Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
932/05.0TBOAZ.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: VIEIRA E CUNHA
Descritores: PROCESSO ESPECIAL DE INVENTÁRIO
AVALIAÇÃO
LEGADO DO USUFRUTO
Nº do Documento: RP20180613932/05.0TBOAZ.P1
Data do Acordão: 06/13/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 2ªSECÇÃO, (LIVRO DE REGISTO N.º 834, FLS.79-81)
Área Temática: .
Sumário: I - O domínio e a posse dos bens atribuídos pelo legado de usufruto adquirem-se pela aceitação, independentemente da respectiva apreensão material, e os efeitos da aceitação retrotraem-se ao momento da abertura da sucessão, independentemente das vicissitudes da avaliação dos bens, no decurso do inventário.
II - Ainda que não lhe cabendo requerer a partilha da herança, o legatário do usufruto pode sempre, independentemente da partilha, continuar a deter as coisas objecto do legado, não se colocando qualquer questão de domínio material, e pode pedir o cumprimento do legado de usufruto dos herdeiros – artº 2265º CCiv, bem como pode reivindicar de terceiro a coisa legada – artº 2279º CCiv.
III - Acresce ser o testamento o modo de constituição do usufruto (artº 1440º CCiv).
IV - Assim, a avaliação do legado de usufruto em inventário por morte deve reportar-se à idade do usufrutuário na data da abertura da herança, ou seja, à data do decesso da inventariada.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: ● Rec.932/05.0TBOAZ.P1.
Relator – Vieira e Cunha.
Adjuntos – Desembargadores Maria Eiró e João Proença Costa.
Decisão recorrida de 19/12/2017.
Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Os Factos
Recurso de apelação interposto na acção com processo especial de inventário nº932/05.0TBOAZ, instaurado por óbito de B…, do Juízo Local Cível de Oliveira de Azeméis, da Comarca de Aveiro.
Cabeça-de-Casal – C… (filho).
Interessado – D… (viúvo).
Legatária – E….

Nos presentes autos, corrida a tramitação legal, constata-se que a inventariada deixou testamento, lavrado em 19/9/95, instituindo como legatário do usufruto de todos os seus bens o respectivo cônjuge D….
Por outro lado, a inventariada e seu cônjuge haviam doado em 10/5/83 e em 17/2/94, respectivamente, dois imóveis, verbas nºs 115 e 116 (um prédio rústico e um prédio urbano), ao ora Cabeça-de-Casal e à então sua mulher, a indicada E…, entretanto divorciados.
Foi lavrado despacho determinativo da partilha e elaborado mapa da partilha, o qual foi objecto de reclamação quanto ao momento relevante para o cálculo do valor do usufruto, por parte do cabeça-de-casal; o interessado D… respondeu ao reclamado.
Relativamente ao cálculo do valor do usufruto referenciado, foi proferido despacho judicial em 2/10/2017, do seguinte teor:
“Sendo certo que a sucessão se abre no momento da morte do seu autor (artº 2013º CCiv), não é menos verdade que, em nosso entendimento, o cálculo do usufruto se deve fazer por reporte à idade do usufrutuário, à data em que se concretiza a partilha.”
“Em primeiro lugar, o usufruto é “o direito de gozar temporária e plenamente uma coisa ou direito alheio” (artº 1439º CCiv).”
“Ora, o usufrutuário instituído por legado ou doação apenas tem a possibilidade de exercer as faculdades correspondentes ao seu direito (usar, fruir e administrar) após a partilha dos bens, pois que até aí apenas possui um quinhão hereditário, um direito a ser composto por bens, precisamente na sequência da partilha.”
“Portanto, calcular o usufruto, como pretende o cabeça-de-casal, por referência à idade que o usufrutuário tinha à data do óbito da inventariada é, no mínimo, contraditório com o conteúdo daquele direito.”
“E basta pensar na maior ou menor demora na concretização da partilha para se perspectivar a iniquidade que tal entendimento poderia gerar, posto que o valor do usufruto diminui à medida que a idade do usufrutuário aumenta, precisamente tendo em conta a menor dilação temporal por que o exercício do direito em expectativa se efectuará. Por isso, num inventário que esteja pendente, pense-se, durante 20 anos, seria iníquo considerar a idade que o usufrutuário tinha à data da morte do “de cujus” e não aquela que o mesmo possui à data da partilha.”
“A tudo acresce que a percentagem do usufruto apurada é aplicada aos valores dos bens a partilhar, tantas vezes alterados por força das avaliações realizadas no processo de inventário, não se levando em consideração o valor que os mesmos possuíam à data da abertura da sucessão. Por isso, impondo-se a coerência nas operações de partilha, seguindo a tese do cabeça-de-casal, o valor dos bens teria de ser aquele que os mesmos possuíam em 25/7/2000 e não o que resultou da avaliação e licitações.”
“Termos em que nenhuma alteração se impõe fazer ao cálculo do usufruto.”
Proferida sentença homologatória da partilha, vem interposto o presente recurso.
Conclusões do Recurso de Apelação do Cabeça - de - Casal
1) O presente recurso interposto da aliás douta sentença (Ref. 100118034) que homologou a partilha nos precisos termos do mapa de fls. 1040 a 1047, compreende o despacho que julgou não se impor qualquer alteração ao cálculo do usufruto (Refª Citius 98960618), uma vez que, o mesmo, incorre em desacerto.
2) O despacho (Refª Citius 98960618), segundo o qual, o tribunal “a quo” entendeu que: “...o cálculo do usufruto se deve fazer por reporte à idade do usufrutuário à data em que se concretiza a partilha...” e, consequentemente, decidiu: “...nenhuma alteração se impõe fazer ao cálculo do usufruto.”:
I) - Viola o disposto nos Arts, 2.050º e 2.119º, do Cód. Civil, bem como o disposto na alínea a) do Art. 13º do CIMT.
II) - É discordante com a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça.
III) - Ajuíza, erradamente, as próprias premissas da fundamentação.
IV) - Compromete os princípios da boa-fé, da segurança jurídica e da protecção da confiança jurídica.
V) - Valida uma prática que conduz a um manifesto enriquecimento sem causa.
3) Porquanto:
- O Código Civil vigente consagrou a doutrina da aquisição mediante a aceitação e perfilha a doutrina segundo a qual a partilha tem efeito não translativo ou constitutivo, mas sim declarativo, conforme resulta do princípio de retroactividade consagrado no Art. 2.119º do Cód. Civil.
- O contrato constitutivo do direito de usufruto “in casu” foi o testamento que é um negócio unilateral “mortis causa” típico e produziu efeitos – não com a partilha – mas sim, com a morte da inventariada ocorrida em 25 de Julho de 2000.
- Da conjugação do disposto nos Artigos 1.446º, 1.439º, 2.271º, na 1ª parte do Art. 2.031º, no nº 2 do Art. 2.050º, todos do Cód. Civil, resulta que:
- “O usufrutuário pode usar, fruir e administrar a coisa ou o direito como faria um bom pai de família, respeitando o seu destino económico”.
- O legatário (qualidade detida pelo usufrutuário da totalidade do património da herança) “...tem direito aos frutos desde a morte do testador...”
- “A sucessão abre-se no momento da morte do seu autor...”
- “Os efeitos da aceitação retrotraem-se ao momento da abertura da sucessão”.
4) “In casu”, o usufruto vitalício, legado por testamento, constituiu um direito real de gozo que se constituiu no momento da abertura da sucessão e se integrou na esfera jurídica do usufrutuário com a sua aceitação.
5) Atentos tais princípios, o tribunal “a quo” devia ter efectuado o cálculo do valor do usufruto por reporte à idade do usufrutuário à data em que esse mesmo direito foi constituído, ou seja à data da abertura da herança e, consequentemente ser esse o valor a ter em conta nos termos do mapa da partilha.
6) A douta sentença homologatória dos termos do mapa de partilha, incorre em desacerto, uma vez que, tais termos padecem de erro, devido ao desacerto do despacho (Refª Citius 98960618), que julgou não se impor qualquer alteração ao cálculo do usufruto.

O Interessado D… apresentou contra-alegações, pugnando pela confirmação da sentença e despacho recorridos.
Factos Provados
Consideram-se provados os factos relativos à tramitação processual e ao teor do despacho judicial impugnado, supra resumidamente expostos.
Os Factos e o Direito
O presente recurso coloca a única questão de conhecer do bem fundado do despacho recorrido, enquanto considerando o cálculo do valor do usufruto dos bens da inventariada, legado por testamento ao interessado D…, reportado à data da partilha, e não, como pretendido, à data do decesso da inventariada.
Apreciemo-la seguidamente.
Pesem embora os ponderosos argumentos aduzidos no douto despacho recorrido e coadjuvados nas doutas contra-alegações, entendemos que a razão está do lado do Apelante.
Por um lado, tal como já sublinhado, o legado de usufruto, previsto no artºs 2030º nº4 e 2258º CCiv vê estenderem-se-lhe, com as necessárias adaptações, as normas relativas à aceitação e ao repúdio da herança – artº 2249º CCiv.
A norma tem especialmente em vista o disposto nos artºs 2050º a 2067º CCiv.
Ora, independentemente das vicissitudes da avaliação dos bens, no decurso do inventário, que se pressupõem, e tanto afectarão o herdeiro como o legatário ou o legatário de usufruto, o valor dos bens existentes no património do autor da herança à data da sua morte marca a possibilidade de cálculo da legítima, à luz do disposto no artº 2162º nº1 CCiv.
Este valor dos bens parte de uma estimativa aproximada no inventário, em que o valor de uma determinada avaliação não é decisivo, pois pode ser corrigido pela reclamação contra o excesso, quando avaliados a mais, ou pela licitação, quando avaliados a menos.
A norma do artº 2162º nº1 cit., por sua vez, encontra-se em consonância com o disposto no artº 2050º (cf. remissão do artº 2258º cit.), nos termos do qual o domínio e a posse dos bens da herança se adquirem pela aceitação, independentemente da respectiva apreensão material, sendo que os efeitos da aceitação se retrotraem ao momento da abertura da sucessão, isto é, ao momento da morte do seu autor (artº 2031º CCiv).
Como escreve o Dr. Rodrigues Bastos, Dtº das Sucessões, I, pg.115, o efeito retroactivo da aceitação representa um desenvolvimento lógico do conceito da sucessão hereditária: uma interrupção na titularidade do património seria incompatível com o conceito de sucessão que implica continuidade, talvez possa dizer-se perpetuidade.
Mesmo que só os herdeiros estivessem em condições de requerer a partilha da herança – artº 2101º nº1 CCiv, não já os legatários, no caso dos autos essa dupla condição de herdeiro e legatário verificava-se na pessoa do interessado D….
Todavia, a posição destes legatários, face à partilha, em especial os legatários do usufruto, como no caso dos autos, nem por isso é menos protegida pela lei, face aos herdeiros – como refere o Prof. Oliveira Ascensão, Dtº das Sucessões, pg. 446, se o legatário detém as coisas (certas e determinadas) objecto do legado não se coloca qualquer problema de entrega subsequente (coisa determinada é a que não necessita de individualização posterior, de escolha ou outra – Profª Ana Prata, Dicionário Jurídico, 3ª ed., pg. 219).
Depois, mesmo que não detenha a coisa no momento da sucessão, o legatário pode pedir o cumprimento do legado de usufruto dos herdeiros – artº 2265º CCiv, bem como pode reivindicar de terceiro a coisa legada – artº 2279º CCiv.
Tudo isto sem prejuízo da redução de liberalidades – artºs 2168ºss. CCiv – operação posterior e que apenas pode ter lugar no inventário.
Não está assim a posição do legatário do usufruto absolutamente dependente da partilha em inventário, e neste ponto divergimos do assinalado no douto despacho recorrido.
Na verdade, foi pelo testamento – disposição para depois da morte (artº 2179º nº1 CCiv) – que se constituiu o usufruto (artº 1440º CCiv).
É certo que o cálculo do valor do usufruto se fará em função do valor dos bens corrigido pelas licitações no processo, o que se reflecte a final no pagamento de tornas constante do mapa da partilha, mas essa é uma vicissitude que afecta por igual herdeiros e legatários, como já havíamos assinalado supra.
O cálculo do valor do usufruto afectará em concreto o interessado D…, na sua qualidade de cônjuge meeiro, herdeiro e legatário, podendo fazer diminuir o que a final caberá ao referido interessado, seja por via da composição do respectivo quinhão, seja por via de tornas em dívida, mas esse cálculo não visa afectar em especial o legatário do usufruto dos bens da inventariada, antes constitui uma decorrência necessária da configuração do inventário.
Outra vicissitude que irreleva, para a substância da questão, é o facto de os concretos bens que restaram para o legado de usufruto (influenciando o valor do legado imputado na legítima do cônjuge) terem apenas sido definidos a final, com a partilha efectuada.
A partilha apenas vem a consumir, em parte, o direito ao usufruto atribuído em testamento pela inventariada – esta última a realidade relevante (aquilo que ficou ou ficará definido no inventário não é a extensão do usufruto, abrangendo todos os bens da inventariada, mas a extensão dos bens que ao interessado são adjudicados como proprietário pleno, consumindo assim, nessa medida, os poderes conferidos ao usufrutuário e o próprio legado de usufruto).
Por fim, as normas de direito tributário, designadamente as do Código do IMT, não podem ser transpostas mecanicamente para o processo de inventário (referimo-nos à alusão da lei tributária ao cálculo do IMT em geral e do usufruto, para efeitos de IMT por reporte ao momento “actual”) – assim teria de ser, posto que o imposto em causa se reporta precisamente aos diversos actos de transmissão de bens (artºs 2º eCIMT); o momento do inventário, ou seja, o momento do cálculo do usufruto, é, todavia, prévio e pressuposto da transmissão de bens que, entre outras (para efeitos fiscais), é realizada pela partilha.
Tudo isto sem prejuízo de às regras (genéricas) de cálculo do usufruto se poderem (e deverem) aplicar as regras tributárias, como de resto é assinalado pela doutrina (e não vem impugnado no recurso).
Temos pois por acertadas, salvo o devido respeito, as alegações de recurso de apelação, pelo que se imporá corrigir, no mapa de partilha, o valor do usufruto, reportando-o à idade do usufrutuário na data da abertura da herança, isto é, na data do decesso da inventariada.
Concluindo:
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Deliberação (artº 202º nº1 CRP):
Na procedência do recurso interposto, revogam-se a sentença e despacho recorridos, determinando-se a correcção, no mapa da partilha, do valor do usufruto atribuído ao interessado D…, reportando-o agora à idade desse usufrutuário na data do decesso da inventariada.
Custas pelo Apelado.

Porto, 13/VI/2018
Vieira e Cunha
Maria Eiró
João Proença