Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
289/12.2TVPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RODRIGUES PIRES
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL
ERRO MÉDICO
VIOLAÇÃO DE LEGIS ARTIS
Nº do Documento: RP20191112289/12.2TVPRT.P1
Data do Acordão: 11/12/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Atualmente predomina a orientação segundo a qual a regra é a da responsabilidade contratual do médico, sendo a responsabilidade extracontratual a exceção, normalmente correlacionada com situações em que o médico atua num quadro de urgência, em que inexiste acordo/consentimento do doente à sua atuação/intervenção.
II - O pressuposto da ilicitude verifica-se objetivamente quando ocorra uma lesão à integridade física do lesado estranha ao cumprimento do contrato e que surja como desproporcionada quando confrontada com os riscos que para ele decorreriam da realização daquela concreta intervenção médica.
III - Em termos de culpa, se não fluem da factualidade assente quais os concretos procedimentos que o médico levou a cabo durante a intervenção cirúrgica, de modo a poder-se concluir no sentido da observância, ou não, das “leges artis” e de uma atuação diligente, ou não, durante aquela intervenção, ter-se-á que concluir por uma situação de dúvida insanável que é resolvida pela presunção de culpa prevista no nº 1 do art. 799º do Cód. Civil.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 289/12.2TVPRT.P1
Comarca do Porto – Juízo Central Cível do Porto – Juiz 4
Apelação
Recorrentes: “B... – Companhia de Seguros, SA” e C… (recursos principais); D… (recurso subordinado)
Relator: Eduardo Rodrigues Pires
Adjuntos: Desembargadores Márcia Portela e José Igreja Matos
Acordam na secção cível do Tribunal da Relação do Porto:
RELATÓRIO
O autor D…, residente na Rua …, nº .., …, veio intentar ação declarativa sob a forma ordinária contra o réu C…, com domicílio profissional na Clínica E…, sita na Rua …, nº .., Porto, pedindo a condenação deste na quantia de 195.214,05€ a título de danos não patrimoniais e de 90.000,00€ a título de danos patrimoniais, tudo acrescido de juros desde a citação e até integral pagamento.
Para tal efeito, alega que o réu lhe efetuou uma cirurgia estética na zona abdominal – lipoaspiração – sem que tivesse tomado todos os cuidados que lhe eram exigidos, com o que lhe causou perigo de vida, bem como todo um conjunto de danos ulteriores, dores, angústia, tristeza.
A conduta do réu espelhou, na sua perspetiva, um comportamento negligente e imprudente.
O réu apresentou contestação, na qual pugnou pela não verificação de uma situação de erro médico e sublinhou o comportamento omissivo do autor que contribuiu quer para a ocorrência da lesão, quer para o agravamento dos danos. Por isso, pronunciou-se no sentido da improcedência da ação.
Simultaneamente, requereu a intervenção principal provocada da “F… – Companhia de Seguros, SA”, com a qual havia celebrado contrato de seguro referente ao exercício da sua atividade profissional de médico.
O incidente de intervenção principal foi admitido e a interveniente “F…” apresentou também contestação, na qual remeteu para a já apresentada pelo réu C….
Foi proferido despacho saneador, com seleção da matéria de facto assente e organização da base instrutória.
Efetuou-se perícia médico-legal.
Realizou-se audiência de julgamento com observância do legal formalismo.
Depois foi proferida sentença que julgou a ação parcialmente procedente, tendo condenado o réu e a interveniente a pagarem ao autor a quantia de 96.214,05€, a que acrescem juros de mora desde a citação no que toca à importância de 61.214,05€ e desde a prolação da presente sentença quanto à quantia de 35.000,00€, e em ambos os casos até integral pagamento.
Inconformados com o decidido, interpuseram recurso de apelação tanto o réu como a interveniente.
A interveniente “B… – Companhia de Seguros, SA” finalizou as suas alegações com as seguintes conclusões:
1. Os autos versam a questão da responsabilidade civil médica, visando o recorrido a fixação de indemnização por alegados danos patrimoniais e não patrimoniais que atribui à cirurgia de lipoaspiração abdominal e torácica realizada pelo R. médico.
2. No caso concreto, de acordo com o alegado, o dano traduz-se na alteração das condições de saúde do recorrido em virtude da perfuração do cego.
3. Os autos versam a questão da responsabilidade civil pela prática de ato médico, entendido o conceito como ato executado por um profissional de saúde que consiste numa avaliação diagnóstica, prognóstica ou de prescrição e execução de medidas terapêuticas.
4. O autor solicitou ao réu, mediante pagamento de um preço, a realização de uma cirurgia de lipoaspiração abdominal e torácica, pelo que estamos perante um contrato de prestação de serviços médicos.
5. Ao recorrido assistirá o direito à indemnização mediante a prova de que o dano foi causado pela falta de cumprimento ou cumprimento defeituoso da obrigação.
6. Quando o médico, por causa que lhe seja imputável não efetue, ou efetue defeituosamente, a prestação de cuidados de saúde a que se obrigou, causando danos ao doente, credor dessa prestação, por regra, constitui-se na obrigação de reparar o prejuízo causado – artigos 798.º e 562.º, ambos do Código Civil.
Como assim, é preciso que o facto do não cumprimento (ação ou omissão) se revista de ilicitude, a qual, no domínio da responsabilidade contratual, se traduz numa relação de desconformidade entre o comportamento devido, que seria necessário para a realização da prestação devida, e o comportamento tido pelo agente (artigo 762.º do Código Civil).
7. A responsabilidade extracontratual surge como consequência da violação de direitos absolutos, que se encontram desligados de qualquer relação pré-existente entre o lesante e o lesado (obrigação de indemnizar em consequência de um acidente de viação, por exemplo), a responsabilidade contratual pressupõe a existência de uma relação intersubjetiva, que atribuía ao lesado um direito à prestação, surgindo como consequência da violação de um dever emergente dessa mesma relação (caso típico de um contrato).
8. Nesta conformidade, aceita-se que a responsabilidade civil médica admite ambas as formas de responsabilidade referidas. É que o mesmo facto poderá, ao mesmo tempo, representar a violação de um contrato e um facto ilícito extracontratual.
9. Em situações de concurso entre uma e outra das responsabilidades, e não olvidando que em última análise toda a responsabilidade civil radica num princípio geral de “neminem laedere”, surgindo a responsabilidade contratual como uma das aplicações possíveis deste princípio, a resposta deve encontrar-se no regime da responsabilidade contratual, entendendo-se que esta subsume a responsabilidade extracontratual (acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27 de setembro de 2012, processo n.º 512/10.8TCFUN.L1-2, sendo relatora Teresa Albuquerque).
10. A atuação do médico perante o doente/paciente pode, nuns casos, reconduzir-se às obrigações de meios e, noutros, às obrigações de resultado, dependendo o enquadramento numa ou noutra da ponderação casuística da natureza e do objetivo do ato médico (acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 17 de junho de 2014, processo n.º 11279/09.2TBVNG.P1, sendo relator M. Pinto dos Santos).
11. «É de considerar que em especialidade como medicina interna, cirurgia geral, cardiologia, gastroenterologia, o especialista compromete-se com uma obrigação de meios – o contrato que o vincula ao paciente respeita apenas às legis artis na execução do ato médico; a um comportamento de acordo com a prudência, o cuidado, a perícia e atuação diligentes, não estando obrigado a curar o doente.
Mas especialidades há que visam não uma atuação direta sobre o corpo do doente, mas antes auxiliar na cura ou tentativa dela, como sejam os exames médicos realizados, por exemplo, nas áreas da bioquímica, radiologia e, sobretudo, nas análises clínicas» (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 17 de junho de 2014, processo 1279/09.2TBVNG.P1, sendo relator M. Pinto dos Santos).
12. Independentemente do facto de a lipoaspiração a realizar ter ou não fins terapêuticos ou curativos, esta cirurgia traduz-se numa intervenção de natureza invasiva, na qual o organismo do paciente não é indiferente para o resultado e escapa ao controlo do médico que ao aceitar fazer a lipoaspiração apenas se obrigou a desenvolver e desempenhar a sua atividade colocando o seu saber à disposição do autor para assim alcançar o fim pretendido.
13. No caso em apreço, provou-se que o autor submeteu-se a uma cirurgia de lipoaspiração abdominal e torácica; que a perfuração do intestino decorreu durante a cirurgia; que o cego estava eventrado, como sequela de apendicectomia anterior; que houve libertação de fezes e que o conteúdo fecaloide foi observado em ambas as fossas ilíacas, não tendo entrado na cavidade abdominal, caso em que teria provocado peritonite.
14. Pelo que, o réu médico não pode ser responsabilizado civilmente com base em incumprimento contratual ou cumprimento defeituoso.
15. Para a procedência da ação impunha-se a demonstração de algum comportamento do médico que, objetivamente considerado se mostrasse contrário ao Direito, com desconformidade entre a conduta devida e o comportamento observado.
16. Na opinião da ora recorrente, da matéria assente não se consegue descortinar o que o médico fez e não deveria ter feito ou o que não fez e deveria ter feito.
17. Não é suficiente a alegação e prova do dano. É necessário provar a desconformidade objetiva entre os atos praticados pelo médico e os que lhe são exigíveis, atendendo à situação concreta do paciente. No campo da medicina, essa desconformidade objetiva que é a ilicitude, afere-se pela violação das leges artis. Significa portanto, que a ilicitude na atuação do médico traduz-se no comportamento que aquele tenha tomado que contrarie as guide lines e standards de atuação clínicos, atendendo à situação concreta.
18. Não resulta da matéria de facto provada nenhum comportamento que o R. devesse ter tomado em obediência às boas práticas médicas atendendo ao caso concreto. O que vale por dizer que não existe nenhum facto ilícito gerador do dever de indemnizar.
19. «Na responsabilidade contratual por negligência em ato médico, compete ao lesante provar a não culpa, mas a ilicitude da atuação deve ser provada pelo lesado.
Ilicitude e culpa no ato médico danoso são conceitos diferentes, indicando o primeiro o que houve de errado na atuação do médico e o segundo se esse erro deve ser-lhe assacado a título de negligência» (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de setembro de 2011, processo 674/2001P.L.S1, sendo relator Bettencourt de Faria).
20. Ao decidir diferentemente, o douto acórdão sob recurso violou as disposições dos artigos 483.º, 798.º, 799.º e 342.º, do Código Civil.
21. Se se entender não assistir razão à recorrente, contrariamente ao que aqui se defende e que se admite por mero dever de patrocínio, o presente recurso destina-se ainda à reapreciação por este Tribunal da douta sentença no que concerne à indemnização fixada para ressarcir os danos não patrimoniais e o dano decorrente do défice funcional permanente de que ficou o recorrido a padecer.
22. Atendendo às particularidades do caso concreto, em primeira instância entendeu-se adequado fixar €60.000,00 para ressarcir os danos decorrentes do défice funcional permanente de que o recorrido ficou a padecer.
23. O tribunal fixou em €5.000,00 o valor da retribuição, teve ainda em consideração os 5% de défice funcional permanente e atendeu à idade do recorrido à data do acidente, 53 anos e 11 meses, e a uma perspetiva média de vida até aos 77,75 anos.
24. Resulta dos doutos acórdãos proferidos pelo Supremo Tribunal de Justiça em 15 de março de 2012, nos processos 4730/08.0TVLG.L1.P1 e 5064/06TBRG.G1.S1, sendo relator em ambos João Trindade, que a esperança média de vida se situa nos 75 anos de idade.
25. Ficou provado que “O autor aufere, sem dificuldade em obter clube que os pague, quantia não inferior a €5.000,00 mensais líquidos como treinador de futebol”.
26. O défice funcional permanente de que o recorrido padece não tem repercussão na sua retribuição efetiva, apenas implica um esforço suplementar para o exercício da sua actividade habitual.
27. «O dano biológico expresso no grau de incapacidade de que o lesado fica a padecer, e quando não interfere na capacidade de ganho (se for o caso pode ter lugar a indemnização pelo dano patrimonial reflexo que dele decorre), antes determinando a necessidade de um esforço acrescido para viver e para todas as atividades diárias, levando a uma diminuição da qualidade de vida em geral, é igualmente grave para quem exerce um profissão remunerada com €5.000,00 ou com €500,00 sendo a dimensão do direito à saúde que está em causa e que é, tal como o direito à vida, igual para qualquer ser humano.» (Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 4 de junho de 2013, proferido no processo n.º 2092/11.8T2AVR.C1, sendo relator Maria Inês Moura).
28. Na busca do tratamento paritário, no cálculo que efetue, o julgador terá que partir de uma base uniforme que possa utilizar em todas as situações, para depois temperar o resultado final com elementos do caso que eventualmente aconselhem uma correção, com base na equidade. Só assim será possível uniformizar minimamente o tratamento conferido ao lesados, afigurando-se razoável que se tome por base um rendimento de €850 x 14 (correspondendo ao salário médio auferido em Portugal) (acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 19 de março de 2018, sendo relator Miguel Baldaia Morais, proferido no processo 1500/14.0T2AVR.P1).
29. Tendo por referência um rendimento anual de €11.900,00, a indemnização a arbitrar deve corresponder a um capital produtor do rendimento que se extinguirá no termo do período provável de vida do lesado, determinado com base na esperança média de vida, com uma dedução que se pode estimar em ¼, dado o facto de ocorrer uma antecipação do pagamento de todo o capital.
30. Considerando que o autor ficou afetado de um défice funcional permanente de 5 pontos, o valor anual corresponde a €1.295,00 (€850,00 X 14) X 5%, o que permitiria alcançar ao fim de 22 anos de vida (considerando, neste ponto, que à data do acidente o autor contava 53 anos de idade e a esperança média de vida situada nos 75 anos) o montante de €28.490,00, apurando-se o valor de €21.367,45 após o apontado desconto de ¼.
31. Ao fixar a indemnização derivada do défice funcional permanente de que o recorrido padece em €60.000,00, fez o tribunal errada interpretação e aplicação do artigo 566.º, n.º 3, do Código Civil.
32. Existem danos não patrimoniais sempre que é ofendido objetivamente um bem imaterial, cujo valor é insuscetível de ser avaliado pecuniariamente.
33. E o montante da indemnização, nos termos dos artigos 496.º, n.º 3 e 494.º do Código Civil, será fixado equitativamente pelo tribunal, que atenderá ao grau de culpa do lesante às demais circunstâncias que contribuam para uma solução equitativa, bem como aos critérios geralmente aditados pela jurisprudência e às flutuações do valor da moeda (ALMEIDA COSTA, Direito das Obrigações, 5ª edição, Coimbra, 1991, págs. 484 e 485).
34. As lesões e o sofrimento intrínseco do recorrido não assumem a gravidade que é traduzida pelo valor compensatório fixado, isto atendendo às situações apreciadas e valorizadas pela jurisprudência mais recente.
35. As circunstâncias específicas do caso concreto demandam uma ponderação do montante equivalente a uma compensação digna de todo o sofrimento, sem olvidar que a mesma se dirige, primordialmente, para satisfação do próprio lesado, na perspetiva de minimizar a sua dor e as suas perdas, por isso se impõe que seja séria e que corresponda à dignidade dos valores lesados mas, por outro lado, levando em consideração a relatividade de cada caso e as circunstâncias da vida que evidenciam, quotidianamente, que valores mais elevados são infringidos.
36. Para alcançarmos esta harmonia importa considerar os critérios jurisprudenciais como forma de evitar desigualdade, apelando à dimensão e abrangência dos valores imateriais efetivamente tutelados.
37. Assim sendo, à luz dos critérios jurisprudenciais mais recentes (atente-se nos acórdão citados no corpo destas alegações) crê-se que a indemnização arbitrada em primeira instância é excessiva, tendo o tribunal feito errada aplicação e interpretação do disposto no artigo 496.º, do Código Civil.
Pretende assim a recorrente a revogação da sentença recorrida com a sua substituição por outra de natureza absolutória. Se assim não se entender, pugna pela alteração do montante indemnizatório que reputa de exagerado.
Por seu turno, o réu C… finalizou as suas alegações com as seguintes conclusões:
1. A sentença recorrida, conclui que o réu deveria ter realizado exames complementares de diagnóstico TAC ou RMN, antes da cirurgia. Porém,
2. Nenhuma da matéria dada como provada, aponta para a necessidade da realização de tais exames complementares.
3. Tal conclusão contradiz a Consulta Técnico-Cientifica do Conselho Legal (fls 476 a 478), que aponta para a necessidade de tais exames complementares “na suspeita clínica dessa eventualidade”;
4. Não existia tal suspeita, tal como refere a sentença recorrida “Se por força da alegada ausência de sintomas por parte do autor…”;
5. Da matéria dada como provada, nenhum facto é dado como provado que o A. tivesse sinais de sintomas na consulta pré-operatória: tumefação abdominal anormal, dores, alterações do trânsito intestinal, meteorismo (gases com emissão de sons locais), entre outros, dependendo da gravidade da hérnia e se está encarcerada ou estrangulada.
6. Nenhuma testemunha confirmou a necessidade de tais exames complementares, no caso “sub-iudice” e a desnecessidade de tais exames é confirmada pelos testemunhos da Dra. G… na sessão de 11/10/2018, minuto 00:00:01 a 01:34:30, Dr. H… sessão de 11/10/2018, Minuto 00:00:01 a 00:43:01 e pelo perito Prof. Dr. I… sessão de 01/10/2018, Minuto 00:00:01 a 01:01:02.
7. Ainda, pela testemunha J…, na sessão de 08/10/2018, minuto 00:00:01 a 00:13:55, que acompanhou a carreira profissional do A. por vários anos, nomeadamente antes do pré-operatório, refere que o nunca viu o A. com queixas ou dores abdominais e confirma que o mesmo “respirava saúde”.
8. E finalmente, ao perito Médico-Legal que realizou a perícia no INMLCF, IP, o Autor também não referiu qualquer quadro doloroso da região abdominal, como se prova na transcrição do relatório pericial a fls 495: “A informação sobre o evento, a seguir descrita foi prestada pelo examinando [Autor]” e que a linhas 14 e 15 da mesma fls descreve que o “[Autor] não tinha problemas de saúde relevantes”
9. Nestes termos, somos a concluir que ao réu não era exigível a realização de qualquer exame complementar de diagnóstico, por causa de uma cicatriz aderente e porque o Autor não apresentava qualquer sintomatologia relacionada com a mesma, tão pouco era exigível a realização de uma TAC ou RMN.
10. Os factos provados em UUU) e VVV) deverão ser dados como não provados, ao invés do que faz a sentença recorrida, pelas razões seguintes:
11. O facto dado como provado UUU), correspondia ao quesito 72 da base instrutória com a seguinte redacção: “Assim a perfuração deveu-se a uma má posição do cego provocado por uma aderência a uma cicatriz da parede abdominal?”, tendo merecido a seguinte conclusão (cfr. fls. 6 da sentença recorrida): “Provado apenas que havia um trajecto da pele até ao cego que estava aderente à parede abdominal.”
12. A “consulta técnica-científica” subscrita pelo Sr. Prof. Dr. I…, que deu entrada no processo em 22 de Maio de 2017”, que nega peremptoriamente a versão do facto provado UUU:
72 – Assim, a perfuração deveu-se a uma má posição do cego provocado por uma aderência a uma cicatriz da parede abdominal?
Ver 22-, 64-, 65-. A presença do cego, a existir, ficou a dever-se a má cicatrização da parede abdominal após apendicectimia, o que facilitou a sua herniação para o espaço sub-cutâneo.
Por economia transcreve-se as perguntas e respostas, aos quesitos 22, 64 e 65
22 - Os factos referidos nas questões anteriores, nomeadamente a perfuração do cego, …, estão directamente correlacionados com a conduta do réu?
Não nos foi facultada descrição operatória realizada no dia 27/11 com especificação do tipo, grau de lesão do cego e a sua localização em relação à anterior cicatriz de apendicectomia, nem a forma como foi tratada – se houve lugar a ressecção de órgão deveríamos ter acesso ao relato Anatomo - patológico.
A existir uma eventração resultante de anterior apendicectomia, o cego pode ter ficado fixado sob a área de retração cutânea (descrita da ficha do doente) e, não sendo a lipoaspiração realizada sob visão directa, pode ter ocorrido uma lesão insuspeitada.
64 – A perfuração do intestino é uma complicação rara?
A perfuração para ocorrer implica que o intestino não esteja totalmente na cavidade abdominal, como parece ter ocorrido neste caso.
65 – Mas está descrita como uma complicação da lipoaspiração?
Sempre que o intestino não esteja totalmente na cavidade abdominal e se interponha no campo operatório (espaço sub-cutanêo) na região sujeita a este tipo de intervenção, esta complicação pode ocorrer;
13. Assim, o que estava aderente era a pele à parede muscular e é este o conceito de cicatriz aderente, tal como tão bem se deduz, de uma forma explícita e cristalina dos esclarecimentos do Perito Prof. I… na sessão do dia 01/10/2018, minuto 00:00:01 a 01:01:02;
14. Será de relevar que na região cicatricial ou adjacente à mesma, não foi feito prova da sua exata localização e relação com a cicatriz de apendicectomia, mas localizando-se na fossa ilíaca direita, admite o Réu/recorrente que, provavelmente, realizou uma perfuração do cego ou, pelo menos, ter fragilizado a sua parede externa com rotura secundária, por este se encontrar fora da cavidade abdominal, herniado/eventrado, sem dar qualquer mal-estar ao Autor, nem apresentar qualquer sinal que levasse o Réu/recorrente a suspeitar de tal situação.
15. Tal como confirmado na resposta ao quesito 22, fls 476 a 478, da Consulta técnico-científica: “Não nos foi facultada descrição operatória realizada no dia 27/11 com especificação do tipo, grau da lesão do cego e sua localização em relação à anterior cicatriz de apendicectomia (...). Compulsados os autos, a fls. 625 – Relatório operatório, documento que foi remetido ao processo apenas em 24-11-2017, em nada esclarece a dúvida colocada pelo Perito relator do Conselho Médico-Legal.
16. A sonegação dessa prova ao Tribunal, se é um direito potestativo do Autor, limita o princípio de igualdade de armas do processo, violando o consagrado no art. 13º da CRP, impedindo um processo justo e equitativo, violando o art. 4º do CPC, o art. 6º da CEDH e o art. 10º DUDH, assim como o n.º 4 do art. 20º da CRP. Apesar de requerido pelo réu e pelo INMLCF.IP, a junção aos autos dos relatos cirúrgicos a que o Autor foi submetido os mesmos nunca foram oferecidos aos autos.
17. Nestes termos, não pode ser dado como provado o facto VVV, que corresponde ao facto 73º da base instrutória, da matéria dada como provada: “Esta era sequela de uma apendicectomia anterior” e ainda pelos seguintes motivos:
i) A cicatriz aderente tinha sido descolada pela cirurgia efetuada pelo réu; e, sobretudo,
ii) porque aquela cicatriz já tinha sido objeto de uma tentativa de correção, ao que parece frustrada, como confessa o Autor no seu depoimento de parte na sessão do dia 8/10/2018, minuto 00:00:01 a 01:10:42.
18. Portanto, a cicatriz da pele que o Autor apresentava no abdómen não era uma consequência da apendicectomia, mas a cicatriz resultante da correção de uma cicatriz de apendicectomia anterior.
19. Assim, atendendo a que a cicatriz cutânea já tinha sido alvo de uma correcção anterior, deixou de se verificar o continuum de tecido fibrótico desde a pele até à parede abdominal, e muito menos ao cego, em consequência de apendicectomia realizada na adolescência do Autor. Sem prescindir,
20. No relatório operatório assinado pelo Dr. K… e pela Directora Clínica Dra. L…, doc. a fls 625, descreveram que “Tendo-se observado (...) na fossa ilíaca direita exteriorização de ansa intestinal”;
21. E ainda no sentido da existência de uma hérniação, pode-se verificar que no Relatório Clínico elaborado pela testemunha M…, cirurgião plástico no Hospital N… e que também tratou o Autor, refere “sob a área necrosada à direita foi possível identificar um prolapso de uma víscera oca, que pela laparotomia se constatou ser o cego”, (doc 2 da PI);
22. Ainda o perito médico Prof. Dr I… baseado na documentação a que teve acesso, foi conclusivo em interpretar que havia uma ansa intestinal em posição anómala, acima do plano músculo-aponevrótico, localizando-se no seio do tecido celular subcutâneo.
23. E, por consequência, dessa hérnia imprevisível e porque “não sendo a lipoaspiração realizada sob visão direta, pode ter ocorrido uma lesão insuspeitada”, nas palavras do Relator do Conselho Médico-Legal na resposta ao quesito 22 da Consulta Técnico Científica (fls. 476 a 478).
24. Nestes termos, não podem ser dados como provados os factos narrados no ponto UUU na parte “Havia um trajeto de pele até ao cego que estava aderente à parede abdominal”, nem no ponto VVV.
25. Por sua vez o facto dado como provado em JJJJ) é inconciliável e contraditório com o facto dado como provado em UUU), porquanto:
26. Foi dado como provado a matéria constante do facto JJJJ: “(...) e na fossa ilíaca direita havia exteriorização de ansa intestinal”.
27. Significa este facto dado como provado que há uma exteriorização da ansa intestinal que, por definição, quer dizer que há uma hérnia ou esventração, ou seja que a víscera está fora da cavidade abdominal.
28. Em versão oposta encontra-se a matéria dada como provada em UUU) que significa que não há exteriorização da ansa intestinal e o intestino se contém dentro da cavidade abdominal e, por consequência não existe hérnia ou esventração.
29. Pelo exposto, pelos depoimentos prestados, pelos relatórios operatórios constantes dos autos e pelo relatório da Perícia tudo supra transcrito e/ou documentalmente citado, somos de concluir que deve ser dado como provado que o cego ocupava uma posição anatómica anómala, sem produzir qualquer tipo de sintomatologia, o que significa que o Autor padecia de uma hérnia ou eventração insuspeita.
30. Assim sendo, facto dado como provado e JJJ é contraditório com o facto dado como provado em UUU, e impõe-se, também por esta via, que este Venerando Tribunal dê como não provado o facto da matéria dada como provada em UUU).
Noutra vertente,
31. Como ficou plenamente esclarecido (cfr. Peritagem citada) e provado, mas não valorado pelo tribunal a quo, que não é normal que o cego nem qualquer outra víscera, após uma apendicectomia, fique aderente à parede interna da cavidade abdominal e muito menos que hernie/eventre pela incisão de apendicectomia porque o cego está normalmente aderente ao plano posterior do peritoneu parietal (“costas”), conforme descrição em qualquer livro de anatomia e de acordo com a transcrição do depoimento Prof. I…, na sessão de 01/10/2018) Minuto 00:00:01 a 01:01:02.
32. Quer se trate do cego ou de outra víscera abdominal, a eventração através da cicatriz de apendicectomia é muito rara, sendo de 0,7% para ambos os sexos, que apresentem queixas clínicas, sendo que a incidência é maior no sexo feminino, como se pode ler no artigo citado na questão 6ª do parecer complementar do Conselho Médico Legal. De acordo com esclarecimentos do Senhor Perito Professor I…, membro do Conselho Médico Legal, estes 0,7% referem-se a doentes que apresentavam sintomas, sendo provavelmente muito inferior nos doentes assintomáticos, como decorre dos depoimentos transcritos do Prof. I…, na sessão de 01/10/2018) Minuto 00:00:01 a 01:01:02 e do Dr. M…, na sessão do dia 04/10/2018, minuto: 00:00:01 a 01:04:00.
33. Não havendo nenhum dado clínico que leve o cirurgião, recorrente, a suspeitar da existência que uma víscera está fora da sua localização anatómica típica, pode ocorrer a sua perfuração de uma forma insuspeita.
34. O que nas palavras da testemunha Dr. H…, cirurgião plástico, no caso dos autos, tratava-se de uma cicatriz “armadilhada” (na sessão do dia 11/10/2018, minuto 00:00:01 a 00:43:01).
35. Nos termos das declarações das testemunhas, dos esclarecimentos e do relatório do Conselho Médico-Legal e dos documentos anexos aos autos, tem forçosamente de ser dado como provado a existência de uma hérnia insuspeita na fossa ilíaca direita do Autor.
36. Desta forma o facto provado como XX) (ou quesito 22 da base instrutória), deverá ser dado como provado mas com o esclarecimento “dada a existência de uma hérnia insuspeita na fossa ilíaca direita do Autor”.
Ainda noutra vertente,
37. A sentença recorrida ao concluir “...quer aquando da deslocação a casa do autor, em nenhum momento considerou a hipótese de ter havido uma complicação que extravasasse as normais dores do pós-operatório, dores essas que não são confundíveis sequer com as hipoteticamente decorrentes da algaliação...”, vai ao arrepio de toda a prova produzida nos autos. Assim,
38. Ficou claramente demonstrado que a fasceíte necrotizante é a evolução natural de uma celulite não tratada. Sendo a celulite o primeiro quadro infecioso a se instalar, os primeiros sinais e sintomas de alerta nunca surgem antes do 2º, 3º dia, a saber: dor, tumor (edema), calor e rubor, os chamados sinais cardinais de Célsius.
39. Mais ficou provado que a percepção da dor depende de pessoa para pessoa e que, por si só, não permite fazer o diagnóstico do que quer que seja.
40. Finalmente, ficou provado que o R. apenas observou o A. no primeiro dia do pós-operatório, nunca mais o tendo observado.
41. Nestes termos, não era exigível ao Réu, assim como não era exigível aos médicos da Casa de Saúde O… (note-se que o Autor foi observado por dois médicos nesta instituição) o diagnóstico de celulite, sendo a dor que o Autor apresentava, em volta do umbigo e na zona “aspirada”, é um sintoma inespecífico, cuja intensidade é valorada de forma diferente de pessoa para pessoa.
42. Tendo as supra conclusões de n.º 37 a 41, ilididas dos depoimentos do Perito Prof. I…, na sessão do dia 1/10/2018, minuto 00:00:01 a 01:01:02, da testemunha Dra. G…, na sessão de 11/10/2018, minuto 00:00:01 a 01:34:30, da testemunha Dr. P…, sessão do dia 11/10/2018, minuto: 00:00:01 a 01:01:20, da Testemunha Dr. H…, sessão do dia 11/10/2018,minuto: 00:00:01 a 00:43:01, da testemunha Dr. K…, sessão do dia 11/10/2018, minuto:00:00:01 a 00:41:54, e mesmo o A. na sessão de 08/10/2018, minuto 00:00:01 a 01:10:42, nos trechos que a este título supra foram transcritos.
43. Fica, pois, claramente demonstrado que o Réu quer nos elementos preparativos da cirurgia, quer na execução da cirurgia e na avaliação pós-operatória cumpriu as leges artis, não havendo qualquer erro em nenhum dos atos médicos praticados, de resto, não resulta da matéria dada como provada nenhum comportamento que o réu deveria ter tomado em obediência à artis legis, pelo que inexiste qualquer ilícito.
44. Finalmente, e ainda em matéria dada como provada, verifica-se que a sentença recorrida não pondera o agravamento dos danos do A., foram provocados por ele próprio, ao não recorrer como devia, face aos sintomas que apresentava, no próprio dia 26 de Novembro de 2009, face à matéria provada e constante das alíneas W), X), Y), AA) e BB) colaboradas com os testemunhos do A. D…, na sessão de 08/10/2018, minuto 00:00:01 a 01:10:42, da testemunha Dr. Q…, na sessão do dia 04/10/2018, minuto 00:00:01 a 00:49:19, testemunha Dra. S…, na sessão do dia 04/10/2018, minuto 00:00:01 a 00:29:30 e testemunha Dra. G…, na sessão de 11/10/2018, minuto 00:00:01 a 01:34:30, nos trechos que a este título supra foram transcritos.
45. A dar-se como provada e não provada a matéria constante das supra alegações quanto à matéria de facto, ter-se-á de, necessariamente se concluir pela revogação da sentença “a quo” e julgar-se a acção improcedente, e consequentemente absolver-se o Réu do pedido.
Sem prescindir, ainda se dirá:
46. Os documentos n.ºs 1 e 2 juntos com a petição inicial e o documento inserto a fls 625, são documentos autênticos, pelo que fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público (art.ºs 369 e 371.º do C.C.).
47. Se, porventura, apenas for considerado documento particular, como não resta dúvida de quem os produziu, eles fazem prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, já que nenhuma das partes argui a falsidade do documento, de acordo com o n.º1 do artigo 376º do C. Civ.
48. E, sendo certo que a sentença valora tais documentos, nomeadamente dando como provado os factos constantes da alínea JJJJ), a verdade é que erradamente também dá como provado o facto constante da alínea UUU), e apenas valoriza esta última matéria, ao referir a fls. 46 da sentença, que “resultou provado que por força do trajeto da pele ao cego, que estava aderente à parede abdominal, e sendo certo que a cicatriz ia da pele até à base do cego, este foi perfurado pelo réu. Ora, afigura-se manifesto que se tem de considerar preenchido e provado o requisito da ilicitude, face a esta circunstância, pois a perfuração é absolutamente estranha ao cumprimento do contrato”.
49. Ora, os factos provados por documentos ou que estejam plenamente provados, não estão sujeitos à livre apreciação da prova, nos termos da 2ª parte do n.º 5 do art. 607º, do CPC..
50. Assim, Se o Mm Juiz a quo tivesse valorado a prova documental, prova plena, teria chegado à conclusão lógica, quer do ponto de vista médico quer da experiência humana, que o cego tinha sido perfurado por se encontrar herniado/eventrado no tecido celular subcutâneo, sem nunca ter provocado qualquer sintomatologia ao Autor, portanto, podendo ser suscetível de uma lesão insuspeita, tal como afirmado no Relatório complementar do parecer do Conselho Médico-Legal.
51. De salientar que apenas foi entregue 1 (UM) relatório operatório de Cirurgia Geral, apesar do Autor ter sido submetido a várias intervenções cirúrgicas por Cirurgia Geral no Hospital N…, os outros nunca foram juntos aos autos.
52. A junção destes documentos, com informação sensível, nos termos dos nºs 1 e 2 do art. 7º da lei n.º 67/98, em vigor à data da ocorrência, somente é possível com o consentimento do lesado, pelo que é um ónus de prova exclusiva do Autor. Só com a junção destes documentos poderia o réu fazer contraprova se as intervenções a que foi sujeito, apesar de ser consideradas live saving, não contribuíram, por excesso, para agravar os danos do Autor, assim como deveriam esclarecer qual o tratamento que foi efetuado ao cego herniado/eventrado.
53. Apesar de requerido pelo réu e pelo INMLCF.IP, a junção aos autos dos relatos cirúrgicos a que o Autor foi submetido os mesmos nunca foram oferecidos aos autos. A sonegação dessa prova ao Tribunal, embora um direito potestativo do Autor, limita o princípio de igualdade de armas do processo, violando o consagrado no art. 13º da CRP, impedindo um processo justo e equitativo, violando o art. 4º do CPC.
54. Já relativamente à prova pericial realizada pelo INMLCF, IP e à consulta técnico-científica realizada pelo Conselho Médico Legal, a prova está sujeita ao princípio da livre apreciação da prova, nos termos do artigo 389º do C.Civ, porém,
55. Como refere, no seu sumário, o acórdão do TRL, processo n.º 949/05.4TBOVRA.L1-8, DE 11-03-2010: “O juízo técnico e científico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador; o julgador está amarrado ao juízo pericial, sendo que sempre que dele divergir deve fundamentar esse afastamento, exigindo-se um acrescido dever de fundamentação”.
56. Ora, não se pode considerar fundamentação o vertido na página 8 da sentença: “de referir que o relatório do Conselho Médico-Legal não revestiu o carácter de clareza e profundidade que seriam expectáveis, mais a mais se considerarmos a dilação temporal que o mesmo importou, lacuna que a prestação de esclarecimentos não supriu”.
57. Como refere o “Comentário ao Código Civil, Parte Geral”, Universidade Católica Editora, pag. 883, 2014, “Esse juízo crítico não poderá consistir num exercício arbitrário de afastamento ou desconsideração do relatório pericial, mas numa cuidada apreciação dos pressupostos e conclusões da perícia para, em consequência, justificar a adesão ou rejeição, no todo ou em parte, dessas conclusões”.
58. De acordo com o nº 1 do artigo 4º do Regulamento de Deontologia Médica, Regulamento n.º 707/2016, de 1 de julho “o médico deve exercer a sua profissão de acordo com as leges artis com o maior respeito pelo direito à saúde das pessoas e da comunidade”; e
59. De acordo com a alínea b) do artigo 13º do Estatuto da Ordem dos Médicos, na redação do Decreto-Lei n.º 282/77, de 5 de julho, (entretanto revogado) [são deveres dos médicos “cumprir as normas deontológicas que regem o exercício da profissão de médico”.
60. No caso sub judice, o Réu obrigou-se a realizar uma lipoaspiração do abdómen e tórax e a corrigir uma cicatriz abdominal.
61. O contrato que vinculou o réu ao Autor, respeitou, como já demonstrado, as leges artis tanto nos preliminares da cirurgia, como na execução como na avaliação pós-operatória, tendo o Réu uma conduta prudente, cuidadosa, atuando com perícia e a diligência exigidas.
62. Nestes termos, a complicação ocorrida não decorre da violação das leges artis, nem da falta de zelo, perícia ou cuidado devidos, mas como descreveu a testemunha H… através de uma figura de estilo apropriada: “o doente estava armadilhado com uma hérnia”.
63. O Réu, no cumprimento das leges artis não podia nem devia saber (porque não tem poderes divinos!) da existência de uma hérnia insuspeita e imprevisível na sua forma de apresentação e da sua eventual perfuração, já que os seus sinais e sintomas só surgem após a infeção dos tecidos adjacentes, o que só surge ao 2º, 3º ou 4º dia, dependendo do grau dos agentes infetantes e da resposta imunitária do Autor.
64. Segundo o propalado nesta sentença, o que defende o juiz do Tribunal recorrido é que os médicos exerçam uma “medicina defensiva”, o que vai contra o cumprimento das leges artis, com todas as consequências nefastas que daí advêm e que não é defendida pela Ordem dos Médicos, nem pela jurisprudência, conforme supra se citou.
65. Se nos socorremos da taxonomia de A. Vaz Carneiro, in Revista atrás citada, pp. 123, que define quatro tipos de eventos adversos, verificamos que no caso “sub iudice”, estamos perante “Um evento adverso não-prevenível que se define como um evento adverso inesperado, na ausência de qualquer erro (complicação cirúrgica, alergia medicamentosa, etc.)”;
66. Deste modo, não será difícil enquadrar-se a perfuração do cego e a consequente celulite e fasceíte necrotizante, cujos sinais e sintomas só ocorrem a partir do 2º, 3º ou 4º dia, como um evento adverso não prevenível.
67. A questão a dilucidar é se o evento adverso não prevenível deverá ser “punível”, sendo que a doutrina é de opinião que o evento adverso não prevenível não deve ser punível do ponto de vista penal e não deve ser responsabilizado pelo Direito Civil, pelo que subscrevemos a douta opinião de Maria do Céu Rueff supra citada.
68. Bem como a opinião da Professora …: “parece-nos que não se torna possível afirmar sem mais uma violação de cuidado da sua parte porque nem a melhor técnica, nem a precisão exemplar, podem afastar a possibilidade da ocorrência de determinados resultados que são mera expressão da álea própria de uma intervenção e da particularidade anatómica da pessoa humana” (padrão ou arquétipo de um cirurgião médio)”.
69. Desta forma podemos concluir, que o Réu atuou de acordo com as leges artis, com a prudência e diligência exigida, não podendo nem devendo ser apontado qualquer desvio da sua conduta devida, não lhe podendo ser imputada ilicitude aos seus atos, pelo que perfuração do cego em posição anatómica anómala imprevisível e insuspeita pelo Réu é, no mínimo, uma circunstância de exclusão de ilicitude.
70. Não havendo qualquer analogia entre o caso em apreço e o acórdão citado na sentença recorrida ACRP de 27/03/2017, processo n.º 7053/12.7TBVNG.P1.
71. De resto, não resulta da matéria dada como provada, nenhuma violação do R. às “artis legis”, que vale dizer que não existe nenhum facto gerador de ilicitude, pelo que deixam de se verificar os pressupostos de indemnização do lesado.
72. Porém, nos termos do n.º 2 do art. 799º do C.Civ., “A culpa é apreciada nos termos aplicáveis da responsabilidade civil”, ou seja, nos termos do n.º 2 do art. 487º, de acordo com o padrão do bonus pater familiae (reasonable doctor), ou seja de um médico medianamente formado, diligente e prudente.
73. Ora, tendo em conta os depoimentos das testemunhas Dr. M…, e do Dr. H…, não restam dúvidas que os mesmos teriam adotado o mesmo comportamento do Réu, podendo e devendo ser tomados como o padrão de médicos prudentes, pelo que também fica ilidida a presunção de culpa, ou seja, o Réu atuou sem ilicitude e sem culpa, não estando assim preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil, não havendo direito a indemnização por parte do Autor.
74. O A. face aos sintomas que apresentava no dia 26.11.2009, tinha a obrigação de recorrer imediatamente à urgência hospitalar, porém ao faze-lo com 24 horas de atraso e, ainda pelo facto de não ter contactado o réu, o Autor agravou, conscientemente, o seu estado de saúde, impossibilitando o diagnóstico e agravando as sequelas que veio a sofrer, havendo culpa do lesado, nos termos do disposto do n.º 1 do art. 570º do C. Civ.
75. Ao decidir como decidiu, o Tribunal recorrido violou, entre outras normas os art.ºs 347.º, 369.º, 371.º, 483.º, 798.º, 799.º, 342.º e 570.º, todos do Código Civil e art.º 607.º, n.º 5 do Código de Processo Civil.
Pretende assim a revogação da sentença recorrida e a sua substituição por outra que o absolva do pedido.
O autor apresentou contra-alegações e, simultaneamente, interpôs recurso subordinado.
Formulou as seguintes conclusões em sede de contra-alegações:
A.
i. O recurso apresentado pelo recorrente Réu assenta em meras alusões desconexas e incoerentes e extractos de afirmações e as conclusões que deles se extrai manifestamente subvertem o claro sentido da prova produzida quando considerada na sua totalidade e a inequívoca apreciação crítica feita pelo Meritíssimo Juiz a quo quanto ao seu valor e credibilidade
ii. O facto de as testemunhas citadas não conhecerem as dores sentidas pelo Autor nada quer dizer. Não se pode concluir não ter o Autor sofrido dor alguma pelo mero facto de não o ter confidenciado a nenhuma destas personagens.
iii. O Dr. K… não era o médico do Autor, mas sim da equipa que o Autor começou a treinar no ano em que se deram os factos em causa e ficou bem demonstrado que não é habitual a equipa médica das equipas de futebol assistirem os treinadores.
iv. Ainda que se entendesse que a cicatriz era assintomática, resulta da prova produzida nos autos que era possível saber se a cicatriz estava aderida ou não através da observação clínica, por apalpação. Há, assim, negligência do médico que não detecta a fragilidade óbvia do doente – ainda para mais, num médico tão experiente como o Réu.
v. Bem andou o Tribunal a quo na valoração e apreciação da prova, pelo que nenhuma censura ou reparo deve proceder.
B.
vi. No domínio da prova pericial civil, vigora o princípio da prova livre, não porque se entenda que o Juiz perceba mais de medicina do que o perito; mas porque se entende (e bem!) que o Juiz conhece melhor o processo; as suas vicissitudes e as suas peripécias.
vii. Apurou-se o decorrer dos esclarecimentos prestados pelo senhor perito que este nenhuma experiência tinha em lipoaspirações, o que sem dúvida justificou a sua incapacidade em prestar um esclarecimento claro e esclarecedor…
viii. Esta deficiente - ou inexistente - experiência do perito nomeado sobre a matéria em questão coloca em causa o juízo técnico e científico produzido, por conseguinte, o que no relatório vem vertido.
C.
ix. Resultou à saciedade da prova produzida, a ilicitude da conduta do Réu e a sua actuação culposa bem como o nexo de causalidade e danos provocados.
x. O Réu, podia e devia ter agido de outra forma.
xi. Posto que, como considerou o Tribunal a quo, i) a perfuração do intestino é absolutamente estranha ao cumprimento do contrato e ii) o Réu poderia e deveria ter realizado exames de diagnóstico para avaliar o significado e riscos da cicatriz evidenciada.
xii. O Réu não agiu com a diligência, zelo, prudência e cuidado a que estava obrigado quando não procurou a causa para umas dores tão lancinantes e anómalas no pós operatório.
xiii. Os médicos foram unânimes ao afirmar que as dores de uma algaliação, ainda que alegadamente complicada – embora tal complicação não conste do registo clínico -, não são confundíveis com as dores de uma lipoaspiração ou com as dores de uma perfuração do intestino!
xiv. A perfuração do intestino é uma complicação que pode ocorrer com uma probabilidade de 15%. Todavia, este risco pode ser evitado recorrendo a meios de diagnóstico como tomografia computorizada ou laparoscopia. Nenhum destes meios foi utilizado no caso sub iudice.
xv. Por outro lado, não se pode fazer recair sobre o paciente – sob a desculpa da sua formação académica – o ónus de prestar todos os esclarecimentos ao médico, sem que o médico diligencie ou demonstre a importância desses mesmos esclarecimentos. Compete ao médico saber que perguntas fazer.
xvi. O único ónus admissível de recair sobre o paciente é o de responder com verdade às perguntas do médico e não fazer as perguntas em vez do médico.
xvii. Considerando que está já devidamente estudada a maior fragilidade dos pacientes que sofreram uma cirurgia abdominal anterior perante o procedimento cirúrgico da lipoaspiração, exigir-se-ia outro comportamento a um qualquer médico, quanto mais um médico tão experiente como o réu.
xviii. Pese embora a dor seja um sintoma inespecífico, como várias vezes as testemunhas referiram; ela não pode ser menosprezada e, muito menos, pode ser confundída!
xix. É falaciosa a indicação de que o Autor foi observado por dois médicos na Casa de Saúde O…. Na realidade, estes limitaram-se a constatar que o Autor tinha sido intervencionado e aconselhado pouco tempo antes pelo Réu.
xx. Não é crível, à luz das regras da experiência, que o Réu não tenha atribuído importância às dores do Autor, posto que sendo o Réu “a pessoa na cidade com mais experiência”, se deslocou a casa do Autor, telefonou quer ao seu anestesista quer ao seu amigo e colega Dr. H… e interrompeu o jantar com este seu colega para novamente vir ver um paciente o qual supostamente estaria a ter uma dor normal do pós-operatório…
xxi. No entanto, se por um lado estava tão preocupado que ligou a quem podia, àquela hora, para falar sobre o sucedido; por outro lado, tal atitude preocupada não resultou numa qualquer procura pela causa daquelas dores absolutamente anormais num pós-operatório.
xxii. Não se concebe como verosímil que um médico tão experiente como o Réu, que realiza centenas de lipoaspirações por ano, ligue no fim de cada operação ao seu anestesista a relatar as dores sentidas pelos pacientes e para o seu colega ou interrompa sempre os seus jantares cada vez que os pacientes telefonam com dores…
xxiii. Por outro lado mas em sentido convergente, no âmbito da responsabilidade contratual não vigora per se o critério do homem-médio, posto que ao médico mais experiente exige-se que actue com uma diligência superior e um maior cuidado, o que se compreende face à relação contratual estabelecida; em contraponto com uma obrigação passiva universal característica da responsabilidade civil extracontratual.
xxiv. Não pode nem deve proceder a tese acerca da concorrência da culpa do lesado, construída pelo Réu com recurso, uma vez mais, a fragmentos de factos e declarações, adaptando os mais convenientes à sua tese, para tentar demonstrar que o Autor agravou o seu estado.
xxv. Note-se que a factualidade que o recorrente Réu transcreve como provada ao abrigo dos factos Z, Y e AA não é a que vem descrito nos factos X, Y e AA.
xxvi. Resulta, sem qualquer dúvida, da matéria de facto provada que o Autor se deslocou ao hospital N… no dia 27 de Novembro de 2009, ao contrário do que o recorrente Réu alega.
xvii. Bem sabe o recorrente Réu que o facto que alertou o Autor foi o inchaço e a cor dos testículos, por isso telefonou no dia 26 de Novembro de 2009 para o médico urologista que conhecia no N…, o Dr. Q…, que lhe deu a indicação para se deslocar ao Hospital no dia a seguir, pela manhã. O que o Autor cumpriu!
xxviii. Não era exigível que o Autor soubesse que o que via era consequência de uma lipoaspiração mal feita, que lhe perfurou o intestino, porquanto o médico que a fizera lhe tinha garantido nas suas deslocações a casa que a dor era normal e que tudo decorria dentro do normal. O Autor (que de medicina nada percebe) ao ver o inchaço e cor apresentada pelo escroto limitou-se a telefonar para o médico especialista que conhecia na Madeira.
xxix. Não se pode por isso conceder que após as garantias do Réu, (esse sim, médico e conceituado), de que estava tudo bem com o pós-operatório relativo à cirurgia de lipoaspiração, se queira assacar qualquer responsabilidade ao Autor por ter ligado ao urologista e cumprido o que este disse, dirigindo-se ao hospital no dia imediatamente a seguir.
xxx. Considerando que o Autor tudo fez, dentro dos seus conhecimentos, para ter o aconselhamento médico que considerava necessário, deve ser entendido que não podia ter agido de outra forma com a informação que dispunha.
xxxi. Não havendo por isso culpa na actuação do lesado.
xxii. Sem prescindir e pese embora tudo o já dito, se se entender que se deve aplicar o art. 570.º do Código Civil, deve então atender-se ao previsto no seu n.º 1.
xxxiii. Porquanto, a responsabilidade do Réu não se funda numa simples presunção de culpa, posto que esta está demonstrada ad nauseam.
xxxiv. Sabendo-se que o Réu podia e devia ter agido de forma distinta, então, como ensina ANTUNES VARELA, a culpa do agente é de tal forma grave em confronto com a actuação do lesado que não se justifica qualquer redução na indemnização.
xxxv. Relativamente aos danos patrimoniais, em especial, o dano biológico, entende o recorrido que o valor indemnizatório não deve ser alterado.
xxxvi. Em primeiro lugar, a idade de aferição da esperança média de vida deve ser fixada nos 77,7 anos de idade, como decidiu o Tribunal a quo, por se entender que a plataforma PORDATA, por ser independente e constantemente actualizada é a fonte mais segura e livre para efectuar essa determinação.
xxxvii. Em segundo lugar, porque mesmo não havendo uma perda ou diminuição de rendimentos, a incapacidade funcional permanente implica necessariamente um dano patrimonial, ainda que, futuro.
xxxviii. Em terceiro lugar, exactamente por ser um dano futuro deve-se recorrer a critérios de equidade para a fixação desse valor, não devendo o valor ser de tal forma escasso que torne a reparação meramente simbólica.
xxxix. Uma vez que o critério operativo é a equidade e não uma qualquer fórmula matemática sempre se terá de entender que, no seguimento daquilo que é jurisprudência pacífica, só deve a decisão do Tribunal a quo ser revogada se a solução exceder manifestamente determinada margem de liberdade decisória.
xl. Considerando o caso concreto, os seus intervenientes, as consequências da actuação ilícita e culposa do Réu, bem como o fundamento da decisão do Tribunal a quo, deve o montante indemnizatório a título de danos patrimoniais ser mantido integralmente.
xli. Por sua vez e quanto aos danos não patrimoniais, a recorrente Interveniente vem alegar que o montante fixado é exagerado.
xlii. Na realidade, o montante peca por escasso, como arguirá o Autor em momento oportuno, resultando da factualidade provada que os danos não patrimoniais sofridos pelo Autor superam, em muito os fixados na douta sentença revidenda.
xliii. Por tudo quanto vem sendo exposto, devem as alegações de recurso improceder, mantendo-se integralmente a decisão do Tribunal a quo.
Por seu turno, em sede de recurso subordinado, formulou as seguintes conclusões:
i. Os danos não patrimoniais fixados pelo Tribunal a quo são de tal modo escassos, que mais não são do que uma consagração quasi simbólica, que não pode proceder.
ii. Torna-se assim imperativo que a indemnização atribuída seja reajustada, para que se conforme com os critérios de justiça e razoabilidade que regem o critério de equidade que guiou a fixação do quantum indemnizatório.
iii. O recorrente sofreu dores lancinantes, principalmente nos dias 24 a 27 de Novembro de 2009; esteve em coma induzido; foi objecto de várias intervenções cirúrgicas, bem como de tratamentos profundamente dolorosos na câmara hiperbárica. Tudo por causa da actuação negligente do Réu. Considerando a amplitude destas dores, estas devem ser quantificadas em valor nunca inferior a €15.000,00.
iv. A este dano, terá necessariamente de acrescer o sofrido por causa do temor de perda de vida; a preocupação com a diminuição das suas capacidades cognitivas, quer em consequência do coma, quer em consequência das oito anestesias que suportou em seis semanas. Bem como, as implicações que todo este processo teve na vida do Autor e nas suas capacidades de liderança questionadas perante o grupo. Tais danos merecem a tutela do direito, devendo ser quantificados em valor não inferior a €35.000,00.
v. Importa ainda relevar, adequadamente, o dano estético com que terá penosamente de viver até ao fim dos seus dias. Que se reflecte não só na desfiguração da zona abdominal, como também na zona inferior do corpo por ter sido necessário efectuar vários enxertos de pele. Em resultado disto, o Autor teve de alterar as suas rotinas, por não mais se sentir confortável: durante muito tempo não frequentou praias, para não ter de se expor; nos treinos, passou a equipar-se num balneário sozinho e isolado da restante equipa técnica. Este dano deve ser quantificado em valor nunca inferior a €30.000,00.
vi. Para além do referido, o recorrente foi duramente criticado, sendo alvo de comentários jocosos e irónicos, por parte dos jogadores; do meio futebolístico e da comunicação social. Todo este vexame fê-lo perder autoridade e provocou no Autor um maior desgaste na execução da sua actividade. Também, por estes danos, deve o Autor ser indemnizado, em não menos do que €5.000,00.
vii. Por último, de igual modo, devem ser atendíveis as dores sofridas na recuperação de todo este processo, que não teria existido não fora a conduta negligente do Réu, ora recorrido, dano cuja compensação nunca deverá ser inferior a 5.000,00€.
viii. Só atribuindo a indemnização devida ao recorrente, a título de danos não patrimoniais, no valor peticionado de €90.000,00 se obtém a justiça possível para o caso sub iudice e se respeita a função punitiva, inerente à indemnização por danos não patrimoniais.
Pretende assim que se altere o montante indemnizatório fixado a título de danos não patrimoniais.
Cumpre então apreciar e decidir.
*
FUNDAMENTAÇÃO
O âmbito do recurso, sempre ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram.
*
As questões a decidir são as seguintes:
I - Impugnação da matéria de facto (recurso principal do réu C…);
II - Responsabilidade médica/Pressupostos da responsabilidade civil (recursos principais do réu C… e da interveniente “B…”);
III – Montantes indemnizatórios (recurso principal da interveniente “B…” e subordinado do autor D…).
*
É a seguinte a matéria de facto dada como provada na sentença recorrida:
A) No início do mês de novembro de 2009, após consulta médica com o réu, na Clínica E…, sita na Rua …, nº .., …. - … no Porto, onde este exerce a sua atividade, autor e réu acordaram em que este procedesse a uma cirurgia de lipoaspiração abdominal e torácica.
B) Tal ato médico que se iniciou com anestesia epidural e terminou com anestesia geral veio a ter lugar com a intervenção pessoal do réu no dia 23 de novembro de 2009, na Clínica E…, sendo que o réu foi assistido por uma enfermeira e uma anestesista.
C) Foi aplicado ao autor um colete de proteção.
D) No dia 24 de novembro de 2009, após retirados os drenos ao autor, o réu deu-lhe alta médica, nessa mesma data, e receitou-lhe o antibiótico “Augmentin” e o analgésico “Paracetamol”.
E) Já em casa, o autor sentiu dores intensas que motivaram a presença do réu para aí o observar, o que ocorreu por volta das dezanove horas desse mesmo dia.
F) Nessa visita, o réu observou o autor na zona intervencionada, tendo aquele concluído e garantido que estava tudo bem, e que as dores sentidas pelo autor eram normais após tal tipo de intervenção no domínio da cirurgia estética.
G) Por volta das cinco horas da madrugada do dia 25 de novembro de 2009 o autor, porque estava com muitas dores, deslocou-se à urgência da “Casa de Saúde O…”.
H) Após permanecer cerca de 3 horas na “Casa de Saúde O…” o autor regressou a casa.
I) No final do dia 25 de novembro de 2009, protegido com o colete de proteção, o autor viajou por via aérea até ao N….
J) Entre a interveniente e o réu foi celebrado um contrato de seguro titulado pela apólice nº …………., do ramo responsabilidade civil, pelo qual aquela seguradora garante a responsabilidade civil do réu inerente ao exercício da sua profissão de médico.
K) Resulta do artº 5º, alínea i), das condições gerais do contrato de seguro que este não garante a responsabilidade civil emergente de perdas indiretas de qualquer natureza, lucros cessantes e paralisações.
L) O autor era treinador da equipa do T….
M) O autor assinou documento, no qual dá o seu consentimento e no qual expressa designadamente: “A intervenção foi-me explicada em detalhe. Também foi referido a existência de métodos de tratamento alternativos e vantagens e desvantagens de cada um. Fui advertido que, embora se espere obter os melhores resultados, complicações e contratempos não podem ser previstos, e portanto não existe garantia expressa ou implícita quanto à minha satisfação ou resultado da cirurgia ou laser. O médico explicou-me quais são as complicações ou problemas mais comuns que podem surgir tanto durante a cirurgia ou tratamento laser, como no período de recuperação, os quais entendo perfeitamente”.
N) Aquando do internamento foi verificado “Choque séptico no contexto de fasceite abdomino - torácico e escrotal na sequência provável de lipoaspiração realizada quatro dias antes”.
O) Após estabilização, foi o autor, logo no dia 27 de novembro de 2009, intervencionado de urgência no bloco operatório, onde se verificou haver perfuração do ceco.
P) Aquando e por causa de tal intervenção, o autor necessitou de suporte respiratório e cardiovascular.
Q) Seguiram-se vários desbridamentos cirúrgicos levados a efeito pelas equipes de urgência de cirurgia geral do hospital acima referido.
R) Só em 3 de dezembro de 2009 se procedeu ao encerramento da cavidade abdominal e enxerto cutâneo da região anterior direita.
S) Em 9 de dezembro de 2009 procedeu-se a 2ª plastia com enxerto cutâneo.
T) Em 30 de dezembro de 2009 procedeu-se a “enxerto de áreas cruentas remanescentes”.
U) Na época de 2010-2011 o autor foi treinador do U….
V) O autor voltou a ser treinador do T… em meados de 2012.
W) No dia 26 de novembro, já na sua residência no N…, o autor sentiu que não tinha condições de se apresentar ao trabalho e acabou por permanecer em repouso nesta residência, no N….
X) Nesse mesmo dia, o autor começou a detetar um cheiro intenso e desagradável, pelos tubos de dreno e uma tumefação anormal na zona do escroto, sendo detetável inchaço nos testículos.
Y) Através dos orifícios dos drenos via-se um corrimento de cor e textura estranhas.
Z) Três dias foi o período previsto pelo réu como o exigível para retomar a sua normal atividade profissional.
AA) Perante os sintomas acima relatados, o autor dirigiu-se ao Hospital N…, no …, onde ficou imediatamente internado no Serviço de Medicina Intensiva.
BB) No total, o autor esteve internado durante seis semanas, desde o dia 27 de novembro de 2009 a 8 de janeiro de 2010.
CC) Nas três primeiras semanas, o autor permaneceu na Unidade de Cuidados Intensivos, parte desse período em coma.
DD) No restante tempo de internamento, o autor esteve nos serviços de Cirurgia Plástica, em regime de isolamento.
EE) Durante todo esse período o autor foi sujeito a várias intervenções cirúrgicas, numa primeira fase ao intestino e, posteriormente, à parede abdominal para reparação da mesma.
FF) O autor foi submetido a 26 sessões/tratamentos de oxigenoterapia hiperbárica, com o esclarecimento que tal ocorreu entre 27/11/2009 e 4/01/2010.
GG) Durante todo este lapso de tempo, os factos acima descritos provocaram enorme abalo físico ao autor e, quando não em coma, também psicológico…
HH) …E ficaram “sequelas cicatriciais de celulite abdominal extensa”.
II) Estas cicatrizes são viciosas...
JJ) …E estendem-se por grande parte da parede abdominal, sobremaneira à direita…
KK) …E revelam perda de massa muscular…
LL) …Parecendo aperceber-se as circunvoluções intestinais sob a epiderme.
MM) Em consequência da lesão acima descrita, o autor, além de dores intensas, correu perigo de vida…
NN) …De que se apercebeu quando não em coma…
OO) …E sofreu imobilização prolongada,…
PP) …Temor das sequelas,...
QQ) …E sofreu desgosto pelo estado estético.
RR) Os factos referidos anteriormente, nomeadamente a perfuração do cego e aqueles referidos nas alíneas P) a T) e BB) a QQ) estão diretamente correlacionados com a conduta do réu.
SS) As lesões sofridas pelo autor são consequência da intervenção cirúrgica realizada pelo réu.
TT) De igual modo, o perigo de vida a que esteve sujeito o autor, bem como todos os danos ulteriores, como sendo dores, angústia, tristeza, resultam diretamente da conduta do réu.
UU) O réu fez, pelo menos, duas observações ao autor depois de ele ser operado.
VV) E não fora a intervenção cirúrgica dos médicos que assistiram o autor no Hospital N…, das lesões decorrentes da intervenção feita pelo réu e não tratadas por este, posteriormente, o resultado último seria a morte.
WW) O quadro clínico do autor quando chegou ao Hospital N… era uma septicemia relevante, com o esclarecimento que apresentava choque séptico no contexto de fasceíte necrotizante abdomino - toráxico e escrotal, nos termos constantes de fls. 38 dos autos.
XX) A perfuração do intestino do autor teve origem numa ação traumática do réu, a qual decorreu durante a cirurgia realizada por este, a lipoaspiração a que submeteu o autor.
YY) Em consequência da perfuração do intestino houve libertação de fezes…
ZZ) …Tudo a causar infecção e a causar dores muitíssimo intensas.
AAA) Foi divulgado na comunicação social o estado de coma do autor.
BBB) Por isso ficou afastada a renovação de contrato, para que apontava o percurso até então da equipa sob sua direcção.
CCC) O autor ficou a padecer de um défice funcional permanente da integridade física e/ou psíquica de 5%.
DDD) Por causa das lesões sofridas, o autor suportou despesas farmacêuticas e outras relacionadas com consultas e exames médicos, no total de €714,05.
EEE) Atento o seu estado de saúde e sobremaneira o abalo psicológico e diminuição física, necessitou o autor de acompanhamento familiar, com deslocação de familiares, até então no continente, para o Funchal.
FFF) Essas deslocações, referentes a 2 pessoas, implicaram um custo em passagens aéreas não inferior a €500.
GGG) O autor apresenta no abdómen extensas cicatrizes cutâneas abdominais interessando toda a sua largura, de predomínio infra umbilical, mas ultrapassando para cima a sua horizontal, ocupando uma área aproximada de 35x26 cm. A pele dessa região tem características variáveis, com áreas atróficas mais acentuadamente nos quadrantes inferiores, sendo constituída por epiderme de aspeto variável, conforme resultou de cicatrização primária ou de resultado de transferência de retalhos de epiderme, tomando aspeto de parcelamento, o que agrava a dismorfia da região.
HHH) O autor apresenta no membro inferior direito uma extensa área cicatricial, hipocrómica, interessando a face anterior da coxa, plana, com área aproximada de 13x20 cm, resultante da colheita de enxerto epidérmico e que no membro inferior esquerdo apresenta extensa área cicatricial, hipocrómica, interessando a face anterior e externa da coxa, plana, com área aproximada de 25 x 30 cm, resultante da colheita de enxerto epidérmico.
III) Pela extensão e aspeto das áreas cicatriciais na região abdominal, o autor sofreu um prejuízo estético que o afeta frequentemente, como por exemplo nos vestiários e balneários desportivos, com necessidade de se resguardar perante os outros, nos termos do relatório do INML de fls. 496.
JJJ) No caso do autor, pela sua atividade profissional, existe receio do impacto de objeto contundente, designadamente uma bola chutada com maior ou menor violência.
KKK) Após o internamento em 27 de novembro, o autor esteve impedido de exercer atividade até 7 de fevereiro de 2010, sendo que a repercussão temporária na atividade profissional total se estendeu até 31 de março de 2010, nos termos do relatório do INML de fls. 497.
LLL) Mesmo depois de sair do coma e durante a hospitalização, o autor receou perder a vida.
MMM) E receou ter de sofrer de uma diminuição das suas capacidades cognitivas futuras, em consequência do coma e das oito anestesias que suportou em seis semanas.
NNN) O autor ficou acabrunhado com o dano estético que resulta das cicatrizes extensas da parede abdominal e zona do escroto, bem como das coxas de onde foi retirado o material para enxerto.
OOO) Essas cicatrizes vão manter-se, mesmo após as sugeridas intervenções de recuperação.
PPP) A perfuração do intestino é uma complicação rara…
QQQ) …Mas está descrita como uma complicação da lipoaspiração.
RRR) O autor foi algaliado e o ato médico iniciou-se com anestesia epidural e terminou com anestesia geral.
SSS) Este tipo de anestesia epidural provoca falta do controlo dos esfíncteres durante algumas horas.
TTT) O autor havia já sido submetido a uma ressecção transuretral da próstata.
UUU) Havia trajeto da pele até ao ceco que estava aderente à parede abdominal, tendo havido perfuração do ceco.
VVV) Esta era sequela de uma apendicectomia anterior.
WWW) O réu observou três vezes o autor no pós-operatório e não achou correspondência entre dores próprias do pós-operatório com qualquer outra complicação possível.
XXX) Os médicos da Casa de Saúde O… não diagnosticaram perfuração do ceco.
YYY) As complicações que são relatadas aos doentes nas consultas pré-operatórias são as mais vulgares.
ZZZ) O réu tem cerca de 30 anos de experiência em cirurgia plástica e realizou milhares de lipoaspirações.
AAAA) No dia 27 de novembro de 2009 a mulher do autor telefonou ao réu.
BBBB) Alguns minutos depois, 9h50m, o réu ligou para ela em resposta à chamada.
CCCC) Por volta da hora do almoço desse dia 27 de novembro, o réu contactou com os colegas do Hospital N… aos quais indagou pelo estado de saúde do autor e contou-lhes a história clínica do autor desde a intervenção cirúrgica.
DDDD) Tendo então o réu sido informado que a situação do autor era grave, apresentando um quadro séptico, tendo sido imediatamente operado para limpeza do espaço celular subcutâneo que estava cheio de fezes provocadas por uma perfuração do ceco.
EEEE) O autor foi induzido em coma pois teria de ir ao bloco duas vezes por dia, fazer lavagens daquela região e assim estaria mais cómodo sem dores e sem ser submetido a múltiplas anestesias.
FFFF) No dia seguinte, logo pela manhã, o réu viajou para o Funchal para se inteirar in loco do estado de saúde do autor…
GGGG) …Tendo conferenciado com os colegas.
HHHH) Apesar do estado grave, o autor estava estabilizado e o prognóstico era razoável…
IIII) …Tendo o réu, nos dias seguintes, acompanhado através dos seus colegas do N…, o estado do autor.
JJJJ) Na sequência de desbridamentos cutâneos em ambas as fossas ilíacas foi observado conteúdo subcutâneo fecalóide em grande quantidade e na fossa ilíaca direita havia exteriorização de ansa intestinal.
KKKK) Se as fezes tivessem entrado na cavidade abdominal teriam provocado peritonite.
LLLL) Na ocorrência de perfuração do cego, eventrado, o seu conteúdo extravasará preferencialmente para o espaço entre a pele e a aponevrose dos músculos abdominais.
MMMM) O autor padece de um quantum doloris fixável no grau 5/7.
NNNN) As sequelas sofridas pelo autor são, em termos de repercussão permanente na atividade profissional, compatíveis com o exercício da atividade habitual, mas implicam esforços suplementares.
OOOO) O autor ficou a padecer de dano estético permanente fixável no grau 4/7.
PPPP) O autor ficou a padecer de repercussão permanente na atividade sexual fixável no grau 2/7.
QQQQ) O autor aufere, sem dificuldade em obter clube que os pague, quantia não inferior a €5.000,00 mensais líquidos como treinador de futebol.
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Passemos à apreciação do mérito do recurso.
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IIResponsabilidade médica/Pressupostos da responsabilidade civil
O réu C… e a interveniente “B… – Companhia de Seguros, S.A.”, nos seus recursos, discordam da solução jurídica dada ao pleito pela 1ª Instância, pugnando ambos pela improcedência da ação.
Em termos de preenchimento dos pressupostos da responsabilidade civil, entendeu-se na sentença recorrida estar verificado o requisito ilicitude em virtude da ocorrência da perfuração do cego, absolutamente estranha ao cumprimento do contrato, a que acresce estar também preenchido o requisito culpa, que não foi ilidida pelo réu.
Vejamos então.
Escreve Miguel Teixeira de Sousa[1] que a responsabilidade civil médica “é contratual quando existe um contrato, para cuja celebração não é, aliás, necessária qualquer forma especial, entre o paciente e o médico ou uma instituição hospitalar e quando, portanto, a violação dos deveres médicos gerais representa simultaneamente um incumprimento dos deveres contratuais”; “em contrapartida, aquela responsabilidade é extracontratual quando não existe qualquer contrato entre o médico e o paciente e, por isso, quando não se pode falar de qualquer incumprimento contratual, mas apenas, como se refere no art.º 483º, nº 1, do Código Civil, da violação de direitos ou interesses alheios (como são o direito à vida e à saúde)”.
Estando em causa direitos absolutos como o direito à vida ou à integridade física, oponíveis, por isso, “erga omnes”, a atuação incorreta e danosa da intervenção médica pode ser vista também como a violação daqueles direitos, portanto, como integradora de responsabilidade delitual ou extracontratual, desde logo quando a ação médica não derive de contrato.
Qualquer que seja a natureza da responsabilidade civil que impende sobre o lesante, ela traduz-se numa obrigação de indemnizar, ou seja, de reparar os danos sofridos pelo lesado.
Sobre esta mesma matéria escreve João Álvaro Dias[2] que hoje no comum das situações “a responsabilidade médica tem, em princípio, natureza contratual. Médico e doente estão, no comum dos casos, ligados por um contrato marcadamente pessoal, de execução continuada e, por via de regra, sinalagmático e oneroso.
Pelo simples facto de ter o seu consultório aberto ao público e de ter colocado a sua placa, o médico encontra-se numa situação de proponente contratual. Por seu turno, o doente que aí se dirige, necessitando de cuidados médicos, está a manifestar a sua aceitação a tal proposta. Tal factualidade é, por si só, bastante para que possa dizer-se, com toda a segurança, que estamos aqui em face dum contrato consensual pois que, regra geral, não se exige qualquer forma mais ou menos solene para a celebração de tal acordo de vontades.”
A responsabilidade civil é contratual quando resulta da falta de cumprimento das obrigações emergentes dos contratos, de negócios unilaterais ou, inclusive, da lei. É extracontratual quando deriva da violação de deveres ou vínculos jurídicos gerais, isto é, de deveres de conduta impostos a todas as pessoas e que correspondem aos direitos absolutos, ou até da prática de certos actos que, embora lícitos, produzem dano a outrem.[3]
O Código Civil sistematiza a responsabilidade civil em três lugares: a responsabilidade extracontratual, nos arts. 483º e segs., e a responsabilidade contratual, nos arts. 798º e segs. Às duas formas de responsabilidade interessam ainda os arts. 562º e segs., respeitantes à obrigação de indemnização em si mesma, independentemente da fonte de onde procede.
Dispõe o art. 798º que “o devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que causa ao credor”, ao passo que no nº 1 do art. 483º se preceitua que “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.
São os mesmos os elementos constitutivos da responsabilidade civil, provenha ela de um facto ilícito ou de um contrato, a saber: o facto (controlável pela vontade do homem); a ilicitude; a culpa; o dano; e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Em qualquer dos casos, a responsabilidade civil assenta na culpa, a qual é apreciada “in abstracto”, ou seja, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso, conforme preceitua o nº 2 do art. 487º, aplicável à responsabilidade contratual por força do nº 2 do art. 799º.

De qualquer modo, existe interesse na destrinça das duas espécies de responsabilidade pelo facto de, em regra, a tutela contratual ser a que mais favorece o lesado na sua pretensão indemnizatória face às regras legais em matéria de ónus da prova da culpa (cfr. arts. 799º, nº 1 e 487º, nº 1 do Cód. Civil).[4]
Neste sentido, é de salientar que a lei no art. 799º, nº 1 estabelece uma presunção legal de culpa do devedor, a qual pode, porém, ser elidida mediante prova em contrário (cfr. art. 350º, nº 2 do Cód. Civil).
Prosseguindo, no que tange às obrigações/deveres do médico há que ter em atenção o art. 31º (Princípio geral) do Código Deontológico da Ordem dos Médicos, onde se diz que “o médico que aceite o encargo ou tenha o dever de atender um doente obriga-se à prestação dos melhores cuidados ao seu alcance, agindo sempre com correcção e delicadeza, no exclusivo intuito de promover ou restituir a saúde, conservar a vida e a sua qualidade, suavizar os sofrimentos, nomeadamente nos doentes sem esperança de cura ou em fase terminal, no pleno respeito pela dignidade do ser humano”. Depois, no nº 1 do art. 35º do mesmo diploma (Tratamentos vedados ou condicionados) estabelece-se que “o médico deve abster-se de quaisquer actos que não estejam de acordo com as leges artis”, impondo-se ainda no seu art. 9º (Atualização e preparação científica) que “o médico deve cuidar da permanente actualização da sua cultura científica e da sua preparação técnica, sendo dever ético fundamental o exercício profissional diligente e tecnicamente adequado às regras da arte médica (leges artis)”.
Por seu turno, no Código Internacional de Ética Médica diz-se que “o médico deve ter sempre presente o cuidado de conservar a vida humana”, sendo, assim, obrigação do médico prestar ao doente os cuidados ao seu alcance, de acordo com os seus conhecimentos e o estado actual da ciência médica, por forma a preservar-lhe a saúde na medida do possível, o que tudo tem a haver com as chamadas “leges artis”, entendidas estas como o conjunto de regras da arte médica, isto é, das regras reconhecidas pela ciência médica em geral como as apropriadas à abordagem de um determinado caso clínico na concreta situação em que tal abordagem ocorre.[5]

Assim, apesar de o contrato médico ser generalizadamente visto como um contrato de prestação de serviços, o «resultado» a que alude o art.º 1154° do Cód. Civil deve considerar-se não a cura em si, mas os cuidados de saúde. O conceito de “resultado” no contrato de prestação de serviços que se estabelece entre o médico e o doente, enquanto obrigação de meios, como deve ser em regra qualificada, corresponde ao esforço na ação diligente do diagnóstico e do tratamento, e não a cura. A obrigação de meios (ou de pura diligência, como também é conhecida) existe quando “o devedor apenas se compromete a desenvolver prudente e diligentemente certa actividade para a obtenção de determinado efeito, mas sem assegurar que o mesmo se produza”. E existe obrigação de resultado quando se conclua da lei ou do negócio jurídico que o devedor está vinculado a conseguir um certo efeito útil. O objectivo pretendido não pode ser atendido para a invocação de incumprimento ou cumprimento defeituoso da obrigação, já que o médico apenas promete a diligência em ordem a obter um resultado, a prestação consistirá num “meio” de lograr o cumprimento. Aos médicos cabe a obrigação legal e contratual de desenvolver prudente e diligentemente, atento o estádio científico actual das “leges artis”, certa atividade para se obter um determinado efeito útil, que se traduza em empregar a sua ciência no tratamento do paciente, sem que se exija a este a obtenção vinculada da “cura.”
O médico deve agir segundo aquelas exigências e os conhecimentos científicos então existentes, atuando com um dever objectivo de cuidado, assim como de certos deveres específicos, como seja o dever de informar sobretudo o que interessa à saúde ou o dever de empregar a técnica adequada, que pode prolongar-se mesmo após a alta do paciente.
Assim, no contrato médico existe como obrigação contratual principal do clínico, a obrigação de tratamento, que se pode desdobrar em diversas prestações, tais como, de observação, de diagnóstico, de terapêutica, de vigilância, de informação.
O ponto de partida para qualquer ação de responsabilidade médica é assim o da desconformidade da concreta atuação do agente no confronto com aquele padrão de conduta profissional que um médico medianamente competente, prudente e sensato, com os mesmos graus académicos e profissionais, teria tido em circunstâncias semelhantes na mesma data.
Por vezes, ainda que partindo de uma obrigação de meios, é exigível ao clínico que atinja um resultado. Tem-se defendido que tal exigência ocorre, por exemplo, nas intervenções cirúrgicas estéticas de embelezamento (não já nas reconstitutivas ou de reparação) e na realização de exames de diagnóstico de grande fiabilidade técnica em que a margem de erro é muito reduzida ou negligenciável.
Aceita-se pois a admissibilidade da obrigação de resultado no contrato médico, mas saber se uma obrigação pertence a um ou outro tipo depende das circunstâncias do caso, que sempre devem ser cuidadosamente ponderadas.
A responsabilidade médica supõe culpa por não ter sido usado o instrumental de conhecimentos e o esforço técnico que se pode esperar de qualquer médico numa certa época e lugar.[6]
Na responsabilidade civil dos médicos, o padrão do bom pai de família tem como correspondente o padrão de conduta profissional que um médico medianamente competente, prudente e sensato, com os mesmos graus académicos e profissionais teria tido em circunstâncias semelhantes, naquela data.[7] “Este critério abstracto de determinação da culpa, apreciado pelo padrão da actuação de um homem ideal, comportará, obviamente, todas as nuances concretas na apreciação da culpa médica, dados os diferenciados “tipos ideais de médico” a que poderá ter de se atender em cada caso: o médico do interior, sem meios e condições profícuas de trabalho, e o médico da cidade; o especialista e o médico de clínica geral, etc.”
Age com culpa, não o médico que não cura, mas o médico que viole os deveres objectivos de cuidado, agindo de tal forma que a sua conduta deva ser pessoalmente censurada e reprovada, culpa a ser apreciada, como se disse, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso, nos termos dos arts. 487°, nº 2, e 799°, nº 2 do Cód. Civil.
Continuando, não vemos razão que justifique o afastamento da presunção de culpa prevista no nº 1 daquele art.º 799º, desde que seja respeitada a natureza contratual das obrigações a que o médico está adstrito.
E não se ignora que atualmente predomina a orientação segundo a qual a regra é a da responsabilidade contratual do médico, sendo a responsabilidade extracontratual a exceção, normalmente correlacionada com situações em que o médico atua num quadro de urgência, em que inexiste acordo/consentimento do doente à sua actuação/intervenção. Nesse sentido, Henriques Gaspar (in “A Responsabilidade Civil do Médico”, CJ, ano III, 1978, pág. 341), depois de referir que a regra, na “relação médico-doente haverá de enquadrar-se na figura conceitual do contrato”, acrescenta que “o médico apenas pode ser responsabilizado extracontratualmente, se a sua actuação, violadora dos direitos do doente é culposa, se processou à margem de qualquer acordo existente entre ambos, o que acontecerá em todos os casos em que o médico actue em situações de urgência que não permitem qualquer hipótese de obter o consentimento, o acordo do doente.[8]
Na verdade, à relação médico/doente está hoje subjacente, no comum dos casos, um vínculo de natureza contratual e mesmo que concorram na negligência médica a responsabilidade contratual e extracontratual este concurso deve ser resolvido no sentido da prevalência da responsabilidade contratual, por ser a mais adequada à defesa dos interesses do lesado.[9]
Aliás, em prejuízo de tal concurso da responsabilidade extracontratual e contratual, a doutrina e a jurisprudência sempre consideraram este último regime como o aplicável por se mostrar «mais conforme ao princípio geral da autonomia privada e por ser, em regra, mais favorável ao lesado.»
Com efeito, o regime da responsabilidade contratual favorece claramente o lesado na sua pretensão indemnizatória, por se presumir a culpa, o que não sucede na responsabilidade extracontratual ou aquiliana onde cabe ao lesado provar a culpa do lesante.
No caso “sub judice” estamos perante um contrato de serviços médicos que foi celebrado entre o autor D… e o réu C… em que este se obrigou a fazer ao primeiro uma cirurgia de lipoaspiração abdominal e torácica – A).
Sucede, porém, que o autor como sequela de uma apendicectomia anterior tinha trajeto de pele até ao cego que estava aderente à parede abdominal e que durante a cirurgia de lipoaspiração que lhe foi efetuada o réu perfurou o cego – XX), UUU) e VVV).
Não parece haver dúvidas que no tocante ao incumprimento ou cumprimento defeituoso do contrato de prestação de serviços médicos celebrado entre autor e réu, ele ocorreu, uma vez que durante a contratada cirurgia de lipoaspiração, e por causa dela, se verificou a perfuração do intestino (cego), daí decorrendo ofensa à integridade física do autor.
Seguindo-se o entendimento expendido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1.10.2015 (proc. 2104/05.4 TBPVZ.P1.S1, disponível in www.dgsi.pt.) constata-se que objetivamente ocorreu uma lesão à integridade física do autor, não exigida pelo cumprimento do contrato, de tal modo que se tem por preenchido o requisito da ilicitude.[10]
Na verdade, cremos ser inequívoco que a perfuração do intestino, ocorrida durante a lipoaspiração, que consiste num tipo específico de cirurgia plástica que tem como objetivo a remoção de excessos de gordura existente debaixo da pele[11], é absolutamente estranha ao cumprimento do contrato.
Ora, a execução defeituosa, ou ilicitude, objetivamente considerada, abrange, como é consabido, uma omissão do comportamento devido, consubstanciado na prática de atos diferentes daqueles a que se estava obrigado (cfr. Pessoa Jorge, “Ensaio Sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil”, pg. 69) e, ninguém duvidará que dificilmente se poderá sustentar que a proteção da integridade física do paciente não integra o âmbito de proteção de um contrato de prestação de serviços médicos.
Porém, conforme se afirma no Acórdão da Relação do Porto de 26.1.2016, relatado pelo aqui segundo adjunto (proc. 5152/10.9 TBVNG.P1, disponível in www.dgsi.pt.), é de referir que este entendimento, se levado ao limite, implicaria em qualquer caso de dano médico o preenchimento inevitável do requisito da ilicitude na medida em que, por via de regra, sempre haverá uma ofensa à integridade física por força de um acto médico a qual é tida como não querida ou não exigida pelo cumprimento do contrato.
“Temperando esta opção jurisprudencial, (…), parece-nos dever, em qualquer caso, proceder-se a uma avaliação concreta dessa ofensa à integridade física, do seu grau, natureza, amplitude ou extensão, e aferi-la em função do tipo de intervenção médica efectuada e do grau de “intrusão” que esta previsivelmente implicaria para aquela integridade.”
Sucede que a lipoaspiração é uma cirurgia estética recorrente (a mais realizada no mundo inteiro), que não oferecerá grande complexidade até pelo elevado número de vezes que é efectuada e cuja recuperação é muito rápida. A perfuração do intestino está, porém, descrita como uma complicação da lipoaspiração, mas rara – Z), PPP) e QQQ).
Neste contexto, se estamos perante uma intervenção cirúrgica que não apresenta particular complexidade e que o réu, que tem trinta anos de experiência em cirurgia plástica, já realizara em milhares de ocasiões – ZZZ) – e em que a perfuração intestinal é descrita como uma complicação rara, a ocorrência de um dano com a gravidade que resulta da factualidade dada como provada não ocorre, em termos lógicos, por força da complexidade do ato médico realizado ou dos riscos que lhe estão associados.
Assim, num caso como o presente, teremos que considerar como efetivamente verificado, enquanto pressuposto da responsabilidade civil contratual, o requisito da ilicitude, mesmo que utilizemos um critério mais exigente que não se baste com a mera verificação de uma lesão, não prevista no contrato ou indesejada, mas que atenda igualmente à gravidade dessa lesão quando confrontada com o risco objetivo que decorreria da intervenção médica efetuada.
Deste modo, assente a ilicitude por ter ocorrido desrespeito do dever de proteção da integridade física do autor durante a execução do contrato, e passando à culpa, impõe-se que seja o médico, pela sua proximidade com os factos e com os meios de prova, a provar factos que, relativamente à execução da intervenção cirúrgica, permitam afastar a sua culpa presumida nos termos do art. 799º, nº 1 do Cód. Civil.
Acontece que da factualidade dada como assente não fluem quais os procedimentos concretos que o réu levou a cabo durante a realização da lipoaspiração, de modo a poder-se concluir no sentido da observância, ou não, das “leges artis” e de uma atuação diligente, ou não, durante aquela intervenção cirúrgica.[12]
E se não existe prova de uma qualquer causa de exclusão de culpa, de situação de força maior, de comportamento indevido do lesado que estivesse na base da referida perfuração intestinal, a questão que se coloca então é a de saber quem onerar perante uma situação de dúvida em relação à ocorrência do evento danoso.
Ora, a resposta encontra-se na já referida presunção de culpa a que se reporta o art. 799º, nº 1 do Cód. Civil e que onera o lesante em sede de responsabilidade contratual. Uma vez apurada a ilicitude do facto, a culpa resulta assente por força de tal presunção legal.
Ou seja, na dúvida presume-se a culpa, opção que igualmente se justifica pelo desequilíbrio existente entre as partes. É seguramente mais difícil para o autor provar, pela positiva, que a perfuração do intestino ocorreu por ato negligente do réu sendo certo que estão em causa atos praticados pessoalmente por este, que decorrem da profissão por ele exercida e a cuja execução se vinculou, contratualmente, perante o autor.[13]
Sucede que no caso dos autos patente é que a elisão desta presunção de culpa por parte do réu não ocorreu.
No entanto, a culpa efetiva sempre se recorta na sua atuação. Com efeito, não se pode ignorar que estamos perante um médico conceituado com cerca de trinta anos de experiência na área da cirurgia plástica e que já realizara milhares de lipoaspirações.
O autor apresentava uma cicatriz na área abdominal e tinha sido já submetido anteriormente a uma apendicectomia. A desconsideração dessa cicatriz, não antecipando a possibilidade de se tratar de uma cicatriz aderente e não realizando exames complementares de diagnóstico, revelam na conduta do réu, como médico, um comportamento descuidado e negligente.[14]
Temos assim por preenchidos todos os pressupostos da responsabilidade civil contratual, e da consequente obrigação de indemnizar, a saber: o facto, a ilicitude, a culpa, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Quanto à eventual culpa do lesado no agravamento dos danos – cfr. art. 570º do Cód. Civil – sempre será de referir que a mesma de modo nenhum resulta da factualidade dada como provada e, em particular, das suas alíneas X), Y) e AA). Aliás, o autor logo que se apercebeu de que algo de muito anormal se passava dirigiu-se ao Hospital N… onde ficou imediatamente internado.
Consequentemente, nesta parte, improcedem os recursos interpostos pelo réu e pela interveniente.
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IIIMontantes indemnizatórios
Na sentença recorrida foi arbitrada indemnização a favor do autor no montante global de 96.214,05€, sendo 61.245,05€ a título de danos patrimoniais e 35.000,00€ por danos não patrimoniais, valores que tiveram a discordância, em primeira linha, da interveniente “B… – Companhia de Seguros, SA” que os considerou excessivos.
Em sede de recurso subordinado também o autor discordou dos valores atribuídos, pugnando pela elevação do respeitante a danos não patrimoniais para a importância global de 90.000,00€.
Vejamos então.
1. Na sentença recorrida fixou-se em 60.000,00€ o valor indemnizatório relativo ao dano patrimonial futuro sofrido pelo autor, decorrente da incapacidade funcional permanente de que ficou a padecer, valor que a interveniente “B…” pretende ver reduzido para 22.000,00€.
Neste segmento indemnizatório movemo-nos no âmbito do que a jurisprudência e a doutrina têm apelidado de dano biológico ou fisiológico, que constitui, no fundo, um dano à saúde, violador da integridade física e do bem-estar físico, psíquico e social.
A jurisprudência, de forma maioritária, tem vindo a considerar este dano biológico como sendo de cariz patrimonial e, por isso, indemnizável nos termos do art. 564º, nº 2 do Cód. Civil.
Tem-se afirmado que a afetação da pessoa do ponto de vista funcional, porque determinante de consequências negativas ao nível da sua atividade geral, justifica a sua indemnização no âmbito do dano patrimonial.
Em abono deste entendimento, a tónica é posta nas energias e nos esforços suplementares que uma limitação funcional geral implicará para o exercício das atividades profissionais do lesado, destacando-se que uma incapacidade permanente parcial, sem qualquer reflexo negativo na atividade profissional do lesado e no seu efetivo ganho, “se repercutirá, residualmente, em diminuição da condição e capacidade física e correspondente necessidade de um esforço suplementar para obtenção do mesmo resultado”[15]
Porém, outros entendem, como por exemplo no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.10.2009 (proc. nº 560/09.0 YFLSB, disponível in www.dgsi.pt.), que também é lícito defender-se que o ressarcimento do dano biológico deve ser feito em sede de dano não patrimonial.
Escreveu-se o seguinte neste aresto:
“Nesta perspetiva, há que considerar, desde logo, que o exercício de qualquer atividade profissional se vai tornando mais penoso com o decorrer dos anos, o desgaste natural da vitalidade (paciência, atenção, perspetivas de carreira, desencantos …) e da saúde, tudo implicando um crescente dispêndio de esforço e energia.
E esses condicionalismos naturais podem é ser agravados, ou potenciados, por uma maior fragilidade adquirida a nível somático ou em sede psíquica.
Ora, tal agravamento, desde que não se repercuta direta – ou indiretamente – no estatuto remuneratório profissional ou na carreira em si mesma e não se traduza, necessariamente, numa perda patrimonial futura ou na frustração de um lucro, traduzir-se-á num dano moral.
Isto é, o chamado dano biológico tanto pode ser ressarcido como dano patrimonial, como compensado a título de dano moral.
A situação terá de ser apreciada casuisticamente, verificando se a lesão origina, no futuro, durante o período ativo do lesado ou da sua vida e, só por si, uma perda da capacidade de ganho ou se traduz, apenas, uma afetação da sua potencialidade física, psíquica ou intelectual, para além do agravamento natural resultante da idade.
E não parece oferecer grandes dúvidas que a mera necessidade de um maior dispêndio de esforço e de energia, mais traduz um sofrimento psico-somático do que, propriamente, um dano patrimonial.”[16]
Sustentam outros ainda que o dano corporal ou dano à saúde deve ser reconhecido como dano autónomo, verdadeiro “tertium genus” de natureza específica, com um lugar próprio que não se esgota nem é assimilado pela dicotomia clássica entre o que é patrimonial e o que não é patrimonial, impondo-se como uma realidade digna de reparação autónoma.
Entendimento este a que não são alheias as grandes dificuldades e delicadíssimos problemas suscitados pela determinação e avaliação das consequências pecuniárias e não pecuniárias do dano corporal no quadro da distinção dano patrimonial/dano não patrimonial.
Concretamente, quanto à indemnização de perdas patrimoniais futuras, a título de lucros cessantes, lembra-se que o lesado terá que provar a subsistência de sequelas permanentes que se repercutem negativamente sobre a sua capacidade de trabalho, destacando-se que a avaliação e reparação das chamadas pequenas invalidades permanentes se deve confinar à área do chamado dano corporal ou dano à saúde.[17]
O prejuízo a indemnizar consiste, pois, na perda de utilidade proporcionada pelo bem corpo, sendo irrelevante para o efeito que as lesões sofridas pelo autor não tenham implicado, de forma imediata, a perda de rendimentos.
Regressando ao caso dos autos, constata-se que o autor ficou a padecer de um défice funcional permanente da integridade física e/ou psíquica de 5% - CCC) -, as sequelas sofridas são, em termos de repercussão permanente na atividade profissional, compatíveis com o exercício da sua atividade habitual de treinador de futebol, mas implicam esforços suplementares – NNNN) e aufere quantia não inferior a 5.000,00€ mensais líquidos – QQQQ). Nasceu em 4.12.1955, pelo que à altura do evento lesivo tinha 53 anos e 11 meses de idade.
Ora, o dano biológico sofrido pelo autor tem uma componente patrimonial – o défice funcional permanente de 5% - que não se repercute nos seus ganhos de forma direta, mas que implica para ele um maior esforço no exercício da sua atividade habitual.
É certo que o autor continuou a poder exercer a sua atividade profissional de treinador de futebol, mas não se pode ignorar que ele passou a sofrer de uma incapacidade física que o leva a realizar com maior esforço uma determinada tarefa no mesmo período de tempo; isso significa que, sem esse esforço acrescido, ele realizaria a tarefa em tempo superior. O custo da sua capacidade produtiva não é menor, porque esse esforço suplementar é realizado. Mas esse esforço, se não houvesse diminuição física, não seria necessário.[18]
Sucede que a fixação do montante indemnizatório correspondente a este danos há-de assentar em critérios de equidade.
Por isso, as tabelas financeiras ou matemáticas que existem para proceder ao cálculo da indemnização devem ser vistas apenas como meros auxiliares, cabendo sempre o papel decisivo nesse cálculo à equidade.
Na ausência de uma definição legal, a doutrina portuguesa acentua que o julgamento pela equidade “é sempre o produto de uma decisão humana que visará ordenar determinado problema perante um conjunto articulado de proposições objectivas; distingue-se do puro julgamento jurídico por apresentar menos preocupações sistemáticas e maiores empirismo e intuição”.[19]
Também sobre a equidade escreve o seguinte Dario Martins de Almeida (in “Manual de Acidentes de Viação, 1987, Almedina, págs. 107/110):
“Quando se faz apelo a critérios de equidade, pretende-se encontrar somente aquilo que, no caso concreto, pode ser a solução mais justa; a equidade está assim limitada sempre pelos imperativos da justiça real (a justiça ajustada às circunstâncias), em oposição à justiça meramente formal. Por isso se entende que a equidade é sempre uma forma de justiça. A equidade é a resposta àquelas perguntas em que está em causa o que é justo ou o que é mais justo. (...) A equidade não equivale ao arbítrio; é mesmo a sua negação. A equidade é uma justiça de proporção, de adequação às circunstâncias, de equilíbrio. (...) Em síntese, a proporção, a adaptação às circunstâncias, a objectividade, a razoabilidade e a certeza objectiva são as linhas de força da equidade quando opera, com os ditames da lei, na análise e compreensão e solução do caso concreto.”
Julgar segundo a equidade significa assim que o juiz não está sujeito à estrita observância do direito aplicável, devendo antes orientar-se por critérios de justiça concreta, procurando a solução mais justa face às características da situação em análise.
Sem embargo da utilização de critérios pautados por um maior grau de objetividade, a solução baseada na equidade postula uma razoável ponderação dos elementos estruturais que emergem do quadro fáctico, sendo que o uso paralelo da aritmética apenas pode servir como fator adjuvante e auxiliar do percurso decisório.[20]
Na sentença recorrida, tendo-se em atenção os elementos já atrás referidos [idade do autor aquando do facto lesivo – 53 anos e 11 meses; défice funcional permanente da integridade física de 5%; esperança média de vida fixada para os indivíduos do sexo masculino em 77,7 anos; rendimentos auferidos que se situam em valor não inferior a 5.000,00€ mensais líquidos], fixou-se em 60.000,00€, com base em juízo equitativo, a quantia devida pelo ressarcimento do dano patrimonial futuro sofrido pelo autor.
A recorrente “B…, SA”, discordando deste juízo, apelou ao percurso argumentativo seguido no Acórdão da Relação do Porto de 19.3.2018 (proc. 1500/14.0 T2AVR.P1, disponível in www.dgsi.pt) em que se considerou que nos casos em que não há imediata perda de capacidade de ganho não existe razão para distinguir os lesados no valor base a atender, devendo usar-se, no cálculo do dano biológico, um valor de referência comum sob pena de violação do princípio da igualdade, já que só se justificará atender aos rendimentos quando estes sofram uma diminuição efetiva por causa da incapacidade.
Assim, propõe-se neste acórdão como valor de referência uma quantia superior ao salário mínimo nacional, de preferência próximo do salário médio nacional, que se entendeu ser de situar nos 850,00€ mensais, donde resultaria um rendimento anual de 11.900,00€.
Com base neste critério, no referido acórdão, em que um lesado de 23 anos de idade ficara portador de uma incapacidade permanente de 15%, atribuiu-se uma indemnização, por dano biológico, na importância de 75.000,00€.
Transportando para a situação dos autos tal critério a recorrente propõe um valor indemnizatório de 22.000,00€.
De qualquer modo, o que não se pode olvidar é que o critério decisivo a ter em conta na fixação deste montante indemnizatório é o da equidade, de tal forma que se impõe ter em atenção o teor de outras decisões jurisprudenciais que apreciaram casos com alguma similitude, a fim de que não nos distanciemos significativamente do que tem sido a prática dos nossos tribunais superiores.
Vejamos então alguns casos:
- Com uma incapacidade avaliável em 3 pontos, a um lesado com a idade de 40 anos foi fixada a indemnização por dano biológico em 8.000,00€[21];
- Com uma incapacidade avaliável em 5 pontos, a um lesado de 13 anos fixou-se a indemnização de 15.000,00€[22];
- Com uma incapacidade também de 5 pontos, mereceu um lesado com 22 anos a indemnização de 16.698,95€[23];
- Com uma incapacidade ainda de 5 pontos, a um lesado de 36 anos fixou-se indemnização aproximada a 12.000,00€ - 11.791,00€[24];
- Com uma incapacidade de 8 pontos, a um lesado de 42 anos foi arbitrada a indemnização de 12.000,00€[25];
- Com uma incapacidade de 8 pontos, a um lesado de 49 anos foi fixada a indemnização de 20.000,00€[26];
- Com uma incapacidade de 7 pontos, a uma lesada de 19 anos foi fixada a indemnização de 17.500,00€[27];
- Com uma incapacidade de 5 pontos, a um lesado de 39 anos foi fixada a indemnização de 12.500,00€[28];
- Com uma incapacidade de 6 pontos, a um lesado com 44 anos foi fixada a indemnização de 25.000,00€[29];
- Com uma incapacidade de 11 pontos, a um lesado com 54 anos foi fixada a indemnização de 50.000,00€ [estando aqui em causa um rendimento mensal mais elevado que nos antecedentes casos – cerca de 2.000,00€ mensais] [30];
- Com uma incapacidade de 6 pontos, a um lesado com 63 anos de idade foi fixada a indemnização de 13.000,00€[31];
- Com uma incapacidade de 3 pontos, a um lesado com 62 anos de idade foi fixada a indemnização de 5.000,00€[32];
- Com uma incapacidade de 15 pontos, a um lesado com 23 anos de idade foi fixada a indemnização de 75.000,00[33]
Uma vez feito este excurso jurisprudencial por decisões que poderão apresentar alguma similitude com a presente, o que sobressai é um conjunto de valores onde se anota alguma disparidade, mas donde se extrai que o fixado pela 1ª Instância no caso dos autos, face ao reduzido grau de incapacidade, pecará por algum excesso.
Assim, entende-se, como mais justo e equitativo que a indemnização, pelo dano patrimonial decorrente da incapacidade funcional permanente de que o autor ficou a padecer, seja reduzido para 45.000,00€, o que significa, nesta parte, a parcial procedência do recurso interposto pela interveniente “B…, SA”.
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2. Passemos agora aos danos não patrimoniais que foram fixados pela 1ª Instância em 35.000,00€, importância que a recorrente “B…, SA” pretende ver reduzida, ao passo que o autor, em recurso subordinado, pugna pela sua elevação para o valor peticionado de 90.000,00€.
Dispõe o art. 496º, nº 1 do Cód. Civil que na fixação da indemnização se deverá atender aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito e o nº 4 do mesmo preceito diz-nos que o respetivo montante indemnizatório será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo-se em atenção as circunstâncias referidas no art. 494º, que são o grau de culpabilidade do agente, a sua situação económica e a do lesado e as demais circunstâncias do caso que se justifiquem.
Como tal, a equidade será também no que concerne a esta parcela indemnizatória o critério determinante para a fixação do seu montante, sendo certo que com a mesma se procura proporcionar ao lesado momentos de prazer que contribuam para atenuar a dor sofrida[34].
Com efeito, o dano não patrimonial não pode ser avaliado em medida certa. “A moeda não se ajusta a este dano, como instrumento geral de trocas, porque se trata de bens que não têm valor venal. Daí, as hesitações e as dúvidas para se encontrar uma base objectiva sobre a qual se possa estabelecer aquilo a que é uso chamar-se (…) o preço da dor. Mas a dor pode pagar-se com o prazer; e o prazer, quando se encontra na satisfação das necessidades, pode obter-se com dinheiro.”[35]
No Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19.5.2009 (proc. 298/06.0 TBSJM.S1, disponível in www.dgsi.pt) sobre a indemnização por danos não patrimoniais escreve-se o seguinte com apoio no Acórdão também do Supremo Tribunal de Justiça de 30.10.1996 (BMJ nº 460/444):
“ (...) No caso dos danos não patrimoniais, a indemnização reveste uma natureza acentuadamente mista, pois “visa reparar, de algum modo, mais que indemnizar os danos sofridos pela pessoa lesada”, não lhe sendo, porém, estranha a “ideia de reprovar ou castigar, no plano civilístico e com os meios próprios do direito privado, a conduta do agente”.
(…)
“Realçando a componente punitiva da compensação por danos não patrimoniais pronunciam-se no seu ensino os tratadistas.
Assim, Menezes Cordeiro “Direito das Obrigações”, 2° vol, p. 288 ensina que “a cominação de uma obrigação de indemnizar danos morais representa sempre um sofrimento para o obrigado; nessa medida, a indemnização por danos morais reveste uma certa função punitiva, à semelhança aliás de qualquer indemnização”.
Galvão Telles, “Direito das Obrigações”, 387, sustenta que “a indemnização por danos não patrimoniais é uma “pena privada, estabelecida no interesse da vítima – na medida em que se apresenta como um castigo em cuja fixação se atende ainda ao grau de culpabilidade e à situação económica do lesante e do lesado”.
Menezes Leitão realça a índole ressarcitória/punitiva, da reparação por danos morais quando escreve: “assumindo-se como uma pena privada, estabelecida no interesse da vítima, de forma a desagravá-la do comportamento do lesante” – “Direito das Obrigações”, vol. I, 299.
Pinto Monteiro, de igual modo, sustenta que, a obrigação de indemnizar é “uma sanção pelo dano provocado”, um “castigo”, uma “pena para o lesante” – cfr. “Sobre a Reparação dos Danos Morais”, RPDC, n° l, 1° ano, Setembro, 1992, p. 21.”
Ora, da matéria fáctica apurada nos autos resulta o seguinte:
- E) Já em casa, o autor sentiu dores intensas que motivaram a presença do réu para aí o observar, o que ocorreu por volta das dezanove horas desse mesmo dia;
- G) Por volta das cinco horas da madrugada do dia 25 de novembro de 2009 o autor, porque estava com muitas dores, deslocou-se à urgência da “Casa de Saúde O…”;
- O) Após estabilização, foi o autor, logo no dia 27 de novembro de 2009, intervencionado de urgência no bloco operatório, onde se verificou haver perfuração do ceco;
- P) Aquando e por causa de tal intervenção, o autor necessitou de suporte respiratório e cardiovascular;
- Q) Seguiram-se vários desbridamentos cirúrgicos levados a efeito pelas equipes de urgência de cirurgia geral do hospital acima referido;
- R) Só em 3 de dezembro de 2009 se procedeu ao encerramento da cavidade abdominal e enxerto cutâneo da região anterior direita;
- S) Em 9 de dezembro de 2009 procedeu-se a 2ª plastia com enxerto cutâneo;
- T) Em 30 de dezembro de 2009 procedeu-se a “enxerto de áreas cruentas remanescentes”;
- AA) Perante os sintomas acima relatados, o autor dirigiu-se ao Hospital N…, onde ficou imediatamente internado no Serviço de Medicina Intensiva;
- BB) No total, o autor esteve internado durante seis semanas, desde o dia 27 de novembro de 2009 a 8 de janeiro de 2010;
- CC) Nas três primeiras semanas, o autor permaneceu na Unidade de Cuidados Intensivos, parte desse período em coma;
- DD) No restante tempo de internamento, o autor esteve nos serviços de Cirurgia Plástica, em regime de isolamento;
- EE) Durante todo esse período o autor foi sujeito a várias intervenções cirúrgicas, numa primeira fase ao intestino e, posteriormente, à parede abdominal para reparação da mesma;
- FF) O autor foi submetido a 26 sessões/tratamentos de oxigenoterapia hiperbárica, com o esclarecimento que tal ocorreu entre 27/11/2009 e 4/01/2010;
- GG) Durante todo este lapso de tempo, os factos acima descritos provocaram enorme abalo físico ao autor e, quando não em coma, também psicológico…;
- HH) …E ficaram “sequelas cicatriciais de celulite abdominal extensa”;
- II) Estas cicatrizes são viciosas...;
- JJ) …E estendem-se por grande parte da parede abdominal, sobremaneira à direita…;
- KK) …E revelam perda de massa muscular…;
- LL) …Parecendo aperceber-se as circunvoluções intestinais sob a epiderme;
- MM) Em consequência da lesão acima descrita, o autor, além de dores intensas, correu perigo de vida…;
- NN) …De que se apercebeu quando não em coma…;
- OO) …E sofreu imobilização prolongada,…;
- PP) …Temor das sequelas,...;
- QQ) …E sofreu desgosto pelo estado estético;
- RR) Os factos referidos anteriormente, nomeadamente a perfuração do cego e aqueles referidos nas alíneas P) a T) e BB) a QQ) estão diretamente correlacionados com a conduta do réu;
- SS) As lesões sofridas pelo autor são consequência da intervenção cirúrgica realizada pelo réu;
- TT) De igual modo, o perigo de vida a que esteve sujeito o autor, bem como todos os danos ulteriores, como sendo dores, angústia, tristeza, resultam diretamente da conduta do réu;
- XX) A perfuração do intestino do autor teve origem numa ação traumática do réu, a qual decorreu durante a cirurgia realizada por este, a lipoaspiração a que submeteu o autor;
- YY) Em consequência da perfuração do intestino houve libertação de fezes…;
- ZZ) …Tudo a causar infecção e a causar dores muitíssimo intensas;
- AAA) Foi divulgado na comunicação social o estado de coma do autor;
- BBB) Por isso ficou afastada a renovação de contrato, para que apontava o percurso até então da equipa sob sua direcção;
- CCC) O autor ficou a padecer de um défice funcional permanente da integridade física e/ou psíquica de 5%;
- EEE) Atento o seu estado de saúde e sobremaneira o abalo psicológico e diminuição física, necessitou o autor de acompanhamento familiar, com deslocação de familiares, até então no continente, para o Funchal;
- GGG) O autor apresenta no abdómen extensas cicatrizes cutâneas abdominais interessando toda a sua largura, de predomínio infra umbilical, mas ultrapassando para cima a sua horizontal, ocupando uma área aproximada de 35x26 cm. A pele dessa região tem características variáveis, com áreas atróficas mais acentuadamente nos quadrantes inferiores, sendo constituída por epiderme de aspeto variável, conforme resultou de cicatrização primária ou de resultado de transferência de retalhos de epiderme, tomando aspeto de parcelamento, o que agrava a dismorfia da região;
- HHH) O autor apresenta no membro inferior direito uma extensa área cicatricial, hipocrómica, interessando a face anterior da coxa, plana, com área aproximada de 13x20 cm, resultante da colheita de enxerto epidérmico e que no membro inferior esquerdo apresenta extensa área cicatricial, hipocrómica, interessando a face anterior e externa da coxa, plana, com área aproximada de 25 x 30 cm, resultante da colheita de enxerto epidérmico;
- III) Pela extensão e aspeto das áreas cicatriciais na região abdominal, o autor sofreu um prejuízo estético que o afeta frequentemente, como por exemplo nos vestiários e balneários desportivos, com necessidade de se resguardar perante os outros, nos termos do relatório do INML de fls. 496;
- JJJ) No caso do autor, pela sua atividade profissional, existe receio do impacto de objeto contundente, designadamente uma bola chutada com maior ou menor violência;
- LLL) Mesmo depois de sair do coma e durante a hospitalização, o autor receou perder a vida;
- MMM) E receou ter de sofrer de uma diminuição das suas capacidades cognitivas futuras, em consequência do coma e das oito anestesias que suportou em seis semanas;
- NNN) O autor ficou acabrunhado com o dano estético que resulta das cicatrizes extensas da parede abdominal e zona do escroto, bem como das coxas de onde foi retirado o material para enxerto;
- OOO) Essas cicatrizes vão manter-se, mesmo após as sugeridas intervenções de recuperação;
- EEEE) O autor foi induzido em coma pois teria de ir ao bloco duas vezes por dia, fazer lavagens daquela região e assim estaria mais cómodo sem dores e sem ser submetido a múltiplas anestesias;
- MMMM) O autor padece de um quantum doloris fixável no grau 5/7;
- NNNN) As sequelas sofridas pelo autor são, em termos de repercussão permanente na atividade profissional, compatíveis com o exercício da atividade habitual, mas implicam esforços suplementares;
- OOOO) O autor ficou a padecer de dano estético permanente fixável no grau 4/7;
- PPPP) O autor ficou a padecer de repercussão permanente na atividade sexual fixável no grau 2/7.
Perante a factualidade que se deixou descrita inequívoco é que o autor sofreu danos de natureza não patrimonial de assinalável gravidade. Sofreu dores muito intensas, esteve em coma induzido, foi submetido a diversas intervenções cirúrgicas e a numerosos tratamentos na câmara hiperbárica. Correu perigo de vida, do que se apercebeu quando não em coma e mesmo depois de sair do coma receou pela vida. Receou a diminuição das suas capacidades cognitivas futuras, como consequência do coma e das oito anestesias que suportou em seis semanas. Apresenta extensas cicatrizes tanto no abdómen como nos membros inferiores direito e esquerdo. Ficou acabrunhado com o dano estético resultante destas cicatrizes. Face à sua atividade profissional receia o impacto de objeto contundente (bola) chutada com maior ou menor violência.
O “quantum doloris” foi fixado no grau 5/7 e o dano estético permanente no grau 4/7. A repercussão negativa do sucedido na actividade sexual foi fixada no grau 2/7.
Por outro lado, não se pode ignorar – e tal é um facto notório – que o autor é um conceituado treinador de futebol, o que faz dele uma figura pública. A situação porque passou, envolvendo estado de coma, foi divulgada pela comunicação social, o que naturalmente amplifica a sua dor e o seu sofrimento. O ocorrido afastou, inclusive, a renovação do seu contrato com o T…, onde estava a fazer um excelente trabalho.[36]
Neste contexto, com recurso à equidade, entendemos como mais ajustado aos contornos do presente caso que a indemnização por danos não patrimoniais se eleve a 40.000,00€, daí resultando, neste segmento, a parcial procedência do recurso subordinado interposto pelo autor e a improcedência do recurso da interveniente “B…, SA”.
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Em resumo, a indemnização a atribuir ao autor será reduzida para 86.214,05€, sendo 46.214,05€ a título de danos patrimoniais e 40.000,00€ a título de danos não patrimoniais.
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Sumário (da responsabilidade do relator – art. 663º, nº 7 do Cód. de Proc. Civil):
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DECISÃO
Nos termos expostos, acordam os juízes que constituem este tribunal em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pelo réu C… e parcialmente procedentes o recurso de apelação interposto pela interveniente “B… – Companhia de Seguros, SA” e o recurso subordinado interposto pelo autor D… e, em consequência, altera-se o decidido, condenando-se o réu e a interveniente a pagarem ao autor a importância global de 86.214,05€ (oitenta e seis mil duzentos e catorze euros e cinco cêntimos), sendo 46.214,05 (quarenta e seis mil duzentos e catorze euros e cinco cêntimos) a título de danos patrimoniais e 40.000,00€ (quarenta mil euros) a título de danos não patrimoniais.
No mais – relativamente a juros – mantém-se o decidido.
Custas em ambas as instâncias na proporção do decaimento.
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Porto, 12.11.2019
Rodrigues Pires
Márcia Portela
José Igreja Matos
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[1] In “O Ónus da Prova nas Acções de Responsabilidade Civil Médica”, comunicação apresentada ao II Curso de Direito da Saúde e Bioética e publicada in “Direito da Saúde e Bioética”, edição da Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, pág. 127.
[2] In “Procriação Assistida e Responsabilidade Médica”, Studia Iuridica, nº 21, BFDC, Coimbra, 1996, págs. 221/2.
[3] Cfr. Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, 4ª ed., vol. I, pág. 440; Almeida Costa, “Direito das Obrigações”, 11ª ed., págs. 539/540.
[4] Cfr. Ac. STJ de 22.9.2011, proc. 674/2001.P L.S1, disponível in www.dgsi.pt.
[5] Cfr. Ac. Rel. Porto de 20.7.2006, p. 0633598, disponível in www.dgsi.pt.
[6] Cfr. Ac. Rel. Lisboa de 20.4.2006, CJ, ano XXXI, tomo II, págs. 110 e segs.
[7] Cfr. João Álvaro Dias, in “O Problema da Avaliação dos Danos Corporais Resultantes de Intervenções e Tratamentos Médico-Cirúrgicos”, vol. nº 11 do Centro de Direito Biomédico da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, pág. 401.
[8] Cfr. Ac. Rel. Porto de 17.6.2014, p. 11279/09.2TBVNG.P1, disponível in www.dgsi.pt.
[9] Cfr. AC STJ de 22.09.2011, relator Bettencourt de Faria, disponível in www.dgsi.pt.
[10] Cfr. também Ac. STJ de 28.1.2016, proc. 136/12.5 TVLSB.L1.S1, disponível in www.dgsi.pt.
[11] Cfr. Knoow.net/ciencmedicas.
[12] Cfr. Ac. Rel. Porto de 27.3.2017, proc. 7053/12.7 TBVNG.P1, disponível in www.dgsi.pt.
[13] Cfr. o já citado Ac. Rel. Porto de 26.1.2016.
[14] Este contexto diferencia, de forma clara, o presente caso do que, referente a uma colonoscopia, foi analisado no Ac. Rel. Porto de 10.2.2015, proc. 2104/05.4 TBPVZ.P1, disponível in www.dgsi., deste mesmo relator.
[15] Cfr. Ac. STJ de 20.1.2010, p. 203/99.9 TBVRL.P1.S1 e Ac. STJ de 11.12.2012, p. 269/06.7 GARMR, ambos disponíveis in www.dgsi.pt.
[16] Cfr. também Ac. STJ de 20.1.2010, p. 203/99.9 TBVRL e Ac. Rel. Porto de 20.3.2012, p. 571/10.3 TBLSD.P1, ambos disponíveis in www.dgsi.pt.
[17] Cfr. João António Álvaro Dias, “Dano Corporal, Quadro Epistemológico e Aspectos Ressarcitórios”, Almedina, 2001, Cap. II, secção I.
[18] Cfr. Ac. STJ de 21.3.2013, p. 565/10.9 TBPVL.S1, disponível in www.dgsi.pt.
[19] Cfr. Menezes Cordeiro, “O Direito”, 122º/272”.
[20] Cfr. Ac. Rel. Porto de 5.5.2014, p. 779/11.4 TBPNF.P1, disponível in www.dgsi.pt.
[21] Cfr. Ac. Rel. Porto de 20.3.2012, p. 571/10.3 TBLSD.P1, disponível in www.dgsi.pt.
[22] Cfr. Ac. Rel. Porto de 11.5.2011, p. 513/08.6 TBMTS.P1, disponível in www.dgsi.pt.
[23] Cfr. Ac. Rel. Porto de 31.1.2013, p. 185/08.8 TBTMC.P1, disponível in www.dgsi.pt.
[24] Cfr. Ac. Rel. Porto de 1.7.2013, p. 2870/11.8 TJVNF.P1, disponível in www.dgsi.pt.
[25] Cfr. Ac. Rel. Guimarães de 27.2.2012, p. 2861/07.3 TABRG.G1, disponível in www.dgsi.pt.
[26] Cfr. Ac. Rel. Guimarães de 22.3.2011, p. 90/06.2 TBPTL, disponível in www.dgsi.pt.
[27] Cfr. Ac. Rel. Porto de 5.5.2014, p. 779/11.4 TBPNF.P1, disponível in www.dgsi.pt. (onde se recolheu a maioria das indicações jurisprudenciais atrás referidas).
[28] Cfr. Ac. Rel. Porto de 17.6.2014, p. 11756/09.5 TBVNG.P1, disponível in www.dgsi.pt. (do mesmo relator).
[29] Cfr. Ac. Rel. Porto de 9.12.2014, proc. 1491/12.7 TBSTS.P1, disponível in www.dgsi.pt.
[30] Cfr. Ac. Rel. Porto de 18.5.2017, proc. 4135/14.4 TBMAI.P1, disponível in www.dgsi.pt.
[31] Cfr. Ac. Rel. Porto de 27.9.2018, proc. 903/15.8 T8GDM.P1., disponível in www.dgsi.pt.
[32] Cfr. Ac. Rel. Porto de 5.11.2018, proc. 26376/15.7 T8PRT.P1, disponível in www.dgsi.pt.
[33] Cfr, o já referido Ac. Rel. Porto de 19.3.2018.
[34] Cfr. Ac. STJ de 7.7.2009, p. 858/05.7TCGMR, disponível in www.dgsi.pt.
[35] Cfr. Dario Martins de Almeida, “Manual de Acidentes de Viação”, 3ª ed., pág. 274/5.
[36] Na época anterior – 2008/2009 - o T… ficara classificado na 4ª posição da I Liga e no início da época 2009/2010, no play-off da Liga Europa, eliminara o conceito clube russo V… com o agregado de 5/4 (informações recolhidas na Wikipedia).