Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1212/21.9T8OAZ.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PAULA LEAL DE CARVALHO
Descritores: IMPUGNAÇÃO JUDICIAL DA DECISÃO ADMINISTRATIVA
SENTENÇA
DEVER DE FUNDAMENTAÇÃO
Nº do Documento: RP202206081212/21.9T8OAZ.P1
Data do Acordão: 06/08/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL; CONTRA-ORDENAÇÃO LABORAL
Decisão: RECURSO PROCEDENTE; PARCIALMENTE ANULADA A SENTENÇA.
Indicações Eventuais: 4.ª SECÇÃO (SOCIAL)
Área Temática: .
Sumário: I - A sentença proferida pelo tribunal em sede de impugnação judicial da decisão administrativa, quando esteja em questão a apreciação e decisão de matéria de facto que seja posta em causa pelo arguido na impugnação judicial da decisão administrativa ou que seja por este alegada em sua defesa quer no que se reporta aos factos integradores da contra-ordenação, quer nos relativos ao apuramento da sua responsabilidade ou outros relevantes, não prescinde, quer no regime geral das contraordenações quer no regime das contra-ordenações laborais e de segurança social, da necessária fundamentação da decisão proferida em sede de matéria de facto.
II - A mera adesão à decisão condenatória da decisão administrativa, prevista na parte final do n.º4, do art.º 39.º da Lei 107/2009, de 14.09, não poderá deixar de ser interpretada restritivamente, isto é, apenas é admissível nas situações em que não exista qualquer controvérsia, ou nada a apurar, em sede de decisão da matéria de facto.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Procº nº 1212/21.9T8OAZ.P1
Relator: Paula Leal de Carvalho (Reg. nº 1272)


Acordam, em conferência, na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto:



I. Relatório

A Autoridade para as Condições do Trabalho proferiu decisão administrativa de condenação da arguida B..., Lda, actualmente designada B 1... Unipessoal, Lda, pela prática de uma contra-ordenação muito grave, prevista no artigo 15.º, n.º 2, alíneas c) e l) e n.º 14, da Lei n.º 102/2009, de 10 de setembro, na coima de 90 unidades de conta e de uma contraordenação muito grave, prevista no artigo 15.º, n.º 4 e n.º 14, da Lei n.º 102/2009, de 10 de setembro, conjugado com o artigo 19.º, n.º 2, do mesmo diploma, na coima de 90 unidades de conta e, em cúmulo jurídico, na coima única de 86 unidades de conta [€ 8.772].

Recebida a impugnação judicial e realizada a audiência de discussão e julgamento, a 1ª instância proferiu sentença, que julgou a impugnação judicial nos seguintes termos:
Pelo exposto, julgo parcialmente procedente a impugnação e, em consequência, absolvo a recorrente da prática de uma contraordenação muito grave, prevista no artigo 15.º, n.º 2, alíneas c) e l) e n.º 14, da Lei n.º 102/2009, de 10 de setembro, mantendo a decisão administrativa na parte restante, com ajustamento da coima parcelar aplicada para 86 unidades de conta [€8.772].
Mais condeno a recorrente nas custas, fixando a taxa de justiça em duas unidades de conta.”

Inconformada, a arguida recorreu, tendo formulado as seguintes conclusões:
…………………………………
…………………………………
…………………………………

Nestes termos e nos demais de direito, sempre com o mui douto suprimento de V. Exas., deve o presente recurso ser julgado procedente, e, em consequência, deve revogar-se a douta sentença recorrida substituindo-a por outra que julgue absolvida a recorrente da primeira infracção, subsistindo a condenação pela segunda infracção e a condenação na aplicação de uma coima de 42 unidades de conta, condenando e absolvendo a Ré nos devidos termos.”

O Ministério Público contra-alegou, tendo formulado as seguintes conclusões:
………………………………..
………………………………..
………………………………..

9ª – O presente recurso não merece provimento, pelo que deve, como tal, ser confirmada a douta decisão recorrida.

O recurso foi admitido pela 1ª instância com efeito suspensivo, mantido pela ora relatora, nos termos do art. 35º, nºs 2 e 3 do da Lei 107/2009.

O Exmº Sr. Procurador Geral Adjunto nesta Relação emitiu douto parecer no sentido do não provimento do recurso, ao qual respondeu a Recorrente dele discordando, reiterando as alegações de recurso e pugnando pela sua procedência.

Colheram-se os vistos legais.
***
II. Objecto do recurso

1. São as seguintes as questões suscitadas pela Recorrente:
- Da nulidade da sentença por insuficiência da motivação da decisão da matéria de facto;
- Se o Tribunal a quo não analisou a prova produzida quanto ao cumprimento do disposto no n.º 4 do art. 15.º da Lei 102/2009, de 10 de Setembro, pois que, tendo ficado cabalmente provado que o trabalhador tinha mais de 30 anos de experiência nas mesmas funções, deve ser tomada em consideração pela entidade patronal as aptidões e experiência do trabalhador, sempre que lhe é confiada uma tarefa e, com base nessas características, ser prestada as informações e formação necessária, aludindo, no corpo da motivação a erro notório na apreciação da prova nos termos do art. 410º, nº 2, al. c), do CPP.
- Do montante da coima.

2. Como decorre da sentença, a arguida, ora Recorrente, foi absolvida da contraordenação muito grave prevista no art. 15º, n.ºs 2, als. c) e l) e 14, da Lei n.º 102/2009, de 10.09, não tendo a sentença, nesta parte, sido objecto de impugnação, pelo que transitou em julgado.
Subsiste, assim e apenas a contraordenação muito grave prevista art. 15.º, n.ºs 4 e 14 da citada Lei 102/2009, conjugado com o artigo 19.º, n.º 2, da mesma, a esta se reportando as questões elencadas no antecedente ponto 1.
***

III. Decisão da matéria de facto proferida pela 1ª instância:

A. É a seguinte a decisão da matéria de facto proferida em 1ª instância:
“1. Factos provados:
1. É arguida B 1... UNIPESSOAL, LDA, anteriormente designada como B..., Lda, com o NIPC ..., com sede na Praça ... Lisboa e estabelecimento (local do acidente) num estaleiro de construção civil sito na Rua ..., ..., com atividade de Transporte Rodoviário de Mercadorias (CAE ...), na qualidade de entidade empregadora.
2. Representa a arguida, AA, com o NIF ..., com domicílio na rua ... Lisboa.
3. No dia 13 de novembro de 2018, pelas 16:30 horas, quando o trabalhador BB procedia à lavagem / limpeza da tubagem e tremonha da autobomba, sofreu um acidente de trabalho do qual resultou amputação traumática do D2 (dedo indicador) e D3 (dedo médio) pela F1 (falange) e fratura de F2 (falange) do D4 (dedo anelar) da mão direita.
4. À data do acidente, o trabalhador sinistrado, com a categoria profissional de Motorista e Operador de Autobomba, procedia à lavagem / limpeza da tubagem e tremonha de uma Autobomba num estaleiro de construção civil sito na Rua ..., ....
5. Tal trabalhador foi admitido com Contrato de Trabalho a Termo Incerto, estando o mesmo colocado na unidade de Santa Maria da Feira da U..., S.A., no âmbito da celebração de um contrato de prestação de serviços de bombagem de betão entre a sua entidade empregadora e a U..., S.A..
6. O trabalhador sinistrado tem como funções a condução de viaturas pesadas para as obras de construção civil e consequente bombagem de betão pronto.
7. O mesmo foi admitido em 08 de outubro de 2018.
8. O trabalhador sinistrado procedia à lavagem / limpeza da tubagem e tremonha da Autobomba.
9. Segundo o Manual da Autobomba trata-se de uma limpeza por aspiração que, consiste nas seguintes etapas:
· Esvaziar a tremonha do agitador até o betão ficar ao nível da borda superior dos tubos do cilindro de bombagem;
· Desligar então a bomba;
· Introduzir uma esponja de limpeza embebida em água na saída da mangueira de descarga;
· Colocar a lança de distribuição numa posição uniformemente inclinada;
· Regular a bomba para a bombagem em retorno no comando remoto;
· Durante a limpeza, bater com um pedaço de madeira dura próximo da abertura de limpeza da linha de betão;
· Desligar a bomba, assim que a esponja de limpeza tiver passado no local onde bateu;
· Abrir a abertura de limpeza no tubo de transferência, virando a tampa da abertura de limpeza ao contrário e voltando a fechá-la com a espiga para dentro;
· Ligar a bomba para bombagem de retorno (a esponja de limpeza fica presa na espiga da tampa da abertura de limpeza;
· Em seguida desligar a bomba;
· Abrir a tampa da abertura de limpeza e retirar a esponja de limpeza.
10. Segundo o “Relatório” de Acidente de Trabalho realizado pela S..., e não pela arguida, exibido no seguimento de Notificação para Entrega de Documentos à mesma:
· Após conclusão da betonagem, o operador da autobomba realizou a tarefa habitual, de lavagem / limpeza da tubagem e tremonha da autobomba, fazendo passar da bola de limpeza, desde a lança até à tremonha;
· No momento em que o trabalhador (a utilizar o comando remoto da autobomba) colocou a mão para retirar a bola do interior da tubagem, a autobomba realizou um movimento de expulsão da bola de limpeza, provocando o esmagamento dos dedos da mão direita do trabalhador contra a estrutura (Vide Fotografia n.º 10) devido à passagem brusca da bola e de betão.
11. O trabalhador sinistrado, BB, no seu depoimento escrito declara que, no dia 13-11-2018, ao fazer o trabalho numa obra de ... – Oliveira de Azeméis, ao fazer uma betonagem com a autobomba na qual era condutor e manobrador, depois de terminar o trabalho fiz a limpeza da autobomba como era habitual. Coloquei a bola no interior dos tubos e ao fazer a recuperação da bola, como é hábito nesse tipo de autobomba que tem que se colocar a mão no interior da tremonha para recuperar a bola. Ao colocar a mão, a tremonha teve um movimento e levou a mão e cortou-me os dedos.”
12. Concretiza, ainda, o “Relatório” de Acidente de Trabalho supra referido como Causas Potenciais, “Deficiência ou ausência de organização e/ou planeamento do trabalho. Avaria de equipamento de trabalho.”
13. O mesmo refere como Recomendações Gerais:
· “Pressionar sempre o botão de paragem de emergência para garantir que o equipamento se encontra parado, antes de se retirar a bola de limpeza;
· Nas operações de manutenção / limpeza não introduzir as mãos dentro da tremonha ou de outros componentes móveis da autobomba sem garantir que o equipamento se encontra parado;
· Recomenda-se o estudo e aplicação da tampa na tubagem perno móvel que permita um melhor posicionamento da bola de limpeza, eliminando a possibilidade dos trabalhadores colocarem as mãos no interior da tubagem para acesso à respetiva bola de limpeza;
· Recomenda-se a análise dos riscos da tarefa de limpeza da tubagem em todas as autobombas (diferente entre marcas)”.
14. Solicitada à arguida a Instrução de Trabalho e/ou Instrução de Segurança inerente à tarefa relacionada com o acidente de trabalho, exibiu a Instrução 01 IT P 12 02 – Bombagem de Betão e a Instrução 01 IT S 12 02 – Autobomba, elaboradas pela U... / S....
15. A Instrução 01 IT S 12 02 – Autobomba refere que:
· A Autobomba é um equipamento móvel para proceder à elevação e colocação de betão em Obras de Construção Civil, sendo constituído essencialmente por um veículo matriculado que suporta uma bomba hidráulica de transporte e levação de betão e uma lança de distribuição e colocação de betão de acionamento hidráulico e desdobrável;
· A receção do betão no equipamento é assegurada através de uma tremonha onde as autobetoneiras descarregam o betão;
· O comando do equipamento é assegurado através de controlo remoto (telecomando).
16. Mais refere que, no fim do trabalho, deve esvaziar as tubagens mediante bombagem inversa e posterior bombagem com água e bola de limpeza ou esponja, tendo em atenção a direção de saída da esponja ou bola (usar dispositivo para apanhar bolas).
17. Solicitada a Avaliação de Riscos inerente à atividade de limpeza verificada, no momento do acidente, exibiu uma realizada, em dezembro de 2017, pela S... que, identifica a tarefa de limpeza da Autobomba.
18. Sendo identificado como perigo, “Manipulação de ferramentas/materiais/peças”, classe de risco “RM - Mecânico” e risco “Choque contra objetos / estruturas” e “Entalamento / Esmagamento” e como medidas de controlo do Risco “Formação Temática: Comunicação Perigos e Avaliação de Riscos” e “Sinalização de Segurança”.
19. Exibiu a arguida um documento identificado como “Funções de Motorista / Operador de Autobomba que tem como objetivo identificar e definir as funções desempenhadas pelo motorista / operador de autobomba durante o transporte e descarga de betão em obra.
20. Referindo, apenas, relativamente à lavagem que deve ser procedida em local próprio.
21. O trabalhador sinistrado não frequentou qualquer formação profissional, segundo a infratora dado que iniciou funções em 08 de outubro de 2018 e o acidente ocorreu em 13 de novembro de 2018.
22. Visitada a U..., S.A. em Santa Maria da Feira, na qual a empresa arguida efetuava a prestação de serviços e consequentemente o trabalhador sinistrado e, instado o responsável no local, CC sobre o porquê da ocorrência do acidente referiu que, o trabalhador tem necessidade de retirar a bola de limpeza e, que ao fazê-lo a autobomba terá realizado um movimento de expulsão da bola de limpeza, enchendo a tremonha e levando ao esmagamento dos dedos do trabalhador sinistrado contra a tubagem.
23. Mais instado sobre o que terá levado à autobomba realizar tal movimento de expulsão referiu, poder tal estar relacionado com uma avaria elétrica, tendo sido mudados os relés, após o acidente. 24. A bomba possuía uma Ficha de Manutenção com intervenções entre 21 de maio de 2018 e 13 de agosto de 2019.
25. A mesma tinha sido sujeita a várias intervenções, nomeadamente, substituição de peças.
26. Tendo adquirido 2 Relés 24V 10/15ª, em 06/12/2018, após encomenda.
27. Refere o manual do equipamento, no Capítulo 2 – Normas de Segurança que:
· “Operador – Mandatário do proprietário de bombas de betão e/ou lanças de distribuição. O operador é responsável pela utilização desta máquina;
· Pessoal – O operador deve assegurar que na / junto da máquina só trabalham pessoas formadas ou instruídas. Deve estabelecer inequivocamente as competências das pessoas responsáveis pelo comando e manutenção da máquina;
· Manual de Instruções – O operador deve elaborar um manual de instruções de acordo com as normas nacionais. Este manual deve incluir, entre outros, instruções, incluindo obrigações de supervisionamento e de notificação para tomar em consideração especificidades, operacionais, p. ex., no que respeita a organização do trabalho, processos de trabalho, pessoal encarregue. …”
28. Mais solicitada a avaliação de riscos inerente a atividade em execução, exibiu a arguida, uma avaliação de riscos datada de dezembro de 2017, mais uma vez, não realizada pela própria, mas sim pela U... / S....
29. Tal avaliação identifica como tarefa a “Limpeza da Autobomba e autobetoneiras”, como perigo, “Manipulação de ferramentas/materiais/peças”, classe de risco “RM - Mecânico” e risco “Choque contra objetos / estruturas” e “Entalamento / Esmagamento” e como medidas de controlo do Risco “Formação Temática: Comunicação Perigos e Avaliação de Riscos” e “Sinalização de Segurança”.
30. O trabalhador não foi informado pela empregadora da existência de risco mecânico nem lhe foi dada formação sobre como intervir em caso de limpeza / lavagem da tubagem e tremonha.
31. A recorrente agiu sem cuidar de fornecer ao trabalhador a informação e formação adequada sobre os riscos para a saúde e sobre as instruções a cumprir na tarefa executada.
32. Atualmente, a recorrente é detida pela sociedade S..., SA que coloca a sua estrutura, incluindo os serviços de segurança no trabalho, ao serviço daquela;
33. Na data dos factos, a S... era já detentora da sociedade U..., S.A, tendo esta elaborado as instruções de trabalho utilizadas pela recorrente;
34. A U... era a única cliente da recorrente;
35. Os trabalhadores da recorrente usavam a farda da U...;
36. A recorrente analisou e validou os documentos elaborados pelos serviços da S... para a U..., tendo-os adotado na sua atividade;
37. O Manual de Instruções da Autobomba, a avaliação de riscos e as instruções de trabalho foram passados ao trabalhador BB, aquando da entrega do veículo para a sua alçada, estando disponíveis dentro do veículo; e
38. Durante um dia de trabalho, o trabalhador recebeu formação de acolhimento por parte de outro trabalhador, que considerou que o mesmo tinha conhecimentos sobre a execução das suas tarefas e lhe indicou o local onde estavam os documentos, designadamente o Manual de Instruções da Autobomba, a avaliação de riscos e as instruções de trabalho.
2. Factos não provados:
Inexiste factualidade relevante que cumpra considerar como não provada.”
B. Da motivação, aduzida pela 1ª instância, da decisão da matéria de facto consta o seguinte:
“3. Motivação de facto.
O Tribunal considerou os documentos constantes dos autos conjugados com o depoimento das testemunhas DD, EE, FF e GG, não se tendo entrado na questão das causas do acidente por não ser propriamente essa a questão que está em causa nos presentes autos.”.
***
IV. Fundamentação

1. Como referido no ponto II., suscita a Recorrente a questão da nulidade da sentença, nos termos dos arts. 374º, nº 2 e 379º, nº 1, al. a), do CPP, por a decisão da matéria de facto não se encontrar suficientemente fundamentada, referindo a Recorrente, a esse propósito, que a sentença se limitou a um parágrafo, “que não lhe permite aferir qual a concreta prova tomada em consideração pelo douto tribunal para a prolação da decisão em causa.”
Em sentido contrário pugna o Ministério Público, tanto nas contra-alegações, como no parecer emitido, invocando em síntese que “a autonomia do processo de mera ordenação social leva a que a aplicação subsidiária do processo penal não seja automática nem conformadora do processo contra-ordenacional” e que a fundamentação, quer da decisão da autoridade administrativa, quer da decisão judicial, não estão sujeitas às exigências previstas no âmbito do processo penal, dispondo o RPCOLSS (aprovado pela Lei 107/2009, de 14.09) de norma própria, qual seja o art. 39º.

Cumpre decidir.

2. Importa, antes de mais, clarificar que o que está em causa nos autos não é a falta ou insuficiência de fundamentação da decisão administrativa que aplicou a coima, mas sim a insuficiência da fundamentação da decisão da matéria de facto da sentença proferida pelo Mmº Juiz no âmbito da impugnação judicial da decisão administrativa.

2.1. Dispõe o art. 205º, nº 1, da CRP que “1. As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei” e, no art. 20º da mesma, que “1. A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para a defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, (…)”. Por sua vez, o art. 32º também da CRP, que prescreve sobre garantias do processo criminal, determina no seu nº 10 que “10. Nos processos de contra-ordenação, bem como em quaisquer processos sancionatórios, são assegurados ao arguido os direitos de audiência e defesa”.
No que toca à legislação ordinária, é ao caso aplicável a Lei 107/2009, de 14.09, que aprovou o regime processual aplicável às contra-ordenações laborais e de segurança social (RPCOLSS), em cujo art. 39º se dispõe que: “1. O juiz decide do caso mediante audiência de julgamento ou através de simples despacho. 2. O juiz decide por despacho quando não considere necessária a audiência de julgamento e o arguido ou o Ministério Público não se oponham. 3. (…). 4. O juiz fundamenta a sua decisão, tanto no que respeita aos factos como no que respeita ao direito aplicado e às circunstâncias que determinaram a medida da sanção, podendo basear-se em mera declaração de concordância com a decisão condenatória da autoridade administrativa. 5. Em caso de absolvição, o juiz indica porque não considera provados os factos ou porque não constituem uma contra-ordenação.”
De harmonia com o art. 60º da citada Lei “Sempre que o contrário não resulte da presente lei, são aplicáveis, com as devidas adaptações, os preceitos reguladores do processo de contra-ordenação previstos no regime geral das contra-ordenações.”, regime geral este que consta do DL 433/82, de 27.10, alterado, entre outros, pelo DL 244/95, de 14.09, cujos arts. 64º e 41º dispõem que:
- o art. 64º: “1. O juiz decidirá do caso mediante audiência de julgamento ou através de simples despacho. 2. O juiz decide por despacho quando não considere necessária a audiência de julgamento e o arguido ou o Ministério Público não se oponham. 3. (…). 4. Em caso de manutenção ou alteração da condenação deve o juiz fundamentar a sua decisão, tanto no que concerne aos factos como ao direito aplicado e às circunstâncias que determinaram a medida da sanção. 5. Em caso de absolvição, deverá o juiz indicar porque não considera provados os factos ou porque não constituem uma contra-ordenação.”
- o art. 41º, nº 1: “1. Sempre que o contrário não resulte deste diploma, são aplicáveis, devidamente adaptados, os preceitos reguladores do processo criminal”.
E, por sua vez, os arts. 374º e 379º do CPP determinam que:
- O art. 374º: “1. A sentença começa por um relatório, que contém: a) As indicações tendentes à identificação do arguido; b) As indicações tendentes à identificação do assistente e das partes civis; c) A indicação do crime ou dos crimes imputados ao arguido, segundo a acusação, ou pronúncia, se a tiver havido; d) A indicação sumária das conclusões contidas na contestação, se tiver sido apresentada. 2. Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal. 3. A sentença termina pelo dispositivo que contém: a) As disposições legais aplicáveis; b) A decisão condenatória ou absolutória;
c) A indicação do destino a dar a animais, coisas ou objetos relacionados com o crime, com expressa menção das disposições legais aplicadas; d) A ordem de remessa de boletins ao registo criminal; e) A data e as assinaturas dos membros do tribunal.
4. (…)”A sentença observa o disposto neste Código e no Regulamento das Custas Processuais em matéria de custas.”.
- O art. 379º: “1. É nula a sentença: a) Que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374.º ou, em processo sumário ou abreviado, não contiver a decisão condenatória ou absolutória ou as menções referidas nas alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo 389.º-A e 391.º-F; b) Que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º; c) Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento. 2. As nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, devendo o tribunal supri-las, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 4 do artigo 414.º 3. Se, em consequência de nulidade de sentença conhecida em recurso, tiver de ser proferida nova decisão no tribunal recorrido, o recurso que desta venha a ser interposto é sempre distribuído ao mesmo relator, exceto em caso de impossibilidade.

2.2. Em anotação ao art. 64º do DL 433/82, referem António de Oliveira Mendes e José dos Santos Cabral, in Notas ao Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, pág. 230, Almedina, que:
“5. O dever de fundamentação a que alude o nº 3 emerge directamente de um dever de fundamentação de natureza constitucional – art. 205º - em relação ao qual ponderam Gomes Canotilho e Vital Moreira que é próprio do Estado de direito democrático, ao menos quanto às decisões judiciais que tenham por objecto a solução da causa em juízo como instrumento de ponderação e legitimação da própria decisão judicial e da garantia do direito ao recurso.
Como acentua Marques Ferreira um sistema de processo penal inspirado nos valores democráticos não se compadece com razões que hão-de impor-se apenas em razão da autoridade de quem as profere, mas antes pela razão que lhes subjaz. Por isso que todos os Códigos modernos exigem a fundamentação das decisões judiciais quer em matéria de facto quer em matéria de direito. O entendimento que a lei se basta com a mera indicação dos elementos de prova frustra a “mens legis” impedindo de se comprovar na se na sentença se seguiu um processo lógico e racional na apreciação da prova, não sendo portanto uma decisão ilógica, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum na apreciação da prova.”.
E, os mesmos autores, in ob. citada, a pág. 192/193, ainda que a propósito do art. 58º do citado DL 433/82, referente à fundamentação da decisão da autoridade administrativa e depois de dar nota da divergência na doutrina relativamente ao vício que acarreta a inobservância dos requisitos a que alude o citado art. 58º [para alguns[1], não se trataria de nulidade mas, nos termos dos arts. 118º, nº 1 e 123º do CPP de irregularidade, não sendo de aplicar o art. 379º ou 283º do mesmo, para outros[2] que, ao abrigo do art. 41º, nº 1, do DL 433/82, tratar-se-ia de nulidade da decisão de harmonia com os arts. 374º, nºs 2 e 3 e 379º, nº 1, al. a), do CPP], refere o seguinte:
Estamos em crer que a polémica deverá ser resolvida com apelo às razões que levaram à consagração da necessidade de fundamentação da sentença penal. Na verdade, nos termos do artigo 374º do Código de Processo Penal segue-se a sua fundamentação com a enumeração dos factos provados, e não provados, bem como uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
A exigência expressa do exame crítico da prova situa-se exactamente nos limites propostos, entre outros, pelo Acórdão do Tribunal Constitucional 680/98, e que já tinha adquirido foros de autonomia também a nível do Supremo Tribunal de Justiça – Acórdão de 13/2/1992 – com a consagração de um dever de fundamentação no sentido de que a sentença há-de conter também os elementos que, em razão da experiência ou de critérios lógicos, construíram o substracto racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse num sentido, ou seja, um exame crítico sobre as provas que concorrem para a formação da convicção do tribunal num determinado sentido. Por essa forma acabaram por obter consagração legal as opções daqueles que consideravam a fundamentação uma verdadeira válvula de escape do sistema permitindo o reexame do processo lógico ou racional que subjaz à decisão. Também por aí se concretizaria a legitimidade do poder judicial contribuindo para a congruência entre o exercício desse poder e a base sobre o qual repousa: o dever de dizer o direito no caso concreto.
Igualmente é certo que tal dever de motivação emerge directamente de um dever de fundamentação de natureza constitucional – artigo 205º- em relação ao qual ponderam Gomes Canotilho e Vital Moreira que é parte integrante do próprio conceito de Estado de direito democrático, ao menos quanto às decisões judiciais que tenham por objecto a solução da causa em juízo como instrumento de ponderação e legitimação da própria decisão judicial e da garantia do direito ao recurso. (…)”, salientando embora, mais à frente, que “nos encontramos no domínio de uma fase administrativa, sujeita às características da celeridade e simplicidade processual, pelo que o dever de fundamentação [reporta-se à decisão administrativa] deverá assumir uma dimensão qualitativamente menos intensa em relação à sentença penal. (…)
Ou seja, serve o referido para realçar que, pese embora a autonomia do direito contraordenacional em relação ao direito penal a que se reporta o Ministério Público, bem como o diferente desvalor da conduta em que assentam ambos os direitos e a diversidade das respectivas consequências sancionatórias, a sentença proferida pelo tribunal em sede de impugnação judicial da decisão administrativa, não prescinde, no regime geral das contraordenações, da necessária fundamentação da decisão proferida em sede de matéria de facto.
E será que, face à norma especial do art. 39º, nº 4, do RCOLSS, o juiz pode prescindir dessa fundamentação?
A ora relatora, in Contra-Ordenações Laborais – Questões Práticas, Separata de Prontuário de Direito do Trabalho, Centro de Estudos Judiciários, Janeiro-Abril/Maio-agosto de 2012, Coimbra Editora, pág. 169, referiu o seguinte:
Dispõe o art. 39º, nº 4, da Lei 107/2009, de 14.09, que: “4. O juiz fundamenta a sua decisão, tanto no que respeita aos factos como no que respeita ao direito aplicado e às circunstâncias que determinam a medida da sanção, podendo basear-se em mera declaração de concordância com a decisão condenatória da autoridade administrativa.”.
Se se poderá aceitar a possibilidade dessa adesão no caso de estar em causa apenas matéria de direito, já não nos parece que tal seja possível quando esteja em questão a apreciação e decisão de matéria de facto que seja posta em causa pelo arguido na impugnação judicial da decisão administrativa ou que seja por este alegada em sua defesa quer no que se reporta aos factos integradores da contra-ordenação, quer nos relativos ao apuramento da sua responsabilidade ou outros relevantes, sob pena de inconstitucionalidade da norma ou da interpretação que dela fosse feita por preterição do direito de defesa do arguido e do direito a um processo equitativo que garanta a sua efectiva realização (art. 20º, nºs 1, 3 e 5 e 32º, nº 10, da CRP), bem como do direito a uma decisão fundamentada (art. 205º da CRP).
Alegando o arguido, em sua defesa, factualidade que contraria e extravasa a constante da acusação, sendo-lhe garantida a possibilidade de oferecer prova e sendo obrigatória a realização da audiência de julgamento, mal se compreenderia que pudesse o Tribunal, depois, não se pronunciar e/ou não fundamentar a sua decisão no que se reporta à factualidade alegada, limitando-se à mera adesão à decisão administrativa.
Mas pronunciando-se a sentença sobre a matéria de facto (elencando a provada e não provada, tanto da acusação, como da defesa), e se esta for idêntica à da decisão administrativa e/ou não implicar a necessidade de considerações adicionais sobre questões suscitadas pela defesa de que o juiz deva apreciar e se a decisão administrativa se encontrar devidamente fundamentada, parece que nada obstará à decisão por adesão.”
Ora, não vemos razão para alterar tal entendimento, sendo de acrescentar que, quando esteja em questão a apreciação e decisão de matéria de facto que seja posta em causa pelo arguido na impugnação judicial da decisão administrativa ou que seja por este alegada em sua defesa quer no que se reporta aos factos integradores da contra-ordenação, quer nos relativos ao apuramento da sua responsabilidade ou outros relevantes, as considerações acima tecidas por António de Oliveira Mendes e José dos Santos Cabral e que deixámos transcritas têm pleno cabimento e são transversais ao direito contra-ordenacional, incluindo ao regime das contra-ordenações laborais e de segurança social, não se vendo que razão superior dispensasse o dever de fundamentação da decisão judicial em sede de decisão da matéria de facto.
Aliás, o próprio art. 39º, nº 4, primeira parte, não dispensa o dever de fundamentação, pois que refere que “o juiz fundamenta a sua decisão, tanto no que respeita aos factos como no que respeita ao direito (…)”, sendo que a mera adesão à decisão condenatória da decisão administrativa não poderá deixar de ser interpretada restritivamente, no sentido acima apontado, isto é, apenas nas situações em que não exista qualquer controvérsia, ou nada a apurar, em sede de decisão da matéria de facto.

2.3. E, no âmbito desse dever de fundamentação da decisão judicial, dispõe o art. 374º, nº 2, do CPP, que deve ser indicado e feito um exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do julgador.
Tem pois o juiz o dever de explicitar e fundamentar o raciocínio lógico que, no processo de formação da sua convicção, efectuou quanto aos concretos pontos da matéria de facto em discussão, indicando os concretos meios probatórios em que se fundou e, analisando-os critica e conjugadamente, esclarecendo a razão por que neles fundou a sua convicção.
Não se exigindo, como não se exige, a transcrição dos depoimentos prestados, mostra-se, no entanto, necessário que se entenda, em relação a cada um dos factos em concreto ou grupos de factos relacionados, qual (ais), em concreto, o(s) meio(s) de prova, designadamente a(s) testemunha(s) em cujo(s) depoimento(s) as respostas assentaram, o sentido (que não a transcrição) dos depoimentos, a razão de a ele(s) se ter atendido e, perante a (eventual) existência de depoimentos divergentes, a razão da prevalência/preterição dos depoimentos.
Por outro lado, não se impondo uma fundamentação ponto por ponto da matéria de facto, impõe-se, no entanto, que a fundamentação conjunta se reporte a um conjunto de factos relacionados e sobre os quais tenham incidido os mesmos meios de prova.
É, pois, necessário que, dessa fundamentação, se alcance, nos termos já referidos, a razão de ser das respostas dadas. Como refere Lebre de Freitas, in Código de Processo Civil Anotado, Volume 2º, Coimbra Editora, a pág. 629, ainda que no âmbito do processo civil, mas também com relevância no âmbito penal/contraordenacional “(…) está ultrapassada a discussão acerca da admissibilidade duma fundamentação em bloco, reportada a todos os factos objecto da prova, mediante mera indicação dos meios de prova relevantes para a formação da convicção judicial.
Assim também Marta Dias, A fundamentação do Juízo Probatório, in Revista Julgar, nº 13, pág. 195, ao referir que :
(…). Já quanto à especificação dos fundamentos decisivos para a convicção do julgador, parece claro que não se limita à mera enunciação dos concretos meios de prova. Tendo-se imposto uma análise crítica das provas, é implícita a maior exigência que o legislador quis imprimir ao dever de fundamentação.
Especificando os fundamentos decisivos para a formação da sua convicção, o julgador deverá conseguir justificar a suficiência ou insuficiência dos meios de prova produzidos e estabelecer um nexo entre a convicção e as provas.
Deve pois, na linha do que já vinha sendo defendido por Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, apontar as “razões de credibilidade ou da força decisiva reconhecida a esses meios de prova.
Conscientes da árdua tarefa, será de ir mais além, em especial no que toca à prova testemunhal e mesmo aos esclarecimentos prestados por peritos, exigindo que seja referido o sentido dos depoimentos e dos esclarecimentos. A lógica de oralidade em nada impede tal exigência, antes o impõe.
(…).
Não se exigirá ao juiz que transcreva, em forma de discurso indirecto, nem que resuma, o depoimento da testemunha ou o eventual esclarecimento do perito, mas antes que extraia dele os elementos que fundamenta, a decisão”, realçando novamente, na nota de rodapé 84 que, conquanto não seja exigível a transcrição do depoimento, deve contudo ser referido o sentido do depoimento da testemunha.
Também no Acórdão da RP 7.6.2017, P. 20/15.0GTPNF.P1, in www.dgsi.pt, se refere, no ponto III do respectivo sumário, que: “III - O artigo 374º, 2, do Código de Processo Penal exige, sob pena de nulidade da sentença penal, um exame crítico dos meios concretos de prova analisados em julgamento. Este só será suficiente quando identificar cabalmente o percurso lógico-dedutivo que presidiu à convicção firmada, não se confundindo com referências genéricas que, de tão abstratas, genéricas e esvaziadas de conteúdo preciso, ou que apenas reproduzam – total, ou parcialmente - o teor da prova produzida, não permitam perceber o que de útil, em concreto, o tribunal extraiu e valorou de cada meio concreto de prova produzido em julgamento e o motivo pelo qual assim decidiu.”.
E o Acórdão da RC de 27.09.2017, Proc. 266/15.1GAMIR.C1, in www.dgsi., de cujo sumário consta que “ I - Através da fundamentação da matéria de facto da sentença deverá ser possível perceber como é que, de acordo com as regras da experiência comum e da lógica, se formou a convicção do tribunal. II - O exame crítico das provas tem de ser aferido com critérios de razoabilidade, sendo fundamental que permita avaliar cabalmente o porquê da decisão e o processo lógico-formal que serviu de suporte ao respectivo conteúdo. III - Este ónus não é cumprido se o tribunal recorrido se limita a indicar ou a enumerar os meios de prova nos quais se apoiou para dar como provados os factos que deu. (…)”.

2.4. Revertendo ao caso em apreço, não estava em causa na impugnação judicial, apenas, questão de direito, sem qualquer controvérsia em sede de matéria de facto, sendo que a arguida, em tal impugnação, invocou factualidade em sua defesa, não se nos afigurando consubstanciar situação em que a decisão, mormente em sede de matéria de facto, pudesse ter lugar por mera adesão à decisão administrativa. Aliás, decorre da própria sentença que, quer em termos de decisão da matéria de facto, quer em matéria de direito, que a mesma não foi proferida por mera adesão à decisão administrativa.
E, na fundamentação da decisão da matéria de facto o Mmº Juiz limitou-se a referir o seguinte:
“O Tribunal considerou os documentos constantes dos autos conjugados com o depoimento das testemunhas DD, EE, FF e GG, não se tendo entrado na questão das causas do acidente por não ser propriamente essa a questão que está em causa nos presentes autos.”.
Ora, e conquanto a exigência da fundamentação da decisão da matéria de facto possa ou deva ser concisa e proporcional em função de cada caso em concreto, mas apta e suficiente ao fim a que se propõe a necessidade da fundamentação, no caso a fundamentação da decisão da matéria de facto é manifestamente insuficiente, dela constando, para além de uma referência (aliás genérica) aos documentos contantes dos autos, tão só a indicação dos nomes de quatro testemunhas inquiridas em julgamento, não se relacionando os depoimentos com nenhum facto em concreto, não se dizendo o sentido dos respectivos depoimentos, a razão de ciência das mesmas, a credibilidade, ou não, merecida, não se fazendo qualquer exame crítico da prova. Enfim e em suma, não se entende, minimamente que seja, a razão de ser/fundamentação dos concretos pontos da decisão da matéria de facto e o percurso e raciocínio lógicos, com base na referida prova, que estiveram na base dos concretos pontos da decisão da matéria de facto.
Impõe-se, pois, concluir que a sentença recorrida não deu cumprimento ao dever de fundamentação da decisão da matéria de facto previsto no art. 374º, nº 2, do CPP, aplicável ex vi das disposições legais já citadas (arts. 39º, nº 4, primeira parte, e 60º da Lei 107/2009 e 64º e 41º do DL 433/82), o que, nos termos do art. 379º, nº 1, al. a), do CPP, determina a sua nulidade parcial, impondo-se a sua reforma pelo mesmo Juiz, proferindo nova sentença onde seja suprida a mencionada omissão da fundamentação da decisão da matéria de facto, a não ser que a 1ª instância, com vista à reformulação da decisão, considere necessária a reabertura da audiência de julgamento [cfr. citado Acórdão da RP de 07.06.2017, Proc. 20/15.0TGTPNF.P1, in www.dgsi.pt].

3. A nulidade em causa prejudica a apreciação das demais questões suscitadas no recurso.
*
V. Decisão

Em face ao exposto, acorda-se, em conferência, em julgar o recurso procedente e, em consequência:
A. Declarar, nos termos dos arts. 374º 2, in fine, e 379º, nº 1, al. a), do CPP, ex vi dos arts. 39º, nº 4, primeira parte, e 60º, ambos da Lei 107/2009, de 14.09, e 41º, nº 1, do DL 433/82, de 27.19, na redacção do DL 244/95, de 14.09, parcialmente nula a sentença recorrida;
B. Determinar a reforma da sentença recorrida pelo mesmo Juiz, proferindo nova sentença onde seja suprida a mencionada omissão da fundamentação da decisão da matéria de facto, a não ser que a 1ª instância, com vista à reformulação da decisão, considere necessária a reabertura da audiência de julgamento.

Sem custas.

Porto, 08.06.2022

Paula Leal de Carvalho
Rui Penha
Jerónimo Freitas (que assina na qualidade de Presidente da Secção Social, dada a Presidente da referida Secção intervir nos autos como relatora)
___________________
[1] Beça Pereira, in Regime Geral das Contra Ordenações e Coimas, pág. 113 e segs.
[2] Simas Santos e Lopes de Sousa.