Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
909/15.7T8AMT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: CARLOS QUERIDO
Descritores: VERIFICAÇÃO E GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
EFICÁCIA REFLEXA
CASO JULGADO
RELAÇÃO A TERCEIROS
CREDOR HIPOTECÁRIO
CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
DIREITO DE RETENÇÃO
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: RP20171127909/15.7T8AMT-A.P1
Data do Acordão: 11/27/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º663, FLS.466-482)
Área Temática: .
Sumário: I - A aferição da eficácia reflexa do caso julgado de sentença proferida em ação anterior, relativamente a quem não interveio nessa ação, implica que se questione se o direito de terceiro é suscetível de ser prejudicado na sua consistência jurídica ou no conteúdo pela decisão proferida na referida ação.
II - Em homenagem ao princípio do contraditório, a decisão judicial só poderá ser oponível a terceiro juridicamente indiferente, ou seja, não titular de quaisquer direitos com ela incompatíveis.
III - Tendo sido proferida sentença em ação anterior, intentada pelo promitente-comprador contra a promitente-vendedora que veio a ser declarada insolvente, na qual o tribunal considerou provada a traditio dos bens prometidos vender, com fundamento na omissão de contestação da devedora, concluindo pela condenação desta no reconhecimento do crédito correspondente ao sinal em dobro e do direito de retenção, tal decisão não pode ser oposta ao credor hipotecário que não interveio na ação e que tinha a sua garantia registada em data anterior.
IV - De acordo com a tese que prevaleceu no AUJ n.º 4/2014, exige-se para a validade e oponibilidade do direito de retenção do promitente-comprador ao credor hipotecário: i) que o promitente-adquirente seja “consumidor”; ii) que tenha ocorrido a traditio da coisa prometida vender.
V - O critério normativo de “consumidor” é o que emerge do n.º 1 do art.º 2.º da Lei n.º 24/96, de 31.07, recaindo sobre o credor que invoca o direito de retenção, a prova da respetiva factualidade integradora.
VI - O promitente-comprador que obteve a traditio apenas frui um direito de gozo que exerce em nome do promitente-vendedor e por tolerância deste, sendo, na perspetiva enunciada, mero detentor precário.
VII - Recai também sobre o credor que invoca o direito de retenção, a prova da factualidade concreta, integradora da traditio.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 909/15.7T8AMT-A.P1
Sumário da decisão:
I. A aferição da eficácia reflexa do caso julgado de sentença proferida em ação anterior, relativamente a quem não interveio nessa ação, implica que se questione se o direito de terceiro é suscetível de ser prejudicado na sua consistência jurídica ou no conteúdo pela decisão proferida na referida ação.
II. Em homenagem ao princípio do contraditório, a decisão judicial só poderá ser oponível a terceiro juridicamente indiferente, ou seja, não titular de quaisquer direitos com ela incompatíveis.
III. Tendo sido proferida sentença em ação anterior, intentada pelo promitente-comprador contra a promitente-vendedora que veio a ser declarada insolvente, na qual o tribunal considerou provada a traditio dos bens prometidos vender, com fundamento na omissão de contestação da devedora, concluindo pela condenação desta no reconhecimento do crédito correspondente ao sinal em dobro e do direito de retenção, tal decisão não pode ser oposta ao credor hipotecário que não interveio na ação e que tinha a sua garantia registada em data anterior.
IV. De acordo com a tese que prevaleceu no AUJ n.º 4/2014, exige-se para a validade e oponibilidade do direito de retenção do promitente-comprador ao credor hipotecário: i) que o promitente-adquirente seja “consumidor”; ii) que tenha ocorrido a traditio da coisa prometida vender.
V. O critério normativo de “consumidor” é o que emerge do n.º 1 do art.º 2.º da Lei n.º 24/96, de 31.07, recaindo sobre o credor que invoca o direito de retenção, a prova da respetiva factualidade integradora.
VI. O promitente-comprador que obteve a traditio apenas frui um direito de gozo que exerce em nome do promitente-vendedor e por tolerância deste, sendo, na perspetiva enunciada, mero detentor precário.
VII. Recai também sobre o credor que invoca o direito de retenção, a prova da factualidade concreta, integradora da traditio.
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I. Relatório
Por sentença proferida em 31.07. 2015, no processo de Insolvência que corre termos com o n.º 909/15.7T8AMT, no Juízo de Comércio de Amarante (Juiz 2) do Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este, foi declarada a insolvência de Sociedade Imobiliária – B…, Ld.ª, tendo sido fixado o prazo de 30 dias para a reclamação de créditos.
Decorrido o aludido prazo, veio o Administrador da Insolvência, ao abrigo do disposto no artigo 129.º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), apresentar a lista dos credores por si reconhecidos, entre os quais figuram C… e D…, como titulares de um crédito no montante de €980.000,00 com a menção de ‘garantido’ por direito de retenção sobre dois prédios rústicos (descrição predial nºs. 1562 e 1563) relativamente aos quais incide hipoteca a favor da E…, S.A.
Em 7.10.2015, veio a E…, S.A. impugnar o crédito reconhecido aos credores C… e D…, ao abrigo do disposto no artigo 130.º do CIRE, concluindo com o pedido de que não seja verificado e reconhecido qualquer crédito aos credores C… e D….
Alegou a impugnante, em síntese: na lista de créditos apresentada pelo Administrador de Insolvência é reconhecido um crédito no montante de €980.000,00 com a menção de garantido por direito de retenção sobre dois prédios rústicos (descrição predial nºs. 1562 e 1563); sobre os aludidos prédios incide hipoteca a favor da E…, S.A; a sentença transitada em julgado proferida no âmbito do processo n.º 73/15.1T8PNFJ, apresentada pelos referidos credores não faz caso julgado contra a ora reclamante; o contrato promessa outorgado constitui um negócio simulado, não tendo havido posse dos bens imóveis, bem como qualquer pagamento; os bens imóveis alegadamente adquiridos destinam-se à construção de um empreendimento imobiliário, ou seja, destinam-se a investimento, não tendo, por isso, os promitentes-compradores a qualidade de consumidores finais.
Os reclamantes do crédito impugnado, C… e D…, apresentaram resposta, na qual concluem pedindo que seja o crédito reclamado reconhecido no montante de €980.000,00, como crédito garantido por gozarem do direito de retenção sobre os prédios inscritos na matriz sob os artigos 1032.º e 1033.º da freguesia de …, descritos na Conservatória de Penafiel sob os nºs 1562/24032000 e 1563/24032000, da freguesia de ….
Notificado da impugnação do crédito, o Administrador da Insolvência invocou o Acórdão Uniformizador de jurisprudência n.º 4/2004, de 20.03.2014, concluindo que mantem o reconhecimento do crédito impugnado.
Em 3.10.2016 realizou-se tentativa de conciliação, na sequência da qual, mediante requerimento das partes, foi suspensa a instância por 30 dias, com vista à celebração de um acordo que não se concretizou.
Em 31.03.2017 foi proferido despacho saneador, declarando-se válida a instância nos seus pressupostos objetivos e subjetivos e dispensando-se a realização de audiência prévia.
Em 4.07.2017 procedeu-se à realização da audiência de discussão e julgamento, após o que, em 13.07.2017, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
«Em face do exposto:
- Julga-se a impugnação apresentada pela E…, S.A. parcialmente procedente e reconheço o crédito reclamado por C… e D… como comum e reconhecidos os demais créditos.
- Graduo-os para serem pagos através do produto da massa insolvente, pela seguinte ordem:
- Através do produto da venda dos bens imóveis apreendidos sob as verbas 1 e 2:
1.º - As dívidas da massa insolvente saem precípuas, na devida proporção, do produto da venda;
2.º - Do remanescente, dar-se-á pagamento ao crédito hipotecário do credor E…, S.A.;
3.º - Do remanescente, dar-se-á pagamento ao crédito privilegiado do credor Fazenda Pública no montante de €4.963,70 proveniente de IVA e IRC;
4.º - Do remanescente, dar-se-á pagamento aos créditos comuns (artigo 47.º, n.º 4, al.
c)); 5.º - Do remanescente, dar-se-á pagamento aos créditos subordinados, graduados pela ordem prevista no artigo 48.º.
- Através do produto da venda dos demais bens apreendidos:
1.º - As dívidas da massa insolvente saem precípuas, na devida proporção, do produto da venda;
2.º - Do remanescente, dar-se-á pagamento ao crédito privilegiado do credor Fazenda Pública no montante de €4.963,70 proveniente de IVA e IRC;
3.º - Do remanescente, dar-se-á pagamento aos créditos comuns (artigo 47.º, n.º 4, al. c));
4.º - Do remanescente, dar-se-á pagamento aos créditos subordinados, graduados pela ordem prevista no artigo 48.º.
Custas pela massa insolvente - artigo 304.º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas. Valor da ação - o correspondente ao valor do ativo - artigo 301.º, parte final, do diploma legal em referência.
Registe e notifique».
Não se conformaram os reclamantes do crédito em causa, C… e D…, e interpuseram o presente recurso de apelação, apresentando alegações, nas quais formula as seguintes conclusões:
1. Incorreu em Erro de Julgamento o Tribunal a quo quando considerou como não provados os pontos 1 e 2 constantes dos factos não provados, relativos ao direito de retenção «1.Que desde a outorga do contrato promessa referido no ponto 2 dos factos provados, a insolvente entregou, desde logo, os lotes 1 e 2 aos reclamantes, encontrando-se, estes últimos, desde então a ocupá-los. 2. Que desde a outorga do contrato promessa, os referidos reclamantes C… e D… encontram-se, de forma exclusiva, a usar, fruir e administrar os lotes 1 e 2, ocupando-os e dele retirando todos os seus furtos e rendimentos.»
2. In casu, os credores/Recorrentes reclamaram o seu crédito e fizeram valer a sua garantia por se encontrarem munidos de um título executivo – sentença obtida no âmbito do processo declarativo 73/15.1TBPNF, que lhes reconhece o crédito e direito de retenção - que o fizeram valer aquando da apresentação da sua reclamação, no seguimento da jurisprudência preconizada pelo STJ – vd., a título de exemplo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30/11/2010, processo 2637/08.0TBVCT-F.G1.S1 e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10.11.2009, processo 1246/06.3TBPTM-H.SI, entre outros – que considera que em processo de verificação e graduação de créditos, apenso a processo de insolvência, para que lhe seja reconhecido o privilégio consagrado no nº 2 do artigo 759º do mesmo diploma, com a consequente primazia sobre hipoteca, mesmo com registo anterior, torna-se necessário que prove os factos dessa alegação, juntando, para tanto, o título justificativo, que, no caso, é a sentença condenatória a reconhecer o incumprimento do promitente vendedor e a tradição da coisa para o promitente-comprador.
3. Não podia o tribunal a quo ter ignorado o facto de que o crédito reclamado e o direito real de garantia que o acompanha, constam de um título executivo e a sua existência é por ele presumida, presunção que pode ser ilidida mediante impugnação, movida com essa finalidade, pois o título executivo para além da eficácia própria do documento que o consubstancia constituiu, ainda, a base da presunção da existência (e titularidade) do crédito não apenas da existência do facto que a constituiu.
4. Responderam à impugnação deduzida pela E…, (baseada na simulação do negócio) os ora Recorrentes e o senhor Administrador de Insolvência que assumiu, nos termos do artigo 81º nº 4 do CIRE, a representação da insolvente.
5. Assim, veio o Senhor Administrador de Insolvência, em representação da insolvente na sua resposta propugnar pelo reconhecimento do crédito impugnado, com o direito real de garantia que o persegue – direito de retenção - tal como consta da relação de créditos reconhecidos, junta aos autos e elaborada nos termos do artigo 129º do CIRE e com essa resposta veio o Senhor Administrador de Insolvência juntar aos autos um documento denominado “Auto de Diligência” do qual resultam declarações prestadas pelo sócio gerente da insolvente a declarar e confirmar, por escrito (o que, em bom rigor já o tinha feito quando da assinatura do contrato-promessa) a existência da tradição dos prédios constante do contrato promessa, designadamente dos lotes e 1 e 2 que tiveram origem no loteamento do prédio rústico denominado F…, composto por terreno bravio com 7.950m2, sito na Rua …, descrito na Conservatória do Registo Predial de Penafiel sob o nº 1563/24032000, da freguesia de … e inscrito na matriz rústica nº 1033.
6. O documento junto com a resposta do Senhor Administrador de Insolvência, em representação da insolvente, não foi impugnado pelo credor hipotecário, E…, o que equivale, no nosso entender, a confissão por parte da ora insolvente dos factos alegados pelos ora Recorrentes.
7. Ora, de acordo com o disposto no artigo 352º do CCivil a confissão é o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária e conforme o nº 2 do artigo 358º do CCivil a confissão extrajudicial, v. g. em documento particular, que aqui releva, considera-se provada nos termos aplicáveis a estes documentos e se for feita à parte contrária, ou a quem a represente, tem força probatória plena.
8. Assim, a confissão do sócio-gerente da insolvente, no documento particular anexo à Reposta da insolvente, representada pelos Sr. Administrador de Insolvência, à impugnação deduzida pela E…, no qual confirma a tradição dos lotes 1 e 2 para os credores reclamantes, ora Recorrentes, tem força probatória plena relativo a esse facto.
9. Não podia ter o tribunal a quo ignorado, como ignorou, o documento e o seu valor probatório.
10. Além do que, sempre se diga, que o tribunal a quo, no ponto dois dos factos dados como provados, considerou como provado a outorga do contrato-promessa com a inclusão da cláusula sexta a qual determina a tradição material dos lotes 1 e 2 , para os ora Recorrentes.
11. Atento ao exposto, a tradição dos lotes 1 e 2 e o seu direito de retenção não está apenas provado pelo título executivo junto aos autos que, efetivamente e em bom rigor não se teve por impugnado, pela E… porque a mesma não logrou provar a simulação alegada, mas também tal facto foi confessado pelo sócio-gerente da insolvente em documento particular que não foi impugnado pela impugnante/Recorrida e que por isso tem força probatória plena relativo a esse facto e pelo contrato-promessa junto aos autos, como consta do ponto 2 dos factos dados como provados.
12. Assim, deverá revogar-se a sentença recorrida, substituindo-a por outra que considere verificado como garantido por direito de retenção o crédito já reconhecido da ora recorrente, pelo senhor Administrador de Insolvência, reconhecido no título executivo junto com a reclamação de créditos - sentença, no âmbito do processo declarativo nº 73/15.1TBPNF – e confessado pelo sócio-gerente da insolvente em documento particular extra judicial, que não foi objeto de qualquer impugnação e que por isso tem força probatória plena relativo a este facto.
13. Assim, na procedência do presente recurso, cumpre revogar a sentença no segmento que foi objecto de impugnação e considerar o PONTO 1) e 2) constante dos Factos Não Provados como FACTOS PROVADOS.
14. Por sua vez, a impugnante/Recorrida não prova a simulação alegada e existe uma omissão pelo tribunal a quo relativamente a estes a factos.
15. A prova da simulação ou, melhor dizendo, dos factos constitutivos da simulação, cabia à “E…”, pois não é aos outorgantes do negócio “atacado” de simulação que se exige que demonstrem a veracidade e sinceridade das suas declarações negociais – artigo 342º nº 2 do Código Civil. E esse ónus, como já dissemos, não foi cumprido
16. Não há qualquer documento escrito e não foi ouvida qualquer testemunha que corrobore a versão da existência de um acordo entre os Credores Reclamantes C… e D… e a insolvente, no sentido de forjarem um contrato-promessa de compra e venda a fim de vir a ser reconhecido a favor dos primeiros um dado crédito, a ser pago preferencialmente e, com isso, esvaziando a garantia da Impugnante “E…”.
17. No caso vertente, nos termos do artigo 240º do CCivil, para que haja simulação é necessário que se prove que: nem os promitentes-compradores C… e D… quiseram vincular-se à celebração futura do contrato de compra e venda daqueles lotes de terreno, nem a promitente-vendedora quis fazê-lo, não obstante o que foi declarado no contrato-promessa; que as partes estavam mancomunadas para criarem essa aparência de negócio; que tal estratagema teve como escopo o benefício de ambas as partes (ou de uma das partes), à custa de prejuízo causado à “E…”.
18. Acontece porém, que nada disso se provou no caso em análise.
19. E se assim é, falece a tese da Credora Impugnante de que o contrato-promessa celebrado entre os Credores Reclamantes e a insolvente foi simulado, impondo-se o reconhecimento da sua existência, validade e eficácia.
20. Contudo a douta sentença recorrida é totalmente omissa relativamente a esta temática alegada, não fazendo qualquer menção desta concreta matéria controvertida – da simulação - nos factos dados como não provados.
21. Em sede em que nos encontramos de reapreciação da decisão de facto – tem como consequência necessária o alargamento do que é factualmente decisivo/essencial/fulcral, ou seja, a decisão de facto não pode/deve ter em vista, como resultado final, fixar tão só a (in)existência da garantia reclamada e que acompanha o crédito reclamado pelos ora Recorrentes e que foi reconhecido pelo, tribunal a quo mas deve também fixar os factos respeitantes à simulação negocial, nem que seja para os considerar como não provados.
22. Não obstante se considerar, como o tribunal a quo considerou, que o ónus da prova dos factos constitutivos do crédito e em particular do direito de retenção, pertence aos Reclamantes/Recorrentes, certo é que a parte a cargo dos Reclamante/Recorrentes fica preenchida com o que consta do contrato-promessa, do título executivo junto (sentença proferida no âmbito do processo 73/15.1T8PNFJ), lista de credores reconhecidos elaborada pelo Senhor Administrado de Insolvência, da qual consta o reconhecimento do direito real de garantia invocado pelos Recorrentes e confissão do sócio-gerente da insolvente no que toca à tradição dos lotes 1 e 2 aos Recorrentes, na medida em que as arguições dirigidas contra o que está expresso nestes documentos não forem demonstradas.
23. O mesmo é dizer, em face de toda a prova documental produzida pelos Reclamantes/Recorrentes, quem quer opor-se ao que dos mesmos consta é que tem o ónus de demonstrar os factos constitutivos das suas arguições.
24. Em síntese, em face da prova produzida, ou melhor, da prova que não foi produzida, as arguições da impugnante/Recorrida não poderão ser consideradas positivamente provadas pois nenhuma prova foi carreada para os autos nesse sentido, pelo que deverá constar dos factos não provados.
25. Assim, na procedência do presente recurso, cumpre revogar a sentença no segmento que foi objecto de impugnação e considerar os seguintes pontos como FACTOS NÃO PROVADOS:
a. Que nem os promitentes-compradores queriam comprar o prédio, nem o promitente-vendedor queriam vendê-lo;
b. Que se conluiaram entre si;
c. Que o fizeram com intuito de prejudicar a “E…”;
d. Que tinham consciência de que, ao fazer aquele conluio, impediam a “E…” de obter o pagamento do seu crédito;
26. Consequentemente, cumpre ainda revogar a sentença no segmento que foi objecto de impugnação e considerar o PONTO 1) e 2) constante dos Factos Não
Provados como FACTOS PROVADOS.
27. Considerou a sentença recorrida que os Recorrente “não logrou provar a factualidade que consubstancia o direito de retenção”... “ónus da prova que como referimos lhes competia, o que implica a sua não atendibilidade”, que no “caso vertente, os credores impugnados C… e D… não lograram fazer prova que efetivamente tinham a posse/detenção dos imóveis”. O que não é verdade!
28. A lei disponibiliza para os créditos resultantes do não cumprimento do contrato promessa, sempre que tenha havido traditio da coisa prometida, uma tutela específica: o direito de retenção (artigo 755 nº 1 f) do Código Civil).
29. O texto da lei abrange, sem qualquer distinção ou reserva, todos os contratos promessa de transmissão ou constituição de direito real em que tenha havido tradição da coisa – versem esses contratos sobre prédios (urbano ou rústicos) ou sobre coisas móveis. 30. Todavia, ao contrário do que a sentença recorrida entendeu, o direito de retenção não implica, necessariamente a posse, pois do contrato promessa de compra e venda emergem simples prestações de facto jurídico positivo; obrigação de emitir, no futuro, as declarações de vontade integrantes do contrato definitivo prometido.
31. Não havendo qualquer tipicidade de contratos constitutivos ou translativos de direito reais, não há, igualmente, qualquer tipicidade de contratos com eficácia possessória, nada obstando, portanto, à inclusão, logo no contrato promessa, de uma cláusula autorizando a tradição da coisa, ou à conclusão, paralelamente ao contrato promessa, de um segundo acordo, que tenha por objecto específico a traditio da coisa.
32. A posse não constitui requisito daquele direito real de garantia, sendo pressupostos do direito de retenção do promitente adquirente: a traditio da coisa ou coisas, objecto mediato do contrato definitivo prometido; o incumprimento definitivo do contrato promessa pelo promitente alienante; a titularidade pelo promitente adquirente, por virtude desse incumprimento, de um direito de crédito.
33. A traditio exigida para a constituição da garantia tanto pode ser uma tradição material como uma tradição puramente simbólica, em qualquer das suas modalidades: traditio longa manu, traditio ficta ou traditio brevi manu (artigo 1263º al. b) do CCivil).
34. Em muitos dos casos, não estamos verdadeiramente perante uma retenção física da coisa, mas apenas perante uma preferência de pagamento em sede de graduação de créditos, na medida em que, em muitas situações, não é sequer possível a ocorrência da efetiva retenção física.
35. Atento ao ora exposto, se por um lado a traditio exigida para que se constitua o direito de retenção não se funda na posse, por outro, a detenção material ilícita da coisa pelos Reclamantes/Recorrentes encontra-se, desde logo provada, pelos seguintes meios probatórios:
■ Ponto 2 dos Factos dados como Provados: designadamente pela prova da cláusula sexta do contrato-promessa, com a epígrafe “Tradição Material da Coisa”: na qual se determina, «1.A tradição do Lote 1 e 2 concretiza-se com a assinatura do presente contrato-promessa de compra e venda, com a entrega de ambos os lotes aos promitentes-compradores, passando estes, de forma exclusiva a usar, fruir e administrar o dito prédio, ocupando-o, neles fazendo benfeitorias e deles retirando todos os seus frutos e rendimentos. 2. A tradição do lote 3 e 4 será entregue com a outorga d contrato-prometido, com o pagamento da totalidade do preço.”;
■ Contrato-Promessa - que atenta a total ausência de prova por parte da impugnante/Recorrida da alegada simulação, impõe-se o reconhecimento da sua existência, da sua validade e da sua eficácia. Aliás todo o conteúdo vertido no contrato promessa foi dado como provado no ponto 2 dos factos dados como provados da sentença recorrida, da qual consta a tradição dos lotes 1 e 2 para os ora credores/Recorrentes;
■ Resposta da insolvente e Documento Anexo – que para além de não terem sido impugnados, o documento que a acompanha, quanto a nós, faz prova plena dos factos nele confessados, uma vez que tais declarações foram prestadas pelo sócio-gerente da insolvente e que equivalem a confissão, nos termos do disposto nos artigos 352º e 358º do CCivil.
■ Título Executivo - que reconhece o direito de retenção e que não foi abalado, uma vez que ao credor impugnante/Recorrido não logrou provar, por um lado a simulação, e por outro, não intentou recurso de revisão daquela sentença, meio processual, que consideramos idóneo, para abalar aquele título executivo, que, no nosso entender, é o documento que pode, segundo a lei, servir de base à execução de uma prestação e que oferece a demonstração legalmente bastante do direito correspondente, in casu – o direito de retenção – Cfr. neste sentido Ac. do Tribunal da Relação de Évora, de 14.06.2012, processo 3052/10.1TBSTR-C “o que sustenta o direito de retenção invocado é o título, é uma sentença, e é este título que o reclamante tem de exibir para fundamentar o seu crédito e a sua garantia.(…) Se porventura, o recorrente entende que a garantia não existe, ou seja, e no fundo, que os recorridos não têm o direito que lhes é conferido pelo artigo 755º nº 1 al. f) do Cód. Civ., a ele caberia, contrariando o conteúdo da sentença, alegar isso mesmo.”
36. Conclui-se, assim, atentos os elementos probatórios carreados para o processo e o regime jurídico aplicável (supra referenciado) que, nos presentes autos, encontra-se verificada a tradição dos lotes 1 e 2 prometidos vender aos ora Recorrentes, que estes têm direito de retenção para garantia do crédito (crédito que lhe foi reconhecido na sentença recorrida) e, que por isso, lhes deve ser reconhecida.
37. Acresce ainda o facto de, se por um lado, sobre o impugnante/Recorrida, impendia a elisão da presunção de existência do crédito e do direito real de garantia estabelecida a partir do título executivo, por outro lado, impendia, também sobre a Recorrida provar os factos extintivos - SUMULAÇÃO – do direito que tinha sido, anteriormente, reconhecido pelo Senhor Administrador de Insolvência.
38. Na impugnação de créditos, as regras que presidem à distribuição do ónus determinam que o impugnante que alega factos que impendem, modificam ou extinguem o direito invocado pelos credores reclamante/ora Recorrentes tem de provar esses mesmos factos (artigo 342º nº 2 CCivil).No caso dos autos, a Recorrida tinha esse dever. 39. Com efeito, os ora Recorrentes cumpriram com o ónus da prova que lhe competia, nos termos do artigo 342 nº 1 do CCivil.
40. Por seu turno a Recorrida é que fracassou redondamente na impugnação do crédito e da garantia alegada pelos Recorrentes e, por isso deverá ser reconhecido, o direito de retenção aos ora Recorrentes.
41. Mesmo que o tribunal a quo tivesse alguma dúvida, atenta a ausência de prova apresentada pela Recorrida, determina o nº 3 do artigo 342º do CCivil esse mesmo reconhecimento.
42. Assim, atento ao exposto, o tribunal quo incorreu em erro de raciocínio e de interpretação e aplicação do direito, designadamente dos dispositivos normativos constantes dos artigos 755º nº 1 al. f), 754º, 342º nº 1, 2 e 3 e 240º, todos do Código Civil, ao não ter reconhecido o direito de retenção aos ora Recorrentes sobre dos lotes 1 e 2 pelo que deve a mesma ser substituída por uma outra que reconheça o direito de retenção aos ora Recorrentes e consequentemente ser reconhecido aos Recorrentes o direito de serem pagos em primeiro lugar, com preferência aos demais devedores, incluindo em relação aos credores hipotecários - ainda que com hipotecas registadas anteriormente - pelo produto da venda dos bens (lote 1 e 2) sobre os quais incide o direito de retenção, nos termos do artigo 759°, nº 2 do CCivil. Nestes termos e nos melhores de Direito que V/ Excelência mui doutamente suprirá, deverá ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a sentença recorrida, substituindo-a por outra que atenda à pretensão dos ora Recorrentes, nos termos expostos, em conformidade com o direito substantivo a aplicar,
Far-se-á Sã JUSTIÇA
A impugnante E… respondeu às alegações de recurso, concluindo:
1. A sentença junta e na qual a E… não foi interveniente não faz contra ela caso julgado, tal como bem decidiu a decisão recorrida;
2. Consequentemente, como os recorrentes não alegaram quaisquer factos, bem como não produziram qualquer prova sobre a alegada posse dos imóveis, não era possível ao Tribunal ‘a quo’ considerar como provada tal posse;
3. A E… nunca foi notificada da junção aos autos pelo Sr. Administrador de insolvência do documento agora referido pelos recorrentes, pelo que desde logo não há qualquer reconhecimento ou aceitação por parte da E… do alegado direito de retenção:
4. Por outro lado, como a insolvente/promitente vendedora não é parte no presente litigio, não é possível existir qualquer confissão; além disso, como essa sua declaração constante de um documento está em consonância com o declarado no contrato promessa não há qualquer contradição, pelo que não é possível existir confissão;
5. Por outro lado ainda, o facto daquelas declarações terem sido prestadas pelo legal representante da insolvente, não significa que as mesmas sejam verdadeiras.
6. A sua junção pelo Sr. Administrador não é mais do que a confirmação do reconhecimento do crédito dos recorrentes que já constava na lista do 129 o qual foi devidamente e atempadamente impugnado pela ora recorrida E…;
7. E, repete-se, como não se podem ter em conta os factos constantes daquela sentença que não faz caso julgado contra a E…, e como não foi efetuada em sede de julgamento qualquer prova da posse, do incumprimento definitivo, designadamente, falta de interesse na prestação, gravidade na mora e interpelação admonitória, não podia ter sido reconhecido o direito de retenção o qual pressupõe o incumprimento definitivo do contrato-promessa.
8. Assim, o Tribunal ‘a quo’ efetuou valoração racional e critica dos meios de prova apresentados, de acordo com as regras comuns da lógica e da experiência comum, pelo que a sua decisão não é arbitrária, discricionária ou caprichosa;
9. Sempre e em qualquer caso, só se deve alterar a decisão sobre a matéria de facto em casos excecionais de manifesto erro na apreciação da prova, o que não é o caso dos autos;
10. Conclui-se, assim, face à matéria de facto alegada, selecionada e dada como provada, dúvidas não subsistem que se encontravam reunidos os requisitos legais para julgar procedente a impugnação deduzida pela E…;
11. A presunção de veracidade de um título junto apenas opera na fase inicial da reclamação de créditos De facto,
12. Caso a obrigação constante do título seja porventura impugnada, de imediato deixa de existir essa presunção, a qual também não se estende à existência do direito real de garantia invocado pelos recorrentes, cabendo aos recorrentes o ónus da prova do seu crédito e da garantia invocada - direito de retenção - nos termos do artigo 342-1, do C: Civil e 128, do CIRE.
Termos em que, nos melhores de Direito,
Julgando em conformidade com a douta sentença do ‘Tribunal a Quo’, deve ser negado provimento ao recurso interposto, mantendo-se a decisão recorrida, fazendo-se Justiça.
II. Do mérito do recurso
1. Definição do objecto do recurso
O objeto do recurso delimitado pelo recorrente nas conclusões das suas alegações (artigos 635.º, n.º 3 e 4 e 639.º, nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil), salvo questões do conhecimento oficioso (artigo 3.º, n.º 3, do diploma legal citado), consubstancia-se nas seguintes questões:
i) apreciação da impugnação da decisão da matéria de facto;
ii) apreciação do invocado caso julgado, relativamente à factualidade considerada não provada;
ii) enunciação dos pressupostos do direito de retenção decorrente de contrato promessa e verificação dos pressupostos exigidos: qualidade de consumidor por parte do promitente comprador e traditio.
2. Impugnação da decisão da matéria de facto
Os recorrentes impugnam a decisão da matéria de facto, alegando a existência de “erro de julgamento” relativamente aos pontos 1 e 2 dos factos não provados, consubstanciadores do direito de retenção «1. Que desde a outorga do contrato promessa referido no ponto 2 dos factos provados, a insolvente entregou, desde logo, os lotes 1 e 2 aos reclamantes, encontrando-se, estes últimos, desde então a ocupá-los. 2. Que desde a outorga do contrato promessa, os referidos reclamantes C… e D… encontram-se, de forma exclusiva, a usar, fruir e administrar os lotes 1 e 2, ocupando-os e dele retirando todos os seus furtos e rendimentos».
Como suporte dos ‘meios probatórios’ em que alicerçam a sua discordância, alegaram os recorrentes: reclamaram o seu crédito e fizeram valer a sua garantia por se encontrarem munidos de um título executivo – sentença obtida no âmbito do processo declarativo 73/15.1TBPNF, que lhes reconhece o crédito e direito de retenção; não podia o tribunal a quo ter ignorado o facto de que o crédito reclamado e o direito real de garantia que o acompanha, constam de um título executivo e a sua existência é por ele presumida; o Administrador de Insolvência, em representação da insolvente na sua resposta propugna pelo reconhecimento do crédito impugnado, com o direito real de garantia que o persegue – direito de retenção - tal como consta da relação de créditos reconhecidos, junta aos autos e elaborada nos termos do artigo 129º do CIRE, juntando aos autos um documento denominado “Auto de Diligência” do qual resultam declarações prestadas pelo sócio gerente da insolvente a declarar e confirmar, por escrito (o que, em bom rigor já o tinha feito quando da assinatura do contrato-promessa) a existência da tradição dos prédios constante do contrato promessa, designadamente dos lotes e 1 e 2; o documento junto com a resposta do Administrador de Insolvência, em representação da insolvente, não foi impugnado pelo credor hipotecário, E…, o que equivale a confissão por parte da insolvente dos factos alegados pelos ora recorrentes.
Cumpre decidir.
Pensamos, salvo todo o respeito devido, que é manifesto o equívoco dos recorrentes.
Vejamos porquê.
Dispõe o n.º 1 do artigo 134.º do CIRE: «Às impugnações e às respostas é aplicável o disposto no n.º 2 do artigo 25.º».
Nos termos do n.º 2 do art.º 25.º, «[o] requerente deve ainda oferecer todos os meios de prova de que disponha, ficando obrigado a apresentar as testemunhas arroladas, com os limites do artigo 511.º do Código de Processo Civil».
Nem a impugnante (E…), nem os reclamantes do crédito impugnado (ora recorrentes) ofereceram quaisquer meios de prova.
Em consequência de tal omissão, nenhuma prova foi produzida em audiência de julgamento (vide ata de fls. 170).
No que concerne à alegada vinculação por parte da credora impugnante, decorrente do trânsito em julgado da sentença proferida no processo n.º 73/15.1T8PNFJ, não poderá vincular a impugnante, na medida em que esta não foi interveniente na referida ação, não podendo, em consequência, ser considerada “terceiro juridicamente indiferente”.
Façamos uma brevíssima abordagem à problemática da eficácia relativa e reflexa do caso julgado.
O Professor Antunes Varela[1] refere a necessidade de explicitação da “regra milenária” segundo a qual o caso julgado só produz efeitos entre as partes, baseada no facto de a exceção do caso julgado pressupor a repetição da causa e a causa só se repetir quando haja identidade de sujeitos nas duas ações.
Após referir a teoria da eficácia reflexa do caso julgado em face de terceiros, para a refutar em parte, escreve o insigne professor (ob. cit., p. 726): “Há, em primeiro lugar, as pessoas a quem podemos chamar terceiros juridicamente indiferentes. São as pessoas a quem a sentença não causa prejuízo jurídico, por não bolir com a existência ou validade do seu direito, embora possa afectar a sua consistência prática ou económica. […] Nestes casos, em que a decisão contida na sentença não causa prejuízo jurídico ao direito de terceiro, nenhuma razão há para recusar a invocação do caso julgado perante esse terceiro, visto a regra da eficácia relativa do caso ter por fim evitar que terceiros sejam prejudicados, na consistência jurídica ou no conteúdo do seu direito, sem eles terem tido a possibilidade de se defender e esse risco não ocorrer em tal tipo de situações. Pode, por conseguinte, dizer-se que, em relação aos terceiros juridicamente indiferentes, a sentença impõe-se-lhes”.
Em comentário ao acórdão da Relação de Coimbra, de 4.04.2017 (Processo n.º 210/08.2TBLMG-B.C1), escreveu o Professor Miguel Teixeira de Sousa (https://blogippc.blogspot.pt/search?q=caso+julgado): «Em substituição da pouco precisa distinção entre terceiros juridicamente indiferentes e terceiros juridicamente interessados há um critério muito mais seguro para verificar se um terceiro - isto é, se alguém que não foi parte num processo - fica abrangido pelo caso julgado da decisão nele proferida. O critério é o seguinte: ficam abrangidos pelo caso julgado todos aqueles que não sejam titulares, de acordo com o direito positivo, de nenhum direito incompatível com a decisão transitada. Se assim suceder, é claro que, qualquer que seja a repercussão da decisão transitada na sua esfera jurídica, o terceiro fica vinculado ao caso julgado».
Seguindo o critério proposto pelo Professor Antunes Varela, haverá que averiguar se na situação em debate neste recurso, o direito da credora impugnante é suscetível de ser prejudicado, “na sua consistência jurídica ou no conteúdo”, pela decisão proferida numa ação em que não interveio.
A resposta não pode deixar de ser positiva.
Com efeito, ao declarar o direito de retenção, a decisão judicial em causa, afeta claramente a posição do credor hipotecário, que vê o seu crédito relegado para segundo plano, face à prevalência do direito reconhecido aos ora recorrentes.
A conclusão a que aderimos constitui uma homenagem ao princípio do contraditório: ninguém pode ser prejudicado no seu direito, sem que lhe seja dada a possibilidade de o defender.
Em conclusão, a sentença proferida na ação n.º 73/15.1T8PNFJ não abrange a credora impugnante, quanto aos efeitos do seu caso julgado.
No mesmo sentido vai a posição expressa por José Lebre de Freitas, num trabalho publicado na Revista da Ordem dos Advogados – “Sobre a prevalência, no apenso de reclamação de créditos, do direito de retenção reconhecido por sentença”[2]: «Não sendo contra ele invocável a sentença que declare a existência de direito de retenção sobre a coisa hipotecada em acção movida pelo respectivo titular contra o promitente vendedor ou o dono de obra, não carece o credor hipotecário de dela recorrer extraordinariamente, nem de mover acção declarativa própria(81). Todas as questões contra a verificação do direito de retenção podem ser levantadas na acção de verificação e graduação de créditos, seja ela apensa à execução movida pelo titular do direito de retenção, em que o credor hipotecário se apresente como credor reclamante, seja apensa à sua própria execução, em que reclame o titular do direito de retenção, seja ainda apensa à execução de terceiro credor, em que quer o credor hipotecário quer o titular do direito de retenção reclamem (82). O credor hipotecário pode assim pôr directamente em causa o direito de retenção nos termos gerais, isto é, mediante impugnação dos factos alegados pelo empreiteiro, na petição da acção executiva por ele proposta ou na petição da acção de verificação e graduação de créditos, em que reclame, ou mediante sustentação da respectiva inconcludência; e, constituindo a existência do crédito garantido pressuposto do direito de retenção, ela mesma pode ser impugnada pelo credor hipotecário, embora com as limitações adiante referidas».
Acresce que o caso julgado não se forma sobre os factos provados num certo processo, salvo os casos especiais previstos nos artigos 623º e 624º, ambos do Código de Processo Civil.
Com efeito, o caso julgado forma-se em regra sobre a decisão[3] (art.º 619.º do CPC), admitindo-se, é certo, o valor extraprocessual das provas nos termos previstos no artigo 421º do CPC.
Registe-se que na ação n.º 73/15.1T8PNFJ o Tribunal considerou provada a factualidade em apreço, apenas com fundamento na ausência de contestação da ré Sociedade Imobiliária – B…, Ld.ª, (que veio a ser declarada insolvente), não se vislumbrando a que propósito tal falta de impugnação poderia vincular a impugnante E…, e ser-lhe oposta nesta ação, considerando que esta não foi perdida nem achada no referido pleito.
Em suma, nesta sede recursória (de ponderação impugnação da decisão sobre a factualidade) também não poderemos considerar provados os factos em apreço, com base no caso julgado que, conforme julgamos ter demonstrado, não opera os seus efeitos quanto a tal matéria.
Finalmente, referem os recorrentes, como suporte probatório da sua tese, que a factualidade em apreço deverá ser considerada provada face ao teor do “Auto de Diligência” junto pelo Administrador Judicial na sua resposta, do qual constam declarações prestadas pelo sócio gerente da insolvente quanto à tradição dos prédios constante do contrato promessa, e que tal documento não foi impugnado pela credora hipotecária, E…, o que deverá ser considerado confissão.
Reiterando todo o respeito devido, não se vislumbra qualquer fundamento legal neste segmento da argumentação dos recorrentes.
O que consta do referido auto, é a seguinte afirmação: “Confrontado com o contrato promessa celebrado com C…, assim como com o acordo celebrado com o mesmo credor, com data de 2 de junho de 2013, confirma o teor dos mesmos bem como as assinaturas deles constantes”.
Não vemos como a reiteração, por parte do gerente da Insolvente, perante o Administrador da Insolvência, da celebração do contrato promessa, possa constituir confissão de uma credora que não interveio no auto e que na sua petição impugna o teor do referido contrato e a traditio nele convencionada.
Acresce que, processualmente, a invocada omissão de resposta não tem qualquer fundamento, na medida em que a mesma não é viável face às disposições conjugadas dos artigos 134.º, nº 1 e 25.º, n.º 2 do CIRE.
Em conclusão: não tendo sido produzida qualquer prova em sede de audiência de julgamento, não é possível, face aos documentos existentes, concluir pela resposta positiva à factualidade (não provada) objeto da impugnação: «1. Que desde a outorga do contrato promessa referido no ponto 2 dos factos provados, a insolvente entregou, desde logo, os lotes 1 e 2 aos reclamantes, encontrando-se, estes últimos, desde então a ocupá-los. 2. Que desde a outorga do contrato promessa, os referidos reclamantes C… e D… encontram-se, de forma exclusiva, a usar, fruir e administrar os lotes 1 e 2, ocupando-os e dele retirando todos os seus furtos e rendimentos».
Constitui jurisprudência pacífica o entendimento de que a não prova de um facto equivale meramente à não articulação desse facto, tudo se passando como se tal facto não existisse[4], não se podendo retirar da não prova de certo facto a prova do facto contrário[5].
Decorre do exposto que não procede a tese dos recorrentes em sede de impugnação da decisão da matéria de facto, não podendo este Tribunal considerar provados os factos que alegam, sem prejuízo da apreciação que faremos em sede de avaliação do mérito jurídico da sentença, particularmente no que concerne ao ónus da prova.
3. Fundamentos de facto
Face ao teor da decisão que antecede, está provada nos autos a seguinte factualidade relevante:
1 - Por sentença proferida a 31 de Julho de 2015, exarada a fls. 26/30 do processo de Insolvência a que estes autos se encontram apensos, foi declarada a insolvência de Sociedade Imobiliária – B…, Ld.ª, com sede no lugar de …, …, Paços de Ferreira.
2 - Por escrito particular, datado de 09 de Junho de 2013, designado “Contrato Promessa de Compra e Venda” em que figuram como primeiros outorgantes, na qualidade de promitente vendedor, Sociedade Imobiliária B…, Ld.ª, pessoa coletiva ………., com sede no lugar do …, e como segundos outorgantes, na qualidade de promitentes-compradores, C… e mulher, D…, casados no regime da comunhão geral, residentes na rua …, n.º …, …, Santo Tirso, foi declarado, além do mais, o seguinte:
«Entre os Primeiros e Segundo Outorgante é celebrado o presente contrato promessa de compra e venda de imóvel que se rege pelas cláusulas seguintes:
CLÁUSULA PRIMEIRA
(Objecto)
1. A PROMITENTE VENDEDORA é a única e exclusiva proprietária dos seguintes prédios:
a) Prédio Rustico, denominado por …, composto por terreno de cultivo com 5.800 m2, sito na Rua …, descrito na Conservatória do Registo Predial de Penafiel sob o nº 1562/24032000, da freguesia de …, concelho de Penafiel, e inscrito na matriz rústica com o nº. 1032.
b) Prédio Rústico, denominado F…, composto por terreno de bravio com 7.950 m2, sito na Rua …, descrito na Conservatória do Registo Predial de Penafiel sob o nº 1563/24032000, da freguesia de …, concelho de Penafiel, e inscrito na matriz rústica com o nº. 1033.
2. Os prédios rústicos descritos no nº 1 da presente cláusula foram objecto de um projecto de loteamento (Lote 1; Lote 2; Lote 3; Lote 4) - cfr. Planta de Loteamento que ao diante se junta, rubricadas pelas partes e que fazem parte integrante do presente contrato.
CLÁUSULA SEGUNDA
(Ónus e Encargos)
Pelo presente contrato, a PROMITENTE-VENDEDORA promete vender aos PROMITENTES-COMPRADORES, e estes prometem comprar-lhe, livre de quaisquer ónus ou encargos à data da escritura, os prédios descritos na cláusula precedente, ou seja, os quatro lotes.
CLÁUSULA TERCEIRA
(Preço e Condições de Pagamento)
O preço convencionado para a prometida venda é de EUR 800.000,00 (oitocentos mil euros), e será pago de seguinte modo:
1. A título de sinal e princípio de pagamento por conta do preço acordado é, neste acto, entregue pelos PROMITENTES-COMPRADORES à PROMITENTE-VENDEDORA a importância de EUR 490.000,00 (quatrocentos e noventa mil euros) valor que foi entregue, directamente, à sociedade G…, SA, para liquidação do montante em dívida, no âmbito do processo executivo nº. 622/08.1 TBPFR, que corre termos no 1º juízo do Tribunal Judicial de Paços de Ferreira, no qual a PROMITENTE-VENDEDORA figura como executada e a sociedade G…, SA.” como exequente, conforme o acordado no documento em anexo e que faz parte integrante deste contrato, que ao diante se junta, rubricado pelas partes. 2. O remanescente do preço, ou seja, a quantia de EUR 310.000,00 (trezentos e dez mil euros) será pago no acto da outorga da escritura de compra e venda, mediante cheque visado emitido à ordem da PROMITENTE-VENDEDORA.
CLÁUSULA QUARTA
(Escritura do Contrato-Prometido)
1. A escritura de compra e venda será realizada, em nome dos PROMITENTESCOMPRADORES, em dia, hora e Cartório Notarial que a PROMITENTE- VENDEDOR vier a indicar aos PROMITENTES- COMPRADORES para a morada acima referida, por carta registada com aviso de recepção, enviada com, pelo menos, dez dias de antecedência da data marcada para aquela outorga.
2. Se esta última carta for devolvida, a interpelação considerar-se-á, desde logo, feita pelo depósito de outra com o mesmo conteúdo, na caixa do correio ou na morada dos PROMITENTES-COMPRADORES acima referida e na presença de duas testemunhas.
CLÁUSULA SEXTA
(Tradição material da Coisa)
1. A tradição do Lote 1 e Lote 2, concretiza-se com a assinatura do presente contrato promessa de compra e venda, com a entrega de ambos os lotes aos PROMITENTESCOMPRADORES, passando estes, de forma exclusiva) a usar, fruir e administrar o dito prédio, ocupando-o, neles fazendo benfeitorias e deles retirando todos os seus frutos e rendimentos.
2. A tradição do Lote 3 e 4 será entregue com a outorga do contrato-prometido, com o pagamento da totalidade do preço.
CLÁUSULA SÉTIMA
(Alterações ao Contrato-Promessa)
Este contrato promessa traduz e constitui o acordo celebrado entre os ora outorgantes só podendo ser modificado por documento escrito e assinado por ambos os outorgantes e mesmo nas suas obrigações acessórias, constitui um todo único, pelo que todas as cláusulas revestem a mesma relevância para efeitos do seu integral cumprimento.
CLÁUSULA OITAVA
(Despesas Contratuais)
Todas e quaisquer despesas relacionadas com o presente contrato e emergentes da respectiva escritura pública, nomeadamente o pagamento do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis; dos emolumentos notariais e dos custos de Registos, provisório ou definitivo, serão da exclusiva responsabilidade dos PROMITENTES-COMPRADORES.
CLÁUSULA NONA
(Mora, incumprimento e Desistência do Contrato)
1. Em caso de incumprimento definitivo do presente contrato-promessa, por parte da PROMITENTE-VENDEDORA, os PROMITENTES-COMPRADDRES tem o direito de exigir daqueles, o pagamento do dobro de todas as importâncias entregues a título de sinal e princípio de pagamento.
2. Se o incumprimento for imputável aos PROMITENTES-COMPRADORES a PROMITENTE-VENDEDORA, poderá fazer seu o sinal recebido.
3. Os PROMITENTES-COMPRADORES, reservam-se o direito de recorrer à execução específica, para cumprimento do presente contrato, no caso de incumprimento por parte da PROMITENTE-VENDEDORA, nos termos do artigo 830º do Código Civil, não afastando a possibilidade de os promitentes não faltosos requererem, e alternativa, o sinal em dobro.
CLÁUSULA DÉCIMA
(Reconhecimento das Assinaturas)
A PROMITENTE-VENDEDORA e os PROMITENTES-COMPRADORES prescindem do reconhecimento presencial das assinaturas, previsto no nº3 do artigo 410º do CCivil, e renunciam expressamente à invocação da omissão desse facto.
(…)».
3 - Consta do escrito particular, datado de 02 de junho de 2013, designado
Acordo” o seguinte:
«ENTRE:
PRIMEIRO: C… e mulher D…, casados em regime de comunhão geral, naturais da freguesia de …, concelho de ..-…. e ……., de ..-..- …., ambos vitalícios, emitidos pelo Arquivo de Identificação de Lisboa.
SEGUNDOS: H…, viúva, natural da freguesia de …, concelho de Paços de Ferreira, residente no lugar de …, freguesia de …, concelho de Paços de Ferreira, titular do Bilhete de Identidade numero ……, de ../../…., dos SIC de Lisboa: I…, divorciado, natural da freguesia de …, concelho de Paços de Ferreira, onde vive no lugar de …, titular do Bilhete de Identidade número ……., de ../../…., dos SIC do Porto, J…, solteiro, natural da freguesia de …, concelho de Paços de Ferreira, residente no lugar de …, freguesia de …, concelho de Paços de Ferreira titular do Bilhete de Identidade número …….., de ../../…., dos SIC do Porto;
TERCEIRA: Sociedade Imobiliária B…, Lda., com sede no Lugar …, Paços de Ferreira, contribuinte ………..
É celebrado de boa-fé e por livre vontade, o presente ACORDO que os contraentes, aceitam e reciprocamente se obrigam a cumprir:
1º Corre termos no Tribunal Judicial de Paços de Ferreira uma execução para pagamento de quantia certa movida pela sociedade G…, SA. contra a Sociedade Imobiliária B…, Lda. por obras de loteamento efetuadas nos imóveis inscritos na matriz sob os artigos 1032 e 1033 da freguesia de ….
O pagamento da divida exigida na execução vai ser efectuado pelo produto da venda de dois imóveis propriedade dos segundos outorgantes, que se encontram penhorados à ordem primeiros outorgantes no processo de execução 1615/11. 7TBPFR - 3° - Juízo.
Sucede que para viabilizar a venda o primeiro outorgante vai proceder ao levantamento da penhora e abdicar do recebimento de 490.000,00 por conta do seu crédito para pagamento da divida à sociedade G…, SA.
Uma vez que a divida da sociedade foi paga à custa de património de terceiros a mesma obriga-se a proceder à celebração de um contrato de promessa de compra e venda da qual promete vender a … e mulher D…, os prédios inscritos na matriz sob os artigos 1032 e 1033 da freguesia de …, pelo preço de €.800.000,00 (oitocentos mil euros) e dar quitação do montante de €.490.000,00 (quatrocentos e noventa mil euros), que já recebeu.».
4 – Correu termos pela Instância Central de Penafiel - J4, sob o n.º 73/15.1TBPNF ação declarativa de processo comum intentada por C… e esposa, D…, contra a Sociedade Imobiliária – B…, Ld.ª, onde se peticionou fosse declarado resolvido o contrato-promessa celebrado entre autores e ré relativo aos prédios inscritos na matriz sob os artigos 1032 e 1033 da freguesia de …, descritos na Conservatória de Penafiel sob os nºs 1562/24032000 e 1563/24032000, da freguesia de … que deram origem aos lotes 1, 2, 3 e 4, fosse a ré condenada a restituir aos autores a quantia recebida a título de sinal, em dobro, no valor de €980.000,00, acrescido de juros legais desde a citação até efetivo pagamento, e, ainda, fosse reconhecido aos autores o direito de retenção sobre os aludidos prédios.
5 - A Ré não apresentou contestação à ação referida em 4.
6 - Por sentença proferida em 15.05.2015, no âmbito da ação referida em 4, foi declarado resolvido o contrato promessa celebrado entre autores e ré relativo aos prédios inscritos na matriz sob os artigos 1032 e 1033 da freguesia de …, descritos na Conservatória de Penafiel sob os nºs 1562/24032000 e 1563/24032000, da freguesia de …, que deram origem aos lotes 1, 2, 3 e 4, tendo sido, ainda, condenada a ré a pagar aos autores a quantia de €980.000, acrescida de juros legais desde a data da citação da ré até efetivo pagamento, e reconhecido aos autores o direito de retenção sobre os referidos prédios.
7 - O sinal referido no contrato promessa a que alude o ponto 2 dos factos provados foi pago mediante a cedência de parte do crédito que os credores reclamantes tinham e que se encontrava garantido pela penhora dos bens imóveis no âmbito do processo executivo 1615/11.7TBPFR.
Não se provaram quaisquer outros factos, designadamente:
1. Que desde a outorga do contrato promessa referido no ponto 2 dos factos provados, a insolvente entregou, desde logo, os lotes 1 e 2 aos reclamantes, encontrando-se, estes últimos, desde então, a ocupá-los.
2. Que desde a outorga do contrato promessa, os referidos reclamantes C… e D… encontram-se, de forma exclusiva, a usar, fruir e administrar os lotes 1 e 2, ocupando-os e dele retirando todos os seus frutos e rendimentos.
4. Fundamentos de direito
Haverá que sintetizar o núcleo fático essencial à apreciação do mérito jurídico do recurso.
Provou-se que:
1) Correu termos no Tribunal Judicial de Paços de Ferreira uma execução para pagamento de quantia certa contra a Sociedade Imobiliária B…, Lda. (insolvente), tendo esta acordado com os ora recorrentes que o pagamento da divida exequenda seria efetuado pelo produto da venda de dois imóveis propriedade destes, que se encontram penhorados à sua ordem no processo de execução 1615/11. 7TBPFR - 3° - Juízo.
2) Para viabilizar a venda os ora recorrentes procederam ao levantamento da penhora e abdicaram do recebimento de 490.000,00 por conta do seu crédito para pagamento da divida exequenda da ora insolvente.
3) Acordaram então, os ora recorrentes e a sociedade que veio a insolver, que, uma vez que a divida da sociedade foi paga à custa de património de terceiros a mesma se obrigava a proceder à celebração de um contrato de promessa de compra e venda no qual prometeria vender aos ora recorrentes (C… e mulher D…), «os prédios inscritos na matriz sob os artigos 1032 e 1033 da freguesia de …, pelo preço de €.800.000,00 (oitocentos mil euros) e dar quitação do montante de €.490.000,00 (quatrocentos e noventa mil euros), que já recebeu.».
4) Mais se provou que por escrito particular datado de 9.06. 2013, designado “Contrato Promessa de Compra e Venda”, em que figuram como primeiros outorgantes, na qualidade de promitente vendedor, Sociedade Imobiliária B…, Ld.ª, e como segundos outorgantes, na qualidade de promitentes-compradores, os ora recorrentes (C… e mulher, D…), foi declarado, além do mais, o seguinte:
CLÁUSULA SEXTA
(Tradição material da Coisa)
1. A tradição do Lote 1 e Lote 2, concretiza-se com a assinatura do presente contrato promessa de compra e venda, com a entrega de ambos os lotes aos PROMITENTESCOMPRADORES, passando estes, de forma exclusiva) a usar, fruir e administrar o dito prédio, ocupando-o, neles fazendo benfeitorias e deles retirando todos os seus frutos e rendimentos.
2. A tradição do Lote 3 e 4 será entregue com a outorga do contrato-prometido, com o pagamento da totalidade do preço.
5) A ora recorrida (impugnante) E… é detentora de um crédito sobre a sociedade insolvente, garantido por hipoteca sobre os imóveis referidos no ponto 3.
Dispõe o artigo 754.º do Código Civil, que o devedor que disponha de um crédito contra o seu credor goza do direito de retenção se, estando obrigado a entregar certa coisa, o seu crédito resultar de despesas feitas por causa dela ou de danos por ela causados.
Preceitua o n.º 1 do artigo 755.º do diploma legal citado, sob a epígrafe “Casos especiais”, que
«1 - Gozam ainda do direito de retenção:
a) […];
b) […];
c) […];
d) […];
e) […];
f) O beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos temos do artigo 442.º».
Nos termos do n.º 1 do artigo 686.º, a hipoteca confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis, ou equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiro, com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo.
São vastíssimas a jurisprudência e a doutrina sobre os normativos citados, no confronto entre o interesse do credor hipotecário e o direito de retenção cujos pressupostos se constituem após o registo da hipoteca, e que, malgrado tal anterioridade, vem a prevalecer sobre a garantia em causa.
Não nos alongaremos com considerações laterais sobre esta matéria.
Visando pôr termo às controvérsias, o Supremo Tribunal de Justiça proferiu em de 20.03.2014 o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência (AUJ) n.º 4/2014, publicado no Diário da República, 1.ª série, n.º 95, de 19.05. 2014, com o seguinte teor dispositivo: «No âmbito da graduação de créditos em insolvência o consumidor promitente - comprador em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção nos termos do estatuído no artigo 755º nº 1 alínea f) do Código Civil».
Decorre da mera leitura do AUJ citado, que se exige para a validade e oponibilidade do direito de retenção do promitente-comprador ao credor hipotecário: i) que o promitente adquirente seja “consumidor”; ii) que tenha ocorrido a traditio da coisa prometida vender.
A prova dos referidos pressupostos incumbe ao credor que invoca o direito de retenção, como bem se refere na sentença recorrida.
Tem sido esse o entendimento jurisprudencial, afirmado, a título de exemplo, no acórdão desta Relação, de 26.04.2014 (Proc. n.º 1040/12.2TBLSD-C.P1, acessível no site da DGSI), cujo sumário se transcreve parcialmente: «Na verificação de créditos em processo de insolvência, mesmo que o crédito tenha sido incluído pelo administrador na lista de créditos reconhecidos e desde que neste caso tenha sido impugnada a lista com fundamento na indevida inclusão do crédito, recai sobre o credor o ónus da prova da existência do crédito objecto da impugnação»[6].
Vejamos o primeiro pressuposto enunciado: a condição de “consumidor”.
O critério normativo é-nos fornecido pelo n.º 1 do art.º 2.º da Lei n.º 24/96, de 31 de Julho – Lei de Defesa do Consumidor: «Considera-se consumidor todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma atividade económica que vise a obtenção de benefícios».
Alega a impugnante:
«36. Com a norma do artigo 755, alínea f), do C. Civil visou-se a tutela eficiente do promitente-comprador consumidor, especificamente quando o contrato promessa diz respeito a edifícios ou fracções autónomas para habitação daquele.
37. Com efeito, o direito de retenção constituído pelo DL379/86, de 11 de Novembro, que aditou a atual alínea f) ao nº 1 do 755, do C. Civil, constitui uma medida excecional medida de proteção do direito à habitação e à família, em circunstâncias económico-sociais muito específicas de crise com uma grande inflação e uma especulação imobiliária.
38. Tal norma visou proteger o promitente-comprador consumidor final que viesse a utilizar o imóvel o adquirido para sua habitação própria e permanente.
39. São estas as pessoas que podem beneficiar de um eventual direito de retenção (…).
41. Acresce que, os imóveis alegadamente adquiridos destinam-se à construção de um empreendimento imobiliário, ou seja, destina-se a investimento, não tendo desta forma os promitentes-compradores a qualidade de consumidores finais».
Em resposta, alegaram os ora recorrentes:
«61. Assim, são pressupostos genéricos do reconhecimento deste direito de retenção: a) – a existência de promessa de transmissão ou de constituição de direito real; b) – a entrega da coisa objecto do contrato-promessa; c) – a titularidade, por parte do beneficiário, de um crédito sobre a outra parte, decorrente do incumprimento definitivo do contrato-promessa.
62. No caso em apreço, os ora credores não exercem qualquer actividade profissional no ramo imobiliário ou construção, adquiriram os lotes para fins pessoais, isto é, são simplesmente consumidores finais (…)».
No AUJ n.º 4/2014, justifica-se a consagração do requisito “consumidor” como pressuposto indispensável ao direito de retenção, nestes termos:
«A opção legislativa no conflito entre credores hipotecários e os particulares consumidores, concedendo-lhes o “direito de retenção” teve e continua a ter uma razão fundamental: a proteção destes últimos no mercado da habitação; na verdade, constituem a parte mais débil que por via de regra investem no imóvel as suas poupanças e contraem uma dívida por largos anos, estando muito menos protegidos do que o credor hipotecário (normalmente a banca) que dispõe regra geral de aconselhamento económico, jurídico e logístico que lhe permite prever com maior segurança os riscos que corre caso por caso e ponderar uma prudente seletividade na concessão de crédito. […] Assim se compreende que a alínea f) do artigo 755º nº 1 seja entendida restritamente de molde a que se encontre a coberto da prevalência conferida pelo “direito de retenção” o promissário da transmissão de imóvel que obtendo a tradição da coisa seja simultaneamente um consumidor[7]».
Regressando à situação concreta em discussão nos autos, os bens prometidos vender são dois lotes de terreno para construção, identificados nestes termos no n.º 2 da cláusula 1.ª do contrato promessa, nestes termos: «2. Os prédios rústicos descritos no nº 1 da presente cláusula foram objecto de um projecto de loteamento (Lote 1; Lote 2…) - cfr. Planta de Loteamento que ao diante se junta, rubricadas pelas partes e que fazem parte integrante do presente contrato».
Trata-se, em suma, de dois lotes de terreno para construção, objeto de um projeto de loteamento.
E terão os recorrentes a qualidade de “consumidores”?
Não o sabemos, na medida em que não foi produzida qualquer prova que permita ao Tribunal responder positivamente.
Por outro lado, sendo certo que não afasta definitivamente a qualidade de “consumidores” dos recorrentes, a qualificação dos bens (lotes para construção com loteamento), a mesma é suscetível de gerar dúvidas, porque não se alega nem se provou que os recorrentes pretendiam adquirir os referidos lotes para construção de habitação própria, ou para qualquer outro uso não profissional[8].
Em suma, não se provou um pressuposto essencial do invocado direito de retenção: a qualidade de consumidor, por parte dos promitentes-compradores, ora recorrentes.
Recaindo o ónus da prova sobre os recorrentes, terá que improceder a pretensão recursória.
Vejamos agora o segundo requisito enunciado: a traditio.
Nenhuma prova foi oferecida e produzida quanto aos factos n.ºs 1 e 2 considerados não provados, conforme já se decidiu em sede de reponderação da decisão da matéria de facto:
1. Que desde a outorga do contrato promessa referido no ponto 2 dos factos provados, a insolvente entregou, desde logo, os lotes 1 e 2 aos reclamantes, encontrando-se, estes últimos, desde então a ocupá-los.
2. Que desde a outorga do contrato promessa, os referidos reclamantes C… e D… encontram-se, de forma exclusiva, a usar, fruir e administrar os lotes 1 e 2, ocupando-os e dele retirando todos os seus furtos e rendimentos.
O que se provou foi apenas que a sociedade insolvente e os ora recorrentes estipularam no contrato promessa, a seguinte cláusula:
«CLÁUSULA SEXTA
(Tradição material da Coisa)
1. A tradição do Lote 1 e Lote 2, concretiza-se com a assinatura do presente contrato promessa de compra e venda, com a entrega de ambos os lotes aos PROMITENTESCOMPRADORES, passando estes, de forma exclusiva) a usar, fruir e administrar o dito prédio, ocupando-o, neles fazendo benfeitorias e deles retirando todos os seus frutos e rendimentos.
2. A tradição do Lote 3 e 4 será entregue com a outorga do contrato-prometido, com o pagamento da totalidade do preço.»
Como refere o Professor Antunes Varela na Revista de Legislação e de Jurisprudência (Ano 128º, 1995-96, pág. 146), “… o promitente-comprador, investido prematuramente no gozo da coisa, que lhe é concedido na pura expetativa da futura celebração do contrato, não é possuidor dela, precisamente porque, sabendo ele, como ninguém, que a coisa pertence ainda ao promitente-vendedor e só lhe pertencerá a ele depois de realizado o contrato translativo prometido, não pode agir seriamente com a intenção de um titular da propriedade ou de qualquer outro direito real sobre a coisa (…) ele é apenas (…) o titular de um direito pessoal de gozo, destinado a perdurar como tal, até à celebração do contrato definitivo (…)”.
Na esteira da posição doutrinária[9] enunciada, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4.12.2007 (proc. 07A4070, acessível no site da DGSI), sintetiza a detenção precária do promitente-comprador beneficiário da traditio, nestes termos: “… a entrega antecipada do imóvel na vigência do contrato-promessa, não é um efeito do contrato, mas resulta de uma convenção de natureza obrigacional entre o promitente-vendedor – [dono da coisa] e o promitente-comprador. Assim, e em regra, o promitente-comprador que obteve a traditio apenas frui um direito de gozo que exerce em nome do promitente-vendedor e por tolerância deste – é, nesta perspectiva, um detentor precário – art. 1253º do Código Civil – já que não age com animus possidendi, mas apenas com corpus possessório (relação material) – art. 1251º do Código Civil”.
Conclui-se na sentença recorrida:
«Todavia, da análise da matéria de facto assente resulta que não se provou que desde a data da outorga do contrato promessa, a insolvente entregou, desde logo, os lotes 1 e 2 aos reclamantes C… e D…, encontrando-se, estes últimos, desde então, a ocupá-los e que os referidos reclamantes encontram-se, de forma exclusiva, a usar, fruir e administrar os lotes 1 e 2, ocupando-os e dele retirando todos os seus frutos e rendimentos.
Ora, conforme se escreveu no Acórdão da Relação do Porto, datado de 26.01.2010, no âmbito do processo 46/07.8TBARC-B.P1 publicado in www.dgsi.pt “I. O artigo 458.º, n.º 1 do Código Civil, consagra uma inversão do ónus da prova da relação fundamental ou adjacente, estabelecendo uma presunção da sua existência a favor do credor.
II- Tal presunção só funciona, contudo, no confronto do devedor. (…)
IV- Já relativamente aos credores do insolvente em processo de falência, tal presunção não funciona, cabendo ao credor reclamante demonstrar a existência do seu crédito e respectiva natureza.”.
Nesta conformidade e perante a impugnação apresentada competia aos credores impugnados que juntassem o que mais se mostrasse necessário, para além do que já tivesse sido junto com a reclamação, ou impetrasse a realização de diligência, compatível com celeridade do processado, que tivesse por profícua para a prova da natureza garantida do referido crédito.
Ora, nem tal junção superveniente se verificou, nem outros elementos probatórios se mostram carreados para o processo que permitam, mesmo considerando a margem de álea em direito permitida, concluir pela natureza garantida do referido crédito.
Assim, não se logrou provar a factualidade que consubstancia o direito de retenção invocado pelo credor reclamante.
A regra em direito é que, quem alega um determinado facto, tem a obrigação de prová-lo.
É o que conceptualmente se designa de ónus de prova. O artigo 342.º, do Código Civil preceitua precisamente esta regra, no entanto a lei circunscreve a obrigação de prova dos factos que sejam constitutivos do direito que se alega, isto é, aqueles que servem de fundamento e que substancialmente configuram uma determinada posição jurídica. No caso em apreço, os reclamantes, C… e D…, não lograram provar a factualidade em que alicerçava a natureza garantida do seu crédito, ónus da prova que como referimos lhes competia, o que implica a sua não atendibilidade».
Perante a ausência de prova por parte dos ora recorrentes, considerando o ónus probatório que sobre eles impendia, não vemos fundamento jurídico que possa suportar validamente a sua pretensão.
Sobre os ora recorrentes incumbia a alegação e prova de mais este pressuposto do direito de retenção, traduzido na alegação de materialidade concreta consubstanciadora da efetiva traditio dos lotes de terreno para construção[10].
Decorre de todo o exposto a improcedência do recurso, pelo que se deverá manter a decisão recorrida, que não é merecedora de qualquer reparo.
III. Dispositivo
Com fundamento no exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar totalmente improcedente o recurso, ao qual negam provimento e, em consequência, em manter a decisão recorrida.
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Custas do recurso a cargo dos recorrentes.
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O presente acórdão compõe-se de trina e quatro páginas e foi elaborado em processador de texto pelo relator.
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Porto, 27 de novembro de 2017
Carlos Querido
Correia Pinto
Ana Paula Amorim
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[1] Manual de Processo Civil, Antunes Varela e outros, Coimbra Editora, 2.ª edição, 1985, pág. 724 e seguintes.
[2] ROA, Ano 66 - II, 2006, http://www.oa.pt/Conteudos/Artigos/detalhe_artigo.aspx?idc=1&idsc=50879&ida=50920
[3] Sem prejuízo da tese que engloba na força vinculativa do caso julgado, para além da decisão, apenas os fundamentos que constituem pressuposto ou antecedente lógico da mesma.
[4] Neste sentido, por todos, veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 20 de Janeiro de 2005, processo nº 04B347, acessível no site da DGSI.
[5] A credora impugnante juntou ao processo os autos de penhora de fls. 13 e 14, referentes aos prédios rústicos inscritos na matriz rústica com os n.ºs 1032 e 1033 e a certidão do Registo Predial, onde consta que foram registadas em 3.07.2009 penhoras sobre os aludidos prédios, no âmbito da execução instaurada por G…, SA., no entanto, tais documentos não têm relevância probatória, na medida em que se limitam a confirmar o que ficou estipulado no acordo datado de 02 de junho de 2013, celebrado entre a sociedade ora insolvente e os recorrentes.
[6] No mesmo sentido, veja-se o acórdão desta Relação, de 26.01.2010, proferido no Processo n.º 46/07.8TBARC-B.P1, acessível no site da DGSI.
[7] Como suporte doutrinário, cita o aresto do STJ, Miguel Pestana de Vasconcelos “Direito de Retenção Contrato promessa e Insolvência” in “Cadernos de Direito Privado”, 3 págs. 8 ss, onde se conclui que não sofre dúvida que o promitente-comprador é in casu um consumidor no sentido de ser um utilizador final com o significado comum do termo, que utiliza os andares para seu uso próprio e não com escopo de revenda”.
[8] Sendo certo que, em princípio, a aquisição para habitação própria teria como objeto apenas um lote.
[9] Vide, no mesmo sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, Vol. III, 2ª ed., pág. 6.
[10] Incumbia, nomeadamente, aos ora recorrentes, a prova de que na data da celebração do contrato promessa já não incidia a penhora a favor da Fazenda Nacional sobre os aludidos lotes, para pagamento da quantia de €238.601,88, registada em 12.12.2006 (doc. de fls. 15 a 17, junto pela credora impugnante), considerando que tais penhoras se traduzem na apreensão judicial dos bens, com tomada de posse efetiva pelo depositário, como imperativamente decorre do n.º 2 do art.º 757.º do CPC, o que é incompatível com qualquer traditio posterior dos mesmos bens.