Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
13764/09.7TDPRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: LUÍS COIMBRA
Descritores: PRISÃO SUBSIDIÁRIA
CONVERSÃO DA MULTA EM PRISÃO
AUDIÇÃO DO ARGUIDO
NULIDADE INSANÁVEL
Nº do Documento: RP2017020813764/09.7TDPRT-A.P1
Data do Acordão: 02/08/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS N.º 7/2017, FLS.31-34)
Área Temática: .
Sumário: I - Previamente à determinação da execução da prisão subsidiária, o tribunal deve proceder à audição do arguido.
II - A omissão desta formalidade importa a nulidade insanável a que alude o artigo 119.º alínea c) C P Penal.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 13764/09.7TDPRT-A.P1

Comarca de Porto
Porto – Instância Local – Secção Criminal – J7
(Processo nº 13764/09.7TDPRT-A)

Acordam, em conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

I. RELATÓRIO
1. No âmbito dos autos de Processo Comum nº 13764/09.7TDPRT, por despacho datado de 16.05.2016, foi determinada a execução da prisão subsidiária à arguida B…, com fundamento no não cumprimento integral da condição para a suspensão daquela.

2. Inconformado com o assim decidido, o Ministério Público, em benefício da arguida, interpôs recurso, retirando da respectiva motivação as seguintes conclusões (transcrição):
“1º Nos presentes autos de processo comum singular, a arguida B… foi condenada em pena de multa, que foi posteriormente convertida em prisão subsidiária, suspensa, porém, ao cumprimento, no prazo de 1 ano, de 100 horas de serviço de interesse público.
2º Todavia, a arguida não prestou o número de horas de serviço de interesse público fixadas.
3.º O douto despacho datado de 16.05.2016, ref. 367953221, determinou a execução da pena de prisão subsidiária aplicada à arguida B…, revogando a correspondente suspensão sem, contudo, proceder à audição prévia da arguida, conforme promovido pelo Ministério Público.
4.º No direito processual penal vale o princípio do contraditório pelo que não pode um determinado acontecimento histórico objectivo desencadear uma reacção penal desfavorável ao arguido sem que possa o arguido pronunciar-se acerca do mesmo.
5.º Assim, à arguida não poderá deixar de ser dada a possibilidade de se pronunciar acerca do teor do relatório da DGRS, antes de ser ponderada a revogação do trabalho a favor da comunidade, pois só assim poderá avaliar-se a censurabilidade da sua conduta.
6.º A decisão recorrida não podia ser tomada sem que antes a arguida, pessoalmente, e também o seu defensor (como resulta do disposto no artigo 113º, nº 9 do CPP) fossem notificados para se pronunciarem sobre o não cumprimento das horas de serviço público e, bem assim, sobre o que lhe aprouver acerca do eventual cumprimento da pena de prisão subsidiária.
7.º A decisão recorrida enferma de nulidade insanável, tendo violado o disposto nos arts. 61.º, n.º 1, al. b), e 119.º, al. c), do CPP.
Termos em que se entende dever ser concedido provimento ao presente recurso, julgando-se nula a decisão recorrida e determinando-se a audição da arguida a fim de se pronunciar sobre o não cumprimento das horas de serviço público e, bem assim, sobre o que lhe aprouver sobre o eventual cumprimento da pena de prisão subsidiária, assim fazendo Vossas Excelências inteira Justiça.”

3. O recurso foi admitido por despacho proferido a 04.07.2016.
4. Não consta destes autos de recurso em separado que tivesse havido resposta ao recurso.
5. O despacho recorrido foi tabelarmente sustentado.
6. Nesta Relação, o Exmo Procuradora-Geral Adjunta (a fls. 71), sufragando o entendimento manifestado pela magistrada do Ministério Público de 1ª instância, emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.
7. No âmbito do art.º 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta.
8. Na sequência do despacho do ora relator, vieram entretanto a juntos mais elementos a fim de instruírem estes autos de recurso em separado.
9. Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência, cumprindo apreciar e decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO
Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na motivação apresentada (arts 403º e 412º, nº 1, in fine, do Código de Processo Penal), sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito.
No caso vertente, vistas as conclusões do recurso, a questão suscitada consiste em saber se foi violado o princípio do contraditório pelo facto da arguida, previamente à prolação do despacho recorrido, não ter sido ouvida na sequência da exposição junta aos autos pela DGRS a dar conta que a arguida não tinha cumprido integralmente o plano referente à suspensão da execução da prisão subsidiária.

Definida a questão a tratar, e por forma sobre ela tomarmos posição, importa fazer, ainda que de forma sintética, uma resenha da evolução/tramitação dos autos desde a sentença condenatória até ao despacho recorrido.
Ora dos elementos que constatam no presente recurso em separado, extrai-se o seguinte:
a). Por sentença transitada em julgado foi a arguida condenada como autora material de um crime de emissão de cheque sem provisão, previsto e punido pelo art. 11°, nº 1, aI. a), do Decreto-Lei n° 454/91, de 28/12, na pena de 150 dias de multa à taxa diária de €5, o que perfaz a quantia de € 750.
b) Por não ter sido paga voluntariamente a pena de multa e ter sido considerado inviável a execução patrimonial, por despacho datado de 05.05.2014, ao abrigo do disposto nos arts 49º nºs 1 e 3 do Código Penal foi decidido converter aquela pena de multa em 100 dias de prisão subsidiária, mas suspender a execução da referida pena de prisão subsidiária pelo período de 1 ano, subordinando-se tal suspensão ao cumprimento de 100 (cem) horas de serviço interesse público, em entidade a designar pela DGRSP.
c) Tal despacho foi pessoalmente notificado à arguida 21.08.2014.
d) Decorrido que foi algum tempo, face à existência de dificuldades em localizar a arguida, a DGRS finalmente procedeu à elaboração o respectivo plano de execução daquela medida condicionante da suspensão da execução da prisão subsidiária.
e) Através de ofício datado de 02.05.2016, a DGRS veio aos autos prestar a seguinte informação:
“Assunto: Envio de informação
Em resposta ao pedido supra referenciado sobre a arguida B… vimos comunicar a V. Exa. o seguinte:
- Após receção do despacho desse tribunal datado de 02-02-2016, foi agendada a apresentação da arguida na Entidade Beneficiária de Trabalho (EBT) para o dia 4 do mesmo mês.
Naquele dia arguida compareceu e disponibilizou-se a iniciar o cumprimento do trabalho comunitário logo após as férias escolares dos filhos de Carnaval, uma vez que nesta altura os tinha consigo e não tinha a quem os entregar, o que a EBT aceitou.
- Aquela iniciou então a execução da obrigação imposta, tendo apenas se deslocado um dia à EBT, durante o qual executou 2 horas, após o que se ausentou sem que tivesse apresentado qualquer justificação.
Confrontada, no início do passado mês de março, com aquele comportamento abstencionista, confirmou-nos que não estava a cumprir conforme connosco acordado, alegando não ter agora a quem entregar o filho mais novo. Informada com a necessidade de cumprir, a arguida referiu-nos como alternativa trabalhar apenas à 2ª feira de manhã, altura em que a sua mãe poderia cuidar do referido filho, o que mais tarde nos confirmou. Contudo nem assim retomou o trabalho comunitário.
- Como continuamos a verificar que a arguida não cumpria a medida judicial em causa, tentámos contactá-la várias vezes, mas nunca conseguimos.
- Entretanto, na semana passada, recebemos da arguida uma carta registada com aviso de receção, onde constava que aquele tinha começado a trabalhar e que iria residir para …, freguesia do concelho da Maia, solicitando a sua colocação em horário não Iaboral ou o pagamento faseado da multa.
- Mais uma vez a tentámos contactar, mas de novo não conseguimos. Foi então que enviamos uma mensagem SMS a solicitar não só a nova morada por apenas nos ter indicado a freguesia para onde iria viver, como também a necessidade de nos contactar. Respondeu-nos pela mesma via, sem que nos tivesse contactado presencialmente, referindo-nos agora que só mudaria de morada após 30 de junho, mantendo a atual, em …, solicitando, de novo, outro horário para cumprir o trabalho comunitário ou em alternativa o pagamento da multa.
- Perante esta última missiva da arguida solicitámos agora que nos informasse do seu atual horário de trabalho e que nos contactasse, agendando-lhe entrevista para o próximo dia 4 de maio, às 12 horas.
Quanto ao desejo alternativo do pagamento da multa, foi por nós aconselhada a contactar esse tribunal.
Em face do exposto avaliamos que B… tem revelado, ao longo do tempo, pouco empenho e dificuldades no cumprimento inerente à execução da obrigação imposta, facto pelo qual encaramos com reservas o sucesso da mesma.
Queira V. Exa. determinar o que tiver por conveniente.”

f) Na sequência da vista que logo lhe foi aberta em 06.05.2016, nessa mesma data, a magistrada do Ministério Público exara o seguinte:
Promovo se designe data para audição da arguida.
Porto, d.s.”
g) Logo a seguir, na conclusão que lhe foi aberta a 16.05.2016 e nessa mesma data (16.05.2016) o Sr. Juiz a quo, proferiu o seguinte despacho que constitui o objecto do presente recurso (transcrição):
“A pena de multa em que a arguida foi condenada já há muito foi convertida em prisão subsidiária (cfr. fls. 257), tendo a execução desta ficado suspensa ao cumprimento, no prazo de 1 (um) ano, isto é, até 30-09-2015, de 100 (cem) horas) de serviço de interesse público.
Ora, “se os deveres ou as regras de conduta não forem cumpridos, executa-se a prisão subsidiária; se o forem, a pena é declarada extinta” (cfr. art.° 49.°, n.° 3, do C.P.).
Assim, no presente caso, tendo em conta o não cumprimento integral do estabelecido como condição de suspensão da execução da prisão subsidiária, terá esta que ser executada.
Pelo exposto e ao abrigo dos citados preceitos legais, determino a execução da prisão subsidiária.
*
Ao abrigo do disposto nos arts. 49°, n.° 1, do C.P. e 111.°, n.° 3, al. a) e 258,° do C.P.P., oportunamente, passe, em triplicado, mandados destinados a deter e a conduzir a condenada ao Estabelecimento Prisional a fim de cumprir os referidos dias de prisão subsidiária, fazendo constar pressamente dos mesmos:
a) a identificação completa daquela
b) o crime pelo qual foi condenada
c) o montante da multa aplicada (cfr. art.° 491°-A, nº 3, do C.P.P.)
d) a importância a descontar por cada dia ou fração em que a condenada esteja detida - €7,5 (sete euros e cinquenta cêntimos) (cfr. art.° 491°-A, n.º 3, do C.P.P.);
e) que a dita pena não foi paga, quer voluntária quer coercivamente;
f) que a condenada pode a todo o tempo evitar a execução da prisão subsidiária pagando a multa em que foi condenada (cfr. art.° 49°, n.° 2, do C.P.), inclusive à entidade policial que execute a detenção ou no estabelecimento prisional a que mesma seja conduzida (cfr. art.° 491°-A, n.° 1, 2 e 4, do C.P.P.);
g) as disposições legais aplicáveis e
h) de que os mesmos só deverão ser devolvidos após cumprimento, que deverá ser efetuado no mais curto espaço de tempo possível e, em todo o caso, após ser solicitada a sua devolução.”
(…)
Feito esta resenha do evoluir dos autos, constatamos ser evidente que a razão está do lado do recorrente Ministério Público pelo facto do tribunal a quo, na sequencia da informação prestada pela DGRS e antes de proferir o despacho recorrido a determinar a execução da prisão subsidiária, não ter diligenciado pela audição da arguida em cumprimento do princípio do contraditório.

Vejamos, pois.
Dispõe o artigo 49.º do Código Penal:
«1 - Se a multa, que não tenha sido substituída por trabalho, não for paga voluntária ou coercivamente, é cumprida prisão subsidiária pelo tempo correspondente reduzido a dois terços, ainda que o crime não fosse punível com prisão, não se aplicando, para o efeito, o limite mínimo dos dias de prisão constante do n.º 1 do artigo 41.º
(…).
3 - Se o condenado provar que a razão do não pagamento da multa lhe não é imputável, pode a execução da prisão subsidiária ser suspensa, por um período de um a três anos, desde que a suspensão seja subordinada ao cumprimento de deveres ou regras de conduta de conteúdo não económico ou financeiro. Se os deveres ou regras de conduta não forem cumpridos, executa-se a prisão subsidiária; se o forem, a pena é declarada extinta.”
(…).
De acordo com o citado artigo, é executada a prisão subsidiária, se o condenado não cumprir os deveres ou regras de conduta estabelecidos como condicionantes da suspensão da execução da prisão subsidiária.
Porém, previamente à determinação daquela execução da prisão subsidiária, o tribunal deve proceder à audição do arguido, para que este se pronuncie sobre as razões do incumprimento dos deveres ou regras de conduta que tinham sido estabelecidos, uma vez que está em causa um acto que o afecta num dos direitos fundamentais de maior valia - o direito à liberdade.
O direito do condenado a ser ouvido decorre de preceito comum da lei adjectiva penal e do princípio do contraditório.
Efectivamente, estabelece o artigo 61.º, n.º 1, al. b), do CPP, que o arguido goza, em especial, em qualquer fase do processo, e salvas as excepções da lei, dos direitos de ser ouvido pelo tribunal ou pelo juiz de instrução sempre que eles devam tomar qualquer decisão que pessoalmente o afecte.
Trata-se, pois, da emanação do princípio do contraditório com assento constitucional – artº 32º, nº 5 da CRP.
Enquanto garantia constitucional de defesa (cfr. o citado artº 32º nº 5 da CRP), o contraditório constitui, no cerne da própria dialéctica processual, “diligência essencial para a descoberta da verdade
Como escreve Figueiredo Dias, “o direito de audiência é a expressão necessária do direito do cidadão à concessão de justiça, das exigências comunitárias inscritas no Estado-de-direito, da essência do Direito como tarefa do homem e, finalmente, do espírito do processo como «com-participação» de todos os interessados na criação da decisão” direito que deve ser assegurado “perante quaisquer decisões, sejam do juiz ou de entidades instrutórias (nomeadamente do MP), sempre que aquelas atinjam directamente a esfera jurídica das pessoas.” (cfr. citado autor, in Direito Processual Penal, Primeiro Volume, Reimpressão, Coimbra Editora, 1984, I, pags. 158 a 160)
In casu, perante aquela informação que havia sido prestada pela DRGS, antes de proferir qualquer decisão, importava averiguar as eventuais razões que levaram a arguida ao incumprimento (parcial) do fixado dever de prestação de 100 de serviço de interesse público, como condição da suspensão da prisão subsidiária da pena de multa.
E isso só era possível através da audição antecipada da arguida.
Ora, tendo por referência os princípios do Estado de Direito, do due process, fair process, da proporcionalidade e adequação, afigura-se-nos que foi claramente violado o direito de defesa da arguida, pois que a esta não foi dada a oportunidade de apresentar as hipotéticas razões determinantes do não cumprimento integral daquelas fixadas 100 horas de prestação de serviço de interesse público.
E qual o vício que a omissão da prévia audição do arguido acarreta?
Consideramos que é o da nulidade insanável a que alude o artigo 119º c) do CPP, como propugna o Ministério Público recorrente. Segundo tal normativo, constitui nulidade insanável “a ausência do arguido ou do seu defensor, nos casos em que a lei exigir a respectiva comparência.”
A “ausência” a que alude a al. c) do artº 119º não é apenas a física, mas também a processual (neste sentido cfr. Acs. da RL, de 14OUT97 e da RP, de 1ABR98, in CJ, ano XXII-1997, t. IV, p. 150, e ano XXIII-1997, t. II, p. 243, respectivamente).
Efectivamente, a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições do tempo em que é aplicada. É o que estatui o artº 9º, nº 1 do Cód. Civil.
Ora, não poderá perder-se de vista que está em causa uma decisão que afecta particularmente a posição da arguida (execução da prisão subsidiária), o que exige que lhe seja plenamente assegurado o exercício de todos os direitos inseridos no direito constitucional de defesa, maxime o seu irrecusável direito de audição prévia.
E essa garantia processual – a que a Lei Fundamental, repete-se, confere dignidade constitucional - só se torna efectiva se a lei processual fulminar com nulidade insanável o acto que a tenha desrespeitado.
Em suma: a determinada execução da prisão subsidiária sem a prévia audição da arguida constitui a nulidade insanável cominada na al. c) do citado artigo 119º.
É essa a solução que se retira da conjugação do preceituado nos citados art.ºs 61º nº 1 b) e 119º, al. c), ambos do CPP, com o disposto no artº 32º, nº 5 da Constituição da República Portuguesa.
Este vício, insanável, determina a nulidade do despacho recorrido que deve ser substituído por outro que, perante aquela informação da DGRS e previamente à tomada de decisão que posteriormente venha a adoptar, dê observância do princípio do contraditório e da salvaguarda dos mais elementares direitos de defesa da arguida.
Merece, pois, provimento o recurso.

III. DISPOSITIVO
Nos termos e fundamentos expostos, acordam os Juízes deste Tribunal desta Relação em, concedendo provimento ao recurso, revogar o despacho recorrido, devendo o tribunal a quo proceder à audição da arguida sobre as razões do não cumprimento integral das horas de serviço público, decidindo depois em conformidade.
Sem tributação.
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(Elaborado em computador e revisto pelo relator, 1º signatário - art. 94º nº 2 do Código de Processo Penal)
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Porto, 8 de Fevereiro de 2017
Luís Coimbra
Maria Manuela Paupério