Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2218/20.0T9VFR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PEDRO AFONSO LUCAS
Descritores: CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
ASSISTENTE
TESTEMUNHAS
RECUSA PRESTAÇÃO DE DEPOIMENTO
PRESSUPOSTOS DE ADMISSIBILIDADE
Nº do Documento: RP202204062218/20.0T9VFR.P1
Data do Acordão: 04/06/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA)
Decisão: CONCEDER PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO.
Indicações Eventuais: 1. ª SECÇÃO CRIMINAL
Área Temática: .
Sumário: I – A possibilidade de recusa em depor prevista no artigo 134.º, nº1, alínea b) do Cód. de Processo Penal (aplicável quer relativamente a testemunhas, cfr. artigo 132º, nº1, alínea d), quer a assistentes, cfr. artigo 145º, nº1, todos do Cód. de Processo Penal), apenas se reporta aos factos ocorridos ao tempo da vivência conjugal ou em comum com o arguido, deixando o direito ao silêncio de ser protegido pela norma supra transcrita quanto a factos ocorridos fora do período do casamento ou da coabitação análoga à dos cônjuges (conforme as situações) – caso em que passa a valer a regra geral da obrigação de prestar depoimento.
II – A advertência prevista no nº 2 do mesmo artigo 134º do Cód. de Processo Penal, só poderá considerar–se validamente efectivada e processualmente tutelada nos respectivos efeitos, quando o teor da mesma corresponda a uma delimitação correcta do direito de recusa de depoimento da pessoa relativamente à qual se verifique uma situação susceptível de beneficiar do direito de recusa em depor.
III – A dispensa decidida pelo tribunal de julgamento de a assistente prestar declarações também quanto a factos ocorridos fora do período do casamento ou da coabitação análoga à dos cônjuges (conforme as situações) com o arguido, revela–se uma indevida aceitação do exercício de um direito de recusa em depor que, no caso, e nessa parte, inexiste, configurando uma nulidade processual.
IV – Por um lado porque a advertência acima assinalada só será processualmente válida se for correctamente efectuada, e depois porque deve considerar–se que a injustificada viabilização daquela recusa se traduz na demissão do tribunal de julgamento de levar a efeito a realização de diligências que são devidas e devem reputar–se essenciais para a descoberta da verdade (como se afigura ser claramente o caso da tomada de declarações à pessoa ofendida por uma actuação que vem imputada como configurando crime de violência doméstica), configurando a omissão em causa a nulidade expressamente prevista no art. 120º/1/d) do Cód. de Processo Penal.
V – Tal nulidade processual. que foi oportunamente suscitada, afecta e invalida o próprio e específico procedimento objecto de recurso – que deve, assim, ser repetido –, bem como, naturalmente, todos os posteriores actos da audiência de julgamento, e assim também a consequente sentença proferida pelo tribunal a quo – o que se determina
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 2218/20.0T9VFR.P1
Referência : 15608811

Tribunal de origem : Juízo Local Criminal de Santa Maria da Feira, Juiz 2 – Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro

I. RELATÓRIO
No âmbito da processo nº 2218/20.0T9VFR que corre termos no Juízo Local Criminal de Santa Maria da Feira - Juiz 2, foi em 17/11/2021 foi proferida sentença, cujo dispositivo é do seguinte teor :
« DECISÃO
Nos termos supra expostos, decido:
1) Absolver o arguido AA do crime de violência doméstica que lhe era imputado.
2) Por convolação fáctico-jurídica do crime de violência doméstica, para os crimes de ameaça, previsto e punido pelo artigo 153.º, n.o 1, do Código Penal, e de injúria, previsto e punido pelo artigo 181.º, n.º 1, do Código Penal, declarar extinto o procedimento criminal nestes autos iniciado contra o arguido AA, por homologação da desistência de queixa apresentada pela ofendida BB.
3) Homologar a transacção alcançada por demandante e demandado quanto ao pedido de indemnização civil, declarando, consequentemente, extinta a instância cível conexa.
4) Custas criminais a cargo da assistente, fixando-a taxa de justiça no mínimo legal, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário que lhe foi concedido [artigo 515.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal].
5) Custas cíveis a cargo da demandante e demandando, em partes iguais, [artigos 523.º do Código de Processo Penal e 537.º, n.º 1, do Código de Processo Civil], sem prejuízo do benefício de apoio judiciário que à demandante foi concedido. »
Previamente à prolação da aludida sentença, e em sede de audiência de julgamento – mais concretamente na sessão do dia 29/10/2021, conforme da acta respectiva consta – depois de a Mma. Juiz presidente haver aceite que a assistente BB se recusasse a depor quanto a todos os factos constantes da acusação, dispensando-a da audiência de julgamento, o Ministério Público ditou para a acta um requerimento pelo qual propugnou para que a assistente fosse inquirida acerca dos factos constantes da acusação ocorridos posteriormente ao seu divórcio do arguido AA, sob pena de, violação do art. 134º/1/b) do Código de Processo Penal, requerimento relativamente ao qual a Mma. Juiz proferiu despacho indeferindo o pedido de inquirição da assistente relativamente aos factos posteriores ao divórcio, julgando e mantendo válida aquela recusa, despacho que é do seguinte teor, conforme transcrição exarada na mesma acta :
«A prova por declarações da assistente, como qualquer prova a produzir em julgamento tem, desde logo, de conferir a todos os sujeitos processuais, máxime o arguido, o pleno exercício do direito do contraditório. Ora, admitindo-se a interpretação do artigo 134.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal, agora sustentada pelo Ministério Público, estar-se-ia a vedar aquele pleno exercício do contraditório, impedindo-se, entre o mais, a averiguação dos antecedentes dos factos, devendo entender-se que o depoimento, in casu as declarações da assistente, têm obrigatoriamente de incidir sobre todos os factos pertinentes para a boa decisão da causa e descoberta da verdade material, tanto mais que se tratam de factos sequenciais, de um pedaço histórico de vida a ser apreciado como um todo, pelo que não pode, nem deve ser cindido.
Em face do exposto, julgo válida a recusa da assistente em prestar declarações, nos termos previstos no artigo 134.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal, por à data de parte dos factos descritos na acusação pública a assistente ser casada com o arguido.».
Inconformado quer com o teor do despacho agora referenciado, quer da sentença entretanto proferida nos autos, veio o Ministério Público apresentar, em 19/11/2021, recurso no âmbito do qual suscita a nulidade do aludido despacho, e impugna a sentença proferida, extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões :
I. O arguido foi acusado da prática de um crime de violência doméstica, sendo que a assistente se divorciou dele em 01/06/2021;
II. Na audiência de julgamento que teve lugar no dia 29/10/2021 a Meritíssima Juiz fez uma advertência incorreta da assistente, não lhe transmitindo que tinha de prestar declarações relativamente aos factos da acusação posteriores ao divórcio e que a prerrogativa do silêncio apenas abarcava os factos ocorridos anteriormente;
III. A Meritíssima Juiz aceitou que a assistente se recusasse a depor quanto a todos os factos constantes da acusação e, em consequência, dispensou-a da audiência de julgamento após ter-lhe sido dado essa possibilidade;
IV. Nessa altura, o recorrente fazendo uso palavra e ditando para a ata pugnou para que a assistente fosse inquirida acerca dos factos ocorridos posteriormente ao divórcio, sob pena de violação do art.º 134º, n.º 1, al. b) do Código de Processo Penal;
V. No entanto, a Meritíssima Juiz proferiu um despacho que indeferiu o pedido de inquirição da assistente relativamente aos factos posteriores ao divórcio, julgando e mantendo válida essa recusa;
VI. O art.º 134º, n.º 1, al. b) do C.P.P. prevê que: “Podem recusar-se a depor como testemunhas: Quem tiver sido cônjuge do arguido ou quem, sendo de outro ou do mesmo sexo, com ele conviver ou tiver convivido em condições análogas às dos cônjuges, relativamente a factos ocorridos durante o casamento ou a coabitação”;
VII. O direito ao silêncio deixa de ser protegido pela norma quanto a factos ocorridos fora do período de coabitação valendo, neste caso, a regra geral da obrigação de prestar depoimento.
VIII. Ao proceder da forma supra descrita, o Tribunal “a quo” incorreu numa nulidade que afeta todos os atos praticados posteriormente, designadamente a sentença, subtraindo-a da valoração de um depoimento que era legalmente obrigatório, nos termos do disposto nos artigos 122º, n.º 1, 131º, n.º 1 e 134º, n.º 1, al. b) do C.P.P.;
IX. O arguido tinha um completo domínio e subjugação sobre a sua ex-mulher, fruto da dependência económica que a mesma tinha dele após o divórcio e com o filho de ambos aos seus cuidados;
X. A conduta do arguido personifica uma instrumentalização e coisificação da ofendida consolidada em injurias, ameaças e coação, com laivos de crueldade e perversidade, que manifestamente atentam contra a dignidade da vítima enquanto pessoa;
XI. O comportamento do arguido, que resulta da matéria de facto provada na sentença com suporte nas mensagens que reiteradamente lhe enviou, integra o conceito de maus tratos psíquicos e afetou a dignidade pessoal da ex-mulher, pondo em causa o seu bem-estar e saúde psicológica e, por conseguinte, estava verificada a prática do crime de violência doméstica;
XII. E, ainda que assim não se entendesse, a desqualificação jurídica operada nunca poderia redundar apenas nos crimes de ameaça e injuria, visto que a conduta do arguido integrou também a prática de um crime de coação que resulta evidente da análise global das mensagens, quando o mesmo sabedor de que a assistente não queria mais manter contatos consigo, pretendeu mantê-los contra a vontade dela, ameaçando-a velada e explicitamente de que se não o fizesse, não lhe daria mais dinheiro para pagar a renda da habitação e a pensão de alimentos do filho e divulgaria fotografias intimas suas pela internet;
XIII. Tanto num caso, como no outro, estamos perante crimes que revestem natureza pública e não admitem desistência de queixa;
XIV. Ao proceder à desqualificação jurídica do crime de violência doméstica para os crimes de injuria e ameaça homologando a desistência de queixa, o Tribunal “a quo” violou o artigo 152º, n.ºs 1, al. a) e 2 do C.P. (e, subsidiariamente o artigo 154º, n.º 1 do C.P.) e o artigo 50º, n.º 2 do C.P.P.;
Termina propugnando que deve o presente recurso merecer provimento e, em consequência revogar-se o despacho judicial de 29/10/2021 (e a sentença proferida) e ordenar–se que seja determinada a reabertura da audiência de julgamento para inquirição da assistente, acerca dos factos comportamentais do seu ex-marido em época posterior à dissolução do casamento, por divórcio, ou seja, após 01/06/2020 e oportuna sopesação do valor probatório do assim eventualmente adquirido conteúdo informativo e produção de nova e pertinente resolução sentencial.
Caso assim não se entenda, deverá revogar-se a sentença proferida e condenar o arguido pela prática de um crime de violência doméstica, porquanto a matéria de facto provada é suficiente para dar por verificado aquele crime.

O recurso, em 25/11/2021, foi admitido.

Ao recurso respondeu o arguido AA, em 10/01/2022, concluindo da seguinte forma :
I. O presente recurso está centrado na não conformação com o despacho judicial proferido no dia 29/10/2021 que julgou válida a recusa da assistente BB em prestar depoimento quanto aos factos constantes da acusação ocorridos após o divórcio\separação do arguido bem como da sentença absolutória que homologou a desistência de queixa da assistente proferida.
II. Ora, salvo o devido respeito, a decisão do tribunal a quo não merece qualquer reparo, uma vez que toda a prova produzida demonstrou que o tribunal a quo valorou devidamente as normas jurídica e assim, atenta a posição da assistente em julgamento e na total ausência de prova testemunhal, os documentos juntos aos autos não possuem de per se tal virtualidade, mormente quanto ao fito alegadamente prosseguido pelo arguido.
II. Pelo exposto decidiu bem o tribunal a quo, dando como não provado e absolver o arguido AA do crime de violência doméstica que lhe era imputado, por convolação fáctico-jurídica do crime de violência doméstica, para os crimes de ameaça, previsto e punido pelo artigo 153.º, n.o 1, do Código Penal, e de injúria, previsto e punido pelo artigo 181.º, n.º 1, do Código Penal e declarar extinto o procedimento criminal tenha agredido o ofendido, absolvendo-o, assim, da prática do crime de ofensas à integridade física, p. e p. pelo 143°, do CP.
Termina defendendo que a sentença deve ser confirmada, negando-se provimento ao recurso interposto.

Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, em 08/03/2022, no parecer que emitiu, assume uma posição híbrida, que se resume nos seguintes termos:
«Propendemos para considerar que a posição do Mº Público é a que melhor se coaduna com a letra da lei. A Mª Juiz não deveria ter considerado legitima a recusa do depoimento quanto aos factos ocorridos depois do divórcio que constam da acusação. Mas daí não resulta que se adira à posição do Mº Público expressa na parte final do seu recurso, no sentido que deve ser ordenada a reabertura da audiência de julgamento para inquirição da assistente acerca dos factos comportamentais do ex-marido posteriores ao divórcio. (…)
Analisado o processo, a acusação e a sentença, não é ousado dizer que estamos perante factos que no contexto do crime de violência doméstica não têm elevada densidade criminal. (…)
Ou seja, não parece existir uma situação de carência de tutela penal que imponha, perentoriamente, a revogação da sentença recorrida e a sua substituição por outra que condene o arguido pela prática de um crime de violência doméstica, como defende o Mº Público no número 2) do recurso.
Termos em que, e sempre sem prejuízo de melhor opinião, deverá manter-se a sentença recorrida, ainda que com as assinaladas deficiências e limitações acima apontadas ».

Cumprido o disposto no artigo 417º/2 do Cód. de Processo Penal, nada veio a ser acrescentado no processo.

Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos, foram os autos submetidos a conferência.

Nada obsta ao conhecimento do mérito, cumprindo, assim, apreciar e decidir.
*

II. APRECIAÇÃO DO RECURSO
O objecto e o limite de um recurso penal são definidos pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, devendo assim a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas –, sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito, como são designadamente os vícios da sentença previstos no art. 379º ou no art. 410º/2, ambos do Cód. de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (cfr. Sentença do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R. I–A Série, de 28/12/1995).
São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões, da respectiva motivação, que o tribunal ad quem tem de apreciar – cfr. arts. 403º, 412º e 417º do Cód. de Processo Penal e, entre outros, Sentenças do S.T.J. de 29/01/2015 (in Proc. nº 91/14.7YFLSB. S1 – 5ª Secção)[1], e de 30/06/2016 (in Proc. nº 370/13.0PEVFX.L1.S1 – 5.ª Secção)[2]. A este respeito, e no mesmo sentido, ensina Germano Marques da Silva, ‘Curso de Processo Penal’, Vol. III, 2ª edição, 2000, fls. 335, «Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões».

A esta luz, as questões a conhecer e decidir no âmbito do presente sentença são as seguintes :
1. se deve ser decretada a nulidade do despacho proferido na sessão da audiência de julgamento do dia 29/10/2021 (e que dispensou a assistente BB de prestar declarações quanto aos factos constantes da acusação ocorridos após o seu divórcio do arguido) e de todos os actos processuais posteriores ao mesmo.
2. se, caso se entenda improcedente a questão anterior, a matéria de facto provada em sede de sentença configura a verificação dos pressupostos para condenar o arguido pelo crime de violência doméstica ou de coacção.

Apreciemos então as questões suscitadas, pela ordem de prevalência processual sucessiva que revestem.
*
1. De saber se deve ser decretada a nulidade do despacho proferido na sessão da audiência de julgamento do dia 29/10/2021 (e que dispensou a assistente BB de prestar declarações quanto aos factos constantes da acusação ocorridos após o seu divórcio do arguido) e de todos os actos processuais posteriores ao mesmo.

Como de início se relatou, vem nesta parte o Ministério Público recorrer do despacho judicial proferido na sessão da audiência de julgamento do dia 29/10/2021 e pelo qual foi admitida – e mantida tal decisão – de permitir a recusa da assistente BB de prestar declarações quanto aos factos constantes da acusação ocorridos após o seu divórcio do arguido, propugnando que o direito daquela ao silêncio deixa de ser protegido pelo art. 134º/1/b) do Cód. de Processo Penal quanto a factos ocorridos fora do período de coabitação valendo, neste caso, a regra geral da obrigação de prestar depoimento.
Donde, refere, ao proceder da forma ora impugnada o tribunal a quo incorreu numa nulidade que afecta todos os actos praticados posteriormente, designadamente a sentença, subtraindo-a da valoração de um depoimento que era legalmente obrigatório.

São as seguintes as incidências processuais relevantes a considerar para apreciação e decisão deste recurso :
1º, Mediante acusação deduzida pelo Ministério Público, foi o arguido AA sujeito a julgamento em tribunal singular, sendo–lhe imputada a prática, em autoria material, de um crime de violência doméstica agravado, previsto e punido pelo artigo 152º/1/a)/2/a)/4/5/6, do Código Penal,
2º, Na sessão de audiência de julgamento do dia 29/10/2021, e estando presente para lhe serem tomadas declarações a assistente BB, ex–cônjuge do arguido, da acta consta que a mesma, «Advertida pela Mm.ª Juiz de Direito, nos termos do disposto no art.º 134º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal, disse não pretender prestar declarações»,
3º, De imediato, pelo Procurador da República presente em audiência foi pedida a palavra e, sendo-lhe concedida, requereu que «pese embora a aqui assistente tenha referido que não pretende prestar declarações acerca dos factos, o certo é que da acusação constam um elenco de factos posteriores ao divórcio, em particular os descritos na acusação no ponto 11 a partir da alínea f) em diante bem como no ponto 12, todos eles, o que no fundo sustenta em grande parte a prática de um crime de violência doméstica, sendo que nessa data a assistente já não era casada com o arguido, pelo que entendemos que a mesma não pode recusar-se a depor acerca destes factos, ou seja, os que ocorreram após a data do divórcio, sob pena de violação do art.º 134º, n.º 1, alínea b), do CPP.»,
4º, Pronunciando–se quanto ao requerido, pela Mandatária da Assistente pela mesma foi dito que «a assistente já manifestou a sua vontade de se recusar a prestar o seu depoimento, pelo que os factos da acusação são quer anteriores quer posteriores ao divórcio, pelo que entende a assistente que pode recusar-se a depor, uma vez que não dá para desdobrar a acusação», e pelo Defensor do arguido foi dito «reiterar o requerimento da Ilustre Mandatária da Assistente»,
5º, Seguidamente pela Mma. Juiz presidente foi proferido o despacho ora recorrido, pelo qual indeferiu o pedido de tomada de declarações à assistente, julgando e mantendo válida aquela recusa, despacho que é do seguinte teor : « A prova por declarações da assistente, como qualquer prova a produzir em julgamento tem, desde logo, de conferir a todos os sujeitos processuais, máxime o arguido, o pleno exercício do direito do contraditório. Ora, admitindo-se a interpretação do artigo 134.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal, agora sustentada pelo Ministério Público, estar-se-ia a vedar aquele pleno exercício do contraditório, impedindo-se, entre o mais, a averiguação dos antecedentes dos factos, devendo entender-se que o depoimento, in casu as declarações da assistente, têm obrigatoriamente de incidir sobre todos os factos pertinentes para a boa decisão da causa e descoberta da verdade material, tanto mais que se tratam de factos sequenciais, de um pedaço histórico de vida a ser apreciado como um todo, pelo que não pode, nem deve ser cindido.
Em face do exposto, julgo válida a recusa da assistente em prestar declarações, nos termos previstos no artigo 134.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal, por à data de parte dos factos descritos na acusação pública a assistente ser casada com o arguido.»

Apreciando.

Resulta do disposto no art. 134º/1/b) do Cód. de Processo Penal que em sede de julgamento «Podem recusar-se a depor como testemunhas … Quem tiver sido cônjuge do arguido ou quem, sendo de outro ou do mesmo sexo, com ele conviver ou tiver convivido em condições análogas às dos cônjuges, relativamente a factos ocorridos durante o casamento ou a coabitação» (sublinhado ora aposto) – regime que é aplicável à tomada de declarações ao assistente nos termos do art. 145º/3 do Cód. de Processo Penal, onde se dispõe que «A prestação de declarações pelo assistente e pelas partes civis fica sujeita ao regime de prestação da prova testemunhal, salvo no que lhe for manifestamente inaplicável e no que a lei dispuser diferentemente».
De forma muito sucinta se dirá que a norma, ao conferir a faculdade de recusa de depoimento a determinadas pessoas, em razão dos laços de família ou de natureza semelhante com o arguido, pretende evitar que quem vive ou viveu com o arguido como cônjuge, ou em condições análogas às dos cônjuges, seja colocado perante a alternativa de, ou mentir, correndo o risco de ser responsabilizado criminalmente, ou não mentir e concorrer para a condenação do cônjuge ou companheiro, assim desmantelando a relação de confiança inerente à relação.
Em tal caso, porém, a recusa em depor apenas se reporta aos factos ocorridos ao tempo da vivência conjugal ou em comum, deixando o direito ao silêncio de ser protegido pela norma supra transcrita quanto a factos ocorridos fora do período do casamento ou da coabitação análoga à dos cônjuges (conforme as situações) – caso em que passa a valer a regra geral da obrigação de prestar depoimento.
Por sua vez, e em salvaguarda do direito assim concedido aos sujeitos processuais investidos naquela qualidade (de depoentes ou declarantes) relativamente aos quais se verifique uma situação susceptível de lhes permitir a recusa a prestar depoimento, prevê o nº2 do mesmo art. 134º do Cód. de Processo Penal que «A entidade competente para receber o depoimento adverte, sob pena de nulidade, as pessoas referidas no número anterior da faculdade que lhes assiste de recusarem o depoimento».
Ou seja, a aludida comunicação prévia, além de visar esclarecer a pessoa objecto da mesma do direito que lhe assiste, e das consequências a que, prescindindo do mesmo, poderá estar sujeita nos termos gerais, salvaguarda também a validade processual quer da aludida recusa, quer da desnecessidade de proceder à recolha do depoimento em causa e da sua respectiva valoração pela entidade que preside ao acto – máxime o tribunal de julgamento.
Contanto que a advertência seja adequada e correctamente efectuada, claro está.
Ou seja, só poderá considerar–se a advertência aqui em causa validamente efectivada e processualmente tutelada nos respectivos efeitos, quando o teor da mesma corresponda a uma delimitação correcta do direito de recusa de depoimento da pessoa relativamente à qual se verifique uma situação susceptível de do mesmo beneficiar.
E assim é, precisamente, porque a regra é a do dever de prestar depoimento ou declarações, e de o fazer com verdade – quer relativamente a testemunhas (cfr. art. 132º/1/d) do Cód. de Processo Penal) quer a assistentes (cfr. art. 145º/1 do Cód. de Processo Penal) –, sendo os motivos da respectiva recusa a excepção.

Ora, no presente caso mostra–se indiscutivelmente demonstrado nos autos que a assistente BB foi casada com o arguido AA, tendo entre ambos ocorrido divórcio, decretado por sentença datada de 01/06/2020 (cfr. documentos de fls. 10/12, 18/19 e 24/25 dos autos).
E não resulta sequer invocado no momento da advertência e recusa ora em análise, conforme claramente resulta da acta de audiência respectiva, que depois dessa data hajam arguido e assistente mantido qualquer relacionamento em condições análogas àquele próprio dos cônjuges entre si – sendo, aliás, que o despacho recorrido inclusive termina com a referência a que julga válida a recusa da assistente em prestar declarações «por à data de parte dos factos descritos na acusação pública a assistente ser casada com o arguido», donde se confirma ser apenas e só essa (a entretanto extinta relação conjugal) a circunstância que, no entender do tribunal a quo, permite integrar o fundamento de recusa sufragado.
Consequentemente, inexistindo entre arguido e assistente qualquer ligação conjugal desde aquela data, assim como subsequentemente ao divórcio qualquer união de facto similar e análoga a tal conjugalidade, a mesma assistente não pode beneficiar do referenciado direito legal de recusa a prestar declarações em audiência de julgamento relativa ao seu ex-marido (arguido), em tudo o que diga respeito a factos que constituam objecto da imputação criminal e que hajam tido lugar (alegadamente, claro está) posteriormente a essa mesma data de 01/06/2020 (correspondente ao divórcio).
Ora, como bem refere o Ministério Público em sede de alegações no recurso, a maioria dos factos retratados na acusação pública diz respeito a acontecimentos posteriores a essa data – cfr. artigos 11º, alíneas f) a j), 12º alíneas a) a bbb), e 13º da aludida peça acusatória.
Relativamente a esses factos, e ao contrário do que vem decidido pela primeira instância, impõe–se à assistente o correspectivo dever de prestar declarações, desde logo sob pena de incursão em responsabilização criminal, nos termos do art. 359º/2 do Cód. Penal.
E assim deve entender–se ainda que que esses factos consubstanciem apenas parte da factualidade imputada ao arguido.
Na verdade, e citando por exemplo o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 05/05/2015 (proc. 703/10.1GBSLV.E1)[3], «A recusa em depor, nos termos do artigo 134º, nº 1 do Código de Processo Penal, pode ser parcial, no caso por referência ao tempo da vivência em comum». Pelo que a dispensa decidida pelo tribunal de julgamento de a assistente prestar declarações também quanto a tal núcleo de factos, se revela uma indevida aceitação do exercício de um direito de recusa em depor que, no caso, e nessa parte, inexiste.
E não colhe sequer aqui a argumentação expendida na decisão recorrida para sustentar a dispensa em causa.
Na verdade, e por um lado, obstáculo algum decorreria da prestação de declarações ainda que quanto a parte dos factos por reporte às garantias de defesa e do contraditório, já que, ocorrida tal recolha de declarações em plena audiência de julgamento, nesta se permite a ampla abordagem e discussão sobre o respectivo objecto, qualquer que este seja. Por outro lado, e quanto respeita à concatenação dessas declarações com a ponderação sobre os demais factos imputados e sobre que aquelas não possam directamente incidir, essa é questão que respeita ao exercício que incumbe ao tribunal de julgamento de valoração da prova que seja validamente produzida, não sendo adequado seleccionar os meios de prova permitidos, e que revistam interesse para a decisão da causa, em função das dificuldades que, a jusante, isso possa eventualmente acarretar no âmbito de tal exercício de motivação de facto.

A lei processual penal consagrou em matéria de invalidades o princípio da legalidade, segundo o qual a violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei, sendo que nos casos em que a lei não cominar a nulidade o acto ilegal é irregular – cfr. nºs 1 e 2 do art. 118° do Cód. de Processo Penal.
Ora, no presente caso, considera–se que a indevida permissão de recusa de depoimento também quanto aos factos relativamente aos quais inexiste o respectivo direito, configura uma nulidade processual sob uma dupla vertente.
Por um lado, porque, como vimos, decorre do disposto no nº 2 do art. 134º do Cód. de Processo Penal que incumbe à entidade competente para receber o depoimento efectuar, sob pena de nulidade, a devida advertência da faculdade de recusar o depoimento aos depoentes/declarantes que estejam em situação de dela mesma beneficiar. É, contudo, pressuposto de inteira validade de tal advertência, que a mesma seja efectuada correcta e adequadamente – o que, no caso, significa com devido esclarecimento dos limites objectivos dessa faculdade de recusa. Ou seja, só será válida a advertência correctamente efectuada, e que não se traduza na viabilização de uma recusa em depor/prestar declarações que comprometa indevidamente a exigível missão judicial de busca da verdade material, histórica e prático-jurídica, postulada designadamente nas regras processuais assentes sob os arts. 124º, 322º/1, 323º/a)/b), 340º/1 e 348º/3/5 do Cód. de Processo Penal.
Nesta imediata sequência, e é a segunda vertente pela qual o acto recorrido deve considerar–se ferido de nulidade, deve considerar–se que a injustificada viabilização daquela recusa se traduz na demissão do tribunal de julgamento de levar a efeito a realização de diligências que são devidas (desde logo porque oportunamente requeridas por quem tem funcional legitimidade para o efeito) e devem reputar–se essenciais para a descoberta da verdade (como se afigura ser claramente o caso da tomada de declarações à pessoa ofendida por uma actuação que vem imputada como configurando crime de violência doméstica) – e, nestes termos, a omissão em causa configura ademais a nulidade expressamente prevista no art. 120º/1/d) do Cód. de Processo Penal.
Neste exacto sentido, e aliás em situação processual absolutamente similar, veja–se nomeadamente o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 28/11/2018 (proc. 45/17.1GCCVL.C1)[4].
Estamos, seja como for, perante uma nulidade que, não sendo insanável, deve ser objecto de arguição pelo interessado nos termos e prazo previstos na alínea a) do nº 3 deste mesmo art. 120º do Cód. de Processo Penal – isto é, até que o acto em que a mesma ocorreu, porque estando no mesmo presentes os sujeitos processuais interessados, esteja terminado.
Foi o que sucedeu no caso, como vimos, em que pelo Ministério Público, em acto imediatamente seguido à decisão de dispensa da assistente de prestar declarações, suscitou a questão de esse ser um acto não permitido, e requereu a inversão do decidido.
A nulidade processual em causa tem como efeito o de tornar inválido o acto em que se verifique, assim como aqueles que dele dependerem e que possam ser afectados pela mesma, sendo a abrangência processual dos efeitos de tal nulidade determinada na decisão que a reconheça e declare – tudo nos termos prevenidos no art. 122º/1/2 do Cód. de Processo Penal.
Pois bem, a nulidade em causa afecta e invalida o próprio e específico procedimento objecto de recurso – que deve, assim, ser repetido –, bem como, naturalmente, todos os posteriores actos da audiência de julgamento, e assim também a consequente sentença proferida pelo tribunal a quo.
Impõe–se, pois, por via da procedência do primeiro segmento do presente recurso, a consequente determinação de reabertura da audiência de julgamento para pertinente tomada de declarações a BB, na qualidade jurídico-processual de assistente, sendo–lhe efectuada a devida advertência prevista no art. 134º/1/b)/2 do Cód. de Processo Penal, com expressa ressalva de que a recusa em causa não poderá abranger os assacados actos comportamentais do seu ex-marido em época posterior à dissolução do casamento por divórcio, ou seja, após 01/06/2020, seguindo–se os ulteriores termos processuais, com oportuna ponderação do valor probatório também das declarações que vierem assim a ser prestadas (em conjugação com a demais prova produzida ou eventualmente ainda a produzir nos autos), e produção de nova sentença.
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Nestes termos, fica obviamente prejudicada a apreciação do recurso na parte do mesmo que respeitava à sentença absolutória proferida.
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III. DECISÃO
Nestes termos, e em face do exposto, decide–se conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, consequentemente :
1º, anular a decisão proferida pelo tribunal a quo na sessão da audiência de julgamento do dia 02/11/2021 e que considerou válida a recusa de integral prestação de declarações pela assistente BB, e bem assim todos os actos processuais subsequente à mesma decisão, incluindo a sentença entretanto proferida,
2º, ordenar o retorno do processo à primeira instância para reabertura da audiência de julgamento pela mesma Mma. Juíza de Direito, com pertinente tomada de declarações à assistente, sendo–lhe efectuada a devida advertência prevista no art. 134º/1/b)/2 do Cód. de Processo Penal, com expressa ressalva de que a recusa em causa não poderá abranger os assacados actos comportamentais do seu ex-marido em época posterior à dissolução do casamento por divórcio, ou seja, após 01/06/2020, seguindo–se os ulteriores termos processuais, incluindo oportuna prolação de nova sentença sobre a integralidade do objecto processual.

Sem Custas.
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Porto, 6 de Abril de 2022.
Pedro Afonso Lucas
Pedro Lima
Francisco Marcolino
(Texto elaborado pelo signatário, e revisto integralmente – sendo a assinatura autógrafa substituída pela electrónica aposta no topo da primeira página)__________________________________
[1] Relatado por Nuno Gomes da Silva, acedido em www.dgsi.pt/jstj.nsf
[2] Relatado por Arménio Sottomayor, acedido em https://www.stj.pt
[3] Relatado por Carlos Jorge Berguete, acedido em www.dgsi.pt/jtre.nsf
[4] Relatado por Abílio Ramalho, acedido em www.dgsi.pt/jtrc.nsf