Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3835/11.5TJVNF-C.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: CARLOS QUERIDO
Descritores: CASA DA MORADA DE FAMÍLIA
REGIME PROVISÓRIO DE UTILIZAÇÃO
INCIDENTE DE ATRIBUIÇÃO
PRESTAÇÃO DEVIDA
Nº do Documento: RP201410063835/11.5TJVNF-C.P1
Data do Acordão: 10/06/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O regime provisório de utilização da casa de morada de família previsto no nº 7 do art.º 1407.º do CPC distingue-se, no plano processual, do incidente de atribuição da casa de morada de família, regulado no art.º 1413.º do mesmo diploma, porque este último visa a definição duradoura do regime de ocupação da morada do casal, a vigorar subsequentemente à decisão final de divórcio, ao passo que o regime provisório se destina apenas a acautelar a protecção da habitação de um dos cônjuges durante o processo de divórcio.
II - Tal regime provisório tem natureza cautelar, nele podendo ser atribuído, durante o processo de divórcio, ao cônjuge requerente privado do direito de utilização da casa de morada de família, metade do valor mensal locativo do referido imóvel do casal, habitado exclusivamente pelo cônjuge requerido.
III - A prestação em causa no incidente do regime provisório referido traduz-se numa compensação devida ao cônjuge que não habita a casa de morada de família, como contrapartida do uso e fruição exclusiva por parte do outro cônjuge, exercidos provisoriamente sobre o referido bem comum, sendo devida desde que se iniciou tal uso e fruição por um dos cônjuges de forma exclusiva e enquanto a mesma se mantiver, até à partilha dos bens comuns.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 3835/11.5TJVNF-C.P1

Sumário do acórdão:
I. O regime provisório de utilização da casa de morada de família previsto no nº 7 do art.º 1407.º do CPC distingue-se, no plano processual, do incidente de atribuição da casa de morada de família, regulado no art.º 1413.º do mesmo diploma, porque este último visa a definição duradoura do regime de ocupação da morada do casal, a vigorar subsequentemente à decisão final de divórcio, ao passo que o regime provisório se destina apenas a acautelar a protecção da habitação de um dos cônjuges durante o processo de divórcio.
II. Tal regime provisório tem natureza cautelar, nele podendo ser atribuído, durante o processo de divórcio, ao cônjuge requerente privado do direito de utilização da casa de morada de família, metade do valor mensal locativo do referido imóvel do casal, habitado exclusivamente pelo cônjuge requerido.
III. A prestação em causa no incidente do regime provisório referido traduz-se numa compensação devida ao cônjuge que não habita a casa de morada de família, como contrapartida do uso e fruição exclusiva por parte do outro cônjuge, exercidos provisoriamente sobre o referido bem comum, sendo devida desde que se iniciou tal uso e fruição por um dos cônjuges de forma exclusiva e enquanto a mesma se mantiver, até à partilha dos bens comuns.

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório
No âmbito da acção de divórcio n.º 3835/11.5TJVNF, em 27 de Fevereiro de 2012 (fls. 40,v.º) veio B… requerer a fixação de um regime provisório de atribuição da casa de morada de família “determinando-se o seu uso por parte do requerido [C…], com obrigação de compensar a requerente com a importância mensal de € 150,00, a liquidar até ao dia 8 de cada mês […]».
O requerido deduziu oposição, impugnado o valor indicado pela requerente.
Em 7 de Março de 2013 foi proferida decisão na qual se julgou improcedente a pretensão da requerente.
Não se conformou a requerente e interpôs recurso de apelação para esta Relação, que em acórdão de 1.07.2013 julgou procedente o recurso, revogou a decisão recorrida e determinou que o tribunal a quo realizasse as diligências probatórias tidas por convenientes, nomeadamente para determinação do valor locativo do imóvel “com vista a apreciar o pedido formulado pela apelante”.
Baixaram os autos à 1.ª instância, onde em 21.01.2014 foi proferida a seguinte decisão:
«Na sequência do decidido pelo Venerando Tribunal da Relação do Porto, e atento o conteúdo do relatório pericial entretanto ordenado e prova junta com as alegações de recurso, entendemos (de acordo com critérios de oportunidade e conveniência) que, sendo qualitativamente iguais os direitos dos cônjuges /consortes, e sendo que o uso da ‘coisa comum’ /casa de morada de família por um dos comproprietários, no caso o requerido C…, não constitui em princípio, posse exclusiva ou posse superior à dele, crê-se ter cabimento que aquele que da sua ‘quota parte’ não usufrui /requerente, tenha também direito a um gozo indirecto que consistirá em perceber, tal como se locação existisse, a uma compensação pelo valor do uso de tal ‘quota-parte’.
E assim sendo, considerando o valor da renda mensal atribuído a tal imóvel, onde se encontra a residir o requerido, determina-se que este compense mensalmente a requerente, em € 150, por tal utilização, até à divisão da coisa comum/casa de morada de família, a liquidar até ao dia 8 de cada mês, por meio de transferência bancária para conta da requerente cujo NIB é o …………………, no D…, com início no mês de Fevereiro de 2014.
Custas do incidente pelo requerido.».
Não se conformou novamente a requerente interpôs recurso de apelação, apresentando alegações onde conclui que:
1) A compensação mensal deve ser paga, “pelo menos desde que o outro cônjuge é notificado do respectivo pedido de regulação provisória”
2) A sentença recorrida, “ao não fixar o início da referida compensação de € 150,00 à data do mês seguinte àquele em o R. contestou o pedido de regulação provisória do regime da casa de morada de família, o que in casu ocorreu em 30-05-2012, violou o devido conteúdo normativo do cit. art. 1407º, nº 7, e, como tal, deve proceder o recurso, e a decisão ser parcialmente revogada, condenando-se o Réu – requerido a pagar à A., requerente, o referido montante de € 150,00, desde a referida data – ou seja, desde Junho, inclusive, de 2012, perfazendo, pois, até Janeiro, inclusive, de 2014, € 3.000,00”.
Não se encontra junta aos autos qualquer resposta às alegações de recurso.

II. Do mérito do recurso
1. Definição do objecto do recurso
O objecto do recurso, delimitado pelos recorrentes nas conclusões das suas alegações (artigos 635º, nº 3 e 639º, nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil, salvo questões do conhecimento oficioso (artigo 608º, nº 2, in fine), consubstancia-se numa única questão: saber se o pagamento da prestação por parte do requerido deverá ter início no mês de Fevereiro de 2014, ou em Junho de 2012.

2. Fundamentos de facto
Está provada nos autos a seguinte factualidade relevante:
1 - A. e R. encontram-se casados entre si desde 19/02/1983.
2 - A A. intentou contra o R. a 30.11.2011 acção de divórcio sem consentimento do outro cônjuge.
3 - O R. exerce a profissão de motorista e recebe cerca de € 750,00 por mês.
4 - O R. encontra-se a residir na casa de morada de família.
5 - Ao imóvel que é a casa de morada de família é atribuído pela ATA, o valor patrimonial de € 20.731,80[1].
6 – O requerimento de fixação de um regime provisório de atribuição da casa de morada de família deu entrada no Tribunal em 27 de Fevereiro de 2012.
7 – O requerido deduziu oposição em 30 de Maio de 2012.
8 - A decisão recorrida, proferida em 20.01.2014, fixou as prestações, “a liquidar até ao dia 8 de cada mês […] com início no mês de Fevereiro de 2014”.

3. Fundamentos de direito
Como se refere no acórdão desta Relação já proferido nos autos (acórdão de 1.07.2013, processo n.º 3835/11.5TJVNF-B.P1, acessível no site da DGSI), a providência de fixação do regime provisório de utilização da casa de morada de família prevista no nº 7 do art.º 1407.º do CPC distingue-se, no plano processual ou adjectivo, do incidente de atribuição da casa de morada de família, regulado no art.º 1413.º do mesmo diploma, porque este último visa a definição duradoura do regime de ocupação da morada do desmembrado casal, a vigorar subsequentemente à decisão final de divórcio, ao passo que o regime provisório se destina apenas a acautelar a protecção da habitação de um dos cônjuges durante o processo de divórcio.
Revela-se patente, face ao recorte da figura processual em apreço, que o incidente em apreço tem um fim cautelar.
A pretensão da requerente foi apresentada no Tribunal em 27 de Fevereiro de 2012. No entanto, devido a vicissitudes processuais a que esta foi alheia (nomeadamente a subida em recurso, no qual a sua pretensão obteve provimento), a decisão recorrida apenas foi proferida em 20 de Janeiro de 2014 (quase dois anos depois).
A questão que se coloca resume-se a saber se a requerente (ora recorrente) deverá ficar privada do direito que lhe foi reconhecido judicialmente (prestação correspondente a metade do valor mensal locativo do imóvel do casal), durante os referidos dois anos, em que apenas o recorrido habitou e fruiu o referido imóvel.
Pensamos, com o devido respeito, que não há suporte jurídico válido para a resposta positiva à questão enunciada.
Com efeito, a prestação em causa traduz-se numa compensação/renda ao cônjuge que não habita a casa de morada de família, como contrapartida do uso e fruição exclusiva por parte do outro cônjuge, exercidos provisoriamente sobre o referido bem comum, sendo devida desde que se iniciou tal uso e fruição por um dos cônjuges de forma exclusiva e enquanto se mantiver, ou seja, até à partilha dos bens comuns.
Entendeu já esta Relação, em acórdão de 11.03.2014 (Proc. 5815/07.6TBVNG-K.P1), na esteira do decidido no acórdão de 05.02.2013 (Proc. 1164/10.0TMPRT-B.P1), que «[…] havendo [necessariamente] lugar àquela compensação/renda como contrapartida da atribuição provisória da casa de morada de família, terá o Julgador que a fixar, independentemente de ter sido incluída ou não no pedido formulado […]».
Ressalvando sempre o devido respeito, solução diversa da que preconizamos trairia o fim cautelar do procedimento em causa, traduzindo-se num injustificado enriquecimento.
In casu, o recorrido ocupa em exclusivo a habitação do casal, pelo menos desde 27 de Fevereiro de 2012 (data de entrada do requerimento de fixação do regime provisório), sendo devida a compensação fixada, desde essa data.
No entanto, a recorrente, partindo, talvez, do princípio enunciado no n.º 1 do artigo 805.º do Código Civil (de que o devedor em regra apenas se constitui em mora depois da respectiva interpelação judicial), limita-se a requerer que a compensação/renda lhe seja paga desde Junho de 2012.
Não deverá o Tribunal ir além desta pretensão (art. 661/1 do CPC vigente à data da instauração do procedimento), devendo, em consequência, ser dado provimento ao recurso na medida do que vem peticionado nas respectivas conclusões.

III. Dispositivo
Com fundamento no exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar totalmente procedente o recurso, ao qual concedem provimento, e, em consequência, em revogar parcialmente a sentença recorrida, na parte final do seu dispositivo, ao qual aditam a seguinte menção: “Mais se determina que o requerido pague à requerente o valor correspondente às referidas compensações mensais referentes aos meses de Junho de 2012 a Janeiro de 2014, por transferência bancária para a mesma conta”.
No mais se mantém a decisão.
Fica assim reformulado o dispositivo da sentença recorrida, nestes termos:
«E assim sendo, considerando o valor da renda mensal atribuído a tal imóvel, onde se encontra a residir o requerido, determina-se que este compense mensalmente a requerente, em € 150, por tal utilização, até à divisão da coisa comum/casa de morada de família, a liquidar até ao dia 8 de cada mês, por meio de transferência bancária para conta da requerente cujo NIB é o …………………, no D…, com início no mês de Fevereiro de 2014. Mais se determina que o requerido pague à requerente o valor correspondente às referidas compensações mensais referentes aos meses de Junho de 2012 a Janeiro de 2014, por transferência bancária para a mesma conta».
Custas do recurso pelo recorrido.
*
O presente acórdão compõe-se de sete páginas e foi elaborado em processador de texto pelo relator, primeiro signatário.

Porto, 6 de Outubro de 2014
Carlos Querido
Soares de Oliveira
Alberto Ruço
______________
[1] Factualidade consignada no acórdão desta Relação, que revogou a 1.ª decisão (acórdão de 1.07.2013, processo n.º 3835/11.5TJVNF-B.P1, acessível no site da DGSI).
[2] Cita-se no referido aresto o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 26.04.2012 – Proc. n.º 33/08.9TMBRG.G1.S1 - onde se conclui: “Trata-se de um incidente, com processo especialíssimo, norteado por critérios de conveniência, que apenas tem em vista a fixação de um regime provisório (…), até à partilha dos bens comuns (…) que, em princípio, não tem a ver com o processo de constituição de arrendamento da casa de morada de família, regulado, como processo de jurisdição voluntária, no art. 1413.º do CPC, previsto, como efeito do divórcio, nos arts. 1793º e 1105º do CC”.
[3] Vide: acórdão do STJ, 26.04.2012, Proc. 33/08.9TMBRG.G1.S1; acórdão da Relação do Porto, de 26.6.2000, Proc.0050619; e acórdão da Relação de Lisboa, de 16.05.2008, Proc. 4226/2008-8, todos disponíveis no site da DGSI. No mesmo sentido, vide António Abrantes Geraldes, in Temas da Reforma do Processo Civil, 3.º Volume, 4.ª edição, Almedina, Janeiro de 2010, pág. 48.