide, neste sentido, JOSÉ LEBRE de FREITAS, op. cit., pág. 70, MIGUEL TEIXEIRA de SOUSA, op. cit., pág. 104-106 e RUI PINTO, op. cit., pág. 237-240.
[10] Vide, neste sentido, ainda, MIGUEL TEIXEIRA de SOUSA, op. cit., pág. 107 e RUI PINTO, op. cit., pág. 240-241.
[11] Vide sobre a matéria, por todos, EVARISTO MENDES/FERNANDO SÁ, anotação ao artigo 236º do Código Civil, in “Comentário ao Código Civil – Parte Geral” (Coord. L. CARVALHO FERNANDES, J. BRANDÃO PROENÇA), UCP, 2014, pág. 537-541.
[12] AC STJ de 4.10.2018, Processo n.º 10758/01.4TVLSB-A.L1.S1, relator Consº ANTÓNIO JOAQUIM PIÇARRA, disponível in wwwdgsi.pt. (e a demais jurisprudência do mesmo Supremo ali invocada).
[13] Vide, neste sentido, por todos, RAÚL VENTURA, “Dissolução e Liquidação de Sociedades Comerciais”, 1999, pág. 484 e CAROLINA CUNHA, in “Código das Sociedades Comerciais em Comentário”, (Coord. JORGE M. COUTINHO), II volume, 2ª edição (2015), pág. 760.
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(O presente acórdão não segue na sua redacção o novo acordo ortográfico)