Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
19383/09.0TDPRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: VÍTOR MORGADO
Descritores: SENTENÇA POR APONTAMENTO
INEXISTÊNCIA
Nº do Documento: RP2018041119383/09.0TDPRT-A.P1
Data do Acordão: 04/11/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 16/2018, FLS 194-200)
Área Temática: .
Sumário: É inexistente a sentença “lida” por apontamento, sem redução a escrito nem depósito na secretaria.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso nº 19383/09.0TDPRT-A.P1
Origem: Comarca do Porto - Juízo Local Criminal do Porto- Juiz 6

Acordam, em conferência, na 1.ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação do Porto:

I – No processo comum de onde foram extraídos os presentes autos de recurso em separado, em que é arguido B..., aqui recorrente – acusado da prática de um crime de usurpação, previsto e punido pelos artigos 195.º n.º 2, alínea a) e 197.º, ambos do Código de Direitos de Autores e Direitos Conexos – encontram-se documentadas várias sessões da audiência julgamento.
Nessa sequência, relativamente à que corresponderia à última de tais sessões, com data de 23 de abril de 2014, encontra-se, “fazendo” folha 639, um documento com a designação de “ata de audiência e discussão de julgamento - continuação” (embora não assinado, enquanto tal, por qualquer magistrado ou funcionário, nomeadamente os aí identificados), onde pode ler-se, a certa altura, “(…), pelo Mm.º Juiz foi declara aberta a presente audiência tendo de seguida procedido à leitura da sentença, o que fez em voz alta.”(…).
Apesar desta referência a uma leitura de sentença, não foi junta aos autos qualquer sentença ou outra peça processual escrita e/ou assinada pelo Magistrado Judicial que presidiu às referidas sessões.
De tais autos consta, depois, mormente, um termo de recebimento, onde consta que “os autos foram deixados no gabinete pelo Mm.º Juiz Titular, no dia 3 de Maio de 2017, após as 17 horas.”
Foram, posteriormente, juntos um pedido de aceleração processual do Ministério Público de 1 de março de 2017 e outros pedidos de informação e consulta dos autos, sobre os quais não recaiu qualquer despacho judicial específico.
Só em 6 de junho de 2017 foi proferido nos autos – por Magistrado Judicial diverso do que havia presidido à audiência de julgamento – o seguinte despacho (transcrição):
«Compulsados os autos verifica-se que a produção de prova terminou no dia 20/02/2014 e que após tal diligência, nenhuma outra foi produzida, nem tampouco proferida qualquer decisão, não obstante constar dos autos uma alegada leitura de decisão proferida no próprio dia 23/04/2014.
A este propósito, convém esclarecer que o processo sub judice é um processo que segue a forma de tramitação comum, pelo que não há lugar à sentença oral a que se reporta o artigo 389º-A do Código de Processo Penal. Logo e não existindo qualquer decisão escrita, estamos perante um caso de inexistência de decisão e não de nulidade da mesma, pois que não se pode declarar nulo aquilo que simplesmente não existe.
Por outro lado, o juiz que presidiu à audiência de discussão e julgamento encontra-se ausente do serviço, desde março do presente ano, não sendo previsível o seu regresso.
O artigo 328º do Código de Processo Penal, na redação vigente à data dos factos postulava o seguinte: 1- A audiência é contínua, decorrendo sem qualquer interrupção ou adiamento até ao seu encerramento.
2 - São admissíveis, na mesma audiência, as interrupções estritamente necessárias, em especial para alimentação e repouso dos participantes. Se a audiência não puder ser concluída no dia em que se tiver iniciado, é interrompida, para continuar no dia útil imediatamente posterior.
5- A interrupção e o adiamento dependem sempre de despacho fundamentado do presidente que é notificado a todos os sujeitos processuais.
6- O adiamento não pode exceder 30 dias. Se não for possível retomar a audiência neste prazo, perde eficácia a produção de prova já realizada.
Este preceito legal tem a razão de ser nos princípios da oralidade, da continuidade da audiência, da concentração, da imediação, etc.
Conforme refere Figueiredo Dias, é na audiência de discussão e julgamento que o princípio da concentração ganha o seu maior relevo, ligando-se aí aos princípios da forma, enquanto corolário dos princípios da oralidade e da imediação. Salienta, ainda, o mesmo autor que “a oralidade e a imediação exigem uma audiência unitária, e continuada, em que tenha lugar a apreciação conjunta e esgotante de toda a matéria do processo. Daqui a concentração espacial – a propósito da qual se fala também por vezes de um princípio de localização –, exigindo que a audiência se desenvolva por inteiro em um mesmo local, apropriado ao fim que com ela se pretende obter e aonde devem ser trazidos todos os participantes processuais (a sala de audiência); e a concentração temporal exigindo que, uma vez iniciada a audiência, ela decorra sem solução de continuidade até final.
Na verdade, e como bem refere Paulo Pinto Albuquerque, a imediação e a descoberta da verdade são prejudicados pela interrupção da produção da prova repetidas vezes, ou por períodos longos, pois ela torna impossível a captação da uma imagem global dos meios de prova e a formulação de um juízo concatenado de toda a prova.
Como forma de reduzir os riscos que o tempo e a duração do processo podem provocar na memória do julgador inscreve-se o princípio da concentração, que sublinha a necessidade de proximidade entre os diversos atos processuais para que o juiz possa valer-se da impressão deixada no seu espírito pelos testemunhos e depoimentos. Consequentemente, para que a oralidade seja efetiva e traga todos os benefícios inerentes à sua aplicação, torna-se necessária a produção de um mínimo de sessões de audiência ou, idealmente, a produção de apenas uma audiência. A proximidade temporal entre aquilo que o juiz apreendeu, por sua observação pessoal, e o momento em que deverá avaliá-lo na sentença é elemento decisivo para a preservação das vantagens do princípio, pois um intervalo de tempo excessivo entre a audiência e o julgamento tornará difícil ao julgador conservar, com nitidez, na memória os elementos que o tenham impressionado na receção da prova, fruto de sua observação pessoal sujeita a desaparecer com o passar do tempo.
Estes princípios aplicam-se não só na fase de produção de prova como também na fase de prolação de decisão, não fazendo sentido o julgador aguardar mais de 30 dias sem proferir o julgamento sobre os factos em causa nos autos, correndo o risco de perder todas as lembranças da prova, bem como de não se lembrar de todo o quadro fático, e que só a imediação pode assegurar.
No caso sub judice, desde a última sessão de audiência de julgamento até à data de hoje já decorreram mais de 3 anos.
Nessa conformidade, entendemos que ao interromper-se por mais de 30 dias a audiência, sem prolação da sentença, ficou precludido o direito de o meritíssimo Juiz proferir decisão no processo em apreço.
Na verdade, e conforme referimos, a razão de ser do artigo 328º, nº 6, assenta nos princípios da imediação, oralidade e o direito do arguido a julgamento célere, pelo que não faz qualquer sentido e é totalmente contra legem ficar a aguardar-se indefinidamente pela prolação de uma decisão.
Acresce que, também do ponto de vista do arguido, este tem direito a um julgamento célere, não devendo ficar eternamente “sob a espada de Dâmocles”, aguardando por uma decisão.
Por fim, também razões de ordem prática impõem tal decisão, uma vez que não é previsível o regresso ao serviço do Meritíssimo Juiz que presidiu ao julgamento.
Logo e atento o período de tempo já decorrido, os preceitos legais supracitados, bem como a falta de qualquer decisão, declaro nulo o processado respeitante às sessões de audiência de discussão e julgamento nestes autos realizada, impondo-se, pois, a sua repetição ab initio.
Notifique.
Comunique ao CSM e ao Exm.º Sr. presidente da Comarca.
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Para audiência de discussão e julgamento designo as seguintes datas: 1.ª data: 11/09/2017, pelas 14h15; 2.ª data: 18/09/2017, pelas 14h15; Notifique.»
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Com tal despacho se não conformando, veio o arguido interpor o presente recurso, cuja motivação condensou nas seguintes conclusões:
«1. Trazemos à apreciação deste Venerando Tribunal uma questão simples, mas de relevada importância, atento os princípios de direito em causa nos presentes autos.
Da verificação da prolação da sentença final:
2. O recorrente, arguido nos presentes autos, foi já julgado e absolvido do crime de que foi acusado pelo Tribunal a quo; não obstante, foi proferido despacho a declarar “nulo o processado respeitante às sessões de audiência de discussão e julgamento nestes autos realizadas, impondo-se, pois, a sua repetição ab initio”, com o que o arguido não se conforma, por diversas razões, como veremos.
3. Como se disse, o arguido foi já sentenciado nos presentes autos, tendo, no dia 23/04/2014, sido proferida decisão/sentença que o absolveu do crime pelo qual vinha acusado, tudo conforme ata do dia 23/04/2014.
4. Assim, a decisão foi proferida e o recorrente dela teve conhecimento, juntamente com os demais presentes, pelo que não podemos aceitar que venha agora o mesmo Tribunal, no despacho recorrido, afirmar que “nem tampouco proferida qualquer decisão, não obstante constar dos autos uma alegada leitura de decisão proferida no próprio dia 23/04/2014”.
5. Fundamenta o Tribunal a quo o despacho recorrido no facto de não existir decisão… Ora, decisão houve e o recorrente ouviu-a!
6. Ao recorrente não pode ser imputável a ausência do depósito da referida sentença! O Tribunal a quo proferiu sentença…
7. Não podemos aceitar que o arguido recorrente, que aguarda há três anos pela devolução dos objetos entregues para prova da sua inocência, seja agora confrontado com uma decisão que impõe a repetição de todo o processo moroso e desgastante de sujeição do recorrente a NOVO julgamento, pelos mesmos factos!
8. Face à existência de sentença que foi proferida nos presentes autos, impõem-se revogar o despacho recorrido por outro, com o depósito da sentença final.
Da inexistência da nulidade declarada:
9. Declara o Tribunal a quo a nulidade da prova produzida por força da aplicação do número 6 do artigo 328.º do Código de Processo Penal.
10. No entanto, tal normativo não se aplica à leitura da sentença, pois será antes de aplicar a norma constante no número 1 do artigo 373.º do Código de Processo Penal, pelo que nunca poderia a prova produzida ter sido declarada nula.
11. Para além disto, tal norma não está hoje em vigor, não prevendo tal normativo, atualmente, qualquer nulidade, conforme redação conferida pela Lei n.º 27/2015, de 14 de abril.
12. Desta forma, atento o princípio da aplicação da Lei mais favorável ao arguido, deverá ser a redação hoje em vigor a aplicável aos presentes autos.
13. Inexiste, assim, a declarada nulidade indicada na decisão recorrida, pelo que, também por isso, [deve] ser revogada por outra que ordene o prosseguimento dos autos com o depósito da sentença já proferida!
Da violação dos princípios constitucionais:
14. A decisão recorrida é violadora de diversos princípios constitucionais.
Princípio de ne bis in idem:
15. No despacho recorrido, com a interpretação e aplicação da norma nele invocada, que entende sujeitar o recorrente a novo julgamento, o Tribunal a quo viola o princípio de ne bis in idem, pois, nos termos do número 5 do artigo 29º da Constituição da República Portuguesa, “ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”, o que consubstancia inconstitucionalidade, que se argui e requer seja declarada.
Garantias de defesa:
16. Nos termos do número 1 do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa, “o processo criminal assegura todas as garantias de defesa”, o que não acontece nos presentes autos.
17. Por um lado, não se poderia ter declarado a nulidade da prova produzida, pois tal consequência prevista pelo legislador não será de aplicar à fase de decisão e prolação da sentença, mas tão-só à fase de produção de prova.
18. Por outro lado, a aplicação de tal normativo, em versão já revogada, viola o princípio da aplicação da lei mais favorável ao arguido.
19. Por fim, a repetição do julgamento irá, com certeza, colocar o assistente numa posição mais favorável, pelo que, fica o arguido debilitado com a repetição do julgamento!
20. Do exposto resulta que a interpretação que foi feita do número 6 do artigo 328.º do Código de Processo Penal comporta inconstitucionalidade por violação das garantias de defesa do arguido, o que se argui e requer seja declarada.
Direito a um processo equitativo:
21. Dispõe ainda a nossa Lei Fundamental que “todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objeto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo”, não obstante, mostram-se agora os presentes autos bastante iníquos para o recorrente.
22. Com a decisão recorrida, na interpretação que é feita das normas processuais penais supracitadas, o Tribunal a quo sujeita o recorrente a novo julgamento, por factos dos quais já foi absolvido, violando, assim, a imposição constitucional de proporcionar ao arguido um processo equitativo, prevista no número 4 do artigo 20º da Constituição da República Portuguesa, o que consubstancia inconstitucionalidade, que se argui e requer seja declarada.»
Terminou o arguido o seu recurso pedindo a revogação da decisão recorrida qual deve ser revogada por outra que ordene o prosseguimento dos autos com o depósito da sentença já proferida.
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O Ministério Público apresentou resposta, na qual sintetizou a sua posição nos seguintes termos:
«I - Inexistindo sentença escrita, não podemos retirar qualquer efeito para a esfera jurídica dos intervenientes processuais;
II - A leitura pública da sentença, supõe a sua prévia elaboração e respetiva assinatura pelo Juiz Titular, enquanto, documento autêntico que ficará a constar do processo, porque enquanto não for elaborada não pode ser lida porque é inexistente.
III - Não obstante, a invocada audição da leitura da sentença de absolvição pelo arguido, contudo, sem estar escrita (ou seja, elaborada e assinada pelo Mm.º Juiz Titular), não surte legalmente qualquer eficácia jurídica, pois não gera direitos, nem estabelece obrigações, por inexistente.
IV - Sendo inexistente a sentença, por não escrita, não se pode considerar que exista sequer trânsito em julgado da sentença relativamente aos factos objeto dos autos, nem se poderá considerar que se está a julgar o arguido sobre os mesmos factos, pois inexiste qualquer decisão/sentença escrita sobre a factualidade objeto dos autos e impõe-se regularizar o processado, como o Mm.º Juiz a quo decidiu no despacho ora recorrido.
V - Deve ser suprida a inexistência da sentença dos autos, o que passará pela repetição do ato ou, no caso de impossibilidade de ser efetuada a leitura pelo Juiz Titular, apenas restará a realização de julgamento, nos termos e de harmonia com o previsto nos artigos 328º e 328º-A, ambos do Código de Processo Penal.
VI - Deve o recurso interposto pelo arguido ser julgado improcedente, mantendo-se a decisão recorrida no sentido de ser determinada a repetição do ato da leitura de sentença ou da realização da audiência de julgamento, conforme o previsto no artigo 328º-A, nºs 1 a 7, do Código de Processo Penal.
VII - Contrariamente ao pugnado pelo recorrente, concluímos que terá de ser determinada a repetição dos atos probatórios, com marcação de audiência de julgamento, ponderando-se e conjugando-se o previsto nos artigos 328º e 328º-A, nºs 1 a 7, do Código de Processo Penal.»
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Já nesta 2ª instância, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no sentido de que o recurso não merece provimento.
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Cumpre decidir.
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II - FUNDAMENTAÇÃO
As questões principais a decidir consistem em saber:
- se, no processo principal (que segue a forma comum), foi proferida sentença final válida, tendo, assim, a decisão recorrida violado princípios constitucionais diretamente aplicáveis e, designadamente, o princípio do caso julgado (‘non bis in idem’);
- se a prova produzida mantém a sua validade.
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Circunstâncias processuais relevantes:
Como base de facto para a decisão do presente recurso, dá-se aqui como reproduzido o teor dos cinco primeiros parágrafos do antecedente relatório (I) e ainda as seguintes circunstâncias:
(6) – A produção de prova terminou no dia 20/02/2014 e, após tal diligência, nenhuma outra foi produzida, nem proferida qualquer decisão escrita;
(7) – O juiz que presidiu à audiência de discussão e julgamento encontra-se ausente do serviço desde março de 2017, não sendo previsível o seu regresso.
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As questões a decidir
As questões primeiramente colocadas pelo presente recurso encontram-se, como se verá, interligadas.
Na verdade, de acordo com o que acima se sumariou, o recorrente alega, basicamente, que já foi proferida, nos autos principais, sentença absolutória, pelo que, com o despacho recorrido, ao pretender sujeitar o recorrente a novo julgamento, o Tribunal a quo violou, mormente [1], o princípio constitucional de ‘ne bis in idem’, pois, nos termos do número 5 do artigo 29º da Constituição da República Portuguesa, “ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”. Assim, por a interpretação das normas legais aplicáveis (?) ser inconstitucional, impor-se-ia a revogação de tal despacho.
Pois bem.
Embora o recorrente de forma alguma tenha contribuído para as manifestas e lamentáveis anomalias verificadas e não devesse, nessa medida, ser por elas afetado, a verdade é que o circunstancialismo verificado não nos permite afirmar que tenha sido efetivamente produzida qualquer verdadeira sentença final.
Para já não falar em que o documento que faz folha 639, com a designação de “ata de audiência e discussão de julgamento, continuação”, não se encontra assinado por qualquer magistrado ou funcionário, nomeadamente os aí identificados, mesmo dando-se de barato que ocorreu a “leitura de sentença” aí referida e ainda que tal sentença foi absolutória – circunstância que, aliás, não consta (nem teria que constar) de tal documento – a solução do caso não mudaria de figura.
Com efeito, tudo se resume em saber se, num processo criminal seguindo a forma comum, no termo das sessões de produção de prova, admitindo-se que tenha sido lida “sentença por apontamento”, sem redução a escrito nem depósito da mesma, essa decisão é formalmente suficiente como decisão final/sentença.
Ainda que não seja particularmente abundante a elaboração doutrinal e jurisprudencial sobre situações semelhantes, temos como seguro que estamos perante um ato inválido, na sua modalidade extrema: a inexistência jurídica.
Com efeito, a aceitar-se que em 23/4/2014 foi lido um rascunho ou um apontamento do que se pretenderia vir a configurar uma futura sentença, o que é certo é que não existe um ato com a forma ou a figura de uma sentença, antes se estando perante «(…) a prática, a todos os títulos inaceitável, da leitura ‘por apontamento’. Se a sentença consistiu numa pronúncia oral, que não chegou a ser reduzida a escrito, é claro que não existe sentença» [2].
Como observa Germano Marques da Silva [3], “(…) seria tecnicamente inconcebível, para além de profundamente iníquo, deixar sem tutela vícios do ato mais graves do que os que a lei prevê como constituindo nulidades”. E explicita, dizendo: “A função da categoria da inexistência é precisamente a de ultrapassar a barreira da tipicidade das nulidades e da sua sanação pelo caso julgado: a inexistência é insanável. A inexistência do ato, de facto, impede de modo irremediável a produção dos efeitos próprios do ato perfeito, como acontece nas nulidades e irregularidades.”
Na sugestiva expressão de Alberto dos Reis [4] “(…) a sentença meramente verbal, da qual não ficou vestígio escrito, não existe, nem sequer materialmente. Foi um som que passou (…)”.
Sem pretender pôr minimamente em causa que o ora recorrente tenha sido prejudicado (e mesmo o maior prejudicado) pela forma gravemente anómala como foi conduzido o processo, julgamos inultrapassável a conclusão de que estamos perante um ato inexistente [5], com todas as legais consequências daí advenientes.
Ora, como observa Cavaleiro de Ferreira [6], “um acto inexistente não é susceptível de produzir quaisquer efeitos, e é por isso que não carece de ser anulado, nem o acto se refaz ou a inexistência é absorvida pelo trânsito em julgado; o acto judicial inexistente não dá nunca lugar a caso julgado”.
Como facilmente se intui, a solução por nós adotada (de considerar material e juridicamente inexistente qualquer decisão final/sentença verbal que tenha sido proferida nos autos) conduz-nos inelutavelmente a negar a verificação da invocada violação – pelo Tribunal recorrido, no despacho ora posto em causa – do princípio de “non bis in idem” ou do caso julgado, reconhecido pelo nº 5 do artigo 29º da CRP.
E tal inexistência de julgamento abrange não só a eventual aplicação do direito ao caso concreto como, necessariamente, a suposta tomada de posição sobre a matéria de facto com interesse para a decisão da matéria de facto.
Carece, pois, de razão o recorrente, ao alegar a violação, através do despacho recorrido, do princípio do caso julgado.
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Já no que se refere à questão da validade ou invalidade da prova produzida há mais de 3 anos, afigura-se-nos como parcialmente acertada a argumentação do recorrente.
Com efeito, no despacho recorrido, invoca-se (a nosso ver sem fundamento legal) a nulidade da prova produzida, por violação do então vigente nº 6 do artigo 328º do Código de Processo Penal, que determinava que o adiamento ou interrupção da audiência de julgamento não podia exceder 30 dias e que, se não fosse possível retomá-la nesse prazo, perdia eficácia a produção de prova já realizada.
Por precisão terminológica, refira-se que a lei não cominava a nulidade, mas antes a perda de eficácia da prova produzida.
É certo que jurisprudência houve que, como o acórdão do S.T.J. de 15/10/1997, entendeu que a violação do disposto no nº 6 do artigo 328º do CPP constituía “nulidade que, arguida nas alegações, envolve a invalidade do julgamento”.
Porém, porque sempre entendemos que havia que distinguir entre a interrupção entre sessões de produção de prova e a que era (e é) estabelecida ao abrigo do nº 1 do artigo 373º do CPP para elaboração de sentença complexa, não haveria lugar, neste último caso, à caducidade da prova pessoal já (toda) produzida.
Assim, estamos mais em consonância com o entendido, por exemplo, pelo acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 4/7/2012, na parte em que decidiu que “o limite temporal de 30 dias previsto no n.º 6 do art.º 328.º do CPP para os adiamentos da audiência sem perda de eficácia da prova anteriormente realizada se reporta apenas à audiência em sentido estrito, compreendendo os atos de produção de prova e discussão da causa e já não o momento da decisão e de elaboração e leitura da sentença ou acórdão” [7].
Tal não significa, no entanto, que (ressalvado aquele fundamento) discordemos da solução encontrada no despacho recorrido, tanto mais que o aludido fundamento não é o único invocado e que são válidos os restantes argumentos enunciados no referido despacho.
Na verdade, sabe-se – através do circunstancialismo fixado no próprio despacho recorrido e que se não mostra impugnado – que o juiz que presidiu à audiência de discussão e julgamento se encontra ausente do serviço desde março de 2017, não sendo previsível o seu regresso.
Ora, sendo inexistente a pretensa sentença invocada pelo arguido, não é defensável que, como peticionado pelo arguido, a decisão ora recorrida seja substituída “por outra que ordene o prosseguimento dos autos com o depósito da sentença já proferida”, visto que esta não existe.
Desde logo, como vem sendo pacificamente entendido, o depósito de sentença válida (necessariamente nova) não pode ocorrer sem que a mesma seja previamente lida, o que, não se renovando a prova, pressupõe o regresso do juiz ausente, visto o princípio da plenitude da assistência do juiz.
Sendo imprevisível o regresso do juiz que presidiu à produção de prova, uma decisão que obrigasse o mesmo a proceder à elaboração, à leitura e ao depósito de uma nova sentença conduziria o processo a um “beco sem saída”, frustrando, inevitavelmente, o direito a uma tutela jurisdicional efetiva e à eternização do estatuto de arguido acusado do ora recorrente, em oposição com o desiderato constitucional constante do nº 4 do artigo 20º da CRP (direito a processo equitativo em prazo razoável).
De resto, a lei já hoje prevê, nos nºs 2 a 7 do artigo 328º-A do Código de Processo Penal, os casos em que o juiz poderá ser substituído.
Assim, nos termos do nº 5 do citado artigo o juiz que for transferido, promovido ou aposentado conclui o julgamento, exceto se a aposentação tiver por fundamento a incapacidade física, moral ou profissional para o exercício do cargo, ou se, em qualquer dos casos, as circunstâncias aconselharem a substituição do juiz transferido, promovido ou aposentado, o que é decidido pelo juiz que deva presidir à continuação da audiência.
O despacho recorrido foi proferido pelo juiz que, à data, deveria presidir à continuação da audiência.
Embora a situação em que se encontra o juiz ausente não seja, formalmente, a do juiz aposentado por incapacidade profissional, em todo o caso, as circunstâncias conhecidas permitem equipará-la a esta.
Deste modo, embora com fundamentos em parte diversos, manter-se-á o despacho recorrido, com as devidas adaptações, assim devendo improceder o recurso do arguido.
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III – DECISÃO
Por tudo o exposto, embora por fundamentos parcialmente diversos, acordam os juízes desta Secção Criminal em julgarem não provido o recurso interposto pelo arguido B..., confirmando, no essencial, o despacho recorrido, em consequência do que, atento o período de tempo já decorrido, os preceitos legais supracitados, bem como a falta de qualquer decisão, se determina que a audiência de julgamento seja repetida ‘ab initio’ pelo juiz que se encontre em funções, ficando inservíveis as sessões de audiência de discussão e julgamento anteriormente realizadas no processo pelo juiz ausente.
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Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 U.C.s.
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Porto, 11 de abril de 2018
Vítor Morgado
Alexandra Pelayo
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[1] Argumentou, ainda, o recorrente com a alegada violação dos incisos constitucionais que consagram o direito a um processo equitativo (nº 4 do artigo 20º) e a garantia dos direitos de defesa (nº 1 do artigo 32º da CRP), embora sem lograr autonomizar, a nosso ver, a respetiva invocação da primordial alegação do caso julgado.
[2] Assim, o acórdão da Relação do Porto de 5/2/2003, publicado na Col.Jur., ano XXVII, tomo I, página 216.
[3] Curso de Processo Penal, volume II, 5ª edição, Verbo, 2010, página 134.
[4] Código de Processo Civil anotado, volume V, Coimbra Editora, reimpressão de 1984, página 119.
[5] No sentido de que a “leitura por apontamento” de sentença criminal – que não se confunde, de modo algum, com a sentença ditada para a ata, prática admitida e até hoje legalmente prevista (mesmo sem transcrição escrita), para a generalidade dos casos tramitados sob as formas de processo sumário e abreviado – configura um ato juridicamente inexistente, ver também, designadamente, os acórdãos da Relação de Lisboa de 12/01/2005, proferido no recurso 8439/2004-3, relatado por Mário Morgado (acedido em www.dgsi.pt) e de 23/6/2005, proferido no recurso 4544/05-9ª, relatado por Almeida Cabral (aliás, incorretamente sumariado na Col.Jur., ano XXX, tomo III, página 139, bem como o acórdão da Relação do Porto de 13/7/2011, proferido no recurso 49/08.5GCVFR.P1, relatado por Olga Maurício, acedido em www.dgsi.pt.
[6] Curso de Processo Penal, volume I, Lisboa, 1955, página 269.
[7] No mesmo sentido, ver também os acórdãos do S.T.J. de 28/10/2009, proferido no processo 121/07.9PBPTM.E1.S1, de 30/3/2006, proferido no processo 780/06, e de 11/1/2006, proferido no processo 4301/04.