Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3673/11.5TBVFR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RUI MOREIRA
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL
ANIMAIS PERIGOSOS
RESPONSABILIDADE OBJECTIVA
CULPA DO LESADO
Nº do Documento: RP201606143673/11.5TBVFR.P1
Data do Acordão: 06/14/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 722, FLS.47-57)
Área Temática: .
Sumário: I - A presença de um cão G… num espaço vedado e o seu ataque a alguém que aí entrou, quando na entrada se assinalava a presença do animal e quando a esse alguém foi instruído que aguardasse - o mesmo significa que não entrasse até nova instrução - não pode considerar-se um risco especial inerente à qualidade e à detenção do animal naquelas circunstâncias.
II - Neste quadro factual, o dano não decorre do perigo especial decorrente da sua qualidade de animal perigoso e da utilização que lhe era dada pelo dono, mas de uma circunstância provocada pela própria vítima, a quem era exigida e a quem era possível uma actuação diversa e que teria prevenido a ocorrência dos danos.
III - A culpa do lesado afasta a responsabilidade objectiva do detentor do animal, enunciada no art. 502º do C.C.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: PROC. Nº 3673/11.5TBVFR.P1
Comarca de Aveiro - St. Mª Feira
Inst. Central - 2ª Secção Cível - J2

REL. N.º 334
Relator: Rui Moreira
Adjuntos: Tomé Ramião
Vitor Amaral
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ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

1 - RELATÓRIO

B…, casada e residente na Rua da …, nº…, em … propôs acção condenação, em processo comum sob a forma ordinária, contra C…, solteiro e residente na Rua … nº…., …, Santa Maria da Feira, D… Lda., pessoa colectiva nº………, com sede na Rua …, …, Santa Maria da Feira, e Companhia de Seguros E…, S.A., com sede no … nº .., Lisboa, pedindo a condenação dos RR. a pagarem-lhe solidariamente a quantia de 50.283 €, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento, a título de indemnização pelos danos que lhe advieram do ataque de um cão que se encontrava num espaço contíguo às instalações da segunda ré, de que o primeiro é sócio-gerente, num dia em que ali acedeu para fazer uma compra. A Autora alega, igualmente, que o 1º Réu, na qualidade de sócio-gerente da 2ª Ré, celebrou um contrato de seguro de responsabilidade civil de animais de companhia com a 3ª Ré, a que corresponde a apólice nº………, sendo a 2ª Ré a tomadora do seguro.
Descrevendo o acidente, a autora alegou que lhe foi facultada, por uma funcionária da 2ª ré, a entrada num espaço através do qual iria aceder às instalações da 2ª ré, tendo aí sido atacada pelo cão que o 1º réu destinava à guarda da sua casa e dessas mesmas instalações. O cão atacou-a, mordendo-a no braço direito, agarrando com força, durante vários minutos, e imobilizando-a, até que o 1º Réu veio em seu auxílio e se conseguiu retirar o seu braço da boca do animal, o qual é classificado como animal potencialmente perigoso. Descreveu os danos sofridos em consequência deste acidente, patrimoniais e não patrimoniais, pretendendo agora a sua indemnização.
A R. “E…” contestou, por um lado arguindo a excepção peremptória da prescrição, com base no facto de o evento se reportar a 11 de Setembro de 2005, a presente acção ter sido instaurada em 4.07.2011 e a contestante ter sido citada em 9.09.2011, ou seja, tudo para além dos 5 anos após a ocorrência, sendo que a mesma não interveio no Processo Comum Singular nº1017/05.4GDVFR, do 1º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Santa Maria da Feira, em que o co-réu C… foi absolvido. Por outro lado, impugnou a factualidade invocada na petição inicial, por não corresponder à verdade ou desconhecê-la e não ter a obrigação de a conhecer.
Mais sustentou, em síntese, que o dito estabelecimento não tem acesso pelo portão através do qual a Autora entrou e que a mesma, apesar de ter sido avisada por F… para aguardar enquanto esta ia abrir o estabelecimento e advertida de que o cão estava solto e para não entrar, decidiu abrir o dito portão, de acesso exclusivo para as pessoas da casa, assim acedendo ao pátio onde o animal se encontrava e acabando por ser mordida. Acresce que a Autora não atentou na placa de aviso da existência do cão, colocada no portão. Deste modo, a 3ª Ré conclui que a Autora foi negligente e descuidada, criando objectivamente condições para o sucedido, o que exclui a responsabilidade da contestante.
O 1º e a 2ª Réus contestaram, arguindo, por um lado, a ilegitimidade passiva do 1º Réu, por não ser o proprietário do cão, que pertence à 2ª Ré; por outro lado, alegando que o animal sempre teve um comportamento dócil, não tem qualquer historial de ataque a pessoas ou a outros animais e que a presente acção constitui uma repetição dos factos em discussão no processo-crime que correu termos no 1º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Santa Maria da Feira, sob o nº1017/05.4GDVFR, em que o 1º Réu, aí arguido, foi absolvido, em virtude de ter ficado provado que o mesmo não violou o dever de cuidado, mormente o imposto pelo D.L. nº312/03, de 17.12, e pela Portaria nº422/04, de 24.04. Afirmaram ainda que a presença do cão na habitação estava devidamente sinalizada, com uma placa, de cor azul, no respectivo portão de acesso, com a inscrição “cuidado com o cão”, a qual ainda hoje se encontra no local, facto também demonstrado, como resulta da mencionada sentença, que o animal apenas era solto apenas durante a noite ou nos períodos em que o estabelecimento explorado pela 2ª Ré se encontrava encerrado, como sejam os Domingos, tendo sido num desses períodos em que ocorreram os factos. O estabelecimento comercial em causa, apesar de funcionar num anexo à habitação dos pais do 1º Réu, tem acesso directo à via pública, não existindo a mínima possibilidade de os clientes que lá se deslocam terem acesso ao local onde o cão se encontrava, sendo desnecessário, para aceder àquele estabelecimento, entrar pelo portão onde estava afixado o aviso da existência de um cão e que serve apenas a habitação, encontrando-se o seu acesso reservado aos da casa ou a convidados destes. No dia em questão, por ser Domingo, o estabelecimento encontrava-se encerrado e, por essa razão, a A. terá decidido tocar na campainha da habitação, na sequência do que foi atendida por F…, que a informou, do cimo das escadas, desse encerramento. Porém, dada a insistência da A., aquela pediu-lhe que aguardasse um instante, enquanto abria a porta do estabelecimento para a atender, mais lhe referindo expressamente que não entrasse, uma vez que o aludido cão se encontrava solto. Todavia, sem que nada o fizesse prever e contrariando o pedido expresso de F…, a Autora decidiu abrir o portão e acedeu ao pátio onde o animal de encontrava, pelo que foi mordida no braço direito. F… correu logo em auxílio da Autora, dando ordem ao cão para parar, no que foi de imediato obedecida. O 1º Réu não se encontrava no local aquando da entrada da Autora na habitação. Concluem, assim, que só a própria autora deu causa aos danos que sofreu, pelo que concluem pela improcedência da acção, sem prejuízo de afirmarem o exagero da indemnização peticionada.
A Autora respondeu, sustentando, em síntese, que o seu direito não prescreveu e quanto à excepção da ilegitimidade do 1º Réu, contrapôs que, não obstante este não ser o proprietário do animal, era o seu detentor, sobre o qual também impende um dever de vigilância ou um dever especial de cuidado, tendo em conta as suas características.
O processo foi saneado, tendo sido julgadas improcedentes as excepções arguidas. Foi preparado para julgamento e, realizado este, veio a ser proferida sentença que, em suma, concluiu que o 1º réu, por si ou enquanto gerente da 2ª ré, em nada contribuiu, por acção ou omissão, para a produção dos danos de que a autora foi vítima, já que o acidente se deu por “conduta culposa, negligente, da autora, pois que contrariou indicação de F… acedendo por sua iniciativa ao local onde foi atacada pelo cão, e não atendeu ao aviso da existência de um cão no local e da sua perigosidade….”.
É desta sentença que a autora vem apresentar o presente recurso, através do qual pretende a alteração da decisão sobre a matéria de facto, no sentido da afirmação da sua versão. Conclui tal recurso formulando as seguintes conclusões:
1 - Com o presente recurso a autora/recorrente pretende averiguar se efectivamente se os 1º 2º Réus observaram os deveres de cuidado que a lei lhes impunha, e em que medida omissão desses deveres incrementaram, o risco associado à detenção e utilização deste tipo de animal potencialmente perigos, no caso concreto, um cão da raça G…, no caso concreto a mordedura deste cão à autora
2 - E se em consequência da conduta dos 1º e 2º Réus se verificaram os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, a fixação do quantum indemnizatório correspondente aos danos causados à Autora; assim como a determinação do(s) civilmente responsável(eis) pelos danos causados à Autora
3 - Os-concretos pontos de facto que a recorrente considera incorrectamente julgado são os factos provado nº 30). A Autora, ao encontrar o estabelecimento referido em 3) e o portão indicado em 8) fechados, tocou à campainha da habitação mencionada em 3) e foi atendida por F…, a qual lhe disse para aguardar, enquanto ia abrir a entrada que dava acesso directo ao estabelecimento. Assim como facto não provado da alínea d): Na ocasião referida em 11), com o consentimento do réu C…, F… veio abrir o portão e convidou a Autora a entrar e a aceder à loja referida em 3) por uma porta lateral.
4 - Os concretos meios probatórios constantes da gravação que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida o depoimentos da testemunha da Ré, F… e as declarações de parte da autora.
5 - Apreciados na sua globalidade e em conjunto com a restante prova, justificaria decisão diferente, nomeadamente a valoração devida das declaração da parte, autora.
6 - A questão de facto a debater é se a testemunha F…, disse ou não à autora para aguardar, enquanto ia abrir a entrada que dava acesso directo ao estabelecimento.
7 - Relativamente a esta questão, repare-se na passagem das declarações de parte da autora constante do registo de gravação 06.00 a 08:10:
8 - Nas declarações de parte da autora, esta declarou que “chamou a testemunha F… tendo esta dito:: “B… olha, anda por este lado que eu abro-te o portão, porque tem ali aquela porta que dá acesso para eu agora não ir abrir o portão do estabelecimento.” Conforme transcrição no ponto 1 da motivação.
9 - Na concretização de que porta ia abrir a testemunha a meritíssima juíza perguntou-lhe o “que ia abrir “,a que autora respondeu que“ ia abrir o outro portão que dava acesso ao estabelecimento.. não é portão é uma porta” conforme depoimento transcrito no ponto 1 da motivação.
10 -Na continuação depoimento a meritíssima juíza interpelou a autora especificando e interrogando a porta lateral a que a autora respondeu “Sim” que dá para o estabelecimento. conforme depoimento transcrito no ponto 1 da motivação.
11- Mais foi confirmado pela autora a instancia da meritíssima juíza “se não lhe disse que ia abrir a porta principal que dava para o estabelecimento”.
12-Tendo respondido da autora: “Não ela disse para ir por ali, olha B… já está tudo fechado, vens por aqui que eu abro-te a outra que dá para o estabelecimento, a do estabelecimento só me disse que ia abrir”
13-À pergunta se a testemunha lhe tinha falado do cão:
Meritíssima juíza: E falou-lhe alguma coisa relativamente ao cão?
Resposta da autora: “Não. Não”
Meritíssima Juíza: “Não disse que estava ali o cão, para não entrar?”
Resposta da autora: “Não. Eu é que vi o cão depois de eu entrar, o cão estava debaixo do patamar daquela escada”.
14-Do depoimento da autora, é forçoso concluir ao contrario, da motivação referida na sentença, e ao contrario do que a testemunha F… afirmou ou seja a mesma não disse à autora para aguardar, mas antes a indicação da testemunha F… para entrar pelo portão da casa, para de seguida a testemunha abrir a porta lateral que dava acesso ao estabelecimento.
15-Pelo que em face de dois testemunhos contraditórios devemos dar credibilidade ao depoimento da autora, vítima do ataque do cão, e ter em conta o interesse declarativo óbvio da testemunha F… em favorecer o 1º Réu por ser a actual cônjuge do Réu C… e à data dos factos a sua namorada.
16-Nestes termos, a alteração da matéria de facto que no entender da recorrente, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas são as seguintes:
-Alterado o facto provado nº 30 para a seguinte redacção: A Autora, ao encontrar o estabelecimento referido em 3) e o portão indicado em 8) fechados, tocou à campainha da habitação mencionada em 3) e foi atendida por F…, a qual lhe disse para entrar pela habitação enquanto ia abrir a porta lateral da habitação que dava acesso directo ao estabelecimento.
Dar como provado o facto não provado referido d) na sentença: Na ocasião referida em 11), com o consentimento do réu C…, F… veio abrir o portão e convidou a Autora a entrar e a aceder à loja referida em 3) por uma porta lateral.
17-Considerando o facto não provado referido na sentença referido na alínea u): No momento referido em 30), F… avisou a Autora de que o cão identificado em 4) estava solto, pelo que a advertiu para não entrar. Assim como, o facto não provado referido em v) A jaula referida em 34) era visível do exterior
18- É aceitável pelas regras de experiencia que um cidadão comum perante estas circunstâncias entrasse na habitação, confiasse que o cão estava preso, pelo que deve ser alterado para provado o seguinte facto referido na alínea e) dos factos não provados: Na ocasião referida em 11), a Autora acedeu a entrar, confiando que o cão estava preso.
19-Nesta sequencia, e sem a informação da F… que o cão estava solto, e sem advertência da mesma que sendo assim deveria aguardar, a autora acedeu ao logradouro do prédio referido em 3), surgindo o cão identificado em 4), o qual estava solto e a mordeu. (facto provado nº 6)
20-Da sentença a quo, resultaram danos não patrimoniais na autora (cf. Factos provados sob os nºs 12 a 19, 21, 23, 25 e 26), os quais os 1º e 2º Reus por serem donos/possuidores do animal em causa, são obrigados a indemnizar a autora, na hipótese de os danos causados pelo animal tenham resultado do perigo especial que envolve a sua utilização, como é o caso concreto.
21-No caso do animal em causa nos autos cão da raça G… é legalmente considerado como «animal potencialmente perigoso» – cf. ponto IV da lista anexa à Portaria nº422/04, de 24.04, conjugada com o artigo 2.º, al. b), do D.L. nº312/03, de 17.12, é irrelevante o facto provado sob o nº 33 exclusivamente baseado em prova testemunhal de que o cão é afável.
22-Acresce que esta conclusão plasmada no facto provado nº 33 que o cão é afável. entra em contradição com o teor da motivação da sentença “a quo” dos factos 13, 32,23, 24 e 25 onde o próprio Tribunal a quo refere expressões tais como: “ Por outro lado atenta a potência da mandibula de um G…” “..sendo atacada por um cão com o porte do G…” “.força exercida por cães da raça em apreço”
23-Nestes termos, a lei impõe ao detentor de um animal potencialmente perigoso o dever especial de o vigiar, de forma a evitar que este ponha em risco a vida ou a integridade física de outras pessoas e animais (cf. artigo 6.º do D.L. nº312/03, de 17.12).
24 -Sendo, obrigação do detentor a “manter medidas de segurança reforçadas, nomeadamente nos alojamentos, os quais não podem permitir a fuga dos animais e devem acautelar de forma eficaz a segurança de pessoas, outros animais e bens” (cf. artigo 7.º, nº1, do D.L. nº312/03, de 17.12).
25 -Tendo os 1º e 2º Réus um animal com esta perigosidade em casa e considerando as declarações de parte da autora e o facto não provado U): “momento referido em 30), F… avisou a Autora de que o cão identificado em 4) estava solto, pelo que a advertiu para não entrar”,
26 -Assim sendo, a testemunha F… não avisou a autora quando era obrigação da mesma avisar a autora que o cão estava solto, não podendo o tribunal a quo bastar-se com a eventual existência da placa “cuidado com o cão”
27 - Por outo lado, maior dever de advertência incidia sobre a dita testemunha; F…, pois sabia que naquele dia 11 de Setembro de 2005, por ser domingo o cão estava solto conforme se defere dos factos provados 35º e 12 º e da motivação do facto nº 12: “Depoimento da testemunha F… a mencionada testemunha declarou que naquela ocasião, o animal estava solto, por se tratar de um Domingo, em virtude de essa ser a prática nesse dia da semana e durante a noite nos restantes dias da semana.”
28 - Assim sendo, é compreensível que a Autora acedesse a entrar, confiando que o cão estava preso, pois a testemunha F… não advertiu a Autora para não entrar porque o cão estava solto (cf. facto não provado sob a al. u))., assim como não era visível a jaula do cão.
29 - Pelo exposto, assente que está a ofensa corporal à Autora em consequência da mordedura do G… (cf. factos provados sob os nºs 12 a 19 e 21 a 25), a mesma, traduz um facto ilícito, porquanto violador do direito à integridade física daquela, o qual constitui um direito subjectivo e absoluto, a que corresponde um dever geral de respeito e de abstenção da prática de actos lesivos do mesmo (cf. artigo 25.º, nº1, da CRP e artigo 70.º, nº1, do Código Civil),
30 - Assim, como é ostensivo que os 1º e 2º Réus não observaram os deveres de cuidado que a lei lhes impunha, nos termos acima descritos, deve-se concluir que incrementaram, em muito, o risco associado à detenção e utilização deste tipo de animal potencialmente perigoso.
31 - Tanto assim, não observaram os referidos deveres de cuidado, pois, conforme facto provado nº 7, o réu C… ao pagar à autora a quantia de 500,00 €, relativa a despesas suportadas pela mesma em consequência do facto mencionado em 6), o que revela por si a assunção de culpa na referida mordedura do cão à autora, pois caso contrário, se realmente não achasse que tivesse culpa, não teria pago as ditas despesas.
32- Nestes termos, ao contrário da sentença, a mordedura do cão não se deve a conduta culposa e/ou negligente, da Autora, acedendo esta, ao local onde foi atacada pelo cão por indicação da testemunha F…, conforme transcrição das declarações de parte supra referido.
33 -Da factualidade provada resulta que o 1º Réu, por si ou em nome da 2ª Ré, tenha actuado ou omitido qualquer acto em termos que permitem estabelecer um nexo de imputação objectiva entre os danos sofridos pela Autora e a sua conduta.
34-Pelo que, a não se considerar, a responsabilidade civil por facto ilícito, sempre os Réus incorreram em responsabilidade civil fundada no risco por danos causados por animais, nos termos do artigo 502.º do Código Civil o qual preceitua: “Quem no seu próprio interesse utilizar quaisquer animais responde pelos danos que eles causarem, desde que os danos resultem do perigo especial que envolve a sua utilização”. Esta norma funda-se na ideia de que “quem utiliza em seu proveito os animais que, como seres irracionais, são quase sempre uma fonte de perigos, mais ou menos graves, deve suportar as consequências do risco especial que acarreta a sua utilização” – cf. Antunes Varela, Das Obrigações em geral, I, , p. 664.
35-No caso concreto, o 1º Réu actua como detentor do animal e como gerente (funcionário) da 2ª Ré, pelo que o 1º Réu responde nos termos do artigo 493 do Código Civil e a 2ª Ré nos termos do artigo 502 do Código Civil pelo facto de responder pelos actos dos seus funcionários o 1º Réu e o acto da funcionária de facto, a namorada e actual cônjuge do 1ª Réu, a F….
36 -No caso do 3º Réu é responsável civilmente pelo sucedido, por o 2º Réu ter transferido por contrato de seguro a responsabilidade civil de animais de companhia.
37-Nestes termos, o 1ºRR, C… 2ª RR D… Lda., nos termos do artigo 572.º do Código Civil, não lograram provar que nenhuma culpa houve da sua parte na produção do evento., não tendo a autora qualquer culpa no acontecido ataque do cão.
38-Por conseguinte, a 3ª Ré, Companhia de Seguros E…, S.A, também deve ser responsabilizada civil pelos danos causados à autora, pelo em termos de responsabilidade civil pelo risco, ao abrigo do contrato de seguro celebrado com a 2ª Ré, através do qual esta transferiu para aquela a responsabilidade civil por danos causados pelo mencionado cão e titulado pela apólice nº……… (cf. facto provado sob o nº5), em obediência ao estatuído no artigo 13.º do D.L. nº312/03, de 17.12.
39- Os danos suportados pela Autora (cf. factos provados sob os nºs 12 a 19, 21, 23, 25 e 26) são de relevante gravidade e sofrimento a tútulo de danos não patrimoniais:
• As duas cicatrizes quelóides horizontais da autora, na região lombar, uma com 3 cm e outra com 4 cm de comprimento.
• Em consequência dos factos descritos em 12) e 13) da sentença, a Autora apresenta, no membro superior direito, no terço médio do antebraço, uma cicatriz distrófica, transversal, com 7 cm de comprimento, com limitação do dedo médio da mão direita.
• Em virtude das lesões sofridas, a Autora padece de uma incapacidade permanente geral de 2%.
• As lesões referidas implicam esforços suplementares da autora no exercício da sua actividade habitual, assim como lhe limitam-lhe a mobilidade.
• No período de tempo em que esteve à mercê da boca do cão identificado em 4), a Autora teve a sensação de que iria morrer.
• Aquando da mordedura do cão e da projecção no solo, a Autora teve dores e o tempo mencionado em 13) pareceu-lhe uma eternidade.
• Os tratamentos causaram dores à Autora.
40-Considerando estes factos provados, no caso em apreço, mais do que importar do que atender ao número de dias de doença sofridos pela autora e o facto de ter recebido tratamento médico, importa, ainda, considerar a parte do corpo em que foi lesionada antebraço e dedo, cicatrizes que são visíveis principalmente no Verão e irão ficar para toda a vida na autora.
41-Consequentemente, atendendo ao tipo, extensão, gravidade e consequência das lesões sofridas, aos incómodos daí resultantes, aos tratamentos efectuados, às dores sentidas, tudo ponderado, sem esquecer todas as demais circunstâncias do caso, que prefiguram gravidade bastante para merecerem a tutela do direito, nos termos do artigo 496 do Código Civil, afigura-se justa e equitativa atribuir à demandante a quantia de 35.000,00€ a título de compensação pelos danos não patrimoniais.
Termos em que e nos demais de direito, deve ser dado provimento ao presente recurso de apelação e por via dele, ser revogado a sentença recorrida e proferido um acórdão que julgue a acção parcialmente procedente e, em consequência condenarem-se os 3 Réus a pagarem solidariamente ao Autor a quantia de 35.000,00€ (trinta e cinco mil euros) a titulo título de danos não patrimoniais ou outro inferior que o Tribunal da Relação ache adequado de acordo com os juízos de equidade no caso concreto, acrescidos de juros de mora legais desde a citação até efectivo e integral pagamento.”
Os 1º e 2º RR, ofereceram resposta a esse recurso, defendendo a confirmação da decisão quer quanto á matéria de facto, quer quanto à sua qualificação jurídica.
No mesmo sentido respondeu a ré E….
O recurso foi admitido como de apelação, com subida nos próprios autos e efeito devolutivo.
Cumpre apreciá-lo.
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2- FUNDAMENTAÇÃO:

O objecto do recurso, definido a partir das conclusões enunciadas pelo apelante, compreende, antes de mais, a pretensão de alteração dos seguintes pontos da matéria de facto:
I - facto provado nº 30;
II - facto não provado sob a al. d);
III - facto não provado sob a al. e).
Depois, eventualmente em função dessa alteração, deverá discutir-se se os danos sofridos pela autora resultaram do perigo especial que envolve a detenção de um cão como aquele que a atacou, os quais não foram devidamente prevenidos pelos RR., e não a uma conduta negligente da autora.
Por fim, se verificados os pressupostos de responsabilização de qualquer dos RR., deverá determinar-se a indemnização a atribuir à autora, em razão dos danos comprovados.
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Para a discussão e solução destas questões é pertinente recordar o segmento da sentença recorrida correspondente à decisão sobre a matéria de facto:
- Factos provados
1. Foi instaurado processo-crime com o nº1017/05, do 1º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Santa Maria da Feira, no âmbito do qual foi deduzida acusação contra o réu C…, imputando-lhe a prática, em autoria material, de um crime de ofensa à integridade física por negligência, previsto e punido pelo artigo 148.º, nº1, do Código Penal.
2. No Processo referido em 1), foi proferida, em 11 de Dezembro de 2009, sentença, com os fundamentos constantes de fls. 57 a 67, que se dão por integralmente reproduzidos, a qual julgou improcedente a referida acusação, absolveu o réu C… e transitou em julgado em 26.01.2010, conforme doc. a fls. 163.
3. O réu C… constituiu a 2ª Ré “D…, Lda.” para o exercício do comércio e prestação de serviços de reparação e venda de telemóveis, cujo estabelecimento comercial está instalado nuns anexos da sua habitação, na Rua …, em ….
4. O réu C… é sócio-gerente da 2ª Ré e, no exercício de tais funções, colocou um cão da raça G…, registado no clube português de canicultura com o nº………, para guardar a sua casa e a loja de telemóveis.
5. A 2ª Ré transferiu para a ré “Companhia de Seguros E…, S.A.” a responsabilidade civil por danos causados pelo mencionado cão, mediante acordo de seguro titulado pela apólice nº………, conforme doc. a fls. 34, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
6. Quando a Autora se encontrava junto ao portão de entrada, através do qual acedeu ao logradouro do prédio referido em 3), surgiu o cão identificado em 4), o qual estava solto e a mordeu.
7. O réu C… pagou à Autora a quantia de 500 €, relativa a despesas suportadas pela mesma em consequência do facto mencionado em 6).
8. A entrada para o estabelecimento referido em 3) pode ser efectuada por um portão comum à habitação e ao logradouro de acesso àquele.
9. O cão identificado em 4) estava normalmente preso a uma coluna com um cadeado.
10. No dia 11 de Setembro de 2005, cerca das 11 horas e 30 minutos, porque pretendia carregar um telemóvel, a Autora tocou à campainha da habitação do réu C…, em virtude de a loja e o portão estarem fechados.
11. Respondeu à Autora F…, através da varanda da casa referida em 3).
12. O referido cão saiu debaixo da escada e atacou a Autora, mordendo-a no braço direito.
13. O referido cão agarrou a Autora com força durante um período de tempo não superior a cerca de um minuto, imobilizando-a, até que F… veio em seu auxílio e conseguiu retirar o braço da Autora da sua boca.
14. Em consequência dos factos descritos em 12) e 13), a Autora teve de ser transportada para o serviço de urgência do Hospital de H…, apresentando, na altura, uma ferida com 10 cm de profundidade, até ao plano muscular, com perda de fascia e de músculo, e lesão parcial da musculatura extensora do braço direito e défice de extensão do terceiro dedo da mão direita.
15. Em consequência dos factos descritos em 12) e 13), a Autora apresenta duas cicatrizes quelóides horizontais, na região lombar, uma com 3 cm e outra com 4 cm de comprimento.
16. Em consequência dos factos descritos em 12) e 13), a Autora apresenta, no membro superior direito, no terço médio do antebraço, uma cicatriz distrófica, transversal, com 7 cm de comprimento, com limitação do dedo médio da mão direita.
17. Em virtude das lesões sofridas, a Autora padece de uma incapacidade permanente geral de 2%.
18. O que implica esforços suplementares no exercício da sua actividade habitual.
19. Em consequência das lesões sofridas, a Autora ficou impossibilitada de trabalhar durante 30 dias.
20. Na data indicada em 10), a Autora trabalhava numa padaria.
21. As lesões sofridas pela Autora limitam-lhe a mobilidade.
22. A Autora esteve sem trabalhar durante cerca de oito meses.
23. No período de tempo em que esteve à mercê da boca do cão identificado em 4), a Autora teve a sensação de que iria morrer.
24. A Autora foi projectada no solo aquando da mordedura do cão identificado em 4).
25. Aquando da mordedura do cão e da projecção no solo, a Autora teve dores e o tempo mencionado em 13) pareceu-lhe uma eternidade.
26. Os tratamentos causaram dores à Autora.
27. O estabelecimento comercial referido em 3) tem acesso directo à via pública, com entrada própria, independente e separada da entrada para a habitação mencionada em 3).
28. Os clientes do estabelecimento referido em 3) não têm acesso ao local onde o cão identificado em 4) se encontrava.
29. A presença do cão identificado em 4) estava sinalizada através de uma placa, de cor azul, colocada no portão indicado em 8), com a inscrição “cuidado com o cão”.
30. A Autora, ao encontrar o estabelecimento referido em 3) e o portão indicado em 8) fechados, tocou à campainha da habitação mencionada em 3) e foi atendida por F…, a qual lhe disse para aguardar, enquanto ia abrir a entrada que dava acesso directo ao estabelecimento.
31. Na sequência do descrito em 30), a Autora decidiu abrir o portão referido em 8) e aceder ao pátio onde o cão identificado em 4) se encontrava, acabando por ser mordida.
32. A referida F… correu logo em auxílio da Autora e deu ordem ao cão identificado em 4) para parar, que obedeceu.
33. O cão identificado em 4) sempre teve um comportamento dócil e obediente e não tem qualquer historial de ataque a pessoas ou a outros animais.
34. O cão identificado em 4) era mantido preso num espaço fechado, tipo jaula, construído para o efeito no quintal da habitação.
35. O cão identificado em 4) apenas era solto durante a noite ou nos períodos em que o estabelecimento referido em 3) se encontrava encerrado, como, por exemplo, aos Domingos.
36. A Autora nasceu em 5.06.1964
- Factos não provados
a) O cão identificado em 4) estava normalmente alojado debaixo de uma chapa de zinco.
b) Na ocasião referida em 10), a Autora pretendia comprar um telemóvel.
c) Na ocasião referida em 11), respondeu-lhe o réu C….
d) Na ocasião referida em 11), com o consentimento do réu C…, F… veio abrir o portão e convidou a Autora a entrar e a aceder à loja referida em 3) por uma porta lateral.
e) Na ocasião referida em 11), a Autora acedeu a entrar, confiando que o cão estava preso.
f) Era usual o réu C… atender os clientes em sua casa, a qual tem acesso à loja referida em 3).
g) Na sequência do descrito em 12), o réu C… veio em auxílio da Autora e conseguiu retirar o braço desta da boca do cão identificado em 4).
h) A Autora esteve internada e teve de recorrer à Clínica I…, onde fez uma electromiografia, no que despendeu a quantia de 70 €.
i) A Autora foi acompanhada por médico, despendendo a quantia global de 113 €.
j) A Autora efectuou: três viagens de … para os … e vice-versa, na sequência dos factos descritos em h) e i); várias deslocações ao posto médico de … para tratamentos; e deslocações a …, quer para exames no INML, quer ao Tribunal, no que despendeu o montante de cerca de 100 €.
k) Em consequência dos factos dos autos, a Autora foi despedida em 28 de Outubro de 2005, por não conseguir ter condições físicas para desempenhar a sua função de empregada de limpeza.
l) A padaria indicada em 20) era de J…, onde a Autora auferia a remuneração mensal de 500 €.
m) A cicatriz referida em 16) é quelóide, horizontal.
n) Em consequência do descrito em 21), a Autora teve dificuldade em arranjar novo emprego.
o) O descrito em 22) deveu-se ao descrito em k) e 21).
p) No hospital, a Autora teve momentos de espera, de angústia e de constante mal estar.
q) As consultas e as deslocações causaram aborrecimentos e cansaços à Autora.
r) Os factos descritos em 21), n) e 22) provocam dúvidas e incertezas na Autora acerca do seu futuro.
s) As cicatrizes referidas em 15) e 16) diminuíram a auto-estima e o prazer de viver da Autora.
t) O portão por onde a Autora entrou é de acesso exclusivo à habitação mencionada em 3).
u) No momento referido em 30), F… avisou a Autora de que o cão identificado em 4) estava solto, pelo que a advertiu para não entrar.
v) A jaula referida em 34) era visível do exterior.
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Impõe-se, antes de mais, a apreciação do recurso deduzido contra a decisão proferida sobre a matéria de facto. A impugnação desse segmento da sentença exige ao recorrente o cumprimento de específicos ónus processuais, descritos no art. 640º do C.P.C.
No caso, é clara a satisfação daqueles ónus processuais, pois a apelante não só individualiza os pontos da matéria de facto que entende erradamente julgados, como propõe a decisão alternativa e aponta meios de prova cuja diferente apreciação justifica esta decisão. Deve, pois, apreciar-se essa vertente do seu recurso.
No que respeita ao juízo probatório a inverter, o que a apelante pretende, em suma, é que não se dê por provado que, à entrada do local onde foi atacada pelo cão, lhe foi dito para esperar (ponto 30); e que se dê por provado que, pelo contrário, F… veio abrir o portão e a convidou a entrar para esse local, a partir do qual se iriam dirigir à loja contígua, e bem assim que só ali aceitou a entrar por confiar que o cão estava preso (als. d) e e) dos factos não provados).
Já quanto aos meios de prova a avaliar diferentemente, de forma a alcançar esse objectivo, invoca a apelante as suas próprias declarações de parte, que afirma deverem prevalecer sobre a versão declarada por F…, dado o seu interesse na questão, por ser casada com o 1º réu, de quem ao tempo era namorada.
Em abstracto, parece falível esta argumentação da autora, nos termos da qual as declarações da mulher do réu seriam menos credíveis, por menos isentas, dado o seu interesse na causa. Já as suas, apesar de um óbvio interesse directo e pessoal na solução do litígio, são isentas e credíveis.
No entanto, será perante a análise concreta dos dois meios de prova referidos - segundo a apelante os únicos relevantes para o apuramento das circunstâncias do evento danoso - que se deverá ponderar do respectivo relevo.
Sem prejuízo disso, verifica-se que a decisão recorrida afastou a hipótese de responsabilidade pelo risco, do dono do cão (art. 502º do C.C.), por ter concluído pela culpa do próprio lesado.
Num tal enquadramento jurídico, deve ter-se presente que o ónus da prova das circunstâncias em que se pode fundar um tal juízo de culpa, por este constituir facto impeditivo do direito do autor, impende sobre os RR, nos termos do art. 342º, nº 2 do CPC.
De resto, isso mesmo ocorreria normalmente na eventualidade de subsunção da questão ao regime do art. 493º nº 1 do C.C., onde se prevê uma hipótese de culpa presumida e não de responsabilidade pelo risco. No entanto, no caso em apreço, a decisão absolutória do 1º réu, pelos mesmos factos, fundada na imputação da responsabilidade pelo evento danoso à própria autora, sempre afastará aquela presunção de culpa prevista no art. 493º, nº 1, atento o disposto no art. 624º, nºs 1 e 2 do CPC.
Passando à análise dos dois meios de prova invocados, desde logo se constata que o próprio tribunal a quo elencou de forma exaustiva os meios de prova relevantes a propósito da factualidade em análise, sem olvidar – de resto como a lei processual impõe – a respectiva análise crítica. E, nesse processo, não deixou de ponderar a análise da prova produzida na sentença do processo crime que correu contra o 1º réu pelos mesmos factos que são objecto deste processo, em termos úteis para a aferição da credibilidade daqueles meios de prova.
A autora, nas suas declarações de parte, proferiu um discurso claramente tendente ao suporte da sua versão e crescentemente emocionado, desde logo pela recordação da situação e do sofrimento associado, afirmando que foi a própria F… que a mandou entrar, que se apercebeu da presença do cão que começou a rosnar e que a F… lhe disse que não tivesse medo, que o cão não fazia mal nenhum, mas que o cão logo ficou com os olhos vermelhos e a atacou. Disse ainda que a Dª F… lhe abriu o portão e a mandou ir atrás dela, o que ela fez. Perante o ataque do cão, a Dª F… logo gritou ao cão que a largasse “Larga K…, larga K…!”, mas que o cão a manteve presa durante cinco minutos pelo menos, até que o pai do 1º réu apareceu e ele lhe obedeceu, à ordem de que a largasse. Também afirmou que jamais tinha visto o cão, afirmando que chamou a Dª F… porque a viu no pátio, mas admitindo depois que poderia ter tocado à campainha, para que alguém viesse. Sucessivamente afirma que não se lembra se o 1º réu lá estava, mas manteve a descrição de que foi a Dª F… que lhe veio abrir o portão e que entrou atrás dela e a convite dela, para o logradouro, para irem por ali para o estabelecimento. Por outro lado, não conseguiu explicar por que é que disse, no julgamento crime, que não sabia se o portão tinha ou não placa de aviso sobre o cão, e que agora tem a certeza de que não existia tal placa.
De sinal contrário foi o depoimento de F…, ao tempo namorada do 1º réu, agora casada com ele e sócia da 2ª ré. Descreveu as circunstâncias em que a autora tocou à campainha, ela própria a atendeu e, depois de alguma insistência dela admitiu atendê-la, para “carregar” o telemóvel, referindo-lhe que aguardasse. Admitiu, depois, não ter avisado da presença do cão, já que o iria prender, pelo que a sua instrução para a autora foi só a de que aguardasse que a fosse atender. Teria de descer por umas escadas atrás da casa e teria de prender o cão na jaula, aceder ao estabelecimento por uma porta lateral e abrir a porta e grade da frente desse estabelecimento. Porém, mal a autora a viu aparecer por detrás da casa, logo avançou, abrindo o portão e entrando. Assim que entrou, o cão atacou-a. Disse ainda que foi ela própria que controlou o cão, dizendo-lhe “Pára L…”, ao que ele logo obedeceu, e que quando a sobrinha do 1º réu e, depois desta, o próprio réu, chegaram ao local o cão já estava controlado.
Negou ainda que o pai do réu tivesse aparecido de imediato e tivesse sido ele a controlar o cão, em completa divergência com as declarações da autora.
E negou também que quaisquer clientes usassem o pátio para aceder ao estabelecimento pela sua porta lateral e não pela porta da frente, em contrário do que a autora afirmou, pois narrou que já uma vez entrara por aquele pátio, em termos que lhe foram apontados como uma contradição em relação ao seu depoimento crime, sem que tenha logrado explicar a divergência.
Tal depoimento decorreu de uma forma serena, espontânea, mas com bastante exactidão sobre as circunstâncias do evento danoso e em termos que pareceram completamente sinceros.
Analisando conjugadamente as declarações de parte da autora e o depoimento desta testemunha, à luz do que vem de expor-se, só podemos concluir pela inexistência de qualquer fundamento para alterar a decisão do tribunal a quo sobre a matéria de facto. Tal decisão, baseada num exame crítico da prova produzida que resulta lógico e coerente, designadamente em relação aos concretos pontos de facto assinalados pela apelante sobre a dinâmica do evento danoso, impõe-se como insusceptível de crítica, em face da audição dos meios de prova invocados perante esta instância de recurso.
Com efeito, não se identifica qualquer razão para, divergindo da solução da primeira instância e também da avaliação anteriormente operada por um tribunal criminal sobre os mesmos factos e perante idênticos meios probatórios, se valorar as declarações da própria autora, em detrimento de outras que se apresentam como mais límpidas, razoáveis, desinteressadas e, em suma credíveis.
Por todo o exposto, manter-se-á nos seus precisos termos a decisão do tribunal a quo sobre a matéria de facto, designadamente em relação ao ponto 30 dos factos provados e em relação às als. d) e e) dos factos não provados.
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Em qualquer caso, mesmo perante a matéria de facto provada, deverá discutir-se se se verificam os pressupostos de responsabilidade dos RR, a título de responsabilidade objectiva, em face do regime prescrito pelo art. 502º do C.C.
Tal como decidiu o tribunal a quo, tais pressupostos resultarão excluídos no caso de identificação de uma conduta da própria autora que seja culposa e possa ter-se como causa adequada do facto danoso.
Nessa tarefa, daremos por adquirido que o cão em causa era classificado como animal potencialmente perigoso (§4º do Anexo à Portaria n.º 422/2004, de 24 de Abril), estando sujeito a um regime de detenção prescrito pelo D.L 312/2003, de 17/12, (ao tempo não vigorava o DL n.º 315/2009, de 29 de Outubro) cujos arts. 6º e 7º dispõe o seguinte:
Artigo 6º (Dever especial de vigilância):
Incumbe ao detentor do animal o dever especial de o vigiar, de forma a evitar que este ponha em risco a vida ou a integridade física de outras pessoas e animais.
Artigo 7º (Medidas de segurança especiais nos alojamentos):
1 — O detentor de animal perigoso ou potencialmente perigoso fica obrigado a manter medidas de segurança reforçadas, nomeadamente nos alojamentos, os quais não podem permitir a fuga dos animais e devem acautelar de forma eficaz a segurança de pessoas, outros animais e bens.
2 — O detentor fica obrigado à afixação no alojamento, em local visível, de placa de aviso da presença e perigosidade do animal.
O artigo 502.º do C.C. estabelece: “Quem no seu próprio interesse utilizar quaisquer animais responde pelos danos que eles causarem, desde que os danos resultem do perigo especial que envolve a sua utilização.”
O “perigo especial” suposto nesta norma corresponde ao que é característico ou típico dos animais utilizados, variando com a natureza destes e segundo o risco que possa comportar para bens de terceiro (Almeida Costa, Direito das Obrigações, 12.ª edição, Almedina, pág. 625).
No caso sub judice, deverá indagar-se se os danos sofridos pela autora se inserem no perigo especial decorrente do aproveitamento do cão da 2ª ré para os seus interesses (de guarda ao local), atenta a sua qualidade de animal potencialmente perigoso e as circunstâncias do acesso da autora ao local onde ele se encontrava.
Por exemplo, no caso de violação de um dever de vigilância e contenção do cão, que resultasse numa saída deste para a rua, onde viesse a atacar qualquer pessoa ou a causar qualquer outro dano, não se excluiria que tal se insere no perigo especial da detenção daquele animal, nas circunstâncias inadequadas em que se processava.
Porém, no caso em apreço, não foi isso que se apurou.
A presença do animal num espaço vedado e o seu ataque a alguém que aí entrou, quando na entrada se assinalava a presença do animal e quando a esse alguém foi instruído que aguardasse - o mesmo significa que não entrasse até nova instrução - não pode considerar-se um risco próprio da existência do animal naquelas circunstâncias. Neste quadro factual, o dano não decorreu da qualidade própria do animal e do perigo especial inerente à sua potencial perigosidade e da utilização que lhe era dada pelo dono, mas de uma circunstância provocada pela própria vítima, a quem era exigida e a quem era possível uma actuação diversa e que teria prevenido a ocorrência dos danos.
O mesmo é dizer-se que o dano resultou de uma actuação culposa da própria vítima, isto é, da própria autora. Culposa na medida em que, naquelas circunstâncias, segundo as suas capacidades e as instruções que lhe foram dadas, lhe era evidentemente possível e exigível que não entrasse para o local onde foi atacada até que essa entrada lhe fosse franqueada pelo interlocutor que lhe dera a instrução anterior.
Acresce que tal conduta da própria autora foi absolutamente determinante para a produção do evento danoso. Foi causa adequada dos danos que sofreu.
Em tais circunstâncias, nos termos do nº 1 do art. 570º do C. Civil, deve excluir-se qualquer responsabilidade do lesante, maxime tendo esta fundamento meramente objectivo. Tudo, em suma, como se decidiu na sentença sob recurso.
Por todo o exposto, restará, em conclusão, confirmar a decisão recorrida.
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Sumariando:
- A presença de um cão G… num espaço vedado e o seu ataque a alguém que aí entrou, quando na entrada se assinalava a presença do animal e quando a esse alguém foi instruído que aguardasse - o mesmo significa que não entrasse até nova instrução - não pode considerar-se um risco especial inerente à qualidade e à detenção do animal naquelas circunstâncias.
- Neste quadro factual, o dano não decorre do perigo especial decorrente da sua qualidade de animal perigoso e da utilização que lhe era dada pelo dono, mas de uma circunstância provocada pela própria vítima, a quem era exigida e a quem era possível uma actuação diversa e que teria prevenido a ocorrência dos danos.
- A culpa do lesado afasta a responsabilidade objectiva do detentor do animal, enunciada no art. 502º do C.C.

3 - DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes que constituem este Tribunal em julgar improcedente o recurso de apelação apresentado pela autora, confirmando a decisão recorrida.
Custas pela apelante.
Registe e notifique.

Porto, 14/6/2016
Rui Moreira
Tomé Ramião
Vítor Amaral