Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
264/17.0T9LOU.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO PEDRO NUNES MALDONADO
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO
CÓDIGO DA ESTRADA
REQUISITOS ADMINISTRATIVOS
ADMOESTAÇÃO
Nº do Documento: RP20171229264/17.0T9LOU.P1
Data do Acordão: 12/29/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS, N.º742, FLS.133-138)
Área Temática: .
Sumário: I - Estando em acusa uma contraordenação estradal os requisitos da decisão da autoridade administrativa estão previstos no artº 181º CE (idêntico ao estabelecido no artº 51º RGCO).
II - O artº 51º RGCO, permite que seja proferida uma admoestação, quando a reduzida gravidade da infracção e da culpa do agente o justifique.
III - A admoestação, como substitutiva da sanção principal (coima) - artº 60º CP e 32º RGCO - pode ser aplicada às contra-ordenações estradais por força do regime subsidiário consagrado no artº 132º CE, qualquer que seja a sua classificação (leves, graves e muito graves).
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº264/17.0T9LOU.P1

Acórdão deliberado em conferência e em turno do Tribunal da Relação do Porto.
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I. B… veio interpor recurso da sentença proferida no processo de recurso contra-ordenacional nº264/17.0T9LOU do juízo local criminal de Lousada, Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este, que julgou improcedentes as nulidades arguidas e condenou o arguido B… pela prática da contra- ordenação prevista nos arts. 60° n.° 1 e 65° a) do Regulamento de Sinalização do Trânsito, aprovado pelo Decreto Regulamentar n.° 22-A/98, de 1 de Outubro e arts. 138° e 146° al. o), do Código da Estrada, em coima que se fixa em €75,00 (setenta e cinco euros) e na sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 2 (dois) meses.
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I.1. Sentença recorrida (transcrição dos segmentos com interesse para a apreciação do recurso).
I. Relatório
A Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária condenou o arguido B…, em virtude da prática da contra-ordenação prevista nos arts. 60° n.° 1 e 65° a) do Regulamento de Sinalização do Trânsito, aprovado pelo Decreto Regulamentar n.° 22-A/98, de 1 de Outubro e arts. 138° e 146° al. o), do Código da Estrada, em coima no valor de €75,00 (setenta e cinco euros) e na sanção de inibição de conduzir pelo período de 90 (noventa) dias.
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O arguido veio recorrer daquela decisão, invocando, em suma, a nulidade da decisão condenatória, por falta de fundamentação e por não especificar, de forma suficiente, o local da infracção, o que coloca em causa o seu direito de defesa. Mais negou a prática dos factos.
Subsidiariamente, pugna pela aplicação de uma admoestação, aduzindo, ainda, que a sanção de inibição aplicada é excessiva e desproporcionada. (…)
Da nulidade da decisão administrativa
Refere o arguido que a decisão condenatória é nula.
Nos termos do disposto no art. 58°, n° 1, do Regime Geral das Contra-Ordenações, as decisões administrativas pelas quais sejam aplicadas coimas devem conter:
a) A identificação dos arguidos;
b) A descrição dos factos imputados, com indicação das provas obtidas;
c) A indicação das normas segundo as quais se pune e a fundamentação da decisão;
d) A coima e as sanções acessórias.
Dentro dos factos imputados, devem conter-se obrigatoriamente os factos objectivos e os factos subjectivos, pois como não há crime sem culpa, também não há contra-ordenação sem culpa (dolo ou negligência).
Tornando-se a decisão administrativa uma acusação - cfr. art. 62° do Regime Geral das Contra-Ordenações - deverá esta conter a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança (no caso de uma coima), incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada - cfr. art. 283° n.° 3 al. b) do C.P.P.
(…) Compulsada a decisão administrativa em causa, constata-se que dela constam todos os elementos referidos no art. 58° do RGCO.
De facto, são referidos os factos objectivos (os constantes do auto) e os atinentes ao elemento subjectivo (negligência - a qual se infere dos elementos objectivos) e é feita referência aos elementos probatórios considerados (o auto de contra-ordenação e o registo individual de condutor).
Por outro lado, a decisão mostra-se devidamente fundamentada, dela resultando, de forma clara, as razões pelas quais o arguido é condenado e o que foi ponderado na fixação da medida concreta das sanções aplicadas.
Ademais, a decisão indica quais os normativos aplicáveis, nomeadamente quanto à moldura abstracta da sanção de inibição aplicável - arts. 138°, 146° e 147° do Código da Estrada, pelo que não se verifica qualquer contradição insanável a este respeito.
É certo que se refere, certamente por lapso de escrita, que estamos perante uma contra-ordenação grave (e não muito grave como deveria constar) mas analisando os normativos citados facilmente se constata tal lapso de escrita.
O arguido não foi condenado como reincidente, sendo certo que o arguido tem conhecimento da condenação de que foi alvo no processo de contra-ordenação n.° 903462397, uma vez que cumpriu a sanção acessória que aí lhe foi aplicada - cfr. fls. 9.
O arguido foi regularmente notificado nos termos e para os efeitos previstos no art. 50° do RGCO e não apresentou (tempestivamente) defesa, nem requereu a realização de quaisquer diligências probatórias.
Aliás, o arguido declarou, em sede de audiência, recordar-se da situação em causa nos autos, embora tenha negado a transposição da linha contínua.
Em suma, não resulta dos autos qualquer violação do direito de defesa do arguido.
Pelo exposto, improcedem as nulidades arguidas pelo arguido.(…)
I. Fundamentação de Facto
2.1. Factos provados
1. No dia 03.07.2014, pelas 19h55m, na Avenida …, …, Lousada, o arguido B… conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros, com a matrícula ..-..-UU e transpôs a linha longitudinal contínua, marca M1, separadora de sentidos de trânsito existente no local.
2. Com a sua conduta, o arguido revelou desatenção e irreflectida inobservância das normas rodoviárias, agindo com falta de cuidado, sabendo que tal conduta é proibida e sancionada por lei contra-ordenacional.
3. Aquando dos factos, o arguido tem averbado no seu registo de condutor a prática, em 26.04.2009, de uma contra-ordenação grave, a qual foi punida, por decisão notificada em 01.06.2010, com 30 dias de inibição de conduzir, que o arguido cumpriu. Actualmente nada consta do registo de condutor do arguido.
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2.2. Factos não provados
Com interesse para a decisão do recurso não se provou que:
a) O arguido não praticou os factos vertidos em 1. a 2.
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2.3. Motivação da matéria de facto
O arguido admitiu ter conduzido o veículo supra identificado no dia, hora e local em causa nos autos, confirmando ter ultrapassado, naquela ocasião, o Jeep da GNR, negando, contudo, ter transposto, para o efeito, qualquer linha longitudinal contínua.
C…, militar da GNR, confirmou o teor do auto de contra-ordenação, que assinou na qualidade de testemunha.
Esclareceu que seguia, como passageiro, no Jeep da GNR, quando, junto às bombas da D…, na Avenida …, em …, foram ultrapassados por um veículo, o qual transpôs a linha longitudinal contínua existente no local.
E…, militar da GNR, agente autuante, esclareceu que seguia, como condutor, no Jeep da GNR, quando, perto das bombas da D…, na Avenida …, em …, foram ultrapassados por um veículo, o qual transpôs a linha longitudinal contínua existente no local.
O Tribunal deslocou-se ao local, onde E… indicou o local onde ocorreu a ultrapassagem (onde se constatou existir, de facto, uma linha longitudinal contínua) - vd. fotografia junta aos autos com a acta refª 74712690.
Por seu turno, o arguido indicou o local onde realizou a ultrapassagem (onde se inicia a linha longitudinal descontínua) - vd. fotografia junta aos autos com a acta refa 74712690.
Quanto à prática dos factos, foi esta a prova produzida.
As declarações prestadas pelo arguido foram insuficientes para colocar em causa o auto de contra-ordenação junto a fls. 4, o qual, nos termos previstos no art. 170° do Código da Estrada, faz fé sobre os factos presenciados pelo autuante, até prova em contrário.
O aludido auto preenche os requisitos previstos nos n°s 1 e 2 do citado normativo legal.
Quanto à identificação do local da infracção, importa referir que do auto de contra- ordenação consta como local da infracção "Avenida …, …".
É certo que o auto de notícia poderia ser mais explícito quanto ao local da infracção, indicando, p. ex., o km da Estrada em causa, mas tal facto não lhe retira o seu valor probatório, nem o fere de qualquer nulidade.
Os militares da GNR confirmaram, de forma segura, o que fizeram verter no auto de contra-ordenação.
A fotografia junta a fls. 23 não põe em causa o supra referido.
Por tudo o que acabamos de referir, deu-se como provado o vertido em 1. e como não provado o vertido em a).
O provado em 2. decorre dos factos provados em 1., em conjugação com as regras da experiência comum, sendo consabido por qualquer condutor que tal conduta constituiu ilícito contra-ordenacional.
Mais se atentou ao registo individual de condutor junto aos autos a fls. 9 e 28.
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III. Fundamentação de Direito
O arguido vem acusado em virtude da prática da contra-ordenação prevista nos arts. 60° n.° 1 e 65° a) do Regulamento de Sinalização do Trânsito, aprovado pelo Decreto Regulamentar n.° 22-A/98, de 1 de Outubro e arts. 138° e 146° al. o), do Código da Estrada.
Prevê o art. 60° n.° 1 do do Regulamento de Sinalização do Trânsito, aprovado pelo Decreto Regulamentar n.° 22-A/98, de 1 de Outubro que as marcas longitudinais são linhas apostas na faixa de rodagem, separando sentidos ou vias de trânsito e que a marca M1 - linha contínua - significa para o condutor proibição de a pisar ou transpor e, bem assim, o dever de transitar à sua direita, quando aquela fizer a separação de sentidos de trânsito.
Já o art. 65° do mesmo diploma, no que aqui interessa, refere que quem infringir as prescrições impostas pelas marcas rodoviárias é sancionado com coima de €49,88 a €249,40, quando se trate da marca M1.
Mais estabelece o art. 131° do Código da Estrada que constitui contra-ordenação rodoviária todo o facto ilícito e censurável que preencha um tipo legal correspondente à violação de norma do Código da Estrada ou de legislação complementar e legislação especial cuja aplicação esteja cometida à ANSR, e para o qual se comine uma coima.
Estipula o art. 133° do citado diploma que nas contra-ordenações rodoviárias a negligência é sempre sancionada.
Refere o art. 136° que: "As contra-ordenações rodoviárias, nomeadamente as previstas no Código da Estrada e legislação complementar, classificam-se em leves, graves e muito graves, nos termos dos respectivos diplomas legais.
2 - São contra-ordenações leves as sancionáveis apenas com coima.
3 - São contra-ordenações graves ou muito graves as que forem sancionáveis com coima e com sanção acessória."
Já o art. 138° prescreve que as contra-ordenações graves e muito graves são sancionáveis com coima e com sanção acessória e que as sanções acessórias são cumpridas em dias seguidos.
Consta do art. 139° que a medida e o regime de execução da sanção determinam-se em função da gravidade da contra-ordenação e da culpa, tendo ainda em conta os antecedentes do infractor.
Por seu turno, o art. 140° estabelece que os limites mínimo e máximo da sanção acessória cominada para as contra-ordenações muito graves podem ser reduzidos para metade tendo em conta as circunstâncias da infracção, se o infractor não tiver praticado, nos últimos cinco anos, qualquer contra-ordenação grave ou muito grave ou facto sancionado com proibição ou inibição de conduzir e na condição de se encontrar paga a coima.
Do art. 141° decorre, de forma clara, que apenas pode ser suspensa a execução da sanção acessória aplicada a contra-ordenações graves.
Prevê o art. 146° al. o) do Código da Estrada que constitui contra-ordenação muito grave a transposição ou a circulação em desrespeito de uma linha longitudinal contínua delimitadora de sentidos de trânsito ou de uma linha mista com o mesmo significado.
Segundo o art. 147° a sanção acessória aplicável aos condutores pela prática de contra-ordenações graves ou muito graves previstas no Código da Estrada e legislação complementar consiste na inibição de conduzir.
Mais aí se refere que a sanção de inibição de conduzir tem a duração mínima de um mês e máxima de um ano, ou mínima de dois meses e máxima de dois anos, consoante seja aplicável às contra-ordenações graves ou muito graves, respectivamente, e refere-se a todos os veículos a motor.
De tudo o que acabamos de dizer e dos factos dados como provados resulta que o arguido praticou a contra-ordenação muito grave que lhe vem imputada.
Esta contra-ordenação é punida com coima a fixar entre €49,88 e €249,40.
Considerando, por um lado, que o arguido que agiu de forma negligente mas, por outro lado, que optou por negar a prática dos factos, entende-se ser de manter a coima fixada pela decisão administrativa, ou seja, € 75,00 (setenta e cinco euros).
Não é de aplicar qualquer admoestação, uma vez que se trata de uma infracção muito grave e considerando, ainda, as elevadíssimas exigências de prevenção geral que se fazem sentir quanto às contra-ordenações estradais.
Neste tipo de contra-ordenações não é possível suspender a execução da sanção acessória.
Tendo por referência a data dos factos em causa nestes autos, a contra- ordenação referida em 3. tinha sido praticada há mais de cinco anos. Contudo, o arguido não liquidou a coima, pelo que não se poderá lançar mão da atenuação especial prevista no art. 140° do Código da Estrada.
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I.2. Recurso do arguido (conclusões que se transcrevem integralmente).
I. O presente recurso é interposto da Douta Sentença proferida nos autos que determinou a improcedência do recurso de contraordenação apresentado no processo 284 293 563, e em consequência confirmou a decisão recorrida proferida pela Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária.
II. O Recorrente vem impugnar a douta sentença proferida em matéria de direito.
III. A sentença em crise é nula nos termos previstos na al. c) do n.° 1 do art. 379.° do CPP uma vez que o Tribunal a quo não se pronunciou quanto à invocada nulidade por falta de concretização do local onde teria sido praticada a infração nem quanto à nulidade pela consideração na decisão administrativa de factos não provados.
IV. Por outro lado, a douta sentença padece de erro de julgamento e deficiente aplicação do Direito relativamente à invocada a nulidade da decisão administrativa.
V. Neste caso, a sentença elabora sobre aplicabilidade e preenchimento do art. 58.° n.° 1 do RGCO quando, na realidade, a norma aplicável é a do art. 181° do Código da Estrada, disposição esta que, sendo especial relativamente ao previsto no Regime Geral da Contraordenações e Coimas (RGCO), afasta a aplicação daquele art. 58° deste último diploma.
VI. Assim, entende ainda o Recorrente que a decisão enferma ainda de nulidade nos termos do disposto no art. 379° do Código de Processo Penal (CPP) aqui aplicável ex vi do artigo 41º do RGCO, aplicável ex vi artigo 132° da redação atual do Decreto-Lei 114/94, de 3 de Maio, a qual não pode considerar-se sanada, pois que o Recorrente a invocou tempestivamente na sua impugnação judicial.
VII. Assim, ao indeferir a nulidade invocada, o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 181° do Código da Estrada, 379° do Código de Processo Penal, que aqui devem ser aplicados e, bem assim, o disposto no art. 58° do RGCO, que aqui não tem aplicação.
VIII. Finalmente, entende o Recorrente que o Tribunal a quo errou ao decidir pelo afastamento da aplicação da sanção de admoestação prevista no art. 51.° do RGCO.
IX. Na verdade, atenta a reduzida gravidade da infração e a reduzida culpa do agente, no presente caso estão preenchidos os pressupostos legais de que depende a aplicação da sanção de admoestação..
X. Ao não aplicar a sanção de admoestação, o Tribunal a quo violou o disposto no n.° 1 do art. 51.° do RGCO.
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I.3. Resposta do MºPº (conclusões que se reproduzem integralmente) .
I- Decorre da leitura do auto de contra-ordenação e da decisão administrativa que os factos ocorreram no dia 03/07/2014, pelas 19h55m, na Avenida …, …, Lousada, o recorrente conduzia o veículo automóvel matrícula .. - .. - .. e transpôs a linha longitudinal contínua (marca M1), separadora dos sentidos de trânsito, pelo que se mostra perfeitamente circunscrito o local da prática da contra-ordenação, tendo tal sido perfeitamente apreendido pelo recorrente que em sede audiência admitiu recordar-se desta situação e de local, embora tivesse negado a prática da infracção, pelo que deverá manter-se a sua improcedência.
II- Na douta sentença proferida a Mm.a Juiz apreciou devidamente todas as "pretensas" nulidades, afirmando a sua inexistência, considerando que da decisão administrativa constam todos os elementos constantes do art. 58° do RGCO, designadamente os factos objectivos (constantes do auto de noticia), e os atinentes ao elemento subjectivo (negligência) e bem ainda aos elementos probatórios considerados, pelo que a nulidade da decisão administrativa no que concerne aos factos provados e não provados deverá manter-se a sua improcedência.
IV- De resto, na douta sentença, apreciaram-se todas as questões invocadas pelo recorrente na impugnação, não enfermando pois de qualquer omissão de pronúncia.
V- Mostra-se devidamente fundamentada a decisão pela não aplicação ao recorrente da sanção de admoestação, face à natureza da infracção - contra-ordenação muito grave - e tendo ainda em consideração as elevadas exigências de prevenção geral que se fazem sentir quanto às contra- ordenações estradais.
VI- A douta decisão recorrida fez pois uma correcta interpretação dos normativos legais e não violou qualquer disposição legal.
I.4. Parecer do MºPº nesta relação (argumentação que se sintetiza).
Acompanhou a resposta do MºPº em primeira instância.
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II. Objecto do recurso e sua apreciação.
O objecto do recurso está limitado às conclusões apresentadas pelo recorrente (cfr. Ac. do STJ, de 15/04/2010: “Como decorre do art. 412.º do CPP, é pelas conclusões extraídas pelo recorrente na motivação apresentada, em que resume as razões do pedido que se define o âmbito do recurso. É à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, donde resulta que o essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões(…)”, sem prejuízo, obviamente da eventual necessidade de conhecer oficiosamente da ocorrência de qualquer dos vícios a que alude o artigo 410º, do Código de Processo Penal nas decisões finais (conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada no Acórdão nº 7/95, do STJ, in DR, I série-A, de 28/12/95).
São as conclusões da motivação que delimitam o âmbito do recurso. Se ficam aquém a parte da motivação que não é resumida nas conclusões torna-se inútil porque o tribunal de recurso só pode considerar as conclusões e se vão além também não devem ser consideradas porque são um resumo da motivação e esta é inexistente (neste sentido, Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, Vol. 3, 2015, págs. 335 e 336).
As questões suscitadas resumem-se, na qualificação jurídica efectuada pelo recorrente:
1ª à nulidade da sentença por omissão de pronúncia;
2ª ao erro de julgamento sobre a nulidade da decisão administrativa e;
3ª ao erro na escolha da sanção aplicável.
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II.1.Da nulidade da sentença.
Entende o recorrente que a sentença judicial não se pronunciou relativamente à nulidade da decisão administrativa arguida em sede de impugnação judicial relativa à ausência de indicação de referências espaciais concretas do local da prática da contraordenação e à contradição insanável entre o ponto 8 da decisão e os pontos 1 e 6 da mesma, omissão que representa uma nulidade da sentença, nos termos do artigo 379º, nº1, alínea c),do Código de Processo Penal.
Na sua impugnação judicial da decisão administrativa o ora recorrente, laconicamente, invoca não existir a localidade de Ladares e que a referência da circulação do veículo numa instância local nada indica relativamente à localização geográfica da mesma (cfr. artigos 6 e 7 da impugnação judicial). Porém, conhece a Avenida … “constituída em toda a sua extensão por linhas longitudinais descontínuas e apenas pontualmente por linha contínua” (cfr. artigo 32 da impugnação judicial).
Na sua defesa que apresentou relativamente à notificação do auto de contra ordenação foi ainda mais longe, declarando que no dia indicado naquele auto seguia no seu veículo, no sentido Paredes-Lousada, na Avenida …, freguesia de …, concelho de Lousada, e que efectuou uma ultrapassagem de um veículo que seguia à sua frente após o términus da linha contínua aí existente (cfr. artigos 4,5 e 6 do seu requerimento de defesa).
A decisão administrativa condenatória deve conter, entre outros, a descrição sumária dos factos, nos termos do artigo 181º, nº1, alínea b), do Código da Estrada, exigência em tudo idêntica àquela estabelecida no artigo 58º, nº1, alínea b), Regime Geral das Contra-Ordenações.
O julgador declarou, peremptoriamente, que da decisão condenatória constam, entre outros, os factos objectivos (os constantes do auto) neles se entendendo as condições de tempo e lugar do comportamento punido.
Por outro lado, o ponto 8 da decisão administrativa versa sobre um concreto facto: a desatenção e irreflectida inobservância das normas de direito rodoviário, a actuação com falta de cuidado e prudência que o trânsito de veículos aconselha. Não se compreende o recurso nesta parte uma vez que o julgador, também em apreciação da nulidade suscitada, declarou que a decisão administrativa descreve os factos atinentes ao elemento subjectivo. Questão distinta será aferir os meios de prova que sustentam tal facto, operação que o recorrente teve possibilidade de exercer em sede da impugnação judicial da decisão administrativa.
Não existe, por isso, qualquer omissão de pronúncia relativamente às arguidas nulidades, motivo pelo qual improcede o recurso nesta parte.
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II.2. Do erro de julgamento sobre a nulidade da decisão administrativa.
O julgador apreciou as nulidades arguidas pelo ora recorrente da decisão administrativa condenatória de acordo com as regras estabelecidas no artigo 58º do Regime Geral das Contra-Ordenações.
Naturalmente que, existindo norma própria, especial, no Código da Estrada (artigo 181º) relativamente aos requisitos da decisão administrativa condenatória, deverão os mesmos ser apreciados de acordo com esta.
Porém, o lapso cometido é juridicamente neutro. O regime do artigo 181º do Código da Estrada, para as concretas questões suscitadas pelo recorrente (nulidade da decisão administrativa) é rigorosamente idêntico àquele estabelecido no artigo 58º do Regime Geral das Contra-Ordenações. A apreciação das questões suscitadas pelo recorrente na sua impugnação judicial obedece ao mesmo quadro legal abstracto dos requisitos da decisão administrativa condenatória comum ao regime geral das contraordenações e ao regime especial das contraordenações rodoviárias.
A referida neutralidade jurídica do lapso cometido determina, não obstante assistir razão ao recorrente na premissa apontada, a improcedência do pedido formulado no recurso.
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II.3. Do erro na escolha da sanção aplicável.
O recorrente não se conforma com a sentença na parte em que afastou a aplicação da sanção de admoestação prevista no artigo 51º Regime Geral das Contra-Ordenações.
Na sentença em causa, o julgador entendeu não ser de aplicar qualquer admoestação, uma vez que se trata de uma infracção muito grave e considerando, ainda, as elevadíssimas exigências de prevenção geral que se fazem sentir quanto às contra-ordenações estradais.
O recorrente entende que o mero facto de se tratar de contraordenação rodoviária classificada de muito grave tal não é, em abstracto, suficiente para preencher (teria querido dizer afastar) o requisito da reduzida gravidade da infracção.
Uma coisa é a importância atribuída pelo legislador ao comportamento abstracto previsto na lei (que este aplica através da classificação tripartida das contraordenações estradais) e outra coisa é a gravidade em concreto dos factos que constituem infração. No presente caso, mesmo na tese da ANSR e da GNR que alegadamente presenciou a infracção, nada é descrito que indicie uma gravidade especial dos factos praticados, Dos mesmos não decorreu qualquer perigo concreto para os demais participantes no tráfego rodoviário. Por outro lado, relativamente ao requisito da reduzida culpa do agente, note-se que ao Recorrente é imputada a infração a título de negligência (cfr. pág 7 da sentença), não ficando demonstrada qualquer vontade direta, necessária ou eventual na prática dos factos.
Nos termos do artigo 51º Regime Geral das Contra-Ordenações quando a reduzida gravidade da infracção e da culpa do agente o justifique, pode a entidade competente limitar-se a proferir uma admoestação.
Esta sanção, substitutiva da sanção principal (coima) – cfr. artigo 60º do Código Penal, na interpretação da natureza da sanção, aplicável por força do disposto no artigo 32º do Regime Geral das Contra-Ordenações, pode ser aplicada às contraordenações estradais, por força do regime subsidiário consagrado no artigo 132º do Código da Estrada.
Exactamente por representar uma sanção substitutiva da coima poder-se-ia pensar (e doutrina existe nesse sentido) que o seu campo de aplicação estaria limitado, no que às infracções rodoviárias diz respeito, às contraordenações leves, aquelas sancionáveis apenas com coima (cfr. artigo 136º, nº2, do Código da Estrada).
Não encontramos inconciliabilidade intrínseca, porém, entre a possibilidade de substituir a sanção de coima pela admoestação e aplicar a sanção acessória devida pelo comportamento e, assim, admitir a aplicação da sanção substitutiva da coima relativamente às contraordenações graves e muito graves, censuradas com a aplicação da sanção acessória de inibição de condução (artigos 136º, nº3, e 147º do Código da Estrada). Isto porque, obedecendo aos mesmos critérios de graduação da sanção principal, a sanção acessória visa finalidades distintas, a singular motivação do agente, pela inibição, de se abster de actos idênticos no futuro (preocupações redobradas de prevenção geral e especial de dissuasão).
Note-se que idêntico raciocínio merece inquestionável aplicação nos crimes rodoviários (p.ex. a condução de veículo em estado de embriaguez, punida com pena de multa e com a pena acessória de proibição de condução de veículos com motor – artigos 292º, nº1, e 69º, nº1, alínea a), do Código Penal).
Aqui chegados, a argumentação do recorrente revela-se de uma fragilidade absoluta, só consentânea com a aposta na prescrição do procedimento contra-ordenacional (não se aplicando a taxa sancionatória especial- artigo 531º do Código de Processo Civil, aplicável por força do artigo 521º do Código de Processo Penal – por força da assistida razão argumentativa, ainda que juridicamente irrelevante, na aplicação errónea do artigo 58º do Regime Geral das Contra-Ordenações).
Por um lado, é absolutamente irrelevante, em relação ao comportamento apurado, a inexistência de criação de um perigo concreto para os utilizadores da via de trânsito. A contraordenação em causa configura a protecção de um bem jurídico (segurança da circulação rodoviária) que caracteriza uma contraordenação de perigo abstracto. Aliás, a verificação da existência de criação de perigo em concreto determina a criminalização da conduta do agente, verificados os demais elementos do tipo legal (cfr. artigo 291º do Código Penal).
A modalidade da culpa (na forma de negligência) não representa argumento decisivo, sequer singularmente apreciável, em sede de culpa do agente.
A infracção em causa tem natureza de contraordenação muito grave (a contraordenação mais qualificada, em termos ponderação legislativa de ilicitude comportamental).
O recorrente foi condenado em 2010 pela prática de uma contraordenação grave, tendo cumprido 30 dias de inibição de condução. Este facto, obviamente desconsiderado enquanto factor reincidente, revela, em sede de culpa relativamente ao seu comportamento apreciado, uma acrescida censura ético-pessoal.
Não se preenchem, de forma sequer aproximada, os requisitos legais que permitem a aplicação da sanção substitutiva da coima, motivo pelo qual improcede o recurso, também nesta parte.
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III. Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando a taxa de justiça em 5 UCs (artigos 513º, nº1, do CPP e Tabela III do RCP).
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Porto, 29 de Dezembro de 2017
João Pedro Nunes Maldonado
Horácio Correia Pinto