Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0622382
Nº Convencional: JTRP00039537
Relator: HENRIQUE ARAÚJO
Descritores: MENORES
REGIME
VISITA
INCUMPRIMENTO
Nº do Documento: RP200610030622382
Data do Acordão: 10/03/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: REVOGADA A DECISÃO.
Indicações Eventuais: LIVRO 226 - FLS 63.
Área Temática: .
Sumário: I - Não é qualquer incumprimento que faz desencadear as consequências ditadas no art. 181.º da OTM. O incumprimento desgarrado de um progenitor em relação ao regime de visitas instituído ao outro não configura violação desse preceito.
II - O incumprimento reiterado e grave só releva se for culposo, isto é, se puder ser assacado ao progenitor faltoso um efectivo juízo de censura.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

I. RELATÓRIO

Por apenso aos autos de alteração à regulação do exercício do poder paternal relativos ao menor B………., que correm termos pelo 4º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Santa Maria da Feira, veio C………. requerer contra D………., incidente de incumprimento a que se reporta o artigo 181º da OTM, alegando que esta não está a cumprir com o regime de visitas a que se encontra obrigada por decisão desse tribunal.
Requereu assim a sua condenação em multa e indemnização a favor do menor, ou do requerente ou de ambos.

Notificada do teor do requerimento, a mãe do menor respondeu, alegando que discorda da viagem a que o pai pretende submeter o filho no fim-de-semana mensal em que pode levá-lo para a margem sul do Tejo, e que, sempre que o menor esteve na companhia do pai, teve desgaste físico e psicológico, com sinais de tristeza, a ponto de ter tido necessidade de consultar um pediatra.

Marcada uma conferência de pais, à qual a requerida faltou, determinou-se que o fim-de-semana mensal em que o pai teria o direito de ter o menor consigo seria o primeiro de cada mês – v. fls. 32.

Foi realizada conferência de pais na qual se acordou num regime provisório que permite ao Requerente estar com o menor um dia por semana, nas suas folgas – fls. 149.

Foram ouvidas as psicólogas que acompanham o menor e que elaboraram os pareceres juntos aos autos.

O Ministério Público pronunciou-se nos termos constantes de fls. 57, 82, 129 e 165.

Finalmente, a Mmª Juiz declarou o incumprimento por parte da Requerida D………. do regime de visitas, e, em consequência, condenou-a no seu cumprimento, bem como no pagamento de uma indemnização ao seu filho menor no montante de € 300,00.

A Requerida não se conformou e recorreu.
O recurso foi admitido como de apelação, com efeito devolutivo – v. fls. 195 e 218.

Na motivação do seu recurso a apelante pede que se revogue a decisão impugnada, formulando, para esse fim, as seguintes conclusões:
1. A decisão recorrida não especifica qual a concreta violação da recorrente. A recorrente não pode ser condenada num incidente apenas porque tem opinião diferente de outra pessoa.
2. Quando foi instaurado o incidente de incumprimento – e é unicamente de tal incidente que se trata – havia uma determinação genérica de que o pai poderia ir com o filho num fim-de-semana ao Seixal, em cada mês, sem se indicar qual o concreto fim-de-semana de cada mês, de tal modo que o Tribunal, posteriormente, teve necessidade de designar uma audiência complementar em que, aí sim, fixou um concreto fim-de-semana de cada mês.
3. Posteriormente a tal decisão complementar nenhum incidente de incumprimento foi suscitado a tal propósito.
4. A decisão recorrida não especifica os fundamentos de facto que justificam a decisão e também condena em objecto diverso do pedido, sendo nula, nos termos do disposto no art. 668º, n.º 1, al. b) e e) do CPC.

Nas contra-alegações o apelado bate-se pela confirmação do julgado.

Foram colhidos os vistos legais.
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Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões da recorrente – arts. 684º, n.º 3 e 690º do CPC – as questões que se levantam são as de saber se houve incumprimento do regime de visitas por parte da apelante e se a sentença é nula nos termos do art. 668º, n.º 1, als. b) e e) do CPC.
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II. FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

O Tribunal da 1ª instância considerou apenas os seguintes factos:

1. Por sentença proferida nestes autos, embora com carácter provisório, foi decidido, quanto ao regime de visitas, que o pai poderá visitar o filho sempre que entender, sem prejuízo dos períodos de descanso, e tê-lo consigo uma vez por mês indo buscá-lo a casa dos avós maternos pelas 14h00 de sexta e entregá-lo até às 21h00 de domingo.
2. Desde o primeiro fim-de-semana que a mãe tem levantado questões e admitido não deixar ir o menor por estar preocupada com a sua saúde e bem-estar.

O DIREITO

Dispõe o artigo 181 da OTM que “se, relativamente à situação do menor, um dos progenitores não cumprir o que tiver sido acordado ou decidido, pode o outro requerer ao tribunal as diligências necessárias para o cumprimento coercivo e a condenação do remisso em multa até € 249,90 e em indemnização a favor do menor ou do requerente ou de ambos”.
Não é qualquer incumprimento que faz desencadear as consequências ditadas neste preceito. O incumprimento ocasional e desgarrado de um progenitor em relação ao regime de visitas instituído ao outro não configura violação desse preceito.
De facto, o recurso ao próprio regime estatuído no art. 181º da OTM pressupõe uma crise, um incumprimento efectivamente grave e reiterado por parte do progenitor remisso e não uma situação ocasional ou pontual de incumprimento surgida por motivos imponderáveis alheios à vontade do progenitor incumpridor ou mesmo, como no caso, em situações em que o progenitor remisso está convencido que não está a incumprir o que quer que seja – v. Ac desta Relação do Porto (Exº Desembargador Sousa Lameira), de 30.01.2006, no processo n.º 0557105, em www.dgsi.pt.
Por outro lado, o incumprimento reiterado e grave só releva se for culposo, isto é, se puder assacado ao progenitor faltoso um efectivo juízo de censura.
Ora, lida a sentença, fica-se sem saber quais os factos em que se suporta a conclusão de que houve incumprimento da Requerida. Tal deve-se, sem dúvida, à forma genérica e absolutamente incorrecta como se procedeu à fundamentação de facto – v. ponto 2., supra.
Dizer-se apenas que “desde o primeiro fim-de-semana que a mãe tem levantado questões e admitido não deixar ir o menor por estar preocupada com a sua saúde e bem-estar” é o mesmo que nada dizer para efeitos da aplicação do art. 181º da OTM.
À escassez de factos a Mmª Juiz justificou a sua decisão do seguinte modo:
“Dos autos conclui-se que há da parte da mãe da menor, a requerida, um incumprimento do regime de visitas que foi fixado neste processo, pois tem tentado evitar o contacto da menor com o pai, embora alegando motivos que a verificarem-se seriam plausíveis” (sublinhado nosso).

Ora, como flui dos arts. 208º da Constituição da República Portuguesa e do art. 158º, n.º1, do CPC, a sentença deve ser motivada através da exposição dos fundamentos de facto e de direito (art. 659, nº 2): aqueles respeitam aos factos relevantes para a decisão que foram adquiridos durante o processo; estes à interpretação e aplicação das normas jurídicas aplicáveis a esses factos.
A verdade, porém, é que a sentença não identifica, não concretiza, o facto (ou factos) que, à luz do art. 181º da OTM, induzem o incumprimento culposo pela Requerida do regime de visitas.
Sabe-se que, para que haja falta de fundamentos de facto, como causa de nulidade de sentença – art. 668º, n.º al. b) do CPC –, torna-se necessário que o juiz omita totalmente a especificação dos factos que considere provados, de harmonia com o que se estabelece no nº 3 do art. 659º, e que suportam a decisão – v. Lebre de Freitas, “Código de Processo Civil Anotado”, Volume 2º, pág. 669. A fundamentação da sentença é, com efeito, indispensável em caso de recurso, uma vez que na reapreciação da causa a Relação tem de saber em que se fundou a sentença recorrida – v. Lebre de Freitas, ob. cit., págs. 669/670.
A motivação incompleta, deficiente ou errada não produz nulidade, afectando somente o valor doutrinal da sentença e sujeitando-a consequentemente ao risco de ser revogada ou alterada quando apreciada em recurso – v. Amâncio Ferreira, “Manual dos Recursos em Processo Civil”, 3ª edição, pág. 48.
Assim, e embora se lamente a forma ligeira e pouco cuidada como se seleccionou a matéria de facto, a verdade é que a sentença não é completamente omissa quanto à especificação dos factos provados e, por isso, não padece da nulidade prevista no art. 668º, n.º 1, al. b), do CPC.

Tentaremos suprir essa deficiência através do que consta do processo.
Narremos, então, alguns dos factos cuja demonstração resulta dos autos (a aditar aos dois factos já descritos mais acima):

3. O regime de visitas de que se fala em 1. foi acordado na conferência de pais realizada em 23.02.2005.
4. O incidente de incumprimento foi suscitado no dia 20.04.2005 – v. fls. 2.
5. O Requerente teve consigo o menor no fim-de-semana de 18 a 20 de Março de 2005.
6. No mês de Abril a Requerida não consentiu que o Requerente tivesse consigo o menor B………., em nenhum dos fins-de-semana desse mês, não obstante o Requerente se dirigir a casa daquela para o levar.
7. Foi designado o dia 29.06.2005 para uma conferência de pais. A ela faltou a Requerida, mas a Mmª Juiz determinou, em complemento da sentença homologatória do acordo alcançado em 23.02.2005, que o fim-de-semana mensal em que o Requerente podia ter consigo o menor seria o primeiro de cada mês – v. fls. 32.
8. A Requerida foi notificada dessa decisão por carta datada de 12.08.2005 – v. fls. 59.
9. No dia 28 de Agosto de 2005, a Requerida deu à luz um filho, de nome E………., que foi registado como sendo também filho do Requerente – v. doc. fls. 65, cujo teor se dá aqui por reproduzido.
10. Em conferência de pais realizada em 10 de Novembro de 2005, Requerente e Requerida acordaram que, até ser proferida decisão relativa ao presente incidente de incumprimento, o pai teria direito a ir buscar o menor B………. à casa da mãe, entre as 9h30 e as 10h00 da manhã e entregá-lo até às 19 horas do mesmo dia, com início na 4ª feira, dia 16.11.2005 – v. 149/150.

Como resulta do requerimento inicial, o incidente de incumprimento refere-se às duas componentes do regime de visitas: a possibilidade de o Requerente visitar o filho em casa da progenitora, sempre que o entender, sem prejuízo dos períodos de descanso; e a possibilidade de ter consigo o seu filho, uma vez por mês, ao fim-de-semana.
No que concerne à primeira vertente desse regime, o Requerente não consegue concretizar quais os dias em que lhe foi negada a visita do filho.
No que diz respeito à segunda, à data da entrada desse requerimento, é manifesto que não existia qualquer incumprimento consumado dessa vertente do regime de visitas, uma vez que o mês de Abril ainda se não tinha esgotado e não estava ainda definido, nessa ocasião, qual o fim-de-semana mensal em que o Requerente podia ter consigo o menor B………. . A essa indefinição só se viria a pôr cobro na conferência de 29.06.2005, notificada à Requerida por carta de 12.08.2005.
Mesmo assim, resulta dos autos que, durante todo o mês de Abril de 2005, a Requerida não consentiu que o Requerente tivesse consigo o filho do casal – v. 6.
Nos meses de Maio e Junho não há notícia de qualquer incumprimento, sendo certo que, como o próprio Requerente reconhece na conclusão 7ª das contra-alegações (v. fls. 210), a partir da notificação feita à Requerida da decisão tomada na conferência de 29.06.2005 – v. 7. e 8. – não foi suscitado mais nenhum incidente de incumprimento.
Temos, assim, que o único incumprimento imputável à Requerida prende-se com o facto de no mês de Abril de 2005 não ter consentido que o Requerente levasse consigo o filho de ambos, num dos fins-de-semana desse mês.
É pouco – muito pouco – para fazer funcionar o mecanismo do art. 181º da OTM.
Como já se disse, esse preceito só se aplica a situações continuadas e graves de incumprimento. Se assim não fosse, isto é, se o art. 181º funcionasse automaticamente para todo e qualquer incumprimento, raros seriam os processos relativos a menores em que não existiriam incidentes deste tipo.

Embora o conhecimento da questão relacionada com a outra nulidade apontada à sentença esteja prejudicado pelo que acabou de referir-se, não resistimos a dizer que não se vislumbra a dita nulidade (a da alínea e) do n.º 1, do art. 668º), pois que a mesma nem sequer vem concretizada, seja na motivação do recurso, seja nas próprias conclusões.
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III. DECISÃO

Pelo exposto, na procedência do recurso, revoga-se a decisão recorrida, julgando-se improcedente o incidente de incumprimento suscitado pelo Requerente, absolvendo-se a Requerida do que, a esse título, vem peticionado.
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Custas pelo recorrido.
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PORTO, 03 de Outubro de 2006
Henrique Luís de Brito Araújo
Alziro Antunes Cardoso
José Manuel Cabrita Vieira e Cunha