Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2263/15.8JAPRT.P2
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO VENADE
Descritores: SENTENÇA PENAL
PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
PRINCÍPIO DA ADESÃO
DANO FUTURO
INCIDENTE DE LIQUIDAÇÃO
TRIBUNAL COMPETENTE
Nº do Documento: RP201901302263/15.8JAPRT.P2
Data do Acordão: 01/30/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC. PENAL (CONFERÊNCIA)
Decisão: JULGADO IMPROCEDENTE O RECURSO DA DEMANDANTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 4/2019, FLS.163-167)
Área Temática: .
Sumário: Estando em causa condenações criminais na parte cível, cujo processo de execução de decisão criminal está previsto nos artigos 467º e segts. do CPP, são da competência do juízo de execução todas aquelas que devam correr perante um tribunal civil, as ilíquidas por força do artigo 82º, n.º1, do CPP, e são da competência do tribunal criminal aquelas que sejam condenatórias líquidas.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 2263/15.8JAPRT.P2.
*
1). Relatório.
B… vem recorrer do despacho proferido em 09/11/2018 pelo Juízo Central Criminal de Santa Maria da Feira - Juiz 2 que declarou absolutamente incompetente, em razão da matéria, a instância central criminal de Santa Maria da Feira para apreciação do incidente de liquidação de sentença, assim absolvendo o demandado C… da instância.
Em síntese, alega a recorrente que:
de acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 82.º do C. P. P., pareceria que não se suscitariam problemas de interpretação já que a execução correria no tribunal civil servindo de título executivo a sentença penal;
porém, a sentença penal, tal como foi proferida, está incompleta para servir de título executivo, porque falta-lhe a liquidação, sendo que atualmente tal liquidação não pode ser prosseguida como incidente preambular do próprio processo executivo, sendo-lhe anterior e externo;
a sentença penal carece de ser previamente liquidada no âmbito do processo de declaração em que foi proferida a condenação;
Assim, ou se interpreta a norma do artigo 82.º:
com o sentido de que o legislador pretendeu manter em vigor o regime executivo anterior à reforma do processo executivo de 2003, com o âmbito restrito às execuções de sentenças penais;
ou, em vista a inserção sistemática da norma, se sobreleva nela a sua componente de simples regulação do estatuto das partes civis, enquanto sujeitos do processo, e, como tal, se interpreta o seu alcance atendendo à interação entre si e as demais que, com ela, no mesmo plano, se articulam, num sistema presumivelmente harmónico não sendo de descartar a hipótese de haver segmentos revogados da norma e de indagar quais são;
se procura interpretá-la no respeito pela sua integridade literal tentando-se integrar, inalterados, os efeitos que produza, onde ainda possam caber, dentro da aplicação do processo civil vigente.
na sua interpretação, se a liquidação dos danos futuros e o próprio apuramento dos danos já verificados podem em certo momento constituir um peso excessivo para a estabilidade de tribunais, também é verdade que isentar os tribunais penais desse labor pode acabar por insensibilizá-los relativamente a valores importantes para uma vasta área da sua intervenção: conhecimento dos efeitos materiais da lesão dos direitos, em toda a sua extensão, sendo certo que a discussão de parte importante desses efeitos é relegada para a acção civil enxertada;
assim, onde no n.º 1 do artigo 82.º, do C. P. P., se lê que o tribunal condena no que se liquidar em execução de sentença, o teor literal da norma não pode prevalecer, sendo de interpretar o comando legal restringindo-o ao sentido de os danos futuros virem a ser liquidados, oportunamente, segundo o processo próprio;
o artigo 103.º, da Lei n.º 3/99, de 13/01 (Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judicias - LOFTJ), teve pelo menos três formulações:
introduzida pela Lei n.º 3/99, de 13/01: «Os tribunais de competência especializada e de competência específica são competentes para executar as respetivas decisões»;
introduzida pela Lei n.º 105/2003, de 10/12: «Nas circunscrições não abrangidas pela competência dos juízos de execução, os tribunais de competência especializada e de competência específica são competentes para exercer, no âmbito do processo de execução, as competências previstas no Código de Processo Civil quanto às decisões que hajam proferido»;
a que resultou da Lei n.º 42/2005, de 29/08: «Sem prejuízo da competência dos juízos de execução, os tribunais de competência especializada e de competência específica são competentes para executar as respectivas decisões».
a sentença penal a dar à execução não será já a primitiva sentença, mas esta aditada do resultado do incidente de liquidação dos danos futuros;
completado o título executivo «sentença penal», nada impede que toda a parte executiva propriamente dita transite – como antes de 2003 – para o tribunal civil – juízos de execução, onde os haja –, com todos os benefícios de eficácia e celeridade que tal supõe;
mantendo-se a liquidação dos danos futuros na acção declarativa – que não pode deixar de ser o enxerto cível tramitado e julgado no processo penal – assegura-se que não se quebre a vinculação do juiz «natural» ao caso concreto sub judice, com aproveitamento de todo o esforço anteriormente desenvolvido e da prévia aquisição de conhecimento sobre a respetiva problemática;
assim, a actual redação dos nºs. 5 do artigo 47.º e 2 do artigo 378.°, do C. P. C. implicam a parcial revogação da primeira proposição do n.º 1 do artigo 82.º, do C. P. P., devendo a liquidação dos danos futuros ser processada como um incidente, no âmbito do processo declarativo – enxerto cível do processo penal – que é reaberto para esse efeito.
Termina assim pedindo a revogação da decisão.
*
Não houve resposta do M.º P.º nem foi emitido Parecer neste tribunal.
*
2). Fundamentação.
2.1). De facto.
1). Foi proferido em 12/07/2016 Acórdão pelo Juízo Central Criminal de Santa Maria da Feira que, na parte que aqui releva, decidiu:
julgar o arguido C… autor material de um crime de homicídio qualificado na forma tentada, p. e p. pelos artigos 131.º, n,º 1, 132.º, n.º 1 e n.º 2, b) e j), 22.º e 23.º, todos do C. P. não sendo este punível em face do disposto no artigo 24.º, n.º 2 do C. P..
condenar o arguido C… pela prática, como autor material, em concurso efetivo, de:
um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, b) e n.º 2, do C. P., na pena de 2 anos e 8 meses de prisão;
um crime de ofensa à integridade física grave qualificada, p. e p. nos termos das disposições conjugadas dos artigos 143.º, n.º 1, 144.º, b) e c), 145.º, n.º 1, c), 132.º, n.º 2, b), h) e j), todos do C. P., na pena de 7 anos de prisão;
um crime de detenção ilegal de arma proibida, p. e p. nos termos do artigo 86.º, n.º 1, c), com referência ao artigo 3.º, n.º 2, l) da Lei n.º 5/2006, de 23/02, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão;
um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelos artigos 143.º, n.º 1 do C. P., na pena de 6 meses de prisão;
um crime de violação de domicílio, p. e p. pelo artigo 190.º, nºs. 1 e 3, do C. P., na pena de 1 ano de prisão, do mais se absolvendo o arguido.
Em cúmulo jurídico foi o mesmo condenado na pena única de 9 anos de prisão.
Julgar o pedido de indemnização civil deduzido pela demandante civil B… parcialmente procedente e, em consequência, condenar o arguido/demandado civil C… no pagamento à demandante civil:
da quantia de 30 000 EUR pelos danos não patrimoniais neste momento considerados (dores, incómodos, limitações, sofrimentos, medos, angústias) por si sofridos, relegando-se para incidente de liquidação a fixação da compensação pelos danos não patrimoniais futuros, com o limite peticionado;
Das despesas por esta suportadas com consultas de psiquiátrica/psicologia, bem como com medicação nestas prescrita, cuja quantificação dos respectivos montantes se relega para incidente de liquidação; com o limite peticionado;
Dos montantes salariais que esta deixou e deixará de auferir em virtude da baixa médica e de situação de desemprego, deduzindo-se o que se vier a apurar ter sido pago à mesma pela Segurança Social pelo período de baixa, assim como os montantes pagos a título de subsídio de desemprego, cuja quantificação se relega, igualmente, para incidente de liquidação, com o limite do peticionado, tudo acrescido de juros legais devidos desde que o demandado foi notificado para contestar o pedido de indemnização civil.
2). A aqui recorrente intentou incidente declarativo junto do tribunal acima referido pedindo a liquidação dos montantes em que o demandado foi condenado de modo genérico.
*
Estes factos resultam do teor dos autos.
*
2.2). Fundamento do recurso.
A única questão que importa decidir é saber se o Juízo Central Criminal de Santa Maria da Feira é competente para tramitar e decidir o incidente de liquidação da sentença de condenação genérica, na parte cível, proferida pelo mesmo tribunal, tal como deduzido pela aqui recorrente.
O artigo 82.º, n.º 1, do C. P. P. dispõe que «se não dispuser de elementos bastantes para fixar a indemnização, o tribunal condena no que se liquidar em execução de sentença. Neste caso, a execução corre perante o tribunal civil, servindo de título executivo a sentença penal.».
Como menciona a recorrente, a lei é clara ao atribuir a competência para se executar este tipo de decisão ao tribunal civil.
Em termos de direito processual civil, o artigo 358.º, do Código de Processo Civil (C. P. C.) fixa os momentos em que se pode tornar líquido o pedido genérico – antes de começar a discussão da causa se estiver perante uma universalidade ou as consequências de um facto ilícito (n.º 1) ou depois de proferida a sentença de condenação genérica se não tiver havido elementos para fixar o objecto ou a quantidade (n.º 2, do artigo 609.º, do C. P. C.), considerando-se a instância renovada se for admitido - n.º 2, do mesmo artigo 358.º -.
E, em consonância, o artigo 704.º, n.º 6, do C. P. C., determina que a liquidação é condição necessária para se formar título executivo judicial, sendo assim obrigatório este incidente para se poder executar a sentença condenatória genérica - Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Sousa, Código de Processo Civil anotado, I volume, página 415 -.
E daí ainda que o artigo 716.º, n.º4, do C. P. C. determine que «quando a execução se funde em título extrajudicial e a liquidação não dependa de simples cálculo aritmético, o executado é citado para a contestar, em oposição à execução, mediante embargos, com a advertência de que, na falta de contestação, a obrigação se considera fixada nos termos do requerimento executivo, salvo o disposto no artigo 568.º; havendo contestação ou sendo a revelia inoperante, aplicam-se os nºs. 3 e 4 do artigo 360.º.» - nosso sublinhado -.
Mas o n.º 5 refere que «o disposto no número anterior é aplicável às execuções de decisões judiciais ou equiparadas, quando não vigore o ónus de proceder à liquidação no âmbito do processo de declaração, bem como às execuções de decisões arbitrais.» - nosso sublinhado -.
Há assim decisões judiciais cíveis condenatórias genéricas que podem ser liquidadas no âmbito do processo executivo, «bastando» que aí não vigore o ónus de proceder à liquidação no âmbito do processo de declaração (por exemplo, aquelas cuja liquidação «só» dependa de cálculo aritmético).
No processo criminal, no pedido de indemnização civil, não vigora este ónus não só por processualmente não estar prevista a existência deste tipo de incidente como o eventual recurso ao disposto no C. P. C. por força do disposto no artigo 4.º, do C. P. P. está, na nossa opinião, afastado por haver norma expressa e especial (citado artigo 82.º, n.º 1, do C. P. P.) que determina que pode haver uma condenação genérica exequível, tal significando que não é necessário liquidar antes da execução essa condenação genérica.
Ressalvando o artigo 82.º, n.º 1, do C. P. P. que em caso de condenação genérica em pedido de indemnização civil a execução corre perante o tribunal civil, o legislador determina que toda essa sentença transite para os tribunais cíveis onde será liquidado o respetivo valor, não existindo o ónus de primeiro se liquidar a sentença e só depois se executar, podendo fazê-lo, ao abrigo do citado artigo 716.º, n.º 1, ex vi n.º 5, do mesmo diploma, do C. P. C. intentando desde logo a ação executiva no tribunal civil.
E assim fazendo o credor, como ainda a lei processual civil prevê, na execução da sentença criminal genérica principia-se por liquidar os valores nos termos do citado artigo 716.º, n.º 4, ex vi, n.º 5, do C. P. C..
O legislador previu assim que, quando não seja necessário primeiro liquidar a sentença antes de executar (como sucede em processo penal), essa liquidação é realizada na própria execução.
O artigo 82.º, n.º 1, do C. P. P. não foi expressamente revogado nem, na nossa opinião, há uma revogação tácita do artigo pois as normas em causa não são incompatíveis sendo ainda possível haver liquidação em sede de execução como aliás este caso é um dos exemplos – neste sentido, que vimos seguindo, Ac. da R. L. de 08/05/2018, www.dgsi.pt e ainda, o Ac. da R. P. de 30/09/2015, em sede de resolução de conflito de competência onde se exara que «Na economia do instituto da adesão a disposição do art.º 82º n.º1 do Código de Processo Penal ao consagrar, nos casos de necessidade de prévia liquidação, a competência é do tribunal civil, constitui a excepção, já que a regra é a competência do tribunal criminal para executar as suas decisões mesmo em matéria de indemnização.» - no mesmo sítio -.
Por fim, o artigo 129.º, da L. O. S. J. determina que «compete aos juízos de execução exercer, no âmbito dos processos de execução de natureza cível, as competências previstas no Código de Processo Civil.» sendo que, nos termos do n.º 2, «estão excluídos do número anterior os processos atribuídos ao tribunal da propriedade intelectual, ao tribunal da concorrência, regulação e supervisão, ao tribunal marítimo, aos juízos de família e menores, aos juízos do trabalho, aos juízos de comércio, bem como as execuções de sentenças proferidas em processos de natureza criminal que, nos termos da lei processual penal, não devam correr perante um juízo cível.» - nosso sublinhado.
Ou seja, estando em causa condenações criminais na parte cível (o processo de execução de decisão criminal está previsto no C. P. P. – artigos 467.º e seguintes -), são da competência do juízo de execução todas aquelas que devam correr perante um tribunal civil – as ilíquidas por força do artigo 82.º, n.º 1, do C. P. P. - e são da competência do tribunal criminal aquelas que sejam condenatórias líquidas.
É esta a opção do legislador que assim mantém a competência para a tramitação e decisão do incidente de liquidação de sentença de condenação genérica proferida em sede criminal que incida sobre matéria cível nos tribunais cíveis (juízo de execução).
Não sendo o tribunal competente em razão da matéria para o incidente em causa, a consequência é aquela que o tribunal recorrido determinou: absolvição do demandado da instância – artigo 278.º, n.º 1, do C. P. C. -.
Deste modo, a decisão sob recurso é confirmada, negando-se provimento ao recurso.
*
3). Decisão.
Pelo exposto, julga-se improcedente o presente recurso, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, com o mínimo de taxa de justiça.
Notifique.
Deposite.
*
Porto, 2019/01/30
João Venade
Paulo Costa