Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1069/16.1T8PVZ.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FILIPE CAROÇO
Descritores: CONTRATO DE SEGURO FACULTATIVO
PRIVAÇÃO DO USO DE VEÍCULO
VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM
INDEMNIZAÇÃO
Nº do Documento: RP201802211069/16.1T8PVZ.P1
Data do Acordão: 02/21/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 124, FLS 2-27)
Área Temática: .
Sumário: I - A inobservância da diligência mínima, com vista ao exato conhecimento do risco a que o segurador aceitou dar cobertura, implica, por aplicação dos princípios da boa fé e do abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprio, que aquele deverá suportar as inerentes consequências, não podendo, para se desvincular da execução do contrato, escudar-se posteriormente numa nulidade do contrato para a qual, com a sua omissão, contribuiu e teve oportunidade (e o dever) de evitar ao tempo da sua formação, solicitando informação essencial e mais detalhada ao tomador.
II - O princípio indemnizatório quadra também no seguro facultativo de responsabilidade por danos, previsto no art.º 128º da LCS, apenas limitado pelo que dispõe o subsequente art.º 131º. Ainda assim, neste caso, racionalmente balizado por forma a garantir a prevenção do enriquecimento do segurado com o sinistro, logo, dos sinistros fraudulentos e da desordenação social.
III - Ainda que o contrato de seguro facultativo não preveja tal cobertura, a privação do uso de veículo pode ser objeto de indemnização a favor do segurado quando a seguradora viole culposamente relevantes deveres acessórios de conduta ligados à boa fé na execução do contrato de seguro, assim contribuindo para a verificação daquele dano.
IV - Age em violação de deveres acessórios de conduta, a justificar a atribuição de indemnização pela privação do uso do veículo, a seguradora que se atrasa injustificadamente na conclusão da instrução do processo e com tal conduta obsta a que o mesmo receba a indemnização devida pela perda total do veículo e com esse valor contribua para a aquisição de um novo veículo, em substituição do sinistrado.
V - A privação do uso de veículo é um dano indemnizável ainda que, no caso, face ao tipo de dano causado, não seja quantificável sem recurso à equidade.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 1069/16.1T8PVZ.P1 (apelação)
Comarca do Porto – Póvoa de Varzim – Juízo Central Cível

Relator Filipe Caroço
Adj. Desemb. Judite Pires
Adj. Desemb. Aristides Rodrigues de Almeida

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I.
B..., residente na Rua ..., Bloco ., Entrada ..., Casa .., ....-... Porto, instaurou ação declarativa de condenação, com processo comum, contra C... – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., com sede na Avenida ..., n.º .., ..º Andar, ....-... Lisboa, alegando essencialmente que, ao conduzir o seu veículo (..-FJ-..) numa estrada com dois sentidos de marcha e uma via em cada um desses sentidos, foi encandeado por um veículo todo-o-terreno que surgiu pela sua frente, em sentido oposto, com as luzes de estrada ligadas (vulgo, máximos) e invadindo a via onde o A. transitava (da direita, atento o seu sentido de marcha). Para evitar a colisão com este veículo, desviou o FJ para a direita indo embater no veículo ..-EA-.. que estava estacionado na faixa de rodagem, provocando o imediato embate da frente deste automóvel na traseira do ..-..-DJ que então estava estacionado à frente do EA.
O A. deu-se como culpado, fazendo a respetiva declaração amigável, mas a R. não assumiu a responsabilidade.
Da colisão resultaram danos para o veículo do A., na parte frontal, cuja reparação a R. considerou inviável, considerando uma situação de perda total, com um valor de veículo de € 17.000,00.
Após, o A. vendeu o FJ no estado de salvado pelo valor de € 1.602,00, pelo que a R. deveria ter pago ao A. a quantia de € 15.398,00.
Depois do acidente, a imobilização do veículo provocou inúmeros transtornos, quer familiares, quer sociais, ao A., na medida em que o obrigava a pedir a amigos e familiares viaturas emprestadas para se deslocar, não tendo a R. providenciado por um automóvel de substituição, situação que ainda subsistia à data da petição inicial. Estima em € 50,00/dia --- valor que pagaria se recorresse a um rent a car --- a reparação de tal prejuízo, num total de € 25.950,00, considerando decorridos 519 dias desde o dia do acidente, a que acresce o valor que se vier a apurar até ao efetivo e integral pagamento da indemnização devida pela R.
A R. declinou a sua responsabilidade apenas cerca de 148 dias depois da participação do sinistro, quando o deveria ter feito no prazo de 15 dias a contar do dia 6, até 24.4.2015, devendo pagar € 100,00 ao A. e igual quantia a favor do Instituto de Seguros de Portugal por cada dia de atraso, o que perfaz a quantia de € 12.400,00 (124 dias).
Acrescenta que a R. é parte legítima por força do contrato de seguro pelo qual o A. transferiu para ela a responsabilidade civil por danos próprio. O acidente ocorreu no dia 31 de março de 2015 e o A. foi dono e legítimo proprietário do FJ até ao dia 27 de maio de 2015, quando vendeu o salvado.
Em resumo, constituiu-se a R. na obrigação de indemnizar o A., na quantia global de € 53.748,00 pelos danos que este sofreu em virtude do acidente relatado.
Terminou o seu articulado com o seguinte pedido:
«(…) deve a presente ação ser julgada totalmente procedente por provada e, em consequência, ser a Ré condenada a pagar ao Autor a quantia de € 53.748,00 (cinquenta e três mil setecentos e quarenta e oito euros), acrescida de juros, à taxa legal, desde a citação, até integral e efetivo pagamento.
Condenada ainda a quantia ao Autor a quantia que se vier a vencer, desde a presente data até efetivo e integral pagamento, a título de paralisação e privação de uso da viatura acidentada, na quantia diária de € 50,00 (cinquenta euros).» (sic)

Citada, a R. contestou a ação, começando por alegar que não tem obrigação de indemnizar o demandante porque o contrato de seguro que vigorava na data do acidente para o FJ fora celebrado com D..., com coberturas de choque, colisão e capotamento, mas sem que ela tivesse qualquer interesse no bem seguro, que nem sequer lhe pertencia. Era, aliás, o A., seu proprietário, que o utilizava diariamente e providenciava pela sua manutenção e conservação, tratando-o como coisa sua. Nada contratou com o A. Assim e por respeitar a um seguro de danos, o contrato é nulo.
Por outro lado, o alegado acidente de viação nunca ocorreu. Os danos materiais nos veículos envolvidos não são compatíveis com a descrição que o A. faz do acidente, pelo que também por essa razão não há obrigação de indemnizar.
A R. comunicou a D..., a segurada e titular do contrato, em 7.4.2015, que a reparação custaria € 14.277,00, valor que poderia aumentar após a desmontagem. Nada tinha que comunicar ao A. por nada ter contratado com ele.
Sendo o valor do veículo de apenas € 10.000,00 na data da peritagem, havia perda total.
Diz ainda a R. que, não tendo sido contratado o lucro cessante, nunca teria de pagar ao A. qualquer indemnização pela paralisação do automóvel. Ainda que assim não fosse, a obrigação de pagamento de tal indemnização sempre cessaria com a venda do salvado.
Também não é devida a sanção pecuniária compulsória reclamada, muito menos ao A. que não celebrou qualquer contrato de seguro com a R. A comunicação da R. à segurada pela qual declinou a sua responsabilidade foi atempada.
Concluiu a R. pela improcedência da ação.
Notificado para o efeito, o A. não respondeu à matéria de exceção alegada na contestação.
Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador tabelar a que se seguiu, além do mais, a definição do objeto do litígio e dos temas de prova.
Realizados alguns atos de instrução, teve lugar a audiência final, em várias sessões, após a qual foi proferida sentença com o seguinte dispositivo, ipsis verbis:
«Pelo exposto, decide-se julgar a acção parcialmente procedente, por provada e consequentemente, condenar a ré «C... – COMPANHIA DE SEGUROS, SA» a pagar ao autor B... a quantia de €10.900,00 (dez mil e novecentos euros), acrescido de juros de mora, à taxa legal, contados desde a citação, até efectivo e integral pagamento.
No mais, decide-se absolver a ré do pedido.
Custas por autor e ré na proporção do respectivo decaimento.»
*
Inconformados, recorreram o A. e a R., de apelação:
No seu recurso, o A. formulou as seguintes CONCLUSÕES:
«1 – O Recorrente deu entrada da presente ação, pedindo a condenação da Recorrida no pagamento da quantia global de € 53.748,00 (cinquenta e três mil setecentos e quarenta e oito euros), em virtude de um sinistro automóvel, envolvendo a viatura automóvel do Autor, com a matrícula ..-FJ-.. e as viaturas automóveis com as matrículas ..-EA-.. e ..-..-DJ.
2 – Acresce que D..., mãe da companheira do Recorrente subscreveu com a Recorrida um contrato de seguro de danos próprios para a sua viatura, constando como condutor habitual o aqui Recorrente.
3 – Por sua vez, a Recorrida contestou, alegando a nulidade do contrato de seguro e impugnando a versão do acidente apresentada pelo Recorrente, alegando uma versão completamente distinta à versão do Recorrente.
4 – Foi realizada a respetiva audiência de discussão e julgamento, com a consequente produção de prova, tendo sido proferida a sentença ora sob escrutínio.
5 – No seguimento da matéria dada como provada e não provada, o Tribunal a quo decidiu condenar parcialmente a Recorrida no pagamento ao Recorrente da quantia de € 10.900,00 (dez mil e novecentos euros), acrescida de juros de mora à taxa legal, desde a citação até efetivo e integral pagamento.
6 – O Recorrente peticionou uma quantia diária de € 50,00 (cinquenta euros), pela privação da utilização da sua viatura automóvel, num total de 519 dias, que perfazia, à data da propositura da ação, a quantia de € 25.950,00 (vinte e cinco mil, novecentos e cinquenta euros).
7 – Porém, o Tribunal a quo entendeu que não era devida a referida indemnização, uma vez que não tinha sido convencionado entre as partes a cobertura pelo dano da privação do uso da viatura automóvel do Autor.
8 – Não pode o recorrente aceitar a entendimento do Tribunal a quo, relativamente à indemnização peticionada pelo Autor quanto à privação do uso da sua viatura automóvel.
9 – É referido na sentença recorrida que o veículo FJ ficou imobilizado, tendo inclusivamente sido vendido no estado de salvado (17. dos factos provados).
10 – Ora, salvo o devido respeito, não se percebe, nem se alcança o entendimento dado pelo Tribunal a quo, quando refere expressamente que não podem ser assacadas responsabilidades à Recorrida, pelos danos sofridos pelo Recorrente.
11 – Aceitando que a privação do uso de um veículo é, em si mesma, um dano indemnizável, desde logo, por impedir o proprietário (ou, eventualmente, o titular de outro direito, diferente do direito de propriedade, mas que confira direito a utilizá-lo) de exercer os poderes correspondentes ao seu direito, não é menos verdade que a ré, ao abrigo do seguro de danos próprios dos autos, só estaria obrigada a ressarcir tal dano se a sua conduta consubstanciasse a violação de um dever acessório da prestação, nomeadamente por ter atrasado inexplicavelmente a ordem de reparação da viatura.
12 – Tal dever, não resultando do contrato, resulta sem dúvida do princípio da boa fé, tal como plasmado no artigo 762.º n.º 1 do Código Civil, representando uma transferência, para o campo contratual, do princípio neminem laedere.
13 – Assim, quem venha a incorrer em responsabilidade contratual, por esta via, deve indemnizar o dano positivo que resultou para a contraparte, previsto no artigo 798.º n.º 1 do CC.
14 – Do elenco dos factos julgados como provados resulta claro que a Recorrida não cumpriu com a sua obrigação de indemnizar, não tendo, inclusive, até à presente data, efetuado o pagamento do valor da viatura automóvel do Recorrente.
15 – Dispõe o artigo 563.º do Código Civil que “A obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão”.
16 – Assim, em face do direito constituído, “o autor do facto só será obrigado a reparar aqueles danos que não se teriam verificado sem esse facto e que, abstraindo deste, seria de prever que não se tivessem produzido” (Antunes Varela in Das Obrigações em Geral, Volume I, 6.ª Edição, pág. 869), de modo que o facto tenha atuado como condição adequada do dano em termos abstratos.
17 – Além disso, conforme observa Pereira Coelho, in Obrigações, pág. 166, “não é necessário uma causalidade direta, basta uma indireta (o autor da lesão é responsável por todos os factos ulteriores que eram de esperar segundo o curso normal das coisas, ou foram especialmente favorecidos pela conduta do agente quer na sua própria verificação quer a sua atuação concreta em relação ao dano de que se trata”.
18 – Assim, quem estiver obrigado a reparar um dano, deve reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga a reparação (artigo 562.º do Código Civil), sendo certo que a obrigação de indemnização só existe relativamente aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão (artigo 563.º do Código Civil), compreendendo o prejuízo causado e os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão (artigo 566.º n.º 2 do Código Civil).
19 – A propósito do segmento da pretensão do aqui Recorrente, não se pode ignorar que a privação do uso do veículo automóvel FJ, desacompanhada da sua substituição por outro veículo de idênticas características ou do pagamento de uma quantia bastante para alcançar o mesmo efeito, reflete o corte definitivo e irrecuperável de uma “fatia” dos poderes inerentes ao proprietário.
20 – Nestas circunstâncias, não custa compreender que a simples privação do uso seja causada e adequada de uma modificação negativa na relação entre o lesado e o seu património que possa servir de base à determinação da indemnização.
21 – E mesmo que se considere que a situação não atinge a gravidade suscetível de merecer a sua inclusão na categoria de danos morais, nos termos do artigo 496.º n.º 1 do Código Civil, é incontornável a perceção de que entre a situação que existia se não houvesse o sinistro e aquela que se verifica na pendência da privação existe um desequilíbrio que, na falta de outra alternativa, deve ser compensado através da única forma possível, ou seja, mediante a atribuição de uma quantia adequada (cfr. ac. da RP, de 05.02.2004, que pode ser consultado em http://www.dgsi.pt, n.º convencional JTRP00035746, ou na CJ, tomo I).
22 – É que o simples uso constitui uma vantagem suscetível de avaliação pecuniária, pelo que a sua privação, por via de regra, constitui um dano, sendo certo que na determinação do respetivo “quantum” indemnizatório – com base na equidade – é costume os tribunais socorrerem-se no valor locativo da viatura respetiva (de igual categoria e estado de uso).
23 – Além disso, para ressarcir os prejuízos sofridos em virtude de danos verificados num veículo por força de um sinistro deve-se, antes de mais, repor em substância a utilidade perdida pelo lesado.
24 – Na vertente do dano patrimonial, conforme emerge da causa de pedir, deverá o tribunal arbitrar uma quantia com base em critérios de equidade, havendo que considerar um período de privação de uso da viatura compreendido entre a data do sinistro e a data em que a Ré se prestou a indemnizar o Autor por todos os danos por ele sofridos (cfr. ac. da RP de 05.02.2004, in CJ, tomo I, pág. 179).
25 – Ora, até ao momento, a Recorrida não se disponibilizou para pagar ao Recorrente qualquer indemnização, sendo certo que este, em todo o caso, mesmo que alguma proposta lhe tivesse sido feita (o que não sucedeu, visto que a Recorrida sustentou que se tratou de uma simulação de sinistro), não estava obrigado a aceitar o pagamento de uma indemnização que não o ressarcisse de todos os danos por si sofridos, pelo que aqui nunca se colocaria a questão da mora do credor (cfr. artigos 763.º n.º 1 e 813.º do Código Civil).
26 – No caso dos autos, nem isso está sequer em causa, visto que a Recorrida declinou qualquer responsabilidade pelo pagamento ao Recorrente de qualquer indemnização.
27 – Consequentemente, como a Recorrida não se prestou a indemnizar, até ao dia de hoje, por todos os danos sofridos pelo Recorrente, o período a considerar para a quantificação do dano em causa é o que medeia entre a data do sinistro e a data de hoje, pois, neste período de tempo, manteve-se o direito à indemnização pelo dano de privação de uso de tal viatura.
28 – Na avaliação do dano, deve-se procurar alcançar uma reconstituição efetiva, por equivalente ao valor em dinheiro, que corresponda ao montante dos danos.
29 – A sua quantificação depende, porém, de muitos fatores, designadamente da periodicidade da utilização do veículo, dos atos que deixaram de ser praticados pelo Recorrente em face da privação do uso da sua viatura, dos atos acrescidos que por esse motivo teve de praticar, dos incómodos causados ao próprio ou a terceiros para com os quais o lesado fica a dever favores, devendo-se ainda ter em atenção o valor médio que as empresas de aluguer de automóveis cobram pela disponibilização de um veículo com idênticas características.
30 – Nesta conformidade, parece-nos adequada a quantia de € 50,00 (cinquenta euros) diários (corresponde sensivelmente ao valor diário de uma viatura utilitária nova), tendo presente os transtornos sofridos pelo Recorrente, que foi forçado a recorrer a familiar e amigos para se fazer deslocar, recorrendo igualmente a transportes públicos.
31 – A indemnização pela privação do uso de uma viatura automóvel no seguimento de um acidente automóvel é amplamente discutida na jurisprudência e na doutrina.
32 – O entendimento, quanto à indemnização pela privação do uso de uma viatura, no âmbito de um contrato de seguro de danos próprios, divide-se, existindo decisões dos Tribunais Superiores que entendem que a mesma não é devida se não constar do respetivo contrato de seguro, havendo outras que entendem que as seguradoras que, injustificadamente, se recusem a indemnizar, têm de ser responsabilizadas pelos prejuízos que causarem, nomeadamente, a título de privação do uso da viatura.
33 – Este é precisamente o entendimento sufragado no douto acórdão do Insigne Tribunal da Relação de Lisboa, de 13-10-2016, no âmbito do processo n.º 716/14.4TJLSB.L1-2, cujo relator foi o Distinto Desembargador Jorge Leal.
34 – Entendimento partilhado igualmente pelo aqui Recorrente.
35 – Pois entende que deverá ser indemnizado pela Recorrida, quanto à privação do uso da sua viatura automóvel.
36 – Ora, face ao supra exposto, à factualidade dada como provada pelo Tribunal a quo, dúvidas não restam de que a Recorrida poderia e deveria ter indemnizado o Recorrente no valor de € 10.900,00 (dez mil e novecentos euros) correspondente ao da sua viatura automóvel, assim que foi participado o sinistro.
37 – Todavia, optou a Recorrida por declinar a sua responsabilidade, alegando, primeiro, que o contrato de seguro não era válido, segundo, que o sinistro não tinha ocorrido.
38 – Bem sabendo que estava a causar graves prejuízos ao Recorrente, como, aliás, ficou demonstrado na sentença sob censura.
39 – Assim, tem a Recorrida que indemnizar o Recorrente por esses mesmos prejuízos, nomeadamente no valor da privação do uso da viatura automóvel daquele, devendo ser alterada a sentença sob análise, por não ter sido valorado, corretamente, o dano sofrido pelo Recorrente com a privação do uso da sua viatura automóvel, em virtude do sinistro da responsabilidade da Recorrida.
40 – Assim, deverá a sentença recorrida ser revogada na parte em que não é fixada qualquer indemnização pela privação do uso da viatura automóvel do Recorrente, e, em consequência, fixada uma indemnização, no valor de € 50,00 (cinquenta euros) diários, desde a data do acidente, 31 de Março de 2015 até efetivo e integral pagamento da indemnização por parte da Recorrida.» (sic)
Defendeu, assim, o A. que a decisão recorrida deve ser revogada na parte em que não é fixada qualquer indemnização pela privação do uso do veículo e substituída por outra que condene a Recorrida no pagamento ao Recorrente de uma indemnização por aqueles mesmos danos de privação de uso, no montante de € 50,00 diários, desde a data do acidente, 31 de março de 2015, até à data do efetivo pagamento,
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Por seu turno, a R. CONCLUIU assim a sua apelação:
«1. Face ao documento n° 13 junto pela Ré com a sua contestação (declaração manuscrita e assinada pelo Autor),
2. Face às fotografias juntas pela Ré com a sua contestação (fotografias da traseira do BMW com a matrícula ..-EA-.. e da frente do Ford ... com a matrícula ..-FJ-..),
3. Face ao relatório técnico junto aos autos através do requerimento com a referência 24980930,
4. Face as fotografias juntas pelo Autor através do requerimento com a referência 25332772),
5. Face ao depoimento da testemunha Eng.° E..., que foi ouvido na sessão da audiência de julgamento de 10 de Julho de 2017, com depoimento gravado e com início às 14H47M18S e fim às 15H51M11S,
6. Entende a Ré que o Tribunal recorrido não podia dar como provados os factos constantes dos n°s 4 e 6 a 13 da factualidade provada e constante da douta sentença recorrida,
7. Nos termos das alíneas a), b) e c) do n° l do art. 640° do Código de Processo Civil, entende e defende a Ré que os factos constantes dos n°s 4 e 6 a 13 da factualidade provada e constante da douta sentença recorrida não podem ser dados como provados, ou seja, têm de ser dados como não provados.
8. E isto, porque dos meios de prova acima referidos em 1. A 5. destas conclusões se tem de concluir que o acidente de viação descrito e alegado na petição inicial não existiu.
9. Assim, face aos meios probatórios indicados pela Ré neste seu recurso, não pode dar-se como provados os factos que constam dos n°s 4 e 6 a 13 da douta sentença recorrida,
10. Devendo revogar-se a douta sentença recorrida nesta parte e quanto à matéria de facto – é o que se requer nos termos do art. 662° do Código de Processo Civil.
11. A não se darem como provados os íactos acima referidos, a acção tem de ser julgada totalmente improcedente, atento o disposto no art. 342° do Cod. Civil e bem assim no art. 1° do Regime Jurídico do Contrato de Seguro aprovado pelo Decreto-lei nº 72/2008, que assim se mostram violados.
12. É que não ficou provado que o Autor tivesse sofrido um acidente de viação do qual resultasse dano para o seu património – sendo que a Ré só responde em caso de ocorrência de um sinistro.
13. Mas não só pela invocada razão deve a Ré ser absolvida do pedido – é que, lace aos factos provados ocorreu nulidade do contrato de seguro, o que determina que a Ré não esteja obrigada ao cumprimento da prestação que contratualmente para si advinha do invocado contrato de seguro.
14. A nulidade do contrato de seguro decorre do facto de a segurada não ter interesse digno de protecção legal no bem seguro, aliás, não tem nenhum interesse no bem seguro.
15. E nem se diga que o contrato é válido, como se escreve na douta sentença recorrida, porquanto nenhum facto foi alegado e muito menos provado que evidencie que a seguradora, a Ré, “não fez quaisquer diligências no sentido de apurar que o veículo seguro pertencia a um terceiro que não a segurada proponente do seguro” ou “omitiu o dever de análise e confirmação da declaração de risco”.
16. A sentença tem de se basear em factos alegados pelas partes e nenhuns factos foram alegados no sentido que o Tribunal recorrido decidiu – uma verdadeira sentença surpresa.
17. Por isso, a única conclusão a tirar dos factos provados é a de que o contrato é nulo e a Ré não está obrigada a indemnizar, pelo que
18. Foram violados os arts. 1°, 24°, 43°, 47° e 123° do RJCS (Decreto-lei n° 72/2008) e bem assim nos arts. 298°, 397° e 405° do CCV, o que impõe a revogação da douta sentença recorrida e a consequente absolvição da Ré do pedido.
19. Mesmo que não proceda o que acaba de se alegar, o que apenas se admite por mera hipótese de raciocínio, nunca a Ré podia ser condenada no montante de 10.900,00 €, pois que a esse montante há que descontar o montante de 1.062,00 €, que corresponde ao valor pelo qual o Autor vendeu o salvado.
20. Assim, a condenação em 10.900,00 €, para além de violar as normas acima referidas, viola os arts. 123°, 128° e 130° do RJCS (Decreto-lei nº 72/2008), o que impõe a revogação da douta sentença recorrida.» (sic)
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A R. ainda respondeu à apelação do A., defendendo a sua improcedência.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II.
O objeto do recurso está delimitado pelas conclusões de ambas as apelações, de A. e R., acima transcritas, sendo que se apreciam apenas as questões invocadas e relacionadas com o conteúdo do ato recorrido, delas retirando as devidas consequências, e não sobre matéria nova, exceção feita para o que for do conhecimento oficioso (cf. art.ºs 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º do Código de Processo Civil).
Somos chamados a decidir as seguintes questões[1]:
1. Do recurso da R.:
a) Nulidade do contrato de seguro;
b) Erro de julgamento na decisão em matéria de facto;
c) Consequência jurídicas da alteração daquela decisão;
d) Desconto do valor do salvado na indemnização por perda total do veículo.

2. Do Recurso do A.:
d) O seguro facultativo e a atribuição de indemnização por privação do uso do veículo.
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III.
É a seguinte a matéria de facto dada como provada na 1ª instância:
1. Até Maio de 2015, o Autor foi o proprietário do veículo automóvel ligeiro de passageiros da marca Ford, modelo ..., com a matrícula ..-FJ-..;
2. Nessa data, estava em vigor o contrato de seguro celebrado entre a Ré e D..., titulado pela apólice ........., pelo qual foi transmitida para a Ré a responsabilidade civil emergente da circulação do veículo automóvel de matrícula ..-FJ-.., até ao limite de €5.000.000.000,00 para a reparação de danos corporais e de €1.000.000,00 para a reparação de danos materiais, bem como a cobertura facultativa de choque, colisão e capotamento – à data pelo capital de €10.900,00 (dez mil e novecentos euros) e sem franquia a cargo do segurado - tudo conforme condições particulares e gerais juntas a fls. 42 e segs. com o teor que aqui se dá por integralmente reproduzido;
3. Nesse contrato de seguro o aqui autor figura como condutor habitual;
4. No dia 31 de Março de 2015, pelas 22 e 30 minutos, o Autor conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros, de marca Ford, modelo ..., com a matrícula ..-FJ-.., pela Rua ..., em ..., Maia, em direcção à ... (Nacional 14);
5. No local, a estrada apenas possui uma faixa de rodagem para cada um dos sentidos de trânsito;
6. Na dita Rua ..., encontrava-se estacionado, no lado direito da faixa de rodagem, atento o sentido de trânsito do veículo conduzido pelo Autor, o veículo comercial com a matrícula ..-..-DJ;
7. No mesmo lado direito da aludida faixa de rodagem, imediatamente antes do DJ, encontrava-se igualmente estacionado o veículo ligeiro de passageiros, da marca BMW, com a matrícula ..-EA-..;
8. No momento em que se aproximava daqueles dois veículos estacionados, o Autor cruzou-se com um veículo todo-o-terreno que seguia em sentido contrário;
9. O qual tinha acabado de sair da ... e entrava na Rua ..., em direcção a ...;
10. Circulava de forma a ocupar a faixa de rodagem destinada ao trânsito que seguia em sentido contrário, por onde na ocasião, seguia o veículo do Autor;
11. Procurando evitar o embate com este veículo, o Autor desviou o veículo que conduzia para o seu lado direito e foi embater na traseira do veículo de matrícula EA;
12. Com a força deste embate, o veículo de matrícula EA foi projectado para a frente, indo embater com a sua frente, na traseira do veículo de matrícula DJ;
13. Em virtude do embate, o veículo de matrícula FJ sofreu danos e ficou imobilizado na Rua ...;
14. Foi elaborada a participação amigável do acidente que foi remetida à Ré;
15. Após peritagem realizada ao veículo, o custo da reparação foi orçado em €14.277,00;
16. A Ré enviou à tomadora do seguro, que recebeu, a carta datada de 7 de Abril de 2014, cuja cópia está junta a fls. 39 vs e 40, com o teor que aqui se dá por integralmente reproduzido, onde, além do mais, comunicava que considerava a reparação economicamente inviável;
17. Em 27 de Maio de 2015, o Autor vendeu a viatura de matrícula FJ no estado de salvado à sociedade «F…, SA», recebendo o preço de €1.602,00;
18. À data do acidente, a Ré havia dado ao veículo de matrícula FJ o valor de €10.900,00;
19. Por carta de 26 de Agosto de 2015 – cuja cópia está junta a fls. 14 com o teor que aqui se dá por integralmente reproduzido - a Ré comunicou à tomadora do seguro que não assumia a responsabilidade pela reparação dos danos decorrentes do acidente, alegando que estes não se apresentam compatíveis com a dinâmica do acidente participado”;
20. O veículo de matrícula FJ era utilizado pelo Autor e pela sua companheira nas deslocações profissionais e de lazer de ambos, servindo igualmente para levar a filha menor à escola,
21. A imobilização do seu veículo causou ao Autor transtornos, obrigando-o recorrer a transportes públicos e a pedir emprestados viaturas automóveis a familiares e a amigos para se deslocar;
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A 1ª instância deu como não provada a seguinte matéria:
a. O veículo identificado em 8) seguia a uma velocidade superior a 50 km/hora e com as luzes de máximos ligadas;
b. Em Maio de 2015, a Ré informou o Autor que a viatura não tinha reparação;
c. Era o autor quem utilizava exclusivamente o veículo de matrícula FJ;
d. Aquando da apresentação da proposta de seguro, a tomadora D... não informou a Ré que estava a efectuar o seguro em nome de outrem.
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IV.
Ab initio est ordiendum.
1. Da apelação da R.
a) Nulidade do contrato de seguro
Para a decisão desta questão, importa atender, sobretudo, aos seguintes factos provados (não impugnados nas apelações):
Até maio de 2015, o A. foi o proprietário do veículo automóvel ligeiro de passageiros da marca Ford, modelo ..., com a matrícula ..-FJ-...
Nessa data, estava em vigor o contrato de seguro celebrado entre a R. e D..., titulado pela apólice ........., pelo qual foi transmitida para a R. a responsabilidade civil emergente da circulação daquele veículo para a reparação de danos corporais e para a reparação de danos materiais, bem como a cobertura facultativa de choque, colisão e capotamento.
Nesse contrato de seguro, o A. figura como condutor habitual.
Esta matéria de facto ou outra com ela relacionada não foi impugnada na apelação, pelo que se mantém incólume.
Na data tida como a da ocorrência do sinistro com o referido veículo (31.3.2015) estava em vigor a referia apólice de seguro, com uma alteração anterior de 17.4.2013, como atesta o documento nº 2 junto com a contestação.
Resultou não provado que o A. fosse utilizador exclusivo do veículo FJ e que, aquando da apresentação da proposta de seguro, a tomadora D... não informou a R. que estava a efetuar o seguro em nome de outrem.
Estamos, pois, perante uma situação em que o proprietário do veículo não é o tomador do seguro nem nele figura como segurado, mas apenas como condutor habitual, sendo sua tomadora D.... No entanto, é o A. que, por via da ação, aciona o contrato de seguro facultativo contra o segurador por danos próprios no veículo.
A questão é saber se, nestas condições, o contrato deve ser considerado nulo, por falta de interesse digno de proteção legal do A. relativamente ao risco coberto, nos termos do art.º 43º, nº 1, da Lei do Contrato de Seguro (LCS).[4]
Sem que dê uma definição legal, o art.º 1º da LCS dispõe que “por efeito do contrato de seguro, o segurador cobre um risco determinado do tomador do seguro ou de outrem, obrigando-se a realizar a prestação convencionada em caso de ocorrência do evento aleatório previsto no contrato, e o tomador do seguro obriga-se a pagar o prémio correspondente”.
A doutrina e a jurisprudência têm tentado definir o contrato.
O contrato de seguro é “o contrato aleatório por via do qual uma das partes (o segurador) se obriga, mediante o recebimento de um prémio, a suportar um risco, liquidando o sinistro que venha a ocorrer”[5]. Uma pessoa singular ou coletiva (tomador do seguro) transfere para uma empresa especialmente habilitada (segurador) um determinado risco económico próprio ou alheio, obrigando-se a primeira a pagar uma determinada contrapartida (prémio) e a última a efetuar uma determinada prestação pecuniária em caso de ocorrência do evento aleatório convencionado (sinistro). É um contrato sinalagmático e oneroso, já que dele resultam obrigações para ambas as partes, consubstanciadas em atribuições e custos patrimoniais (o segurador assume um risco alheio mas encaixa um preço, e o tomador paga um prémio alijando um risco) - mas também contrato aleatório - caracterizado por uma álea intrínseca, onde reina um estado de incerteza quanto ao significado patrimonial do contrato para os contraentes.
Ao celebrarem o contrato, as partes assumem que em consequência de circunstâncias fortuitas, uma delas possa ganhar e outra possa perder, não podendo estas reagir contra o desequilíbrio patrimonial do contrato (ao contrário do que sucede nos contratos cumulativos), porquanto “os negócios aleatórios são negócios de risco (…), e o risco desse desequilíbrio é voluntária e conscientemente assumido, como próprio do contrato”.[6]
O contrato de seguro contém, na sua estrutura lógico-formativa, elementos de natureza pessoal, como sejam o segurador, o segurado, o tomador do seguro e o beneficiário; de natureza natural, humana ou social, que se traduz numa potencialidade de risco, o interesse, no sentido do interesse que o segurado tem no bem exposto ao risco, ou seja a “relação económica existente entre um sujeito e um bem, a qual tem um valor cuja diminuição ou perda há-de ser compensada pela indemnização do seguro” e, finalmente, o prémio, “contraprestação paga pelo tomador do seguro ou o segurado pela deslocação do risco para o segurador.”[7]
Se no contrato de seguro é necessariamente parte o segurador e o tomador, nem sempre o segurado coincide com este último. O segurado, enquanto pessoa que se situa dentro da esfera de proteção direta e não meramente reflexa do seguro, surge muitas vezes no contrato como a pessoa por conta da qual o tomador celebra o contrato. Nas situações mais simples, o segurado será o próprio tomador, mas noutros casos poderá haver um ou mais terceiros segurados, justamente as pessoas que, não tendo contratado o seguro, ficam por ele cobertas.
O risco é, evidentemente, o elemento nuclear do seguro: não há seguro sem risco. O sinistro, por seu lado, corresponde à verificação, no todo ou em parte, dos factos compreendidos no risco assumido pelo segurador. Em sentido amplo e próprio, o risco assumido, pelo contrato de seguro, pelo segurador, é o de qualquer evento futuro, aleatório na sua verificação ou no momento da sua verificação e que obrigue aquele a satisfazer determinada prestação. Verificado o sinistro, o segurador deve pagar ao segurado o capital seguro, até ao limite do dano.
A LCS classifica os contratos de seguro à luz de uma divisão fundamental: os seguros de danos e os seguros de pessoas (respetivos art.ºs 123º a 174º e 175º a 217º). Os seguros de danos são os contratos de seguro que têm por finalidade a cobertura de riscos relativos a coisas, bens materiais, créditos e outros direitos patrimoniais (art.º 123º da LCS). Também podem ser facultativos ou obrigatórios consoante são celebrados livremente pelo tomador do seguro ou por imposição legal.
O que, no caso, se discute é a validade de um contrato de seguro de danos na sua cobertura facultativa, relativa a danos materiais ocorridos no veículo FJ por choque, colisão e capotamento, contratados entre a D... e a R.
Na perspetiva da R., o A. não foi tomador nem é segurado no contrato de seguro e, como tal, não tem um interesse digno de proteção legal tutelado pelo contrato. Segurada é a D..., que, para além de não ser parte na ação, também não tem qualquer interesse no bem seguro, por não ser sua proprietária. Por isso, defende que a apólice é nula nos termos do art.º 43º, nº 1, da LCS.
Vejamos.
Dispõe aquele art.º 43º, sob o nº 1, que “o segurado deve ter um interesse digno de protecção legal relativamente ao risco coberto, sob pena de nulidade do contrato”.
É esta uma regra legal imperativa (art.º 12º da LCS).
Segundo o nº 2 do mesmo artigo, “no seguro de danos, o interesse respeita à conservação ou à integridade de coisa, direito ou património seguros”.
A existência de um interesse segurável constitui, com efeito, um dos princípios fundamentais do direito do contrato de seguro. “O interesse no seguro não é um simples aspecto particular do regime jurídico do contrato de seguro, é um elemento essencial, do qual depende a validade do contrato; e essa essencialidade do interesse manifesta-se, além do mais, na natureza absolutamente imperativa da disposição (art. 12.°) (…) é configurado como a relação que liga uma pessoa ao objecto desse interesse (…) O interesse apresenta, assim, uma dupla dimensão: por um lado é a relação entre um sujeito e o objecto desse interesse [v.g. art. 125.°, n.ºs 2 e 3], e, por outro lado, é o valor pecuniário (do interesse) exposto ao risco”.[8]
Tal interesse é sempre de natureza patrimonial e, no seguro de dano, o interesse tem um impacto diferente do que tem nos seguros de pessoas. Naquele, que aqui releva, assume, por um lado, a forma de relação entre o segurado e o bem exposto ao risco, e, por outro lado, apresenta-se como medida limite do ressarcimento da lesão (do interesse).
Como se refere no acórdão da Relação do Porto de 18.5.2017[9], “na busca do interesse do segurado, não deve abstrair-se da função que a prestação desempenha no contexto do seguro: a função de satisfação de uma necessidade eventual, aferida, em abstracto, pela existência de uma relação de natureza económica entre o segurado e o bem seguro: o objecto do interesse que entre nós se exige ao segurado não é o próprio bem seguro, ou sequer a prestação do segurador, se desligada da sua finalidade própria, mas antes e sobretudo, a sua atribuição característica: a cobertura”. O interesse para o efeito relevante haverá de traduzir-se, em termos de expressão de valia económica, numa relação entre o segurado e o bem exposto ao risco que se pretende tutelar, de forma a compensar os prejuízos derivados da frustração das utilidades patrimoniais que esse bem proporciona ao sujeito em causa.
Afirma Menezes Cordeiro[10] que “no seguro de danos, o interesse configura-se como uma relação existente entre o segurado e o valor patrimonial seguro: uma orientação sufragada pelo artigo 47.º/1. A lei não refere esse tipo de relação: tendencialmente, tratar-se-á de propriedade ou de outra forma de titularidade, incluindo posições ativas em obrigações ou em valores imateriais”.
Essa relação económico-jurídica que está na base do interesse que confere validade ao contrato de seguro não se esgota nos institutos da propriedade, usufruto, posse ou mesmo numa relação creditícia. A simples detenção, quando legítima, pode justificar o interesse em segurar. [11] Em todo o caso, mostra-se necessário que recaia sobre o segurado o risco que o seguro se destina a cobrir e que, como consequência desse risco, a cobertura tenha para ele alguma utilidade.[12]
Como se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22.3.2007[13], “o interesse no seguro deve ser específico, actual, lícito e de natureza económica, --- uma vez que o contrato de seguro se destina a cobrir um risco de carácter patrimonial ---, derivado de uma relação juridicamente relevante do segurado com o objecto do seguro que origine para ele a possibilidade de extrair da coisa segura utilidades ou vantagens de natureza económica, ou de sofrer dano também económico em consequência do exercício de actividade que com ou sobre esse objecto a sua relação jurídica que o abranja lhe permita exercer. E, como é manifesto, destinando-se o contrato de seguro automóvel a transferir para a seguradora a responsabilidade do seu segurado pelo pagamento de indemnizações provocadas por ou com um veículo automóvel, a responsabilidade daquela depende da responsabilidade que sobre o segurado recaia como proprietário ou detentor legítimo do veículo seguro, pressupondo a existência da responsabilidade do mesmo segurado, e nisto consistindo o interesse dele no objecto do seguro”.
O interesse será a relação económica existente entre um sujeito (o segurado) e um bem exposto ao risco, a qual assumirá uma feição jurídica, na medida em que releva a relação jurídica que lhe está subjacente.
Escreveu-se ainda no mesmo acórdão: “Como tem sido jurisprudência dominante, há que considerar que, figurando como segurado quem não corre qualquer risco patrimonial de responsabilidade civil em caso de acidente automóvel, faltará o interesse segurável, pelo que o contrato estará ferido de nulidade (…)”[14].
Como assim, tem sido entendido na jurisprudência que “inexiste interesse segurável relevante quando, e especificamente em caso de acidente de viação, dele não resulte qualquer risco patrimonial de responsabilidade civil para quem no contrato de seguro figura como segurado. Nesta hipótese, o contrato é nulo”.[15]
É fundamental chamar agora à colação o art.º 47º da LCS, segundo o qual:
1 - No seguro por conta própria, o contrato tutela o interesse próprio do tomador do seguro.
2 - Se o contrário não resultar do contrato ou do conjunto de circunstâncias atendíveis, o seguro considera-se contratado por conta própria.
3- (…)”.
De fundamental, emerge do nº 1 que, no seguro por conta própria, o tomador do seguro é também o segurado e o beneficiário do contrato, pelo que o contrato traduz a coincidência de três posições jurídicas, a de tomador do seguro, segurado e beneficiário.
Do nº 2 resulta uma presunção ilidível de seguro por conta própria, tal como decorria já do ora revogado art.º 428°, § 2°, do Código Comercial. A diferença essencial reside na circunstância de, para além da apólice, se dever agora também perscrutar o conjunto de circunstâncias atendíveis, o que resulta da desnecessidade de observância de forma especial no contrato de seguro (art.º 32° da LSC).
Tendo sido tomador do seguro D..., caso nada resulte em contrário do contrato ou do conjunto de circunstâncias atendíveis inerentes à sua celebração, o seguro considera-se firmado por conta própria da tomadora que, assim, é também a segurada e beneficiária do contrato.
Deve notar-se que, quando o tomador do seguro atue por conta do segurado, no designado seguro por conta de outrem, é essencial que o segurado seja identificado na apólice (art.º 37°, n° 2, al. b), da LCS), sob pena de o seguro se considerar contratado por conta própria (art.º 47.°, nº 2, da mesma lei) e, consequentemente, inexistindo interesse no seguro por parte do tomador, o seguro ser nulo.
Retomando agora a análise dos factos relevantes, constata-se que o A. figura nos termos da apólice como condutor habitual do veículo. Não há ali qualquer outra referência à sua pessoa, designadamente à qualidade de segurado. Também não estão provadas quaisquer circunstâncias que possam relevar decisivamente no sentido afastar que a constituição do seguro por conta própria (da tomadora).
Temos para nós que não é por o A. ter sido identificado no seguro (apenas) como condutor habitual e se ter demonstrado agora que foi o proprietário do FJ e de o ter utilizado habitualmente com a sua companheira no desenvolvimento da vida doméstica que permite concluir que a tomadora constituiu a relação de seguro por conta dele.
Havemos, assim, de considerar que a D... é tomadora e segurada por conta própria no contrato de seguro. Porém, não sendo sua proprietária ou sequer detentora, não se conhecendo qualquer titularidade ou mesmo simples utilização do FJ, não tem ela um interesse digno de proteção legal relativamente ao risco coberto. Face aos factos provados, é inquestionável que, em caso de acidente de viação envolvendo o veículo de que é proprietário o A., dele nunca resultaria qualquer risco patrimonial de responsabilidade civil para a D..., que, por conta própria, celebrou contrato de seguro. Sendo segurado quem não corre qualquer risco patrimonial de responsabilidade civil em caso de acidente automóvel, faltará o interesse segurável, pelo que o contrato estará ferido de nulidade[16]. Não tem legitimidade substantiva. De resto, não é parte na ação e não pretende obter qualquer reparação da seguradora.
Com efeito, o contrato é nulo, nos termos do art.º 43º, nº 1, da LCS.
Mas, poderá a R. seguradora opor a nulidade do contrato ao A., lesado no acidente?
As seguradoras são a parte mais forte na relação de seguro. O contrato de seguro é normalmente um contrato de adesão, com exceção das condições particulares de cada apólice, apenas destinadas à identificação do tomador, segurado e beneficiários, assim como a regular algumas particularidades e condições relacionadas com eles.
O tomador, para a celebração do contrato, está obrigado a prestar declarações exatas relativamente às circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco pelo segurador (art.º 24º, nº 1, da LCS), designadamente sobre o bem que pretende segurar e sobre as pessoas dos interessados no seguro, mas é dever do segurador esclarecer o tomador e solicitar-lhe as informações que considerar necessárias à celebração do contrato e à sua vigência. Segundo o nº 2 do mesmo artigo, “o segurador, antes da celebração do contrato, deve esclarecer o eventual tomador do seguro ou o segurado acerca do dever referido no n.° 1, bem como do regime do seu incumprimento, …”.
Nos termos do art.º 18º da LCS, “sem prejuízo das menções obrigatórias a incluir na apólice, cabe ao segurador prestar todos os esclarecimentos exigíveis e informar o tomador do seguro das condições do contrato”.
Estabelece-se, assim, a cargo do segurador um dever geral de esclarecimento e informação ao tomador do seguro que o habilite à compreensão das condições do contrato, concretizando ainda os elementos de informação a constar obrigatoriamente de documento escrito disponibilizado ao tomador do seguro, antes de este se vincular.
Como se extrai do citado acórdão da Relação de Lisboa de 20.10.2016 --- não diríamos melhor --- “importa, porém, alcançar um equilíbrio justo, por um lado, entre o dever do tomador do seguro de prestar informações verdadeiras e, por outro lado, o dever da seguradora de sindicar minimamente as declarações prestadas pelo tomador do seguro, pelo menos, aquelas que assumem um relevo particular na apreciação do risco.
A seguradora, que é detentora de uma estrutura empresarial profissionalizante, está obrigada a um nível de diligência elevado, incumbindo-lhe estabelecer uma eficaz organização, por forma a que, situações anómalas ou declarações incorrectas do candidato a tomador do seguro, e que sejam susceptíveis de serem facilmente detectadas, lhe permitam assumir, desde logo, antes da aceitação do seguro, uma atitude preventiva, tomando medidas adequadas com vista a esclarecer as dúvidas que possam resultar dessa análise preliminar que à seguradora incumbe efectuar.
O que não pode deixar de ser censurável --- e se rejeita --- é que a seguradora aceite, sem mais, a celebração de um contrato tão somente com base nas declarações do tomador do seguro, sem proceder a uma diligência mínima para sindicar essas declarações (…), eventualmente com o fundamento de que a sanção legal a protegeria das declarações erróneas.
A seguradora deve então inteirar-se do interesse do aderente de modo a prover à proteção por ele visada dentro da panóplia das coberturas de risco que coloca no mercado de seguros, prevenindo o risco da dúvida no potencial momento em que seja chamada a responder com a cobertura do contrato. O tomador é, por regra, um leigo em matéria de seguros. É exigível ao segurador conhecer e compreender o que ele quer.
Entre os elementos mínimos obrigatórios que devem constar da apólice, constam, sob o art.º 37º, nº 2, da LCS, a identificação completa dos documentos que a compõem e a identificação e o domicílio das partes, bem como, justificando-se, os dados do segurado e do beneficiário (al.s a) e b)).
É absolutamente normal que o segurador ou o mediador, para uma boa compreensão e determinação do interesse do tomador, lhe solicite a exibição de documentos como a carta de condução, o título de registo de propriedade, o certificado de inspeção periódica obrigatória, o livrete da viatura, o documento único automóvel e o registo do veículo com identificação do proprietário.
O dever de boa fé impõe-se a ambos os contratantes. Como se diz no citado aresto da Relação de Lisboa, referindo outros acórdãos, “o dever de boa fé, com os seus corolários de lealdade, informação é recíproco. Se o segurado tem o dever de bem esclarecer, o segurador tem o dever de suscitar e concorrer para um correcto esclarecimento, mormente quando ele pode advir, simplesmente, do carácter público dos serviços registrais”.
Não é razoável nem aceitável que o segurador, ao celebrar o contrato de seguro, se desinteresse completamente de saber quem é o proprietário do veículo, em que qualidade e com que interesse age o tomador, designadamente se é ele o seu dono, se é apenas locatário ou ainda se o detém a qualquer outro título, muito especialmente quando fica a saber, por indicação do tomador, e anota na apólice, que é outra pessoa o seu condutor habitual.
Não se trata de tanto como colher elementos documentais relevantes, mesmo de acesso público, como é o caso do registo automóvel, que pudessem ter sido negados pelo tomador ou por suspeita de que as informações que prestou não são fiáveis[17]. É muito menos o que aqui se exige para impor o direito do A.: É a seguradora ter celebrado o contrato sem a exigência elementar de identificação das pessoas nele referidas e da sua posição/qualidade contratual relativamente à titularidade e à utilização do veículo seguro, sabendo designadamente que o utilizador habitual é pessoa diferente da tomadora. Conhecida a condução habitual do A., a R. deveria ter questionado a tomadora sobre quem era o proprietário do FJ, que interesse tinha ela no seguro, e se queria segurar o veículo no âmbito dessa mesma condução, informando-a de que seria conveniente considerar o A. como segurado. Em vez disso, a R. contratou a apólice com quem não tinha qualquer interesse no seguro.
A seguradora, parte forte na relação contratual, não acautelou o que se pode considerar um mínimo de exigência necessário à perfeição do contrato e, com a sua negligência, por omissão de informação, violou o princípio da boa fé, segundo o qual, as partes devem abster-se de assumir quaisquer atitudes que possam acarretar prejuízos à contraparte, devendo agir, tanto na celebração do contrato como na sua vigência, segundo um padrão de comportamento de lealdade e correção que visa contribuir para a realização dos interesses legítimos que as partes pretendem obter com o negócio.
A boa fé não contemporiza com cumprimentos formais; exige uma atitude metodológica particular perante a realidade jurídica, a concretização material dos escopos visados. Este aspecto releva no domínio dos deveres acessórios, em boa parte destinados a promovera realização material das condutas devidas, sem frustrar o fim do credor e sem agravar a vinculação do devedor”[18].
Diz-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5.5.2016[19], a propósito do dever de informar “(…), que se traduz num correspectivo e concomitante direito à informação, traduz-se numa necessidade que a lei faz presumir, decorrente de um tempo em que o relacionamento das entidades comerciais e a clientela se apresentam de uma massificação entorpecedora de uma avaliação reflectida, ponderada, esclarecida, abrangente, tonificada e enfocada relativamente ao objecto/produto a adquirir.
O direito presume a vulnerabilidade jurídica de pessoas não informadas - ou não completa e totalmente esclarecidas e embaídas e esvanecidas com as insinuantes máquinas de publicidade postas ao serviço de entidades comerciais e industriais de imane poderio financeiro e de dominação do mercado – e exige que aquele que se encontra na posição de domínio preste informação adequada, pertinente, esclarecida e cabal na hora de pretender vender um produto cuja essencialidade não estará ao alcance de quem pretende adquiri-lo”.
Tendo a R. aceitado o contrato nas condições em que o fez, podendo e devendo ter colhido da tomadora elementos detalhados, relativos a aspetos muito relevantes para a apreciação do risco, não pode agora, ante a verificação do sinistro, pretender a declaração da sua nulidade para se desobrigar do pagamento de indemnizações que resultem do acionamento da respetiva apólice.
A inobservância da diligência mínima, com vista ao exato conhecimento do risco a que aceitou dar cobertura, implica, por aplicação dos princípios da boa fé e do abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprio, que aquela deverá suportar as inerentes consequências, não podendo, para se desvincular da execução do contrato, escudar-se posteriormente numa nulidade do contrato para a qual, com a sua omissão, contribuiu e teve oportunidade (e o dever) de evitar, solicitando informação essencial e mais detalhada à tomadora.
Com efeito, não pode a R. seguradora prevalecer-se da nulidade do contrato, quando facilmente poderia conhecer, por meras declarações que solicitasse à tomadora, aspetos indispensáveis da cobertura do risco, como era a identificação do segurado e a definição da titularidade do interesse digno de proteção legal no âmbito da cobertura, principalmente ao saber que o condutor habitual do veículo não era a tomadora do seguro.
A sentença recorrida fez, nesta medida, uma correta aplicação do Direito.
Também não constituiu a sentença --- ao contrário do que defende a recorrente --- uma decisão surpresa nem julgou com base em factos não provados. Foi precisamente por julgar apenas a partir dos factos que se provaram e pela sua insuficiência que se concluiu pela inoperância da nulidade do contrato relativamente à R. Não deve a seguradora olvidar que foi ela própria que suscitou a questão da nulidade do contrato e abriu portas à discussão das condições da sua formação, designadamente daquilo que dela deveria ter ficado a constar e não ficou, e à possibilidade do tribunal tirar todas as possíveis consequências daquela invocação, com liberdade na indagação, interpretação, e aplicação das regras de Direito (art.º 5º, nº 3, do Código de Processo Civil).
De resto, o A. era o utilizador habitual do veículo e o seu proprietário; era ele e a sua companheira que o utilizavam nas deslocações profissionais e de lazer, servindo igualmente esse veículo para levar a sua filha menor à escola, o que verdadeiramente, aponta par o verdadeiro interesse digno de proteção legal que assiste ao segurado relativamente ao risco coberto.
Termos em que se desatende a primeira questão da apelação da R.
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b) Erro de julgamento na decisão em matéria de facto
Foi dado cumprimento ao ónus de impugnação previsto no art.º 640º, nº 1, al.s a), b) e c) e nº 2, do Código de Processo Civil. A apelante defendeu que os pontos 4 e 6 a 13 da sentença deveriam ter sido considerados matéria não provada.
Para o efeito indica como relevantes os seguintes meios de prova:
- A declaração manuscrita e assinada pelo A. descrevendo o acidente de viação, junta com a petição inicial;
- Documento nº 13 junto com a contestação;
- Fotografias (da traseira do BMW e da frente do Ford ...) juntas com a contestação;
- Fotografias juntas pelo A. com o requerimento com a referência 24980930 e com o requerimento com a referência 25332772;
- Relatório técnico junto pela R.;
- Depoimento do Eng.º E..., parcialmente transcrito em algumas passagens da gravação, especificadas nas alegações.
Essencialmente, a R. impugnou a decisão em matéria de facto relativa às circunstâncias do acidente, negando-o.
Para dar os referidos pontos como provados, o tribunal atendeu especialmente ao depoimento de G..., cabo da GNR que acorreu ao local e elaborou a participação do acidente, as declarações de parte do A., os depoimentos testemunhais de H..., de I... e de J... e as diversas fotografias juntas ao processo.
Como refere A. Abrantes Geraldes[20], “a Relação deve alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, os elementos de prova que se mostrem acessíveis determinem uma solução diversa, designadamente em resultado da reponderação dos documentos, depoimentos e relatórios periciais, complementados ou não pelas regras de experiência”… “afastando definitivamente o argumento de que a modificação da decisão da matéria de facto deveria ser reservada para casos de erro manifesto” ou de que “não é permitido à Relação contrariar o juízo formulado pela 1ª instância relativamente a meios de prova que foram objecto de livre apreciação”. Acrescenta que este tribunal “deve assumir-se como verdadeiro tribunal de instância e, por isso, desde que, dentro dos seus poderes de livre apreciação dos meios de prova, encontre motivo para tal, deve introduzir as modificações que se justificarem”.
Dentro dos limites da impugnação, usaremos os meios de provas e as regras de experiência, fazendo o devido juízo crítico com a mesma liberdade com que a 1ª instância o fez, motivados pela busca da verdade e pela realização da justiça material e concreta.
Citando Antunes Varela, escreve Baltazar Coelho[21] que “a prova jurídica de determinado facto … não visa obter a certeza absoluta, irremovível da (sua) verificação, antes se reporta apenas a certeza subjectiva, a convicção positiva do julgador ou, o que vale por dizer, apenas aponta para a certeza relativa dos factos pretéritos da vida social e não para a certeza absoluta do fenómeno de carácter científico”.
Na mesma linha, ensina Vaz Serra[22] que “as provas não têm forçosamente que criar no espírito do juiz uma absoluta certeza acerca dos factos a provar, certeza essa que seria impossível ou geralmente impossível: o que elas devem é determinar um grau de probabilidade tão elevado que baste para as necessidades da vida”. É a afirmação da corrente probabilística, seguida pela maior parte da doutrina que, opondo-se à corrente dogmática, considera não exigível mais do que um elevado grau de probabilidade para que se considere provado o facto.
Pois bem…
Analisada toda a prova produzida, nomeadamente os documentos indicados pela R., entre outros, e a gravação das declarações de parte do A. e dos depoimentos testemunhais, evidenciam-se, em confronto, duas posições sobre os factos: uma, sustentada pela R. com apoio essencial no relatório técnico elaborado pelo Eng.º E... e no depoimento que prestou em audiência na defesa do seu relatório, outra, sustentada pelo A. com base nas suas declarações de parte prestadas em audiência e nos depoimentos testemunhais de G..., o agente da PSP que se deslocou ao local e tomou conta do sinistro com elaboração da participação, J..., o proprietário de um dos veículos intervenientes (Isuzu), então estacionado junto à entrada da sua residência, H..., sobrinho e vizinho do J..., a única testemunha que depôs afirmando ter presenciado o acidente, quando passeava o seu cão no local, e ainda I..., perito avaliador a prestar serviços para a R., neste caso na avaliação do veículo de carga Isuzu interveniente na colisão na parte do seu depoimento em que afirma a existência de uma barra de ferro que encontrou danificada e considerou um dos danos no veículo, descrevendo-a como um degrau de acesso pessoal à caixa de carga, aplicada a toda a largura da sua traseira, onde um outro veículo terá embatido (não viu o acidente nem qualquer outro veículo que nele tivesse estado envolvido).
Constada a referida divergência, as fotografias juntas aos autos (todas elas) desempenham, no seu confronto com os restantes meios probatórios, um elemento de prova chave no deslindar da dúvida sobre se o acidente ocorreu ou não ocorreu, mais concretamente entre aqueles três veículos e no lugar em causa.
Dito isto, partimos desde já para a afirmação de que, não obstante a força persuasiva do relatório técnico e da sua fundamentação, mesmo com recurso a critérios matemáticos, em que a R. se apoia, a verdade dos factos está com a prova em que assente a versão do A. Vamos explicar as razões desta nossa convicção.
Ainda que possa relevar o pendor pericial do exame levado a cabo pelo Sr. Eng.º E... e o relatório subsequente que subscreveu, junto aos autos, trata-se de um perito contratado a uma empresa que presta serviços à R.; não é um perito de nomeação judicial ou de nomeação conjunta das partes. Acresce que a prova por ele produzida é de livre apreciação, não é uma prova formal ou vinculada, está sujeita ao nosso juízo crítico, designadamente pelo confronto com a demais prova produzida e as regras da experiência comum.
Aquela testemunha não estava presente nas circunstâncias de tempo e lugar do alegado acidente e --- note-se especialmente, pela importância que tem no caso --- não compareceu nem observou os veículos na posição em que ficaram imediatamente após a colisão. Foi ao local posteriormente (dias depois) e viu os veículos noutros espaços, em condições que a impediram de observar pormenores, sem dúvida, muito relevantes na determinação dos factos impugnados neste recurso.
Na reconstrução que fez do acidente utilizou aquela testemunha marcas e modelos de veículos que não coincidem com as marcas e modelos dos veículos intervenientes e, pelo que afirmou na audiência, deduzimos que nem sequer observou as fotografias que, tendo sido juntas ao processo na fase da audiência final, foram tiradas aos veículos nas circunstâncias da colisão. Não é crível que os modelos que utilizou provoquem e absorvam o impacto da colisão nos mesmos moldes em que isso acontece (e aconteceu) com os veículos e modelos intervenientes. Não pode a testemunha escudar-se na afirmação de que atualmente todos os veículos absorvem o impacto mais ou menos da mesma forma, como se todos fossem construídos com as mesmas condições de segurança e qualidade e que todos os veículos que circulam nas estradas tivessem a mesma idade e o mesmo tipo de construção.
Se compararmos as fotografias de reconstrução que constam daquele relatório com as fotografias atribuídas ao acidente, verificamos facilmente divergência sensível de efeitos dos dois embates sucessivos. Ao contrário da abordagem de reconstrução do acidente, o que os fotogramas do acidente espelham é um enfiamento tanto do Ford ... como do BMW, por debaixo do veículo estacionado à sua frente, primeiro do Ford na traseira do BMW, depois deste veículo por baixo da traseira da carroçaria do Isuzu. Os danos surgidos são típicos desta dinâmica.
Note-se, por exemplo, que ao ser confrontado com a pág.s 15 e 31 do seu relatório, o Eng.º E... argumentou que, distando a carroçaria do Isuzu cerca de 80 cm do solo e tenho o BMW uma altura de cerca de 73 cm à frente, este não poderia ter sofrido danos na sua grelha frontal, portanto, mas apenas acima dos 73 cm.
Nesta afirmação, não conta a testemunha com a entrada da frente do veículo BMW por debaixo da carroçaria e com o embate posterior da mesma frente em elementos diversos, designadamente metálicos, aplicados por debaixo daquele veículo de mercadorias, de que são exemplo um para-choques onde estão aplicados faróis, um degrau inferior a toda a largura da carroçaria e um degrau aplicado um pouco mais acima (visível nas fotografias) para subida de pessoas à caixa de carga.
Se considerarmos um provável ligeiro levantamento da carroçaria em consequência da colisão do BMW, desde logo no dito degrau inferior, em ferro, fica explicado o motivo pelo qual os danos na frente do BMW são mais extensos do que os danos causados no Isuzu.
Analisando cuidadosamente as fotografias, a cores, dos veículos no local do acidente, juntas na audiência final, o que se evidencia --- pelo menos nas que são relativas à colisão do Forf ... com o BMW --- é uma moldação, um enfeixamento da chaparia quase perfeita nas regiões de colisão, de tal modo que seria praticamente impossível moldá-las em circunstâncias diversas. São tantos os vincos nas chaparias dos dois veículos e é de tal modo perfeito e visível o seu encaixe nas zonas de colisão que bem se compreende que o Ford embateu ali mesmo na traseira do BMW, tendo as fotografias sido tiradas na posição em que ficaram após o embate.
Para além de tudo isto, há partes de plásticos e vidros dos veículos caídas no chão nas zonas de colisão e até o derramamento de um líquido, bem visíveis nas fotografias.
A capacidade de resistência e absorção de impacto que a traseira do BMW revelou com danos menores que, na verdade, parecem incompatíveis com o estado altamente danificado da frente do Ford ..., explica-se com uma boa construção do BMW e com o levantamento da traseira a que foi sujeito na colisão, deixando a frente daquele sobretudo exposta à região do chassi do BMW, mais do que à sua carroçaria e, nomeadamente, à porta da sua mala de bagagem.
Não há, por outro lado, o menor indício que seja de que o condutor e proprietário do Ford ... fosse familiar, amigo ou conhecesse sequer os proprietários dos outros dois veículos. O A. não conhecia bem o local e esporadicamente ali passou, regressando da visita a um amigo e dirigindo-se para o seu local e trabalho, na ....
O agente da PSP G..., referindo-se, além do mais, aos vestígios de plásticos e vidros no local, mostrou-se também plenamente convencido que se tratou de um acidente de viação naquelas circunstâncias que observou com o aparato disso mesmo, havendo várias pessoas a observar o sucedido quando lá chegou, cerca de 15 ou 20 minutos depois do chamamento. Eram cerca de 22h30m e uma zona residencial; mal se compreenderia a escolha de tal local para colocar três veículos e simular uma colisão entre eles, sendo que o Ford dali teve de sair rebocado (e assim teria de ter sido para ali levado). Mal se compreende também que o proprietário do Isuzu, ali residente, se tivesse sujeitado voluntariamente a coimas por falta de seguro e de inspeção periódica do seu veículo, como terá acontecido, conforme o depoimento espontâneo e escorreito.
De um modo geral, o mesmo J... descreveu o que viu, com aparente seriedade. Ouviu o estrondo da colisão e saiu de imediato para o exterior, tendo, inclusivamente dado um copo com água ao A., ainda dentro do Ford ... (facto confirmado por este e pelo sobrinho daquele). Observou os vestígios evidentes. Referiu que a sua carrinha foi empurrada cerca de dois metros para a frente.
H... declarou ter visto o acidente e descreveu de forma detalhada o modo como aconteceu. Alguns lapsos na descrição, como aconteceu com a referência às cores dos veículos e ao estado da traseira do BMW, são perfeitamente compreensíveis dado o tempo decorrido, e até favorecem a credibilização do depoimento. A testemunha identificou-se numa das fotografias tiradas aquando do acidente que lhe foram exibidas.
I..., pela R., avaliou apenas os danos no Isuzu e o custo da reparação. Foi ele que deu notícia da existência de uma barra de ferro ao longo de toda a largura da traseira do Isuzu (o referido degrau de acesso pessoal à caixa de carga), notando a sua falta no local próprio e observando-a danificada na caixa de carga. Considerou a sua falta como um dano e avaliou-o para efeito de reparação, sem duvidar. É de admitir que o BMW derrubou essa barra com o embate causado pela deslocação que teve por ação do Ford. Tal embate terá contribuído para o abaixamento do BMW.
Nas suas declarações, o A. explicou pormenorizadamente o acidente e fê-lo de forma tão desinteressada e objetiva que o tribunal e os ilustres representantes das partes não chegaram a confrontá-lo diretamente com a possibilidade de não ter ocorrido da forma descrita ou ainda de se tratar de uma fraude às seguradoras.
Este conjunto de provas abalou definitivamente a posição defendida pelo técnico de reconstruções contratado pela seguradora e foi de tal modo convincente que se nos afigura correto o juízo crítico efetuado na 1ª instância, devendo manter-se incólumes os pontos da decisão em matéria de facto impugnados pela R.
Por conseguinte, improcede também esta questão da apelação.
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c) Consequência jurídicas da alteração daquela decisão
Alega a R. que, “a não se darem como provados os factos acima referidos, a acção tem de ser julgada totalmente improcedente, atento o disposto no art. 342° do Cod. Civil e bem assim no art. 1º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro aprovado pelo Decreto-lei nº 72/2008, que assim se mostram violados.” (conclusão 11). E acrescenta: “…é que não ficou provado que o Autor tivesse sofrido um acidente de viação do qual resultasse dano para o seu património – sendo que a Ré só responde em caso de ocorrência de um sinistro.” (conclusão 12)
Como se decidiu anteriormente, a decisão da matéria de facto não foi alterada. Daí que tenha de se ter como prejudicado o conhecimento desta questão, por assentar no pressuposto da sua modificação.
Improcede esta terceira questão da apelação da R.
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d) Desconto do valor do salvado na indemnização por perda total do veículo
A R. passou a defender que, caso se mantenha sua responsabilidade pela reparação (na improcedência das demais questões do seu recurso), o valor do salvado deve ser abatido ao valor comercial que o veículo Ford ... tinha ao tempo do acidente.
Vejamos.
Fracassado o recurso da R. relativamente às questões acima tratadas, mantêm-se os pressupostos da responsabilidade contratual da seguradora pelos danos no veículo do A., com fundamento no seguro facultativo de dano que, aliás, a R. não discute fora daquele mesmo âmbito do recurso.
A R. está então obrigada a indemnizar o A. pela justa medida do seu prejuízo, devendo reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o acidente (art.º 562º do Código Civil). Impera o chamado princípio indemnizatório, de acordo com o qual a obrigação de indemnizar visa reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento danoso, colocando o lesado na posição que teria se não fosse o dano, e não proporcionar um enriquecimento injustificado do lesado.[23]
Está provado que na, data do acidente, o Ford ... tinha o valor de € 10.900,00, mas o custo da sua reparação atinge € 14.277,00. Certamente por isso, optou-se pela perda total e indemnização em dinheiro que as partes não questionam (art.º 566º, nº 1, do Código Civil).
Para repor em dinheiro a situação anterior, estaria a R. obrigada a pagar ao A. o valor venal do Ford ..., ou seja, a quantia de € 10.900,00. Todavia, tendo sido o salvado entregue ao A. que o vendeu pelo preço de € 1.602,00 que fez seu, defende a R. que apenas deve ser condenada na diferença que existe entre o valor do Ford à data do acidente (€ 10.900,00) e o preço da venda do salvado que o A. fez dele (€ 1.602.00), ou seja pela quantia de € 9.298,00.
Entendeu o tribunal que o valor do salvado entregue ao A. não deve ser contabilizado, descontado, no valor da indemnização.
Ora, o seguro de responsabilidade civil automóvel por danos próprios é, como o próprio nome indica, um seguro de danos, sendo-lhe aplicável o regime jurídico do contrato de seguro (LCS), estabelecido pelo Decreto-Lei nº 72/2008, de 16 de abril.
A LCS, pelo art.º 128º, à semelhança do Código Civil, estabelece o princípio indemnizatório quando refere: “A prestação devida pelo segurador está limitada ao dano decorrente do sinistro até ao montante do capital seguro.” Esta norma refere-se ao valor do dano e não ao valor do objeto seguro, tal como no anterior art.º 435º do Código Comercial.
É uma regra matricial do regime dos seguros de danos. Traduz um princípio de ordenação de ordenação social: ao atalhar o enriquecimento do segurado com o sinistro está afinal a precaver a ocorrência de sinistros, a fraude, portanto a desordenação social.[24]
Mesmo nas situações excecionais em que a lei dá prevalência ao princípio da liberdade contratual, autorizando a derrogação daquele regime, no art.º 131º da LCS, fixa-se um limite racional (a razoável correspondência do valor acordado ao valor real), por forma a garantir o fim último do princípio indemnizatório: a prevenção do enriquecimento do segurado com o sinistro, logo, dos sinistros fraudulentos, logo, a desordenação social.[25]
O nº 3 do art.º 41º da Lei do Seguro Obrigatório[26] (LSO), relativamente à perda total, estabelece para o seguro daquela natureza que “o valor da indemnização por perda total corresponde ao valor venal do veículo antes do sinistro calculado nos termos do número anterior, deduzido do valor do respectivo salvado caso este permaneça na posse do seu proprietário, de forma a reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à indemnização”.
O art.º 129º da LCS estabelece que “o objecto salvo do sinistro só pode ser abandonado a favor do segurador se o contrato assim o estabelecer”.
No caso sub judice, o salvado ficou na posse do A. que decidiu vendê-lo e fazer seu o respetivo preço. Se tal valor não for abatido no valor que o Ford ... tinha na data do acidente, condenando-se a R. a pagar, na totalidade, o valor do veículo, ocorre manifestamente um enriquecimento ilegítimo e abusivo do A. à custa da R., pelo valor do salvado, não havendo qualquer convenção entre as partes que derrogue o princípio da indemnização e o disposto no art.º 128º da LCS que proíbe a atribuição de indemnização superior ao valor do dano (e ao montante do capital seguro).
O facto de a apólice prever um capital em caso de choque, colisão ou capotamento no valor de € 10.900,00 --- valor coincidente com o valor da avaliação do veículo --- não autoriza a violação do princípio da indemnização. Não é por isso que o quantum indemnizatório deve deixar de corresponder ao prejuízo efetivamente sofrido, com condenação da seguradora pelo valor do salvado.
Nesta parte, a sentença[27] será revogada, merecendo as reservas da seguradora o devido acolhimento. O valor da indemnização passa a ser de € 9.298,00.
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2. Da apelação do A.
e) O seguro facultativo e a atribuição de indemnização por privação do uso do veículo
O problema da privação do uso de veículo tanto se pode colocar na responsabilidade contratual como na responsabilidade extracontratual; a solução, contudo, pode não ser coincidente quanto a questões como a existência do direito, a prova dos danos ou a fixação da indemnização.
O A. pediu a condenação da R. a pagar-lhe, a título de indemnização, o montante de € 50,00 diários, correspondente aos danos que sofreu com a privação do uso do seu veículo desde a data do acidente até ao pagamento da indemnização devida, liquidando em € 25.950,00 o valor em dívida à data da interposição da ação.
O tribunal negou a indemnização por a cobertura facultativa do seguro não prever a reparação da privação do uso.
O A. defendeu no recurso que, não obstante tratar-se de um seguro facultativo por danos próprios, se trata de um dano reparável, no caso, à razão de 50,00 por dia, desde a data do acidente até à data do efetivo pagamento.
A R. argumentou que o seguro contratado não confere o direito a indemnização por privação do uso, devendo julgar-se o recurso improcedente.
Na apólice em causa, de seguro facultativo, não foi contratada a cobertura por privação do uso do veículo.
Dispõe o nº 2 do art.º 130º relativo ao seguro de coisas, que “o segurador apenas responde pelos lucros cessantes resultantes do sinistro se assim for convencionado”. Nestes casos, o regime supletivo é o da não cobertura.
O subsequente nº 3 determina que o disposto naquele nº 2 se aplica igualmente quanto ao valor de privação de uso de veículo. Tal significa que, ao menos por regra, no seguro facultativo, o segurador só responde quanto ao valor da privação do uso de veículo se tal for contratado. No caso não foi.
O contrato consubstancia um acordo vinculativo, assente, em teoria, sobre duas ou mais declarações de vontade – oferta/proposta, de um lado; aceitação, do outro – contrapostas, mas perfeitamente harmonizáveis entre si, que visam estabelecer uma composição unitária de interesses, implicando que essas declarações de vontade sejam confluentes e exequíveis.
O preceito basilar que serve de trave mestra da teoria dos contratos é o da liberdade contratual, que consiste na faculdade que as partes têm, dentro dos limites da lei, de fixar, de acordo com a vontade dos contraentes, o seu conteúdo, celebrarem negócios diferentes dos prescritos no Código ou incluir nestes as cláusulas que lhes aprouver (modificando os tipos legais ou misturando no mesmo contrato regras de dois ou mais tipos) – art.º 405º, n.º 1, do Código Civil.
A definição de um contrato como pertencendo a determinado tipo contratual, necessária para determinar qual o regime jurídico aplicável, é uma operação lógica subsequente à interpretação das declarações de vontade das partes e dela dependente.
As partes, ao celebrarem o contrato de seguro, como vimos já, assumem que em consequência de circunstâncias fortuitas, uma delas possa ganhar e outra possa perder, não podendo estas reagir contra o desequilíbrio patrimonial do contrato (ao contrário do que sucede nos contratos cumulativos), porquanto “os negócios aleatórios são negócios de risco (…), e o risco desse desequilíbrio é voluntária e conscientemente assumido, como próprio do contrato”.[28]
Não há dúvida alguma relativamente à existência do contrato e concluímos já pelo dever da R. responder perante o A. nos respetivos termos. O contrato vincula as partes no seu cumprimento integral nos termos em que nele se regularam os respetivos interesses e em respeito das normas legais imperativas.
As partes não contrataram a assunção de responsabilidade da seguradora pela privação do uso do veículo seguro, sendo que esta garantia também não está coberta pelo seguro obrigatório (destinado apenas a assegurar o pagamento a terceiros de indemnização por danos causados por veículo terrestre a motor para cuja condução seja necessário um título específico e seus reboques, com estacionamento habitual em Portugal (nº 1 do art.º 4º do DL 291/2007). Só no âmbito da responsabilidade civil extracontratual, o dano da privação do uso seria indemnizável, ao abrigo do disposto nos art.ºs 562º e seg.s do Código Civil. Nestes casos, os terceiros lesados têm direito não só à indemnização pelo prejuízo causado (danos emergentes), como aos benefícios que deixaram de obter por causa da lesão sofrida (lucros cessantes).
Por se situar fora da cobertura contratada, e não tendo o segurado pagado os prémios correspondentes a uma cobertura de privação do uso do veículo que o contrato podia prever (e não previu), em princípio, seria injusto e violaria o contrato, a reparação desse dano.
Portanto, por esta via, de obrigação principal, não assiste ao A. direito à reparação do dano da privação do uso do veículo sinistrado, como defende a seguradora.
É o (eventual) atraso injustificado da seguradora que está em causa.
É hoje pacificamente aceite que a privação do uso de veículo é um dano autónomo.
Relativamente ao atraso injustificado no pagamento da indemnização garantida pela cobertura do risco por perda total, necessária para compra de outro veículo, a jurisprudência desenvolveu três correntes, como se segue:[29]
- A que defende que estando em causa uma obrigação pecuniária, e porque se trata de responsabilidade contratual, a indemnização pela mora corresponde aos juros legais, salvo convenção em contrário, pelo que em caso de mora do devedor na realização da prestação indemnizatória, não há lugar à indemnização de outros danos, nomeadamente, o dano da privação do uso do bem, a não ser que o credor prove que a mora lhe causou dano superior aos juros mas quando se trate de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco.
- A que entende que a indemnização é devida, por a mesma ser um corolário lógico da contraprestação inerente ao risco assumido pelo segurador, pois de outro modo ficaria esvaziada de conteúdo a contraprestação do segurador nestes casos ou, pelo menos, a respetiva correspetividade das prestações mostrar-se-ia desequilibrada, em prejuízo do tomador do seguro;
- Finalmente, a terceira corrente, que fundamenta a ressarcibilidade destes danos com base na violação de um dever secundário ou acessório da obrigação. O inexplicável atraso no andamento do processo de pagamento da indemnização ao segurado, traduz-se, para os seguidores desta posição, na violação de um dever acessório da prestação, que não resultando do contrato de seguro, resulta do princípio da boa fé, consubstanciado na violação de um dever de diligência e lealdade. Assim, o segurador que venha a incorrer em responsabilidade contratual, por esta via, está obrigado a indemnizar o dano que resultou para a contraparte, o segurado.
Estamos com esta terceira posição.
Verificado o sinistro, o segurado ou o tomador, consoante a concreta situação ocorrida, tem o dever, ex bona fide, de minorar os danos ou de evitar a sua propagação (art.º 762º, nº 2, do Código Civil).[30]
A R. estava obrigada a solucionar a questão tão depressa quanto possível e com a diligência devida.
No seguro automóvel obrigatório, por exemplo, há normas específicas que impõem à seguradora especial diligência e prontidão na regularização dos sinistros nos termos dos art.ºs 31º e seg.s da Lei nº 291/2007, de 21 de agosto, de que destacamos a obrigação de um primeiro contacto com o segurado, o tomador ou o terceiro lesado, no prazo de dois dias úteis sobre a comunicação do sinistro, a conclusão das peritagens no prazo de oito dias úteis seguintes ao fim daquele prazo de dois dias e a comunicação da assunção, ou a não assunção, da responsabilidade no prazo de 30 dias úteis, a contar do termo daquele mesmo prazo de dois dias, informando desse facto o tomador do seguro ou o segurado e o terceiro lesado, por escrito ou por documento eletrónico (art.º 36º, nº 1, al.s a) e e), daquela lei).
Porém, os prazos previstos no dito art.º 36º suspendem-se nas situações em que a empresa de seguros se encontre a levar a cabo uma investigação por suspeita fundamentada de fraude (nº 8 do mesmo artigo).
Não obstante se tratar aqui de um seguro facultativo, não estando em causa o relevante interesse de terceiros tutelado no seguro obrigatório, a celeridade e a colaboração honesta e leal na resolução do sinistro, que se impõem entre o segurador e o tomador, o segurado ou o beneficiário, são deveres que se justificam também neste tipo de contrato por só assim se poderem tomar as medidas necessárias a minorar os prejuízos e a cumprir adequadamente os fins contratuais. Quanto mais depressa se encontre uma solução justa para o caso, tanto melhor.
De acordo com o regime especial decorrente das disposições conjugadas dos artigos 102º e 104º da LCS, a obrigação do segurador vence-se trinta dias após a confirmação da ocorrência do sinistro e das suas causas, circunstâncias e consequências, que, como sabemos, poderá variar em conformidade com a maior ou menor complexidade das averiguações necessárias para esse efeito.
A boa-fé e os princípios gerais de conduta de mercado, consignados no Decreto-Lei nº 94-B/98, de 17 de abril, conduzem as empresas de seguros a garantir uma gestão célere e eficiente dos processos de sinistro, agindo com a possível prontidão e diligência nas averiguações e peritagens necessárias ao reconhecimento do sinistro e à avaliação dos danos.
É, pois, com este fito que as partes devem colaborar na regularização dos acidentes, de preferência de forma amigável, devendo ele estar presente nos contactos que, no caso, depois do sinistro, se estabeleceram entre o A. lesado e a R. seguradora.
Citando Almeida Costa[31], refere-se no douto acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8.9.2009[32] que, “numa compreensão globalizante da situação jurídica creditícia, apontam-se, ao lado dos deveres de prestação --- tanto deveres principais de prestação, como deveres secundários ---, os deveres laterais (…), além de direitos potestativos, sujeições, ónus jurídicos, expectativas, etc. Todos os referidos elementos se coligam em atenção a uma identidade de fim e constituem o conteúdo de uma relação de carácter unitário e funcional: a relação complexa em sentido amplo ou, nos contratos, relação contratual”.
Cita-se ali também Carneiro da Frada[33] por alertar para o facto de o contrato convocar “uma ordem normativa”, que o envolve, sujeitando os contraentes aos ditames da regra da boa fé por todo o seu período de vida e daí que, “ao lado dos deveres de prestar --- sejam eles principais de prestação ou acessórios da prestação principal ---, floresce na relação obrigacional complexa, um leque mais ou menos amplo de deveres que disciplinam o desenrolar da relação contratual, que podem designar-se deveres laterais ou simples deveres de conduta”.
E escreveu-se também naquele aresto que “estes deveres laterais, para usar a terminologia de Esser, ou acessórios, como prefere chamar-lhes Pedro Pais de Vasconcelos[34] (“o mais característico destes deveres não é a lateralidade em relação ao contrato, mas a acessoriedade em relação aos deveres principais dele emergentes”), não estão orientados para o interesse no cumprimento do dever principal da prestação, antes se caracterizam “por uma função auxiliar da realização positiva do fim contratual e de protecção à pessoa e aos bens da outra parte contra os riscos de danos concomitantes”. Seguem a realização do iter do contrato que se caracterizam por uma função auxiliar da realização positiva do fim contratual e de proteção à pessoa ou aos bens da outra parte contra os riscos de danos concomitantes.[35]
Ainda segundo Carneiro da Frada, estes deveres laterais “não estão virados, pura e simplesmente, para o cumprimento do dever de prestar, antes visam a salvaguarda de outros interesses que devam, razoavelmente, ser tidos em conta pelas partes no decurso da sua relação” e “exprimem, na formulação de Larenz, a necessidade de tomar em consideração os interesses justificados da contraparte e de adoptar o comportamento que se espera de um parceiro negocial honesto e leal, e costumam fundamentar-se no princípio da boa fé”.[36]
Estas obrigações ditas laterais, como nota Menezes Cordeiro[37], surgem-nos como o resultado do comprometimento das partes e ligadas ao cumprimento das obrigações principais, com estas coenvolvidas, e, portanto, merecedoras da tutela do Direito, podendo surgir, assim, como tendo estado na base de todo o desenvolvimento negocial, quiçá determinando-o.
Diz-se ainda o referido acórdão de 8.9.2009 que Pedro Pais de Vasconcelos classifica estes deveres (acessórios, como prefere chamar-lhes) em deveres de proteção, de esclarecimento e de lealdade.
Em relação aos primeiros, diz-nos que eles “vinculam as partes a evitar a ocorrência de danos, pessoais ou patrimoniais, para qualquer uma delas, no quadro da execução do contrato”, certo que “em caso de desrespeito dão lugar a responsabilidade civil por violação positiva do contrato”.
Trata-se de deveres de adoção de determinados comportamentos impostos pela boa fé, em vista do fim do contrato (artºs 239º e 762º do Código Civil), dada a relação de confiança que o contrato fundamenta, comportamentos variáveis com as circunstâncias concretas da situação. “Caracterizam-se por uma função auxiliar da realização positiva do fim contratual e de protecção à pessoa e aos bens da outra parte contra os riscos dos danos concomitantes” e, citando Larenz, “identificam-se com os deveres de adoptar o comportamento que se pode esperar entre contraentes honrados e leais”[38].
Escreve Pinto Monteiro[39] que “estes deveres acessórios, distintos dos deveres principais de prestação, são, no entanto, “essenciais ao correcto processamento da relação obrigacional em que a prestação se integra”; e Antunes Varela[40] adverte para o facto de a violação destes deveres poder dar azo não só à resolução do contrato, mas também obrigar à indemnização dos danos causados à outra parte.
Voltemos aos factos para os analisar de acordo com as referidas considerações doutrinárias e jurisprudenciais.
O acidente ocorreu no dia 31 de março de 2015, à noite. Cerca de uma semana depois, no dia 7 de abril, a R. enviou uma carta à tomadora do seguro (sogra do A.) onde qualificou o dano como sendo de perda total do veículo em virtude da excessiva onerosidade da reparação face ao valor do veículo na data do sinistro. Mais informou que assim se regularizaria a situação de acordo com as garantias contratualmente estabelecidas, porém, sem prejuízo do resultado de diligências ainda em curso necessárias ao esclarecimento cabal das circunstâncias do acidente e seu enquadramento, após o que voltaria a contactar a tomadora. Acrescentou: “Sem prejuízo do que antecede e sem que tal envolva qualquer compromisso ou reconhecimento de responsabilidade, informamos que de acordo com as garantias contratualmente estabelecidas, o valor actualmente seguro é de € 10900, sendo a franquia no valor de € 0”. Escreveu ainda naquela missiva: “Não podemos deixar de referir as vantagens da rápida alienação do salvado a fim de se evitarem eventuais situações de desvalorização e/ou custos adicionais relacionados com o parqueamento do veículo na oficina, custos estes que, como compreenderá, não poderão de todo ser imputados a esta seguradora”. A R. identificou ali também uma potencial empresa adquirente do salvado do Ford ..., considerando ter oferecido o melhor preço.[41]
O A. vendeu livremente o veículo no dia 27 de maio à empresa indicada pela R.
No dia 26 de agosto, portanto, cerca de 5 meses depois do sinistro (três meses após a venda do salvado), a R. comunicou à tomadora do seguro que não assumia a responsabilidade pela reparação dos danos decorrentes do acidente, alegando que estes não se apresentam compatíveis com a dinâmica do acidente participado. Referiu nessa missiva que fora então concluída a instrução do processo na seguradora.[42]
A R. funda a recusa de responsabilidade no relatório técnico de reconstrução do acidente, junto aos autos.
Tudo ponderado, a R. nunca iludiu o A. com a assunção incondicional da responsabilidade. Pelo contrário, sujeitou sempre o pagamento de indemnização por danos a uma averiguação necessária sobre as circunstâncias do acidente. Em cerca de 7 dias, fez o que podia ser feito: avaliar o dano e a indemnização e disso dar notícia à tomadora do seguro. Se necessitava de averiguar melhor as circunstâncias do sinistro --- era um direito que lhe assistia --- reservou para momento posterior pronunciar-se sobre a responsabilidade e disso deu conhecimento à tomadora do seguro naquela primeira missiva, de 7 de abril.
A avaliar pelo relatório que apresentou, a averiguação instrutória revestiu para a seguradora alguma complexidade, tendo aquele sustentado uma posição de rejeição de responsabilidade.
Não obstante, as empresas seguradoras devem estar e estão normalmente preparadas, através de funcionários especialistas ou de prestadores de serviço, para dar uma resposta célere ou em tempo razoável também na instrução e decisão dos seus processos, assim cumprindo o desígnio legal.
Já observámos que a regra no seguro obrigatório é de decisão da assunção ou não assunção da responsabilidade no prazo de 30 dias úteis a contar do primeiro contacto do segurador com o tomador do seguro, segurado ou terceiro lesado, após o acidente. Entretanto, a seguradora deve diligenciar pela rápida realização das perícias (art.º 36º, º 1, da LSO).
A seguradora deve também proporcionar àqueles mesmos interessados informação regular sobre o andamento do processo de regularização do sinistro.
Os prazos, designadamente o referido prazo de 30 dias, suspende-se nas situações em que e a empresa de seguros se encontre a levar a cabo uma investigação por suspeita fundamentada de fraude.
Bem ou mal, o relatório técnico de reconstrução do sinistro, junto aos autos, foi parte da instrução no processo que decorreu na R. e que a levou a negar a sua responsabilidade. A avaliar pela averiguação técnica realizada, podemos presumir que a seguradora suspeitou de fraude relativamente ao conteúdo da participação do acidente. Não podemos dizer que essa suspeição, enquanto tal, não fosse fundamentada, pois que, a avaliar pelo resultado do relatório técnico, haveria fundamento para suspeitar (não já para concluir definitivamente nesse sentido).
Nestas circunstâncias, se estivesse em causa o seguro obrigatório, haveríamos de admitir a suspensão dos prazo, nomeadamente daquele prazo de 30 dias previsto na lei para o segurador decidir sobre a sua responsabilidade.
Não podemos ser tão exigentes no caso sub judice, de seguro facultativo, em que não são afetados direitos de terceiro no âmbito de responsabilidade civil extracontratual, mas apenas do segurado, em sede de cumprimento de obrigações contratuais. Mas sempre nos devemos orientar por um princípio de razoabilidade e de celeridade quanto ao tempo de decisão da seguradora.
Apesar de alguma complexidade ligada à suspeita de fraude e ao modo como o acidente se deu, dois meses, a contar da carta de 7 de abril de 2015 seria um período de tempo suficiente e razoável para a realização das necessárias diligências de averiguação por parte da seguradora, mesmo com realização de perícias. Daí que, a partir de 8 de junho de 2015, tenhamos que considerar a existência de um atraso injustificado da R. na decisão de assunção ou não assunção da responsabilidade.
A R. não provou ter dado qualquer explicação à tomadora ou ao segurado durante os quase cinco meses que mediaram o envio das cartas de abril e de agosto.
A decisão anterior respeitava apenas à caraterização e avaliação dos danos e o facto de o R. ter vendido o salvado em conformidade com o sugerido pela seguradora, não a desobrigava do dever de decidir em tempo razoável a questão a responsabilidade pela perda do veículo.
Aquele atraso injustificado aponta para uma quebra do equilíbrio contratual, com violação pela seguradora do princípio da boa fé no cumprimento de deveres acessórios de colaboração intersubjetiva, que se manifestam na necessidade de tomar em consideração os interesses justificados da contraparte e de adotar o comportamento que se espera de um parceiro negocial honesto e leal, como seja no cumprimento de deveres de informação e de pagamento atempado da indemnização. Tal atraso irrazoável acarretou dano concomitante: o não pagamento de uma indemnização que o A. integraria, no devido tempo, no preço de aquisição de outro veículo automóvel. Note-se que está em causa a substituição de um veículo (totalmente perdido) por outro que o A. poderia ter adquirido, aproximando-se assim, o mais breve possível da situação em que se encontraria se não tivesse ocorrido o dano.
Por causa disso, o demandante não teve a possibilidade de adquirir um veículo substitutivo, tendo ficado privado do respetivo uso desde o dia 8.6.2015 (data atrás tida como sendo o termo inicial relevante) até à data em que lhe for paga a indemnização.
Não há indemnização sem dano. Este é um dos pressupostos indispensáveis da responsabilidade civil e da obrigação de indemnizar (art.ºs 483º e seg.s e 562º e seg.s do Código Civil). O lesante ou a seguradora responsável, deve reparar o dano de modo a colocar o lesado na situação que existiria se não tivesse ocorrido a lesão.
O prejuízo ou dano consiste em se sofrer um sacrifício, tenha ou não conteúdo económico. Numa das formas possíveis, a pessoa é afetada num bem, que deixa de poder gozar de todo ou de que passa a ter um gozo mais reduzido ou precário.[43]
A privação do uso de veículo poderá constituir uma ofensa ao direito de propriedade na medida em que o seu dono fica privado do uso que lhe dava. A privação do uso de um veículo é, em si mesma, um dano indemnizável, desde logo por impedir o proprietário (ou, eventualmente, o titular de outro direito, diferente do direito de propriedade, mas que confira a sua utilização) de exercer os poderes correspondentes ao seu direito.[44]
Esta posição, na jurisprudência, insere-se numa das duas correntes que vêm sendo seguidas nos tribunais, incluindo no Supremo Tribunal de Justiça, a que não tem sido alheia a influência de alguma doutrina, designadamente a que foi desenvolvida por Abrantes Geraldes[45], que se sintetiza assim:
Em vista do disposto nos art.ºs 562º a 564º e 566º do Código Civil, da imobilização de um veículo em consequência de acidente pode resultar:
a) Um dano emergente --- a utilização mais onerosa de um transporte alternativo como o seria o aluguer de outro veículo;
b) Um lucro cessante --- a perda de rendimento que o veículo dava com o seu destino a uma atividade lucrativa;
c) Um dano advindo da mera privação do uso do veículo que impossibilita o seu proprietário de dele livremente dispor com o conteúdo definido no art.º 1305º do Código Civil, fruindo-o e aproveitando-o como bem entender.[46]
Pretende o A. que a indemnização pela privação do uso seja contabilizada à razão de € 50,00 por dia, por ser o valor de aluguer de um veículo utilitário novo. Mas, na verdade, nunca o alugou, nunca suportou tal despesa.
Na esteira daquela última corrente (al. c)), o dano que advém da simples privação do uso do veículo é suscetível de indemnização calculada pelo recurso à equidade[47]. Como se diz também no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4.12.2003[48], tão só utilizado o veículo para passear, a impossibilidade de dele dispor para esse efeito constitui dano de lazer e, enquanto tal, dano suscetível, quando prolongada essa impossibilidade, de merecer a tutela do direito, devendo ser compensada.
Citando o Prof. Gomes da Silva, refere-se no douto acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5.7.2007[49] que “o bem só interessa, quer económica quer juridicamente (...) pela utilidade, isto é, pela aptidão para realizar fins humanos”; e nos casos de perda ou deterioração de um bem, o dano consiste “no malogro dos fins realizáveis por meio do bem perdido ou deteriorado, isto é, consiste menos na perda do próprio bem do que em ser-se privado da utilidade que ele proporcionava”. No dano haverá sempre, portanto, a frustração de um ou mais fins, resultante de se haver colocado o bem, por meio do qual era possível atingi-los, em situação de não poder ser utilizado para esse efeito.
Nesta lógica de raciocínio, Abrantes Geraldes refere que “não custa a compreender que a simples privação do uso seja uma causa adequada de uma modificação negativa na relação entre o lesado e o seu património que possa servir de base à determinação da indemnização”[50].
Refere-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7.2.2008[51] que constitui “princípio assente em direito, que a privação ilícita do uso de qualquer bem constitui um dano de que o lesado deve ser compensado…, a mera indisponibilidade de um veículo, independentemente de, da mesma, terem resultado para o lesado prejuízos económicos quantificados, é passível de indemnização, a calcular nos termos prescritos no art.º 566°, nº 3, do Código Civil, como, aliás, vem sendo sufragado na doutrina” --- acrescenta aquele aresto[52].
O Supremo Tribunal de Justiça sustentou autoridade a esta interpretação também no (mais recente) acórdão de 8.5.2013[53] escrevendo:
Entende-se que a privação do uso de um veículo é, em si mesma, um dano indemnizável, desde logo por impedir o proprietário (ou, eventualmente, o titular de outro direito, diferente do direito de propriedade, mas que confira o direito a utilizá-lo) de exercer os poderes correspondentes ao seu direito (assim, por exemplo, os acórdãos deste Supremo Tribunal de 5 de Julho de 2007, www.dgsi.pt, proc, nº 07B1849, ou de 10 de Setembro de 2009, já citado); e que o cálculo da correspondente indemnização, tal como se decidiu no acórdão recorrido, há-de ser efectuado com base na equidade, por não ser possível avaliar “o valor exacto dos danos” (nº 3 do artigo 566º do Código Civil)”.
A privação do uso de veículo poderá constituir uma ofensa ao direito de propriedade na medida em que o seu dono fica privado do uso que lhe dava. Mas dificilmente se poderá, na maior parte dos casos, encontrar o valor exato de tal prejuízo. Daí que fale antes de atribuição de uma compensação, que deverá ser determinada por juízos de equidade, tendo em conta as circunstâncias concretas do caso. O apelo a estes factos com vista a apurar o quantum devido resulta do disposto no n.° 3 do art.º 566.° do Código Civil.
Para a determinação do valor do dano, ou se apura a concreta existência de despesas feitas pelo lesado em consequência dessa privação, ou se recorre à equidade caso não se apurem quaisquer gastos, mas sim que o lesado utilizava o veículo nas suas deslocações habituais (para fins profissionais, familiares, lazer, etc.) sem que lhe tivesse sido atribuído veículo de substituição.[54] Na primeira situação, o lesado terá direito à reparação integral dos gastos/custos que teve por via da dita privação. Já na segunda hipótese, a medida da indemnização terá que ser encontrada em função da impossibilidade do lesado utilizar o veículo nas suas deslocações diárias, profissionais, familiares, de lazer, havendo que encontrar em termos quantitativos um valor que se mostre adequado a indemniza-lo pela falta diária de um veículo próprio que satisfaça as suas necessidades básicas diárias.
Não se provaram prejuízos efetivos relacionados com perda de rendimentos obtidos pela utilização do veículo, assim como não se provaram os custos que, desde 8 de junho de 2015, o A. tenha tido necessidade de suportar com a utilização de outros meios de transporte, designadamente públicos.
Sabemos apenas que o veículo Ford ... era utilizado pelo A. e pela sua companheira nas deslocações profissionais e de lazer de ambos, servindo igualmente para levar a filha menor à escola e que a sua falta causou ao A. transtornos, obrigando-o recorrer a transportes públicos e a pedir emprestados viaturas automóveis a familiares e a amigos para se deslocar.
A única ofensa ao seu direito de uso e fruição, inerente ao seu direito de propriedade prende-se com a indisponibilidade de uso do veículo desde 8.6.2015. Esta privação tem uma repercussão negativa no seu património.
Tendo conteúdo indeterminado, variável de acordo com as conceções de justiça dominantes em cada sociedade e em cada momento histórico, a equidade está limitada pelos imperativos da justiça real (a justiça adequada às circunstâncias) em oposição à justiça meramente formal. Julgar segundo a equidade significa dar a um conflito a solução que parecer mais justa, atendendo apenas às características da situação e sem recurso à lei eventualmente aplicável. A indemnização através dela encontrada não está subjugada a um critério puramente matemático.
A indemnização tem por finalidade ressarcir o lesado dos prejuízos que, na realidade, sofreu, não podendo conduzir a um gritante desequilíbrio da prestação relativamente ao dano, designadamente não podendo servir para um enriquecimento injusto do lesado à custa do lesante (ou de quem for responsável), principalmente quando este não revela assinaláveis prejuízos como seriam, por exemplo, pagamentos efetivos de montantes regulares e elevados de transportes públicos ou particulares de aluguer, que a utilização que fazia do veículo era frequente e prolongada nas distâncias percorridas, ou ainda que, por falta do automóvel, deixou de fazer viagens, ainda que apenas de recreio e lazer.
Assim, recorrendo à equidade nos termos do art.º 566º, nº 2, do Código Civil, e atendendo ao conjunto das circunstâncias relativas à privação do uso do veículo, designadamente a falta que fez e a forma como foi substituído, temos como equilibrado compensar a A. pelo valor diário de € 10,00[55].
Desde o dia 8 de junho de 2015 até à data da citação (6 de setembro de 2016) decorreram 453 dias. À razão diária de € 10,00, a indemnização pela privação do uso do veículo quantificável até àquela data é de € 4.530,00.
A R. deve indemnizar o A. também pela privação posterior e futura do veículo até à data em que pagar a indemnização relativa à perda total.
Nesta senda, procede parcialmente o recurso do A.

Em suma, a R. deve indemnizar o A. pela perda total do seu veículo no valor de € 9.298,00 e pela privação do seu uso desde 8.6.2015, à razão diária de € 10,00, quantificável à data da citação no valor de € 4.530,00, vencido posteriormente e vincendo até à data do efetivo pagamento da indemnização relativa à perda total.
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SUMÁRIO (art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil):
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V.
Pelo exposto, de facto e de Direito, acorda-se nesta Relação em julgar parcialmente procedente a apelação da R. e parcialmente procedente a apelação do A. e, em consequência, altera-se a sentença recorrida, julgando-se parcialmente procedente a ação, e condena-se a R., C... – COMPNHIA DE SEGUROS, SA a pagar ao A., B...:
a) A quantia de € 9.298,00 relativa a indemnização pela perda total do veículo;
b) A quantia que for devida na data em que for efetuado o pagamento da quantia referida em a), calculada até essa data, à razão de € 10,00 por dia, desde o dia 8.6.2015, de que já está vencido até à data da citação o montante de € 4.530,00 (correspondente a 453 dias).
c) Os juros de mora, à taxa legal, relativos à quantia referida em a) e à quantia de € 4.530,00 referida em b), contados desde a citação, até integral pagamento.
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Custas da apelação do A. e da apelação da R., por um e por outro, na proporção do decaimento.
Custas da ação na proporção do decaimento.
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Porto, 21 de fevereiro de 2018
Filipe Caroço
Judite Pires
Aristides Rodrigues de Almeida
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[1] Aqui já pela ordem que devem ser conhecidas, segundo a regra da precedência lógica (art.º 608º do Código de Processo Civil).
[2] Por transcrição.
[3] Por transcrição.
[4] Lei nº 72/2008, de 16 de abril.
[5] Pedro Romano Martinez, Direito dos Seguros – Apontamentos, 2006, pág. 51.
[6] Pedro Pais Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 2007, 4.ª Edição, pg. 449.
[7] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25.11.2014, proc 3220/07.3TBGDM-B.P1.S1, in www.dgsi.pt, citando Aurélio Menéndez.
[8] Pedro Romano Matines e outros, Lei do Contrato de Seguro anotada, Almedina 2009, pág.s 186 e 187, nota III.
[9] Proc. 2059/12.9T2AVR.P1, in www.dgsi.pt, citado na sentença recorrida e de que foi Relatora a aqui Ex.ma Adjunta Judite Pires.
[10] Direito dos Seguros, Almedina 2013, pág. 511.
[11] Cf. acórdão da Relação de Lisboa de 20.10.2016, proc. 647/11.0TBVPV.L1-2, in www.dgsi.pt, citando outra jurisprudência, designadamente acórdãos do STJ, de 01.02.2001, CJ STJ, IX, T. I, 98 e ss; de 09.6.2005 (Pº 05B1611); de 22.3.2007 (Pº 07A230), ambos acessíveis in www.dgsi.pt.
[12] A propósito, Margarida Lima Rego, Contrato de Seguro e Terceiros, Wolters Kluwer e Coimbra Editora, 2010, pág. 773.
[13] Também citado no referido acórdão da Relação do Porto.
[14] Citando Luís Poças e jurisprudência, designadamente, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09.07.2015, Proc. 487/09.6TBOHP.C1.S1.
[15] Luís Poças, “O Dever de Declaração Inicial do Risco no Contrato de Seguro”, Almedina, 2013, págs. 700, 701. Cf. ainda acórdão do STJ de 20.01.2010 – processo n.º 471/2002.G1.S1, in www.dgsi.pt. -, onde se refere: “Se o tomador manifestamente não tem interesse na celebração do contrato de seguro há uma evidente falta de legitimidade substancial do tomador no seguro do veículo, sendo de considerar, como se refere no ac. STJ, de 2007/03/22 (3), de interesse público que não seja violado o princípio da legitimidade negocial. Daí que este vício integre uma verdadeira nulidade”.
[16] Acórdão do STJ de 09.07.2015, proc. 487/09.6TBOHP.C1.S1, in www.dgsi.pt.
[17] Que o referido acórdão da Relação de Lisboa considerou suficientes para fazer valer o direito contra a seguradora.
[18] Menezes Cordeiro, A Boa Fé no Direito Civil, vol. l, pág. 649.
[19] Colectânea de Jurisprudência Supremo Tribunal de Justiça, T. II, pág. 76.
[20] Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, Almedina, pág. 224 e 225.
[21] Sob o título “Os Ónus da Alegação e da Prova, em Geral …”, Colectânea de Jurisprudência, Ano VII, T I, pág. 19.
[22] “Provas – Direito Probatório Material”, BMJ 110/82 e 171.
[23] Cf. acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de fevereiro de 2011, proc. nº 667/06.8TBOHP.C2.S1 - e de 24 de abril de 2012, proc. nº 32/10.0T2AVR.C1.S1, in www.dgsi.pt.
[24] Pedro Romano Martinez e outros, Lei do Contrato de Seguro anotada, pág. 363.
[25] Idem, Romano Martinez e outros, pág. 370.
[26] Aprovada pelo Decreto-lei nº 291/2007, de 21 de agosto.
[27] Cita-se ali o acórdão da Relação de Coimbra de 6.11.2007, proc. 356/07.4YCBR, in www.dgsi.pt, mas este acórdão foi tirado antes da vigência da atual LCS, quando ainda estava em vigor o art.º 439º, § 2º, do Código Comercial.
[28] Pedro Pais Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 2007, 4.ª Edição, pg. 449.
[29] Entre outros, o acórdão da Relação de Guimarães de 9.3.2017, proc. 4076/15.8T8BRG.G1, in www.dgsi.pt, além do acórdão citado na sentença recorrida, da mesma Relação.
[30] A. Menezes Cordeiro, Direito dos Seguros, Almedina 2013, pág. 699.
[31] Direito das Obrigações, 9ª edição, pág. 63.
[32] Colectânea de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, T. III, pág. 38.
[33] Teoria da Confiança e Responsabilidade Civil, pág. 443.
[34] Contratos Atípicos, 2ª edição, Coloecção Teses, pág.s 215 e seg.s.
[35] Cf. também acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29.5.2014, Colectânea de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, II, pág. 128.
[36] Contrato e Deveres de Protecção, pág. 36 e seg.s.
[37] Da Boa Fé, I, pág. 604.
[38] Mota Pinto, Cessão da Posição Contratual, pág.s 339 e 340.
[39] Erro e Vinculação Negocial, pág.s 44 e 45, também citado no acórdão de 8.9.2009.
[40] Das Obrigações em Geral, 8ª edição, vol. I, pág. 129, também citado naquele mesmo aresto.
[41] Cf. facto provado 13, onde se remete para a carta enviada pela seguradora.
[42] Cf. facto provado 19.
[43] Inocêncio Galvão Telles, Direito das Obrigações, Coimbra, 3ª edição, pág.s 326 e 327.
[44] Neste sentido, acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 16.03.2011, proc. 3922/07.2TBVCT.G1.S1 e de 08.05.2013, proc. 3036/04.9TBVLG.P1.S1, in www.dgsi.pt, citando-se, no segundo, outra jurisprudência, nomeadamente os acórdãos do mesmo Tribunal 5 de Julho de2007, proc. nº 07B1849, e de 10 de Setembro de 2009, proc. nº 376/09.4YLSB, também publicados na referida base de dados. Também o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7.2.2008, Colectânea de Jurisprudência do S., T. I, pág. 90, citando Direito das Obrigações do Prof. Menezes Leitão, vol. I, pág. 317, Cadernos de Direito Privado, anotação do Prof. Júlio Gomes, nº 3, pág. 62 e Temas, do Desembargador Abrantes Geraldes, vol. 1, pág. 90 e 91. E ainda acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29.11.2005, Colectânea de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, XIII, III, pág. 151, onde se contém vasta recensão jurisprudencial no sentido sustentado, e o acórdão desta Relação de Guimarães de 11.11.2009, proc. 8860/06.5TBBRG.G1, in www.dgsi.pt.
Não olvidamos alguma jurisprudência, designadamente no Supremo Tribunal de Justiça --- de que são exemplo os acórdãos daquele Alto Tribunal de 16.9.2008, de 30.10.2008 e de 12.1.21012, in www.dgsi.pt --- no sentido do reforço das exigências de prova dos prejuízos emergentes da paralisação do veículo.
[45] In “Indemnização do Dano da Privação do Uso”, Coimbra, Almedina, 2001.
[46] A outra posição entende a essencialidade da alegação e prova da frustração de um propósito real, concreto e efetivo, de proceder à utilização do veículo e termos desta.
[47] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29.11.2005, doc. nº SJ200511290031227, in www.dgsi.pt.
[48] Doc. nº SJ200312040030307, in www.dgsi.pt.
[49] In www.dgsi.pt.
[50] – In Indemnização do Dano Privação do Uso, pág.s 39-41.
[51] Colectânea de Jurisprudência do Supremo, Tomo I, pág. 90.
[52] Citando Direito das Obrigações do Prof. Menezes Leitão, vol. L, pág. 317, Cadernos de Direito Privado, anotação do Prof. Júlio Gomes, nº 3, pág. 62 e Temas do Desembargador Abrantes Geraldes, vol. 1, pág. 90 e 91; e ainda, na jurisprudência do Supremo, acórdão de 29/11/2005 (CJSTJ XIII, III, 151), onde se contém vasta recensão jurisprudencial no sentido sustentado.
[53] Proc. nº 3036/04.9TBVLG.P1.S1 – 7ª Secção.
[54] Entre outros, ao c da Relação de Coimbra de 10.9.2013, proc. 438/11.8TBTND.C1, in www.dgsi.pt.
[55] Valor que o aqui relator adotou em situação semelhante decidia no acórdão de 1.10.2015, proferido no proc. nº 1090/14.4TBLSD.P1, desta Relação do Porto (inédito), mas que até já tem sido mais reduzido, como ocorreu no acórdão da Relação de Lisboa de 1.7.2014, proc. 11463/09.9 THLSB.L1-1, in www.dgsi.pt, e no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23.11.2011, proc. 397-B/1998.L1.S1, publicado na mesma base de dados.