Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
370/16.9T9PRD.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA DOLORES DA SILVA E SOUSA
Descritores: CRIME DE INJÚRIAS
RECURSO
LEGITIMIDADE DO ASSISTENTE
INTERESSE EM AGIR
Nº do Documento: RP20180530370/06.9T9PRD.P1
Data do Acordão: 05/30/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: REJEIÇÃO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS Nº762, FLS.40-49)
Área Temática: .
Sumário: I - O interesse em agir do assistente, para interpor recurso, tem a ver com a necessidade de lançar mão desse meio para reagir contra uma decisão que tenha para si uma desvantagem, frustre uma sua expectativa ou interesse legítimo.
II – O assistente carece de interesse em agir para recorrer de uma decisão condenatória se pede apenas o agravamento da pena em que o arguido foi condenado.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Rec. Penal n.º 370/16.9T9PRD.P1
Comarca do Porto Este
Juízo Local Criminal de Paredes.

Acordam, em Conferência, na 2ª secção criminal do Tribunal da Relação do Porto.
I - Relatório.
No Processo Comum singular n.º 370/16.9T9PRT do Juízo Local Criminal de Paredes, Juiz 1, foram submetidos a julgamento os arguidos B…, C…, melhor identificados na sentença a fls. 232 [que juntamente com D… também têm a qualidade de assistentes (este último só tem esta qualidade)].
A Sentença de 4 de Dezembro de 2017, depositado no mesmo dia, tem o seguinte dispositivo:
«A) Quanto à parte criminal
1.º Julgar improcedente por não provada a acusação pública e, em consequência, absolver o arguido B… de dois crimes de coação previstos e punidos pelos art.º 154.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, al. a), ambos do Código Penal;
2.º Julgar improcedente por não provada a acusação particular deduzida pelo assistente D… e, em consequência, absolver o arguido B… do crime de injúrias, p. e p. pelo art.º 181.º do Código Penal;
3.º Declarar o arguido B…., culpado como autor material de um crime de injúrias, p. p. pelo artigo 181.º, n.º 1, do Código Penal, mas dispensá-lo de pena;
4.º Declarar a arguida C…, culpada como autora material de um crime de injúrias, p. p. pelo artigo 181.º, n.º 1, do Código Penal, mas dispensá-la de pena.
B) Quanto à parte cível
1.º Julgar improcedente o pedido de indemnização cível formulado pelo demandante B… contra a demandada C… e, em consequência, absolvê-la do pedido;
2.º Julgar improcedente o pedido de indemnização cível formulado pela demandante C… contra o demandado B…. e, em consequência, absolvê-lo do pedido;
3.º Julgar improcedente o pedido de indemnização cível formulado pelo demandante D…. contra o demandado B… e, em consequência, absolvê-lo do pedido;
3.º Julgar improcedente o pedido de indemnização cível formulado pelos demandantes D… e C… contra o demandado B… e, em consequência, absolvê-lo do pedido.
*
Condeno os assistentes B…, C… e D…, no pagamento das custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC
*
Sem custas cíveis – art.º 4.º, al. n) do RCP.
(…)»
*
Inconformados com a decisão, os assistentes D… e C… interpuseram recurso apresentando a motivação de fls. 271 a 284, que rematam com as seguintes conclusões:
«1.- O presente recurso vem interposto da decisão proferida sobre a matéria de direito.
2.- Os Recorrentes pretendem colocar em crise a sentença de fls..., na parte em que dispensou o arguido B… de pena, depois de o ter declarado culpado como autor material de um crime de injúrias, p. p. pelo artigo 181.°, n.° 1, do Código Penal.
3.- É questão a apreciar em sede de recurso a dispensa de pena e a dispensa de pena em relação ao arguido B….
4. - O tribunal "a quo" deu como provados, entre outros, os seguintes factos:
(...)
5.- É do entendimento do recorrente que em face da factualidade dada como provada em juízo e ao direito aplicável, não poderia ser o arguido B… dispensado da pena do crime de injúrias em que foi condenado.
6.- Ao decidir pela dispensa de pena em relação ao supra referido arguido, o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 375.° do C.P.P. e 186.° e 74.° do Código Penal.
(...)
8.- Da factualidade vertida em 15° dos factos provados, resulta que as imputações injuriosas que configuram o crime pelo qual o arguido B… foi condenado decorreram em simultâneo com as injurias de que o mesmo, foi vitima da arguida C…,
9.- Mas, se isso é verdade, não é menos verdade que desse facto não se poderá concluir, como o fez o Mmo. Juíz a quo, que as imputações injuriosas que configuram o crime pelo qual o arguido foi condenado decorreram no âmbito de uma discussão e como reação ilícita a uma injuria que também ele tinha sofrido.
10.- Quer-se com isto dizer que , no caso dos autos, em face da factualidade provada com relevância para a questão em apreço, não ficou demonstrado que as injuriais que o arguido comprovadamente proferiu tenham resultado de mera retorsão.
11.- Ao considerar-se provado na douta sentença , que as imputações injuriosas de um arguido ao outro foram feitas em simultâneo, ou seja, ao mesmo tempo, não se poderá concluir que estamos perante uma reação dos arguidos a uma outra injuria que tenham sofrido.
12.- Andou por isso mal o Tribunal ao lançar mão do instituto da dispensa de pena a que alude o artigo 186°, n° 3 do C.Penal,
13.- A dispensa de pena, mesmo nos casos avulsamente previstos no Código Penal, está sujeita ao regime geral do art.° 74°, do mesmo Diploma, como expressamente resulta do n.° 3, deste normativo, que dispõe que "quando uma outra norma admitir, com carácter facultativo, a dispensa de pena, esta só tem lugar se no caso se verificarem os requisitos contidos nas alíneas do n° 1", ou seja, se a ilicitude do facto e a culpa do agente forem diminutas; se o dano tiver sido reparado e se à dispensa de pena se não opuserem razões de prevenção.
14.- Resulta da fundamentação da sentença sob recurso que "Os arguidos ao proferirem, num contexto de desavença, essas expressões atingiram «o património pessoal», enxovalhando-o e humilhando-o como pessoa, sabido que tais expressões comporta uma carga pejorativa para a comunidade em geral»
As expressões proferidas pelos arguidos nas circunstâncias atrás descritas, fizeram com que os assistentes ficassem humilhados e vexados na sua honra e consideração pessoal. E os arguidos agiram com dolo, porquanto agiram com o propósito de os atingir na sua honra e dignidade pessoal.
Inexistindo qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa, dúvidas inexistem do preenchimento do tipo legal pelos arguidos..."
15.- No caso dos autos o Mmo. Juiz a quo considerou não existir qualquer causa de exclusão da ilicitude e da culpa dos arguidos; que os arguidos agiram com dolo e com o propósito de atingir a honra e consideração pessoal um do outro.
16.- Sucede que, o instituto da dispensa da pena está, conforme decorre da lei, previsto para os ilícitos de reduzida dignidade penal, em que a ilicitude do facto e a culpa do Agente são diminutas,
17.- O que não é o caso dos autos, uma vez que, a sentença refere uma conduta dolosa dos arguidos, sem causas de exclusão da ilicitude e da culpa e com carga pejorativa para a comunidade geral,
18.- A sentença em crise, é completamente omissa quanto ao grau da culpa e ilicitude da atuação dos arguidos, pelo que, não se retira da sentença que a ilicitude e culpa dos agentes sejam diminutas,
19.- Sendo que, por falta deste requisito, não poderia o Mmo. Juíz a quo lançar mão do instituto da dispensa da pena,
20.- Por outro lado, é também requisito para a dispensa de pena, não existirem razões de prevenção especial e geral que se oponham à dispensa de pena.
21.- No caso em apreço, resultou provado que o arguido B… foi condenado pelo Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este, J2 de Paredes, no processo sumaríssimo n° 416/15.8GAPRD, por sentença transitada em Julgado em 16.05.2016, na pena de 130 dias de multa, à taxa diária de €5,00, pela prática em 2015 de dois crimes de importunação sexual e um crime de ameaça, declarada extinta pelo pagamento por despacho de 16.01.2017.
22.- Decorre pois que, em ano anterior à data da prática dos factos, pelos quais, foi condenado no presente processo, o arguido tinha praticado outros factos de importunação sexual e ameaça, pelos quais foi condenado e que têm grande alarido social, tendo-se mostrado perigoso para a segurança das pessoas, moral e ordem Pública.
23.- O Mmo. Juiz a quo, por entender tratar-se de crime de diferente natureza do dos autos, decidiu que em relação ao arguido B…, não se conjeturavam razões de prevenção quer especial quer geral que estabeleçam estorvo à dispensa de pena,
24.- A nosso ver mal, pois que, a condenação do arguido nos presentes autos não é um episódio ocasional e isolado no contexto de uma vida de resto fiel ao direito é a repetição de condutas contrarias à lei,
25.- Sendo os depoimentos (infelizmente não valorados pelo Tribunal a quo) prestados pela testemunha E… e pelo assistente D…, vizinhos do arguido e pessoas de idade avançada, a prova disso mesmo, sendo que, o primeiro traçou a personalidade do arguido, conforme decorre da sentença, dizendo que é "vingativo"; "com mau feitio" e "profere muitos palavrões".
26.- Resulta pois, que razões de prevenção, exigiam que o arguido B…, não fosse dispensado de pena,
27.- Ao fazê-lo, o Mmo. Juiz a quo, violou também a alínea c) do artigo 74.° do C.Penal.
Termina pedindo a revogação da senteça na parte em que dispensa de pena o arguido B… e a sua substituição por outra que se coadune com a pretensão exposta na motivação e conclusões do recurso.»
*
O recurso foi liminarmente admitido por despacho de fls. 286.
O MP junto do tribunal a quo veio oferecer resposta, que remata com as seguintes conclusões:
«1.ª) Por sentença datada de 04/12/2017, junta a fls. 232 a 263 dos autos, o Tribunal “a quo”, decidiu, além do mais que por agora não releva, declarar o arguido B… culpado como autor material de um crime de injúria, mas dispensá-lo de pena.
2.ª) Inconformados com a parte da decisão relativa à dispensa de pena, dela recorreram os assistentes/arguidos C… e D…, o que fizeram limitando tal Recurso exclusivamente a matéria de direito, devendo, consequentemente, ser considerada definitivamente fixada a matéria de facto, dado não resultar do texto da decisão recorrida qualquer vício e/ou nulidade de conhecimento oficioso.
3.ª) Apesar de os Recorrentes terem formulado 27 (vinte e sete) conclusões, a única questão (de Direito) a apreciar no presente recurso, é a de averiguar e decidir se mostram-se, ou não, preenchidos os pressupostos para a dispensa de pena e, consequentemente, se foi ou não correcta a decisão de declarar o arguido B… culpado como autor material de um crime de injúria e dispensá-lo de pena.
4.ª) Alegam os Recorrentes, nas suas conclusões de recurso 8.ª) a 11.ª) que:
(…)
O Tribunal “a quo” justificou o preenchimento do pressuposto aqui em causa do seguinte modo “No caso que aqui curamos, resultou provado que os arguidos injuriaram-se mutuamente com impropérios vários que atingiram a honra e consideração do outro. Os arguidos proferiram tais expressões em simultâneo.
Ou seja, resulta nitidamente mostrado que as imputações injuriosas que configuram o crime praticados pelos arguidos decorreram no âmbito de uma discussão e e como reação mútua a injúrias mútuas.”(sic).
Em nosso entender, o modo como o Tribunal “a quo” justificou o seu entendimento, no sentido de mostrar-se preenchido tal pressuposto de aplicação da norma, está correcto e não merece censura, dado que não é pelo facto de tratar-se de injúrias mútuas que se deve afastar a aplicação de tal instituto, pelo que dever ser considerado improcedente tal fundamento de recurso.
Alegam os Recorrentes, nas suas conclusões de recurso 14.ª) a 19.ª) que:
(…)
Analisando tais conclusões verificamos que, nelas, os Recorrentes esgrimem, essencialmente, dois argumentos: o 1.º que o instituto da dispensa de pena não deveria ter sido aplicado à situação dos autos porque “…está, conforme decorre da lei, previsto para os ilícitos de reduzida dignidade penal” e o 2.º que a sua aplicação só pode ter lugar nos casos “…em que a ilicitude do facto e a culpa do Agente são diminutas…” o que, no entender deles, não ocorre no caso dos autos, pelo que o Tribunal “a quo” errou ao aplicar tal instituto.
Relativamente ao 1.º argumento, entendemos que o recorrente não tem razão, e labora em erro, dado que a aplicação de tal instituto está objectivamente definida, ou seja, é aplicável a todos os crimes puníveis em abstracto com pena de prisão não superior a 6 meses ou só com multa não superior a 120 dias, obviamente desde que verificados todos os demais pressupostos legalmente previstos.
Relativamente ao 2.º, contrariamente ao defendido pelos recorrentes, a sentença não é “…completamente omissa quanto ao grau da culpa e ilicitude da actuação dos arguidos…”, dado que considerou, quanto ao grau de culpa, que o arguido B… agiu com dolo directo, sendo a ilicitude da sua conduta a normal no tipo legal do crime de injúria e relacionada com as desavenças existentes entre os arguidos.
Veja-se que a questão da ilicitude da actuação dos arguidos foi implicitamente apreciada pelo Tribunal “a quo” nos seguintes termos “…No caso que aqui curamos, resultou provado que os arguidos injuriaram-se mutuamente com impropérios vários que atingiram a honra e consideração do outro. Os arguidos proferiram tais expressões em simultâneo.
Ou seja, resulta nitidamente mostrado que as imputações injuriosas que configuram o crime praticados pelos arguidos decorreram no âmbito de uma discussão e e como reação mútua a injúrias mútuas.”.
Deste segmento da decisão recorrida resulta implicitamente que o Tribunal “a quo” considerou a ilicitude dos comportamentos algo diminuída, apesar de ter considerado provado que os arguidos agiram com dolo directo, dado tratar-se de injúrias mútuas, e que foram proferidas “…num contexto de desavença…” tal como consta, quanto ao referido contexto, do último parágrafo de fls. 254.
Assim, as conclusões 14 a 19 devem ser consideradas improcedentes.
Alegam os Recorrentes nas suas conclusões de Recurso 20.ª) a 26.ª) que:
(…)
Em tais conclusões esgrimem os recorrentes com uma suposta falta de preenchimento do pressuposto de aplicação “À dispensa de pena se não opuserem razões de prevenção” defendendo, em síntese, que pelo facto (dado como provado) de o arguido B… ter um antecedente criminal pela prática de dois crimes de importunação sexual e um crime de ameaça, praticados em data anterior ao crime dos presentes autos, existiriam razões de prevenção que impediriam a aplicação do instituto da dispensa de pena, pelo que o Tribunal “a quo” decidiu mal ao dispensá-lo de pena.
Porém, em nosso entender, mais uma vez não lhe assiste razão.
Em primeiro lugar, quando os Recorrentes, referindo-se aos crimes pelos quais o arguido B… foi condenado, dizem que “…têm grande alarido social, tendo-se mostrado perigoso para a segurança das pessoa, moral e ordem Pública…” (sic) afigura-se-nos existir uma manifesta e injustificada hipervalorização de tais crimes, até porque contra ele foi deduzida uma acusação em processo sumaríssimo, sendo o mesmo condenado, apenas, numa pena de 130 dias de multa, à taxa diária de €5,00. Se estivessem em causa factos tão graves como os Recorrentes pretendem fazer crer, certamente a digna Magistrada do Ministério Público titular do inquérito não teria optado por deduzir uma acusação sob a forma de processo sumaríssimo, e o arguido seria condenado em pena bem mais grave.
Acresce que, como é bem salientado na sentença, posição com a qual concordamos, trata-se de crimes de diferente natureza, pelo que não se mostra especialmente acentuada a necessidade de fortalecer a crença comunitária na validade da norma violada, o que equivale por dizer que não há especiais exigências de prevenção, quer especial, quer geral, susceptíveis de afastar a aplicação do instituto da dispensa de pena.
5.ª) Contrariamente ao afirmado pelos Recorrentes, não se mostram violados os artigos 375.º do C.P.P., 74.º e 186.º, ambos do C.P.P.
Termina com o entendimento que, deve ser negado provimento ao Recurso e confirmada a decisão recorrida.»
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Nesta Relação, o Exmo. PGA emitiu Parecer do seguinte teor:
1.- Em nosso entendimento falece legitimidade aos assistentes C… e marido, D…, para recorrer, desacompanhado do Ministério Público, do segmento da decisão do Juízo Local Criminal de Paredes -Jl, da comarca do Porto Este, que dispensou da pena o arguido B… pela prática de um crime de injúria.
Com efeito, como é sabido, o Assento n.º 8/99, publicado no D.R. S.I -A, de 3/8/99, fixou a jurisprudência obrigatória no sentido de «O assistente não tem legitimidade para recorrer, desacompanhado do Ministério Público, relativamente à espécie e medida da pena aplicada, salvo quando demonstrar um concreto epróprio interesse em agir».
Ora, é justamente o caso da situação dos autos, não se vislumbrando um concreto e especial interesse em agir, pelo que deverá o presente recurso ser rejeitado (arts. 414.° n.° 2 e 420.°, do C.P.P.).
2.- Caso assim não se entenda, o que apenas se admite em tese, acompanhamos o conteúdo da Resposta do nosso Ex.mo Colega da primeira instância, de fls. 290 e ss., julgando-se, então, o recurso improcedente.»
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Cumpriu-se o art. 417º, n.º2 do CPP.
Colhidos os vistos, e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.
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II- Fundamentação.
Como é jurisprudência assente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – vícios decisórios e nulidades referidas no artigo 410.º, n.º s 2 e 3, do Código de Processo Penal – é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada, em que sintetiza as razões do pedido (artigo 412.º, n.º 1, do CPP), que se delimita o objecto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior.
Face às conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação apresentada, pela ordem em que são enunciadas, são as seguintes as questões a apreciar e decidir.
- Legitimidade dos assistentes para interpor recurso desacompanhados do Ministério Público relativamente à pena.
- Dispensa de pena ao arguido B….
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2. Factos provados, não provados e respectiva motivação.
«3.1. Factos provados:
Discutida e instruída a causa, com relevo para a decisão, resultou apurado o seguinte circunstancialismo fáctico (com exclusão das conclusões, das argumentações, das inocuidades, do direito, das menções aos meios de prova e das repetições de factos):
» Da acusação Pública
1.º No dia 2 de fevereiro de 2016, cerca das 17h30, em frente à casa dos assistentes C… e D…, situada na Rua …, n.º .., em …, Paredes, um operário, encontrava-se a despejar águas sujas para o quintal.
2.º Quer os assistentes quer o arguido arrogam-se de proprietários desse terreno.
3.º A assistente solicitou a esse operário que parasse de deitar as águas sujas para esse quintal.
4.º O arguido, contrariando o pedido da assistente, autorizou o operário a continuar a despejar a água para esse quintal.
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» Da acusação particular deduzida pelo assistente B… contra C…
5.º O assistente B… é vizinho da arguida C….
6.º Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 1.º o assistente B… encontrava-se a assistir a essas obras que estavam a ser realizadas pelo Sr. E…, construtor civil.
7.º Quando a arguida C… se dirigiu ao referido E… o assistente respondeu “a rua é pública”.
8.º De imediato, a arguida dirigiu-se ao assistente proferindo as seguintes expressões: “boi”, “filho da puta”, “corno” e pedindo a vassoura ao E… dizendo-lhe “dê-me essa vassoura que lhe vou dar com ela”.
9.º Estavam pessoas a ouvir estas expressões, que ofenderam a honra e consideração do assistente.
10.º A arguida agiu livre, voluntaria e conscientemente, com intenção de ofender a honra e consideração do assistente, bem sabendo que a sua conduta é punida e proibida por lei.
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» Da acusação particular deduzida pela assistente C… contra o arguido B…:
11.º Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 1.º, após a conversa da assistente com o operário, o arguido B… contrariando o pedido feito por esta ao mencionado trolha disse-lhe que ele poderia colocar a água que quisesse no quintal por este ser sua propriedade.
12.º Em ato contínuo o arguido apelidou a assistente de “bêbada, borrachona, vaca e puta”.
13.º O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, com intenção de atingir a assistente na sua honra e consideração.
14.º O arguido bem sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei todavia não se coibiu de agir como agiu.
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» Mais se provou com relevo que:
15.º As expressões referidas em 8.º e 12.º foram em simultâneo.
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» Dos pedidos de indemnização cível
» Do demandante B… contra a demandada C….
16.º Com as expressões referidas em 8.º o demandante sentiu-se humilhado.
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»Da demandante C… contra o demandado B….
17.º Com as expressões referidas em 12.º a demandante sentiu-se envergonhada, consternada, vexada e humilhada.
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» Relativamente aos antecedentes criminais dos arguidos provou-se que:
18.º O arguido B… foi condenado:
- Pelo Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este, J2 de Paredes, no processo sumaríssimo n.º 416/15.8GAPRD, por sentença transitada em julgado em 16.05.2016, na pena de 130 dias de multa, à taxa diária de €5,00, pela prática em 2015 de dois crimes de importunação sexual e um crime de ameaça, declarada extinta pelo pagamento por despacho de 16.01.2017
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19.º Não são conhecidos antecedentes criminais à arguida C…
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» Da situação pessoal, económica e social do arguido provou-se que:
20.º O arguido B… é casado, está reformado e recebe de reforma €830,00, mensais. A sua mulher está de baixa médica e recebe €124,00 mensais. Vive em casa própria. Estudou até à 4.ª classe.
21.º A arguida C… é casada, está reformada e recebe €600,00 de reforma mensalmente. O marido também está reformado e recebe €750,00 mensais de reforma. Vive em casa própria e estudou até ao 12.º ano de escolaridade.
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3.2. Factos não provados
Com relevo para a boa decisão da causa, não se provaram quaisquer outros factos que estejam em contradição com os dados como provados.
» Da acusação Pública
a) Nas circunstâncias elencadas em 1.º dos factos provados o operário estava ali a mando do arguido, sendo o quintal dos assistentes.
b) Nas circunstâncias elencadas em 1.º dos factos provados, o arguido dirigindo-se aos assistentes disse-lhes que se eles fossem limpar esse quintal, ou se chamassem a Guarda Nacional Republicana, lhes cortava o pescoço, querendo com isso dizer que os mataria.
c) Perante tais expressões, os assistentes ficaram perturbados e intimidados, receando pela sua integridade física e vida.
d) O arguido atuou da forma descrita, por meio de ameaça e com intenção de constranger, determinar os assistentes a não acederem ao quintal para o limparem, bem como para não apresentarem queixa na Guarda Nacional Republicana.
e) O arguido agiu de forma livre, deliberada e conscientemente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
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» Da acusação particular deduzida pelo assistente B… contra C…
f) As obras referidas em 2.º dos factos provados eram na propriedade do vizinho F….
g) As expressões proferidas pela arguida C… e elencadas em 8.º dos factos provados foram-no sem que nada o fizesse prever.
h) No dia 12 de janeiro de 2017, cerca das 22h00 quando o assistente estava a chegar a casa de carro com a mulher, a arguida encontrava-se à janela de sua casa e, de imediato, sem que nada o fizesse prever, proferiu as seguintes expressões: “és um chulo, corno, vais todos os dias levar a tua mulher a dar o pito, é tão puta a mãe como a filha, és um azeiteiro, vais levar a vaca ao boi, estás a comer à custa da tua mulher, a tua mulher mostra a cona a todo o mundo”.
i) Nas circunstâncias referidas em h) a arguida agiu livre e conscientemente, com intenção de ofender a honra e consideração do assistente, bem sabendo que a sua conduta é punida e proibida por lei
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» Da acusação particular deduzida pela assistente C… contra B…:
j) Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 1.º dos factos provados o arguido dirigiu aos assistentes as seguintes expressões “vocês vieram corridos de todos os lugares onde vivem”.
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» Da acusação particular deduzida pelo assistente D… contra o arguido B…:
l) Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 1.º dos factos provados o arguido dirigiu ao assistente as seguintes expressões: “anda lá meu filho da puta que aqui dentro nunca mais pões os pés”.
m) O arguido praticou estes factos de forma voluntária com intenção de atingir o assistente na sua honra e consideração.
o) O arguido bem sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei, todavia não se coibiu de agir com agiu.
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» Dos pedidos de indemnização cível não se provou que
» Do demandante B… contra a demandada C….
p) Com as expressões referidas em 8.º dos factos provados o demandante sentiu-se chocado.
q) O demandante é pessoa bem formada, digna e goza de boa reputação onde vive.
r) Desde o dia 12 de janeiro de 2017 o demandante nunca mais conseguiu dormir descansado, acorda várias vezes durante a noite a pensar no sucedido tendo inclusive recorrido a medicação para conseguir dormir, sempre que sai de casa fica com receio de ser insultado na via pública
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» Do demandante D… contra o demandado B….
s) Com as imputações feitas pelo demandado o demandante sentiu-se envergonhado, consternado, vexado e humilhado perante as pessoas que se encontravam no local.
t) O demandante sempre foi uma pessoa honrada, respeitada e reputada no meio social onde vive e sempre pautou a sua vida por princípios de correção e dignidade pelo que ficou comovido, constrangido, tendo sentido com grande afronta as imputações que lhe foram feitas pelo arguido.
u) O demandante sentiu-se e sente-se profundamente humilhado pelo arguido que não respeita a sua idade nem o deixa sossegado nem a viver em paz.
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» Da demandante C… contra o demandado B….
v) A demandante é pessoa honrada, bem conceituada no meio onde vive e sentiu com grande afronta as imputações que lhe foram feitas pelo demandado.
x) Com as imputações feitas pelo demandado a demandante sentiu-se envergonhada, consternada, vexada e humilhada.
z) É habitual o demandado dirigir à demandante os mesmos impropérios sendo useiro e vezeiro em apelidá-la de “vaca” e “bêbada” e de fazer gestos obscenos na direção dela, como meter as mãos entre as pernas na zona genital.
aa) A demandante sempre foi uma pessoa respeitada e reputada no meio social onde vive e sempre pautou a sua vida por princípios de correção e dignidade pelo que ficou deveras comovida e constrangida.
bb) A assistente sentiu-se e sente-se profundamente humilhada pelo arguido que não respeita a sua idade nem a deixa sossegada nem a viver um final de vida em paz.
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» Dos demandantes C… e D… contra o demandado B….
cc) O demandado ao agir da forma como agiu provocou nos demandantes grande medo e receio e inquietação, ficaram constrangidos e perturbados, intimidados e receando pela sua integridade física, instalando-se nos mesmos um clima de medo e ansiedade que lhes perturbou a tranquilidade e o sono por alguns dias e mesmo o terem apresentado queixa contra o arguido não dissipou o medo e receio que tiveram e que ainda têm do arguido concretizado no mal que lhes anunciou
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»Da contestação do arguido B…
dd) O arguido é trabalhador, íntegro, calmo, educado e de bons princípios morais e avesso a confusões e a litígios.
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» Da arguida C…
ee) A arguida é pessoa educada que não usa o vocabulário imputado pelo assistente.
ff) O assistente apenas deduziu acusação contra a arguida para denegrir a imagem e bom nome desta e em retaliação à participação criminal que esta fez contra si no âmbito deste processo.
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3.3. Motivação
O tribunal estribou a sua convicção, quer quanto à matéria de facto provada quer quanto à matéria de facto considerada como não provada, pelo princípio da livre apreciação da prova, admitindo tal como o esforço sério para alcançar a verdade material, apreciando dialeticamente os meios de prova que foram carreados para estes autos, procurando harmonizá-los e confrontá-los criticamente, sempre na esteira do princípio da experiência comum, ao abrigo do disposto no artigo 127º do Código de Processo Penal. Com efeito, o princípio da livre convicção constitui regra na apreciação da prova em direito processual penal e, de facto, para conduzir à condenação, tal prova tem necessariamente de ser plena, pelo que, perante a decisão de factos incertos, a dúvida determina, indubitavelmente, a absolvição - em conformidade com o princípio da presunção de inocência que representa o alicerce basilar que enforma aquele nosso direito processual penal, com claro reconhecimento constitucional.
Mais se salienta que, como é sabido, a verdade material absoluta é, por vezes, acreditamos assim, inalcançável pela via judicial na sua tarefa árdua de reconhecimento dos factos da vida real, logrando-se apenas alcançar, algumas dessas vezes, a verdade chamada processualmente válida, fundamentada e plausível. Na verdade, o relato de uma factualidade pelo Homem consubstancia um processo que integra várias etapas, que seguidamente se enunciam: a perceção dos factos, a memorização e a reprodução.
Nestes termos, a apreciação judicial dos factos assenta, então, nas declarações ou depoimentos de quem, supostamente, vivenciou os alegados factos, sempre sem descurar que a verbalização de tais factos estará afetada de algum subjetivismo tendente, por vezes, a contribuir para a distorção da realidade dos mesmos. Por esse motivo, a análise feita pelo julgador tem que ser acrítica, fomentando a formação da sua convicção com respaldo em outros importantes elementos, como os documentos, as perícias, e pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, do senso comum, da experiência comum, sublinhando as lacunas, as contradições, as inverosimilhanças.
Isto posto, e baixando ao caso que aqui curamos, urge referir que os depoimentos prestados constituíram um exemplo paradigmático da falibilidade e riscos da prova testemunhal como meio de reprodução dos factos submetidos a apreciação, o que acontece de forma flagrante sempre que as relações de empatia ou simpatia por um ou por outro dos focos em conflito orientam os respetivos comportamentos em detrimento da verdade e, por aí, de uma ideia de justiça que passa tanto por uma decisão absolutória como condenatória.
Assim, e consoante as relações pessoais e de simpatia de cada uma das testemunhas com os arguidos e assistentes, foram prestados depoimentos em abono de um e, reciprocamente, em desabono do outros, o que se nos afigurou através de relatos parciais daquilo que foi presenciado. Contudo, da globalidade da prova produzida foi possível alcançar os factos supra descritos, que conjugados com a versão dos factos apresentada pelos arguidos e assistentes e na estrita medida em que estas encontraram suporte em outros depoimentos prestados e que, pela forma como depuseram, considerados no seu conjunto, sempre com as regras da experiência e do senso comum.
Vertendo tais considerandos para o caso em apreço, no que concerne à factualidade dada como assente, o tribunal tomou em linha de conta as declarações prestadas pelos arguidos e pelos assistentes, na única medida em que estes se revelaram coincidentes e reconhecidamente corroboradas pelos demais depoimentos prestados pelas testemunhas inquiridas e pelas regras da experiência comum.
Cumpre-nos sublinhar alguns aspetos.
Em primeiro lugar, os arguidos B… e C…, advertidos do seu direito ao silêncio, ambos optaram por prestar declarações.
Neste segmento, ambos os arguidos confirmaram que são vizinhos, que estão de relações cortadas por uma questão de propriedade de um determinado terreno. Ademais, confirmaram as circunstâncias de tempo e lugar constantes da acusação pública, as obras que se mostravam a ser efetuadas, a água despejada, a solicitação da arguida. As divergências das declarações dos arguidos surgem no que concerne ao que aí foi dito por cada um deles.
Vejamos, primeiramente, quanto ao dia 12 de fevereiro de 2016.
O arguido B… reconheceu, ainda que de modo nervoso e atabalhoado, que no circunstancialismo de tempo e lugar o trolha se encontrava a realizar uma obra, e virou uma água, e nesse momento a arguida C… apelidou-o com as seguintes expressões: “boi, corno, filho da puta” e, nessa sequência, admitiu que apelidou a arguida de “puta e bêbeda”. Negou, veemente, que tivesse proferido as expressões imputadas em sede de acusação pública.
Já a arguida adiantou que o arguido, nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar a apelidou de “puta, vaca, bêbeda e borrachona”. Mais afiançou que o arguido lhe disse que se chamasse a GNR lhe cortava o pescoço. Já relativamente ao seu marido, o assistente D…, a arguida garantiu que o arguido também lhe disse que lhe cortava o pescoço e apelidou-o de “filho da puta” e enquanto fosse vivo ele não metia ali os pés. Afiançou que não retorquiu as ofensas de que foi vítima e afiançou que tem muito medo do arguido e sentiu-se muito envergonhada e humilhada.
Ouvido o marido da arguida, o assistente D…, este assegurou que nesse dia estava no local e, no essencial, confirmou as declarações da arguida, sua mulher.
Aqui chegados urge referir que ambos os arguidos e o assistente adotaram uma postura de vitimização, em que cada um deles descreve um cenário de terror de que foi vítima por parte do outro, com representações em audiência de julgamento melodramáticas e desastrosas, por ambos os arguidos, as quais serviram para que o tribunal aferisse da personalidade destes, que por nutrirem uma grande inimizade entre si, são conflituosos, retaliativos e sem qualquer pejo em insultar-se mutuamente, sem que um seja melhor que o outro.
Já no que concerne a saber se o arguido B… disse aos assistentes que se eles fossem limpar o quintal ou chamassem a GNR lhes cortava o pescoço, o arguido negou tal facto e os assistentes confirmaram-no.
Todavia, no dia em causa estava presente a testemunha E…, o qual estava a efetuar o serviço de trolha, que não é conhecido nem amigo de nenhuma das partes envolvidas e que mostrou uma postura calma (na voz e na expressão corporal) e um raciocínio coerente, nunca deixando transparecer qualquer contradição dos factos pelo mesmo relatado, pelo que o seu depoimento logrou convencer o tribunal. A testemunha confirmou as obras, o despejar da água, o abordar dos arguidos/assistentes C… e B…, o que lhe disseram. Referiu ainda que na sequência da conversa daqueles o arguido dirigiu-se à assistente e apelidou-a de “puta e bêbeda” e, por seu turno, a arguida/assistente C… apelidou o arguido de “corno” e “boi”. Já no que concerne ao marido da arguida, a testemunha afiançou que o arguido não lhe dirigiu a palavra. Também foi perentório em afirmar que o arguido não proferiu a expressão que lhes cortava o pescoço.
Já a testemunha E…, vizinho dos arguidos/assistentes, iniciou o seu depoimento afiançando que não está de relações cortadas com nenhum dos vizinhos, mas no decorrer do seu depoimento foi por demais percetível que o arguido B… era para si persona non grata, atento o modo como depôs, e as afirmações que fez, não nos restaram dúvidas quanto à sua parcialidade. Assim sendo, pese embora ter resultado do seu depoimento que apenas o arguido proferiu impropérios dirigidos à assistente e esta em nada repostou não mereceu qualquer credibilidade. Por um lado, como já referimos em audiência de julgamento foi por demais percetível que a assistente/arguida não tem personalidade de ouvir e calar, se nem em audiência de julgamento se continha não será difícil imaginar fora dela. Por outro lado, a testemunha conforme se ia soltando no seu depoimento deixou de cuidar no que dizia e deixou transparecer a sua inimizade para com o arguido, relatando um episódio ocorrido consigo e com aquele, apelidando-o de vingativo, com mau feitio e que profere muitos palavrões, já a assistente/arguida apelidou-a de personalidade serena, que “não se mete com ninguém”, bem conceituada e respeitada, quando tivemos a testemunha K…, indicada pela própria, que no essencial, veio dizer que esta já apresentou várias queixas contra um vizinho e o arguido. Ademais, como vimos, a testemunha E… foi para nós totalmente credível e ouviu a arguida/assistente a injuriar o arguido/assistente.
Assim, o tribunal tendo em conta as declarações do arguido, a postura dos arguidos em audiência de julgamento e o depoimento desta testemunha, que foi totalmente credível pela isenção demonstrada, deu como provados os factos constantes da acusação pública e das acusações particulares da forma como o fez.
Quanto ao demais, como supra se referiu, o tribunal considerou que tais factos não ocorreram, pelo que os deu como não provados.
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Vejamos, agora, quanto aos factos imputados à arguida C… na acusação particular deduzida pelo assistente B…, no dia 12 de janeiro de 2017.
O arguido B…, no que concerne ao dia 12 de janeiro de 2017, relatou que cerca das 22h00, estava a chegar a sua casa, que é situada a cerca de 40 metros da casa da arguida C…, juntamente com a sua mulher e uma amiga, quando a arguida, que estava à janela de sua casa, se dirigiu a si apelidando-o de: “chulo, azeiteiro, corno, andas a comer à custa da tua mulher, a tua mulher vai dar o pito e a cona, é uma vaca, tanto é puta a mãe como a filha”.
Mais retorquiu que nessa altura o seu filho se aproximou e gravou com o telemóvel os impropérios relatados pela arguida.
Por seu turno, a arguida/assistente negou perentoriamente que o tivesse feito.
Tais declarações do assistente foram corroboradas pelas declarações do seu filho, G…, o qual referiu viver perto dos arguidos e em data que não sabe precisar, mas perto das 22h00, estava em casa e ouviu barulho e então veio ver o que se passava e ouviu a arguida C…, que estava à janela, a proferir impropérios dirigidos ao seu pai, que afiançou serem os mesmos referidos pelo assistente. Garantiu que estava na rua e a arguida estava em sua casa à janela e então decidiu gravar o que esta estava a dizer para que pudesse provar o que aí estava a acontecer.
De igual modo, a testemunha H…, amiga do assistente B…, garantiu que vinha juntamente com este, quando ouviu a arguida a proferir vários impropérios, que elencou, dirigidos ao assistente. De igual modo, enalteceu o caráter nobre do assistente em detrimento da arguida.
Foram estes os depoimentos colhidos em sede de julgamento. Todavia não nos mereceram credibilidade que nos permitisse afirmar com a certeza necessária que as mesmas presenciaram os factos que relataram. Afigurou-se-nos, pela forma fugidia a certas questões colocadas às testemunhas, designadamente data dos factos, que estas não presenciaram qualquer situação e relataram o que o arguido lhes transmitiu, sem que nos fosse transmitido por estes depoimentos um qualquer sustentáculo de credibilidade superior em relação à arguida.
Todavia, aqui chegados urge referir que foi junto com a contestação do arguido B… uma pen, onde constava uma gravação de voz que era por este imputada à arguida/assistente, e que teria sido gravada pelo telemóvel do filho daquele nessa ocasião.
Vejamos, em abstrato (sem cuidar se é uma gravação da voz da arguida e, em caso afirmativo, se o foi no dia em causa), da legalidade/ilegalidade da gravação efetuada por testemunha da voz.
Estabelece o art.º 26.º n.º 1 da CRP que a todos é reconhecido o direito à reserva da intimidade da vida privada. Por seu turno, o art.º 32.º, n.º 8 da Lei Fundamental prevê que é nula – por conseguinte ilícita e proibida - a prova obtida mediante abusiva intromissão na vida privada.
A salvaguarda dos direitos ou interesses constitucionalmente protegidos há-de correlacionar-se com o princípio da proporcionalidade em sentido amplo, proibindo-se o excesso, e devendo, por isso, as restrições estabelecidas serem necessárias, adequadas e proporcionais.
Ora, no atinente a gravações ilícitas a norma incriminadora corresponde ao artigo 199.º do Código Penal, onde se tutela o direito à palavra, contra a sua gravação e reprodução sem o consentimento do visado.
No entanto, o preenchimento, em abstrato, dos elementos constitutivos do ilícito criminal, pode ser afastado, em concreto, pela verificação de causa de justificação ou exclusão da ilicitude ou da culpa, e, em consequência, pode ser considerada válida a gravação de palavras efetuada por particulares sem o consentimento do visado, bem como julgada válida a prova recolhida por esse meio.
Com o fito da apreciação da situação em apreço urge chamar aqui à colação a decisão proferida pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 23-09-2013, no âmbito do Processo n.º 689/10.2GAPTL.G1, disponível em www.dgsi.pt., porquanto se trata de uma situação em tudo similar à dos autos e ser particularmente esclarecedor, assim sumariado “I- As gravações realizadas por particulares no âmbito de relações privadas podem ser utilizadas como meio de prova, quando quem a fez está a ser vítima de um crime, ou presencia a prática de um crime, e com a gravação pretende facilitar a sua averiguação e posterior condenação.
II – Pode ser utilizada como meio de prova a gravação, feita por um filho da ofendida, de insultos dirigidos pela arguida à ofendida, na presença de várias pessoas (o que vale por dizer que as palavras proferidas se destinavam ao público).
Por relevante transcreve-se parcialmente o seu conteúdo:
“ (…) salvo o devido respeito, não assiste razão à recorrente, uma vez que é nosso entendimento de que tal prova, mesmo que obtida sem o consentimento da arguida, pode e deve ser valorada no processo penal não configurando prova proibida nos termos do art.º 125.º do CPP.
Em causa está uma discussão na qual os insultos proferidos pela arguida tiveram como única destinatária a ofendida .... ... E o teor dos insultos dirigidos à ofendida pôde ser ouvido por várias pessoas, entre as quais o seu filho I… que procedeu à questionada gravação. Significa isto que a arguida não se preocupou em evitar que as suas palavras não fossem audíveis por outras pessoas, o que vale por dizer que tais palavras se destinavam ao público.
Mutioz Conde Revista Penal - nº 14 - janeiro de 2009 Prueba prohibida y valoracíón de las grabaciones audiovisuales en el proceso penal -, referindo-se concretamente a gravações realizadas por particulares no âmbito das relações privadas, entende que a chave para saber em que casos, excecionalmente, a gravação pode ser utilizada como prova é dada pela situação em que se encontra o particular que a faz - se é alguém que está a ser vítima de um crime e com a gravação pretende facilitar a sua averiguação e posterior condenação, ou se é alguém que não seja a vítima mas antes coautor desse delito ou queira utilizar a gravação para chantagear a pessoa que a grava, ameaçando denuncia-la.
No caso, é manifesto que a ofendida estava a ser vítima de um crime de injúrias. Daí que estejamos em presença de uma gravação que deve ser tida por lícita.
Assim e para concluir, nada obsta a que a referida gravação seja valorada pelo tribunal em conjugação com depoimentos das testemunhas I… e J… nos termos do art.º 127.º do C.P.P., pois não constitui prova proibida. (...)”.
Aqui chegados, vejamos se é de valorar a gravação junta aos autos.
Desde já diremos que não, porquanto não podemos afirmar que se trata de gravação da voz da arguida/assistente, pois esta nega e como vimos supra não mereceu credibilidade o depoimento da testemunha que afirmou que procedeu à sua gravação.
Assim, pese embora seja nosso entendimento que a gravação a ser provado que o foi não seria ilícito, o certo é que in casu essa prova não assumiu contornos de verídica pelo que desconhecemos onde foi efetuada essa gravação, quem a fez, as condições em que foi gravada, pelo que não podemos afirmar que a gravação em causa documenta a comunicação verbal, da iniciativa da arguida e que teve como destinatário o assistente, na qual se materializou a conduta ilícita desta, subsumível ao crime de injúria.
Fundou, por isso, o tribunal, a sua convicção negativa, no princípio do in dubio pro reo, que é vigente no nosso direito penal em matéria de prova e de acordo com o qual, um non liquet na questão da prova tem de ser valorado sempre a favor dos arguidos.
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No que concerne à circunstância de termos dado por assente que os arguidos atuaram, em todos os momentos descritos, de forma livre, consciente e deliberada e cientes da ilicitude e punibilidade das suas condutas, tivemos em atenção, para além do já dito, a natureza dos factos em apreço, que faz presumir, à falta de razões para supor coisa diversa, que o arguido, em síntese, bem sabia e queria atuar como atuou, de forma cujo caráter desviante não ignorava.
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No que respeita aos antecedentes criminais dos arguidos, tivemos em atenção o que deriva do correspondente certificado do registo criminal, juntos aos autos a fls. 214 a 216, relativamente ao arguido B… e de fls. 217 relativamente à arguida C….
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Em matéria social, económica e familiar dos arguidos relevou as declarações destes que se nos afiguraram nesta parte credíveis e não foram infirmadas por outros meios de prova.
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Vejamos quanto aos factos não provados
Por sua vez, no que diz respeito ao acervo factual que integra o elenco dos factos dados como não provados constantes das acusações pública e privadas, tal deriva essencialmente da total ausência de prova, cabal a demonstrar a sua realidade, desde logo pelas manifestas contradições a que se expuseram, votando os respetivos autores ao descrédito, como já supra se apreciou.
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No que ao circunstancialismo fáctico integrante dos pedidos de indemnização civil e às contestações diz respeito, a resposta negativa ficou a dever-se à ausência de prova ou até da prova em contrário.»
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3.- Apreciação do recurso.
3.1.- Legitimidade dos assistentes para interpor recurso desacompanhados do Ministério Público relativamente à pena.
A apreciação do mérito do recurso depende da verificação de pressupostos subjectivos e objectivos, como sejam a legitimidade e interesse em agir do recorrente, a recorribilidade da decisão e a observância do prazo legal para o efeito como, de resto, resulta do prevenido nos arts. 399º e segs. do Cód. Proc. Penal.
Pese embora as condições de admissibilidade do recurso devam ser apreciadas, em primeira linha, pelo tribunal a quo, o certo é que a decisão deste não vincula o tribunal superior.
Nos termos do art. 69º, n.º1 do CP, o assistente tem a posição de colaborador do Ministério Público, a cuja actividade subordina a sua intervenção, salvas as excepções previstas na lei.
E tal subordinação da intervenção do assistente ao Ministério Público é compreensível na medida em que no processo criminal ‘está imediatamente em causa o interesse público do ius puniendi’.
Nos termos do artigo 69º, n.º2, al. c), do CPP, compete em especial aos assistentes interpor recurso das decisões que os afectem, mesmo que o Ministério Público o não tenha feito.
Na mesma linha se situa o artigo 401º, n.º1 al. b), do CPP, ao estabelecer que têm legitimidade para recorrer o arguido e o assistente das decisões contra eles proferidas.
Sobre a questão da legitimidade do assistente para recorrer, desacompanhado do Ministério Público, relativamente à espécie e medida da pena aplicada foi proferido o Assento n.º 8/99, de 30.10.1997, que decidiu: “O Assistente não tem legitimidade para recorrer, desacompanhado do Ministério Público, relativamente à espécie e medida da pena aplicada, salvo quando demonstre um concreto e próprio interesse em agir”.(sublinhado nosso.)
Conforme estatuído no art. 445º, n.º 3 do CPP «a decisão que resolver o conflito [estamos em pleno Título II “Dos Recursos Extraordinários” Capítulo I “Da fixação de jurisprudência”, portanto em causa um conflito de jurisprudência] não constitui jurisprudência obrigatória para os tribunais judiciais, mas estes devem fundamentar as divergências relativas à jurisprudência fixada naquela decisão».
Como vem sendo entendido os tribunais não devem reeditar a polémica resolvida pelos acórdãos de fixação de jurisprudência, designadamente retomando a afirmação das teses que ali foram discutidas e ficaram vencidas.
As razões que podem conduzir um tribunal judicial a afastar-se da jurisprudência fixada, são as seguintes:
O desenvolvimento de um argumento novo e de grande valor não ponderados na argumentação do acórdão de fixação de jurisprudência, onde se incluem os votos de vencido, susceptível de desequilibrar os termos da discussão jurídica contra a solução anteriormente perfilhada.
Tornar-se evidente que a evolução doutrinal e jurisprudencial alterou significativamente o peso relativo dos argumentos utilizados pelo acórdão de forma que actualmente a sua ponderação conduziria a resultado diverso.
Ou, finalmente, a alteração da composição do Supremo Tribunal de Justiça torne claro que a maioria dos juízes das Secções Criminais deixou de partilhar fundadamente a posição jurisprudencial fixada - vide o Ac. do STJ de 03.04.2008 cujo sumário está disponível em www. dgsi.pt.
Não vemos razões novas para afastar a supracitada jurisprudência, pelo contrário, visto que o legislador na Lei n.º 130/2015, de 04.09 [como resulta do respectivo artigo 1º e do respectivo sumário visou aprovar o Estatuto da Vítima, transpondo a Diretiva 2012/29/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de outubro de 2012, que estabelece normas relativas aos direitos, ao apoio e à proteção das vítimas da criminalidade] aditou ao n.º3, do artigo 68º do CPP, uma alínea c) que passou a permitir ao ofendido a sua constituição como assistente nos crimes públicos e semipúblicos “no prazo para a interposição do recurso da sentença” e, não obstante ter efectuado a referida alteração no estatuto do ofendido e do assistente, não efectuou qualquer alteração quer no artigo 69º, quer no artigo 401º, ambos do CPP, muito embora seja conhecedor da controvérsia jurisprudencial sobre a questão em apreço.
Os Acórdãos do STJ após o referido acórdão n.º 8/99 continuam a centrar-se na sua vigência.
Interpretando o sentido da jurisprudência fixada, o assistente não fica impedido de recorrer, desacompanhado do MP, no que respeite à espécie e medida concreta da pena; impõe-se-lhe, no entanto, a obrigação ou o ónus processual de demonstrar um concreto e próprio interesse em agir – vide o Ac. do STJ de 18.01.2012, Rel. Cons. Henriques Gaspar, disponível, no site www.dgsi.pt. (sublinhado nosso)
E no mesmo acórdão dão-se como exemplos de interesse em agir para este efeito, fornecidos pela doutrina e jurisprudência (v. g. questionar-se a medida da pena para obviar à prescrição; decisão desfavorável quanto à matéria da culpa reflectindo-se no pedido cível formulado).
Por outro lado, também foi considerado, num sentido de alguma maneira diferente, que «Não existe um direito pessoal público do assistente a uma certa punição, como única forma de reparação moral sua, de tal modo que lhe fosse permitido exigir determinada prestação do tribunal na satisfação desse desiderato. Prestação que se cifraria numa decisão, em que se considerassem provados certos factos, que implicassem certa qualificação, e a aplicação de certa pena.
Se a punição do arguido está dominada por um interesse público, não pode competir ao assistente ser ele o intérprete do interesse colectivo, designadamente se conflituar com a posição assumida a esse respeito pelo MºPº. No que contende com o cerne do jus puniendi do Estado, o assistente não pode pois deixar de estar subordinado ao Mº Pº.
Daí que, sempre que o assistente pretenda recorrer desacompanhado do Mº Pº, não interesse tanto discriminar as situações em que terá um interesse em agir relevante (na linha do assento, concreto e pessoal), mas tão só excluir da possibilidade de recurso aquelas situações em que o assistente (…), se confina ao interesse geral da justiça da punição do delinquente, porque esse é um interesse colectivo, e não pessoal, seu.» vide Ac. do STJ de 07.05.2009, Rel. Cons. Souto Moura.
Ainda noutra perspectiva “o interesse em agir do assistente, em sede de recurso, remete para a necessidade que ele tem de lançar mão desse meio para reagir contra uma decisão que comporte para si uma desvantagem, que frustre uma sua expectativa ou interesse legítimos, a significar que ele só pode recorrer de uma decisão com esse alcance, de acordo com Figueiredo Dias, que conclui, citando Roxin: «Aquele a quem a decisão não inflige uma desvantagem não tem qualquer interesse juridicamente protegido na sua correcção, não lhe assistindo, por isso, qualquer possibilidade de recurso» (RLJ, ano 128, página 348)”.- vide ac. de Fix. Jur. de 09.02.2011.
No caso em apreço, os assistentes como expressamente referem apena vêm discutir a dispensa de pena em relação ao arguido B….
O arguido B…, foi em primeira instância declarado culpado como autor material de um crime de injúrias, p. p. pelo artigo 181.º, n.º 1, do Código Penal, mas dispensado de pena;
O M. P. não recorreu da dispensa de pena conformando-se, assim, com o tratamento desta questão.
Os assistentes só recorrem desta questão, como vimos.
Impõe-se uma nota para referir que por força da unidade do sistema jurídico deve interpretar-se o referido acórdão no sentido de quando se refere à espécie ou medida da pena também se engloba em tal significação a dispensa de pena.
Assim, o que sobressai objectivamente do recurso dos assistentes é que se confinam ao interesse geral da justiça da punição do delinquente, que é um interesse colectivo, e não pessoal, seu – vide o supra referido Ac. de 07.05.2009; e sobressai, ainda, que os assistentes não ensaiaram qualquer demonstração de um concreto e próprio interesse em agir no que tange à dispensa de pena.
Com efeito, os argumentos usados pelos assistentes são os vulgarmente usados pelo Ministério Público neste tipo de recurso, nomeadamente invocando exigências de prevenção geral e especial.
A maioria dos Acs. do STJ sobre a questão entende que o assistente carece de interesse em agir para interpor recurso da decisão condenatória, pedindo quanto à parte criminal só o agravamento das penas, que é no que afinal vem a dar o recurso interposto.
Pelo exposto consideramos que, no caso concreto, os assistentes carecem de interesse em agir para interpor o presente recurso, por estar em causa somente a dispensa de pena, sendo, por isso, de rejeitar o recurso nos termos do estatuído nos arts. 420º, nº 1 al b) e 414º, nº 2 [“quando o recorrente não tiver as condições necessárias para recorrer”], ambos do C.P.P.
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III- Decisão.
Pelo exposto, acordam os juízes desta secção do Tribunal da Relação do Porto em rejeitar o recurso interposto pelos assistentes por carecerem de legitimidade para discutir a questão posta.
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Custas pelos assistentes, nesta instância, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC.
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Notifique.
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Elaborado e revisto pela relatora – artigo 94º, n.º 2, do C.P.P.
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Porto, 30 de maio de 2018
Maria Dolores da Silva e Sousa
Manuel Soares