Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
635/20.5T8PVZ-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: AUGUSTO DE CARVALHO
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
CONTRATO DE SEGURO FACULTATIVO
DIREITO DE ACÇÃO
SEGURADORA
LESANTE
SEGURADO
Nº do Documento: RP20211215635/20.5T8PVZ-B.P1
Data do Acordão: 12/15/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - No âmbito do seguro facultativo, ao invés do que sucede no seguro obrigatório, o terceiro lesado não pode, em princípio, demandar diretamente a seguradora.
II - Nos contratos de seguro facultativo, o terceiro lesado apenas poderá demandar diretamente a seguradora nas situações previstas no artigo 140ºs, nºs 2 e 3, da Lei do Contrato de Seguro, aprovada pelo DL 72/2008, de 16 de abril – no nº 2, remete-se para a previsão contratual a possibilidade de o lesado demandar diretamente a seguradora; no nº 3, tal possibilidade depende de o segurado ter informado da existência do contrato de seguro e no seguimento dessa informação o lesado iniciar negociações diretas com a seguradora.
III - Não se verificando as situações previstas no artigo 140º, nºs 2 e 3, da Lei do Contrato de Seguro, ocorre uma exceção perentória que se traduz na inexistência do direito do terceiro lesado acionar diretamente a seguradora e que importa a sua absolvição do pedido.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação nº 635/20.5T8PVZ-B.P1

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

Na ação com processo comum de declaração que B… e outros intentaram contra C…, Unipessoal, Lda., D… – Companhia de Seguros …, S.A., E…, S.A., F…, S.A., e outros, as 2ª e 3ª rés vieram, nas respetivas contestações invocar a sua ilegitimidade passiva para os termos da ação, referindo que aos autores não assistia o direito de as acionarem diretamente.
Referiram que os contratos de seguro que celebraram com a ré C…, Unipessoal, Lda., não eram contratos de seguro obrigatório, mas facultativo, resultando do teor dos mesmos que as rés não acordaram com a sua segurada o direito de o lesado demandar diretamente a seguradora. Por outro lado, as rés não iniciaram nem mantiveram com os autores negociações diretas.

Os autores responderam, pugnando pela legitimidade passiva de ambas as rés.

Foi proferida a seguinte decisão:
«O sinistro em causa nos presentes autos ocorreu no dia 5 de Junho de 2017, pelo que lhe é aplicável o Regime Jurídico do Contrato de Seguro, aprovado pelo DL nº 72/2008, de 16/04.
Sobre a questão que nos ocupa, escreveu-se o seguinte no preâmbulo desse diploma: “No seguro de responsabilidade civil voluntário, em determinadas situações, o lesado pode demandar diretamente o segurador, sendo esse direito reconhecido ao lesado nos seguros obrigatórios de responsabilidade civil. Por isso, a possibilidade de o lesado demandar diretamente o segurador depende de se tratar de seguro de responsabilidade civil obrigatório ou facultativo. No primeiro caso, a regra é a de se atribuir esse direito ao lesado, pois a obrigatoriedade do seguro é estabelecida nas leis com a finalidade de proteger o lesado. No seguro facultativo, preserva-se o princípio da relatividade dos contratos, dispondo que o terceiro lesado não pode, por via de regra, exigir a indemnização ao segurador.”
Deste modo, no âmbito do seguro facultativo, ao invés do que sucede no seguro obrigatório, o terceiro lesado não pode, em princípio, demandar diretamente a seguradora. Só o poderá fazer nas situações referidas no art.º 140º, nºs 2 e 3, do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, onde se estatui o seguinte:
2. O contrato de seguro pode prever o direito de o lesado demandar diretamente o segurador, isoladamente ou em conjunto com o segurado.
3. O direito de o lesado demandar diretamente o segurador verifica-se ainda quando o segurado o tenha informado da existência de um contrato de seguro com o consequente início de negociações diretas entre o lesado e o segurador.
Referem-se estes dois números do artigo 140º à chamada ação direta contra as seguradoras, que não estava prevista no regime anterior, mas em cujo âmbito, apesar disso, eram frequentes as situações de demanda direta das seguradoras (ou em regime de litisconsórcio voluntário com o segurado), solução que a jurisprudência e parte da doutrina sustentava na figura do contrato a favor de terceiro - cfr. artigo 444º, nº 1, do C.C.
Com o atual regime legal do contrato de seguro admite-se expressamente a responsabilidade direta da seguradora, quer individualmente, quer em regime de litisconsórcio com o segurado, nos casos em que o contrato o preveja ou em que se tenham iniciado negociações com o lesado, o que nos reconduz à figura da legitimidade a título de parte principal (além disso, pode intervir em qualquer processo judicial em que se discuta a obrigação de indemnização, o que nos reconduz à figura do assistente em relação ao segurado ou ao tomador, tendo tal intervenção como objetivo auxiliá-lo na sua defesa, nos termos do artigo 335º do C.P.C., acautelando, por esta via, os interesses decorrentes da transferência do risco).
Na situação vertente, o que se verifica é que, inexistindo no contrato de seguro previsão que permita ao lesado demandar diretamente a seguradora, a ação direta contra esta só se poderá fundar no citado artigo 140º, nº 3, o qual pressupõe o preenchimento cumulativo de dois requisitos:
– que o segurado tenha informado o lesado da existência de um contrato de seguro;
– e que a seguradora com ele tenha iniciado negociações diretas.
Como diz José Vasques (citado no Ac. RP de 14.11.2013, proc.1394/13.3TBMAI-A.P1, disponível em www.dgsi.pt), “(…) a noção ou o conceito de “início de negociações diretas entre o lesado e o segurador”, na expressão legalmente plasmada, “em nenhum caso, poderá equivaler à mera apresentação de reclamação do lesado perante o segurador com a consequente resposta deste”. Na verdade, o “início de negociações” tem de refletir uma vontade e atitude das partes, mormente da seguradora, no sentido de que, embora nem a lei nem o contrato prevejam a demanda direta, mas uma vez postas em contacto e em face dos factos já averiguados e dos termos da apólice existente, elas, livre e voluntariamente, aceitam, no caso concreto e em termos análogos, tratar, de boa-fé, entre si e diretamente, da questão e admitem resolvê-la e compô-la por consenso”.
Revertendo para a situação dos autos, vemos que os autores, na petição, se limitaram a alegar que ré C… transferiu a sua responsabilidade para as ora rés mediante contratos de seguro titulados pelas apólices que identifica (cfr. artigos 9, 11º e 60º da petição). Já em sede de resposta à exceção de ilegitimidade invocada pelas rés, alegam que “(…) imediatamente após o sinistro, foi o segurado que informou os lesados da existência de contratos de seguro e inclusivamente forneceu os contactos que poderiam permitir a assunção de responsabilidades (…)”; “Todas as questões relativas a danos patrimoniais e não patrimoniais foram levantadas logo na altura junto das seguradoras aqui rés, tendo, por uma questão de prioridade e urgência, sido dado ao tempo maior destaque à necessidade de obras para permitir o realojamento dos condóminos”; “Mas nunca tendo deixado de existir a interpelação direta dos autores às rés pelo pagamento devido a título de danos não patrimoniais”; “Mesmo apesar de estas nas várias tentativas de contacto terem sempre relegado essa discussão para momento posterior, considerando que ainda não se encontrava sequer finalizado o processo relativo ao pagamento de danos patrimoniais, tidos como prioritários” (cfr. artigos 3º, 4º, 5º e 6º da resposta).
Entendemos que tal alegação dos autores é insuficiente para preencher a factualidade necessária à aplicação do artigo 140º, n.º 3, do diploma em análise.
Na verdade, dela não resulta a existência de quaisquer negociações diretas entre os aqui autores, enquanto lesados, e as ora rés, enquanto seguradoras, pois a mera interpelação para pagamento de danos por parte dos autores e o levantamento de questões relativas a danos junto das rés (sendo que quanto a estas últimas os autores não alegam que foram eles a levantar essas questões) não configura, salvo melhor entendimento, o conceito de negociações diretas a que alude a norma em análise.
Deste modo, concluímos pela ilegitimidade das ora rés.
Atento o exposto, julgo procedente por provada a exceção de ilegitimidade passiva das rés D… – Companhia de Seguros …, S.A., e E…, S.A., e, em consequência, absolvo as mesmas rés da instância».

Inconformadas, as seguradoras D… – Companhia de Seguros …, S.A., e F…, S.A., recorreram para esta Relação, formulando as seguintes conclusões:
Recurso da ré D…
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Recurso da ré F…, S.A.
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Não houve contra-alegações.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

São apenas as questões suscitadas pelos recorrentes e sumariadas nas respetivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar – artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do C.P.C.
A questão a decidir consiste em saber se os autores não podem demandar diretamente as seguradoras e, em caso afirmativo, se devem as mesmas ser absolvidas do pedido.

I. Estamos perante contratos de seguro facultativos a que é aplicável a Lei do Contrato de Seguro, aprovada pelo DL 72/2008, de 16 de abril, e com entrada em vigor a 1 de janeiro de 2009.
Este diploma, ao contrário do que sucedia no âmbito da legislação anterior, regula expressamente os casos em que o lesado pode demandar diretamente o segurador.
Refere-se no preâmbulo do citado diploma que, «no seguro de responsabilidade civil voluntário, em determinadas situações, o lesado pode demandar diretamente o segurador, sendo esse direito reconhecido ao lesado nos seguros obrigatórios de responsabilidade civil. Por isso, a possibilidade de o lesado demandar diretamente o segurador depende de se tratar de seguro de responsabilidade civil obrigatório ou facultativo. No primeiro caso, a regra é a de se atribuir esse direito ao lesado, pois a obrigatoriedade do seguro é estabelecida nas leis com a finalidade de proteger o lesado. No seguro facultativo, preserva-se o princípio da relatividade dos contratos, dispondo que o terceiro lesado não pode, por via de regra, exigir a indemnização ao segurador».
No âmbito do seguro facultativo, ao invés do que sucede no seguro obrigatório, o terceiro lesado não pode, em princípio, demandar diretamente a seguradora. Apenas o poderá fazer nas situações previstas no artigo 140ºs, nºs 2 e 3, do diploma legal citado, aí se estabelecendo:
2. O contrato de seguro pode prever o direito de o lesado demandar diretamente o segurador, isoladamente ou em conjunto com o segurado.
3. O direito de o lesado demandar diretamente o segurador verifica-se ainda quando o segurado o tenha informado da existência de um contrato de seguro com o consequente início de negociações diretas entre o lesado e o segurador.
Ou seja, no nº 2 remete-se para a previsão contratual a possibilidade de o lesado demandar diretamente a seguradora; no nº 3, tal possibilidade depende de o segurado ter informado da existência do contrato de seguro e no seguimento dessa informação o lesado iniciar negociações diretas com a seguradora.
«(…) Além da referida informação é necessário que se tenham iniciado negociações diretas entre o lesado e o segurador, o que, em nenhum caso, poderá equivaler à mera apresentação de reclamação do lesado perante o segurador com a consequente resposta deste». José Vasques, LCS anotada, pág. 483.
Não se verificando qualquer uma das situações previstas nos nºs 2 e 3 do artigo 140º, não pode o lesado demandar diretamente a seguradora, no âmbito de um tal tipo de contrato de seguro.
Na decisão recorrida foi reconhecido que os contratos de seguro não previam a possibilidade de o lesado demandar diretamente a seguradora e entendeu que os autores não alegaram ter iniciado negociações diretas com a seguradora.
Aí se reconhece que a alegação dos autores é insuficiente para preencher a factualidade necessária à aplicação do artigo 140º, nº 3. Dela não resulta a existência de quaisquer negociações diretas entre os aqui autores, enquanto lesados, e as ora rés, enquanto seguradoras, pois, a mera interpelação para pagamento de danos e o levantamento de questões relativas a danos junto daquelas não configura o conceito de negociações diretas a que alude o referido preceito legal.
Mas, as rés/apelantes defendem que deveriam ter sido absolvidas do pedido e não, como se decidiu, da instância.
Como resulta do supra referido, nos contratos de seguro concretos está impedida a demanda direta das seguradoras e, nesse sentido, se os autores não têm esse direito não o podem exercer.
Está-se perante uma exceção perentória que se traduz na inexistência do direito dos autores de acionar diretamente as rés/seguradoras e que importa a sua absolvição do pedido. Os autores nenhum direito têm sobre as rés.
Procedem, assim, os recursos das rés D… – Companhia de Seguros …, S.A., e F…, S.A.

Decisão
Pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes desta secção cível em revogar a decisão recorrida e, consequentemente julgar procedente a exceção perentória da inexistência do direito dos autores de acionar diretamente as rés/seguradoras, absolvendo estas do pedido.

Custas pelos apelados.

Sumário:
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Porto, 15.12.2021
Augusto de Carvalho
José Eusébio Almeida
Carlos Gil