Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
758/17.8T8AVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: AUGUSTO DE CARVALHO
Descritores: VENDA EXECUTIVA
CONTRATO DE ARRENDAMENTO
CADUCIDADE
Nº do Documento: RP20180711758/17.8T8AVR.P1
Data do Acordão: 07/11/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 678-A, FLS 37-45)
Área Temática: .
Sumário: I - O nº 2 do artigo 824º do C.C. refere-se a direitos de garantia e outros direitos reais, não abrangendo o arrendamento, que tem natureza obrigacional.
II - Na venda executiva de imóvel arrendado, tal como na venda voluntária, por aplicação do citado artigo 1057º do C.C., o arrendamento não caduca.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação nº 758/17.8T8AVR.P1

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

B... veio deduzir oposição à presente providência cautelar que ordenou a restituição provisória de posse do prédio rústico, sito na Rua ..., ..., freguesia ..., concelho de Ovar, com uma área total de 6.628,3m2, descrito na Conservatória do Registo predial de Ovar sob o nº 2315/20080327 da freguesia ..., requerendo:
a) Que seja decretada a manutenção da posse do requerido nos termos do disposto no nº 1 do artigo 1278º do C.C;
b) Ou, se assim se não entender, que seja reconhecido ao requerido o exercício do direito de retenção nos termos do artigo 754º do C.C., por força das benfeitorias por si realizadas, até efetivo e integral pagamento das mesmas por parte da requerente;
c) Não ser decretada a inversão do contencioso, nos termos sobreditos, com as legais consequências;
d) Ser decretada a extinção da presente providência, por não provada, com a consequente restituição do imóvel ao ora requerido.

A fundamentar aqueles pedidos, alega, para o efeito, que é o legítimo arrendatário do imóvel objeto dos presentes autos, já desde 01/05/2006, conforme contrato de arrendamento datado de 15/09/2010, o qual reconhece, expressamente, o efeito retroativo do arrendamento em causa.
Desde 01/05/2006, que o ora requerido ali se instalou, então num terreno descoberto e apenas com uma pequena edificação, a qual demoliu. No decurso da vigência deste arrendamento, o ora requerido, a suas próprias expensas, implantou piso, com área de 1.200 m2, escritório, rampa de pesagem para veículos com carga, uma estação de tratamento de águas contaminadas e procedeu à implantação dos respetivos muros de vedação e portões.
É falso que alguma vez tenha ameaçado o legal representante da requerente, C..., (que nem conhece) ou quem quer que fosse.
Quem se deslocou ao locado e ali se encontrou com o requerido e o seu irmão D... à porta do imóvel foi o Sr. E... (que sempre conheceu como legal representante da requerente). Este disse-lhe que era o atual proprietário do imóvel e que se encontrava disposto a dar ao ora requerido €2.500,00 e a pagar-lhe um jantar como forma de o compensar pelo elevado investimento que tinha feito no prédio por forma a que “também não perdesse tudo”.
O ora requerido, chocado com o que acabara de saber, informou o Sr. E... de que iria tentar confirmar o que ali estava a ser referido, tendo abandonado o local na companhia do seu irmão.
O requerido construiu benfeitorias no imóvel nas quais gastou mais de €220.000,00.
Deve ser indeferido o pedido de inversão do contencioso por não se verificarem, no caso dos autos, os requisitos do mesmo.

Procedeu-se à audiência final e foi proferida decisão que julgou procedente a oposição e, em consequência, revogada a decretada providência de restituição provisória da posse.

Inconformada, a requerente F..., Lda., recorreu para esta Relação, formulando as seguintes conclusões:
1. A recorrente não se conforma com o teor da sentença recorrida, por esta não ter aplicado convenientemente o direito aos factos apurados, sendo que esses mesmos factos não foram comprovados em sede de audiência de julgamento.
2. Os pontos 1, 2, 6, 7 e 12 dos factos provados demonstram que o tribunal a quo se equivocou no julgamento dos mesmos.
3. De facto, dos depoimentos prestados pelas testemunhas E..., G..., resulta claro e inequívoco o estado de abandono do imóvel, assim como a inexistência de qualquer tipo de arrendamento.
4. Pelo que, deve dar-se como não provada a existência de qualquer contrato de arrendamento e, ainda, que o requerido abandonou o imóvel no início do ano de 2015, pelo que não tinha a posse do mesmo.
5. Considera a recorrente igualmente que a sentença em crise é nula, por ofensa de caso julgado e também por se ter pronunciado sobre matéria excluída do âmbito dos presentes autos teor da douta sentença.
6. Dos factos provados constantes da sentença, nomeadamente do ponto 6, resulta que “O requerido exerceu atividade no imóvel até meados de 2015.”
7. Ou seja, o requerido abandonou o imóvel, não tendo mais exercido qualquer atividade no mesmo.
8. Assim, e nos termos do disposto no artigo 1267º, alínea a), do C.C., o possuidor perde a posse pelo abandono, o que pressupõe um ato material, praticado intencionalmente, de rejeição da coisa ou do direito.
9. Não obstante tal facto dado como provado, o tribunal a quo decidiu revogar a providência anteriormente decretada e restituir provisoriamente a posse ao requerido.
10. Ora, salvo o devido respeito, os fundamentos da sentença estão em oposição com a decisão proferida, o que se traduz na nulidade da sentença, e que desde já se invoca para todos os devidos e legais efeitos nos termos do disposto no artigo 615º, nº 1, alínea c), do C.P.C.
11. Cabia ao tribunal aferir somente quem tem a posse do imóvel, porém, o tribunal a quo tomou em consideração o alegado contrato de arrendamento e decidiu pela sua existência e validade.
12. Tal contrato de arrendamento não é verdadeiro e surge apenas em sede de oposição à providência cautelar de restituição provisória da posse.
13. O Agente de Execução designado não considerou a existência de qualquer contrato de arrendamento nem o pretenso arrendatário teve qualquer intervenção, fosse a que título e natureza fosse, nos autos de execução, conforme resulta dos documentos insertos naqueles autos.
14. Aliás, não foi dado conhecimento da existência de tal contrato aos autos, quer pela executada naquele processo (H..., S.A.) e alegadamente na qualidade de senhoria, bem como pelo requerido que não suscitou a sua intervenção naqueles autos, invocando tal qualidade.
15. O edital de venda do imóvel não fez qualquer menção à existência de um arrendatário no prédio.
16. A venda do imóvel foi autorizada e determinada por despacho judicial (que não foi objeto de recurso), tendo posteriormente sido emitido o competente título de transmissão pelo Agente de Execução.
17. O tribunal a quo, ao considerar existente e válido o suposto contrato de arrendamento proferiu uma decisão de mérito que contraria uma outra, anterior e definitiva, proferida no aludido processo executivo.
18. O despacho que determinou a venda tem força obrigatória dentro daquele processo e fora dele e, por isso, não pode ser alterado em qualquer circunstância, nomeadamente no presente procedimento cautelar.
19. Pelo que, entende a apelante que aquele despacho constitui caso julgado, nos termos do disposto no artigo 619º e seguintes do C.P.C.
20. Ora, salvo o devido respeito, o Meritíssimo Juiz na sentença conheceu de questões de que não podia tomar conhecimento, o que se traduz na nulidade da sentença, e que desde já se invoca para todos os devidos e legais efeitos, nos termos do disposto no artigo 615º, nº 1, alínea d), do C.P.C.
21. Ademais, não existia qualquer contrato de arrendamento e, ainda que existisse, o mesmo não cumpria as formalidades de celebração exigidas por lei.
22. O requerido poderia ter que ter lançado mão dos embargos de terceiro, previstos nos artigos 342º e seguintes do C.P.C., provando a sua posse, baseada num direito real de gozo limitativo da propriedade do imóvel sujeito a penhora.
23. Eventualmente, poderia ter protestado pela reivindicação da coisa, nos termos previstos no artigo 840º C.P.C. ou, em último recurso, poderia instaurar uma ação de preferência, nos termos legais.
24. Tal não sucedeu, pelo que precludiu todo e qualquer direito que o requerido eventualmente tivesse.
25. Pelo que, deve dar-se como não provada a existência de qualquer contrato de arrendamento e, ainda, que o requerido abandonou o imóvel no início do ano de 2015, pelo que não tinha a posse do imóvel.
26. De todo o modo, o contrato não cumpre os requisitos de celebração previstos nos termos do disposto no artigo 1070º por remição do artigo 1108º do C.C. e do DL n.º 160/2006, de 8 de Agosto, nº 2, nomeadamente quanto à identificação do tipo de contrato, natureza do imóvel, o número da matriz, a localização do mesmo.
27. Todas estas incongruências, conjugadas com tudo o que se demonstrou anteriormente, demonstram a falta de veracidade de tal documento que, note-se, surgiu miraculosamente em sede de oposição à providência cautelar de restituição provisória da posse.
28. O tribunal não poderá reduzir o contrato de arrendamento, sem cuidar de saber da opinião dos outorgantes, ou seja, se o contrato de arrendamento poderá manter os seus efeitos, expurgado da cláusula que repristina os seus efeitos a Maio de 2006.
29. De acordo com o artigo 292º do C.C., se a nulidade ou anulação de certo negócio jurídico forem parciais, não determinam a invalidade de todo o negócio, salvo quando se mostre que este não teria sido concluído sem a parte viciada.
30. Assim, a redução do contrato de arrendamento – sem que nos autos exista evidência que os outorgantes o manteriam expurgado da cláusula 2ª, constitui nulidade da sentença que expressamente se invoca para todos os efeitos legais.
31. O que torna o contrato é, nos termos do disposto no artigo 286º do C.C. para todos os devidos e legais efeitos e inoponível a terceiros, não podendo, assim, gerar quaisquer efeitos jurídicos.
32. Da descrição predial resulta que o imóvel em questão é um prédio urbano, cuja composição é um terreno para construção, sendo a sua natureza imutável em sede de arrendamento urbano.
33. Assim, e em caso de se considerar válido tal contrato, o mesmo é de arrendamento urbano para fins não habitacionais, regulado, com as necessárias adaptações, pelas regras aplicáveis aos arrendamentos urbanos para fins não habitacionais e em conjunto com o regime geral da locação civil, nos termos do artigo 1108º do C.C.
34. Da venda em execução decorrem os seguintes efeitos substantivos: o efeito translativo, isto é, a transmissão para o adquirente dos direitos do executado sobre a coisa vendida (artigo 824º, nº 1, do C.C.) e o efeito extintivo, isto é, a caducidade dos direitos reais de garantia e dos demais direitos reais (artigo 824º, nº 2, do C.C.).
35. Pelo que, os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerarem e bem assim dos demais direitos reais (sejam eles de gozo, de garantia ou de aquisição) que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia real, salvo os que, constituídos em data anterior, produzem efeitos em relação a terceiro, independentemente de registo (como sucede com a locação por força do preceituado no artigo 1057º do C.C.).
36. Acresce que, do título de transmissão emitido no âmbito do processo executivo pelo agente de execução, o qual se encontra junto aos autos, resulta que “Nos termos do n.º 2 do artigo 827º do C.P.C., o agente de execução vai registar o imóvel a favor da adquirente e requerer o cancelamento oficioso da inscrição relativa aos direitos que caducam com a venda e que incidem sobre o referido prédio, nomeadamente as inscrições correspondentes às Ap. 1508 de 2010/09/28, Ap. 2054 de 2012/10/03, Ap. 3348 de 2013/07/04..”
37. Não tendo existido qualquer contrato de arrendamento não pode, por isso, o tribunal a quo considerar que foi constituído um direito pessoal de gozo que produz efeitos em relação a terceiros, in casu, à apelante, por força do artigo 824º, nº 2, in fine, do C.C.
38. Conforme decorre do título de transmissão acima indicado, o bem foi transmitido livre dos direitos de garantia que o oneravam e acima se identificaram.
39. Por outro lado, dispõe o artigo 827º, nº 2, do C.P.C., que o agente de execução comunica a venda ao serviço de registo competente, juntando o respetivo título, e este procede ao registo do facto e, oficiosamente, ao cancelamento das inscrições relativas aos direitos que tenham caducado, nos termos do nº 2 do artigo 824º do C.C.
40. Pelo que, no entendimento da apelante deveria o tribunal ter aplicado o nº 2, ab initio, do artigo 824º do C.C., uma vez que por força da venda executiva o imóvel ficou totalmente desonerado.
41. Pelo exposto, e com o devido respeito, que é muito, entende a apelante que a decisão em causa está ferida de nulidade, por padecer dos vícios discriminados no artigo 615º, nº 1, alíneas c) e d), do C.P.C.
42. Entende, igualmente, a apelante e com o devido respeito, que os pontos 1, 2, 6, 7, 12 dos factos foram incorretamente julgados como provados, pois os mesmos deveriam ter sido dados como não provados.
43. Por último, entende a apelante, que o artigo 824º, nº 2, do C.P.C., foi incorrectamente aplicada, pois deveria ter sido aplicado o nº 2, mas na sua parte inicial.
44. Pelo exposto, deverá a sentença recorrida ser revogada por douto acórdão que a substitua e, em consequência, mantenha a posse do imóvel a favor do recorrente.

O requerido apresentou contra-alegações, concluindo pela improcedência do recurso.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

Na sentença recorrida foram considerados assentes os seguintes factos:
1. O ora requerido B... celebrou com H..., S.A., o contrato escrito de arrendamento, datado de 15/09/2010, junto a fls. 186, do qual constam as seguintes cláusulas:
1ª – A primeira outorgante (H..., S.A.) é legítima proprietária de um prédio rústico, sito no ..., freguesia ..., concelho de Ovar, inscrito na matriz sob o artigo 1424, a confinar do norte com I..., do sul com J... e outro, e do nascente e poente com caminho.
2ª – Pelo presente contrato, a primeira e segundo (o ora Requerido B...) outorgantes reduzem a escrito o contrato de arrendamento que vigora entre ambos desde maio de 2006, celebrado verbalmente, e que tem como objeto o prédio identificado no item anterior.
3ª – O contrato é celebrado pelo prazo de um ano, tendo-se iniciado em 01/05/2006 e o seu termo em 30/04/2007, renovando-se automaticamente nos termos legais.
4ª – A renda anual é de €3.000,00, a pagar em duodécimos de €250,00, no primeiro dia útil do mês a que disser respeito.
5ª – O local arrendado destina-se exclusivamente à instalação de uma unidade de tratamento de resíduos sólidos de metais, não lhe podendo ser dado outro fim sem o consentimento expresso da primeira outorgante.
6ª – O segundo outorgante não pode ceder ou sublocar, no todo ou em parte, onerosa ou gratuitamente, o direito ao arrendamento sem o consentimento expresso da primeira outorgante.
7ª – As benfeitorias que se encontram implantadas no prédio objeto do presente contrato, concretamente, muros de vedação, piso, escritório e ETAR, foram executadas pelo segundo outorgante e são sua propriedade.
2. A 01/05/2006, o prédio identificado em 1 dos factos provados (e que é o cuja posse foi mandada restituir à requerente pela decisão proferida a fls. 100/108) era um terreno de pinhal.
3. Foi o ora requerido que, a suas expensas, implantou os respetivos muros de vedação e portões, implantou piso com a área de 1.200 m2, rampa de pesagem para veículos com carga, uma estação de tratamento de águas contaminadas e iniciou a construção de um edifício para escritório.
4. O requerido instalou, em meados de 2006, a sua atividade de compra e venda de sucata no prédio identificado em 1 dos factos provados, ali passando a exercer a sua atividade comercial, recebendo clientes, recebendo e expedindo mercadorias, ali recebendo a sua correspondência, pagando as despesas associadas e as respetivas rendas.
5. Mais tarde passou a exercer, no imóvel, a atividade de produção de Pellets.
6. O requerido exerceu atividade no imóvel até meados de 2015.
7. Continua, porém, a receber correspondência no imóvel.
8. A renda mensal acordada, de facto, entre o requerido e a H... e paga por aquele a esta era de €650,00.
9. O requerido pagou esta renda à H... até dezembro de 2016, quando teve conhecimento de que o prédio tinha sido vendido.
10. O requerido teve no imóvel um cão.
11. No interior do imóvel existe um contentor/escritório no interior do qual se encontravam, à data da restituição provisória de posse, os bem identificados no auto de fls. 145.
12. Em dezembro de 2016, o ora requerido deslocou-se ao imóvel com o seu irmão D... e encontrou à porta do mesmo o Sr. E..., que lhe disse que era o atual proprietário do imóvel.
13. O muro de vedação do imóvel e o gradeamento nele aplicado tem um valor de mercado de €30.893,17 – fls. 221.
14. O pavimento de 1.200 m2 tem um custo de execução de €27.601,20 – fls. 221.
15. O custo de construção do edifício de r/c inacabado, de 3 metros de pé direito, que se encontra no imóvel é de cerca de €42.356,00 – fls. 233.
16. A estrutura retangular de recolha de fluídos tem um custo de, pelo menos, €10.932,24 – fls. 222/223.
17. O conjunto de maciços de betão armado construído para suporte de uma balança tem um custo de mercado de €3.920,00 – fls. 233.

Não se provou qualquer outro facto com interesse para a boa decisão da causa, designadamente que:
a) À data da instauração desta providência cautelar, o Requerido continuava a manter a atividade comercial no imóvel;
b) O requerido encontra-se privado de utilizar os seus meios de trabalho, máquinas, equipamentos e matéria-prima, o que lhe está a causar enorme transtorno e prejuízo, perdendo clientes e oportunidades de negócio;
c) Ficaram no imóvel quaisquer outros bens móveis além dos que se encontram identificados no auto de fls. 145, designadamente duas motorizadas e uma máquina de costura de fechar sacos no valor de €1.300,00;
d) Nunca foi afixado qualquer edital no imóvel com a menção do processo executivo;
e) Com as edificações existentes no imóvel despendeu o requerido € 220.000,00;
f) O requerido celebrou com a H... contrato-promessa de compra e venda, onde prometia comprar o imóvel por €200.000,00.

São apenas as questões suscitadas pelos recorrentes e sumariadas nas respetivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar – artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do novo C.P.C.
As questões a decidir são as seguintes: nulidades do artigo 615º, nº 1, alíneas c) e d), do C.P.C; exceção dilatória do caso julgado; impugnação da matéria de facto no que concerne aos pontos 1, 2, 6, 7 e 12 dos factos provados; interpretação e aplicação do disposto no nº 2 do artigo 824º do C.C.

I. Alega a apelante que a sentença padece da nulidade prevista no artigo 615º, nº 1, alínea c), que há clara contradição entre os fundamentos e a decisão, pois, o requerido abandonou o imóvel não tendo mais exercido qualquer atividade no mesmo.
Ora, se o requerido deixou de exercer qualquer actividade no imóvel a partir de meados de 2015 e abandonou o mesmo, consequentemente, perdeu a posse e, por maioria de razão, a invocada detenção. Se perdeu a posse por abandono do imóvel em meados de 2015, não poderá ser reapossado do bem imóvel.
Verifica-se esta nulidade, sempre que há um vício real no raciocínio do julgador: a fundamentação aponta num sentido e a decisão segue caminho oposto ou, pelo menos, diferente.
Não existe qualquer oposição entre os fundamentos e a decisão.
Na verdade, não foi dado como provado que o requerido abandonou o imóvel arrendado, mas apenas que exerceu actividade no imóvel até meados de 2015, continuando, porém, a receber correspondência no mesmo.
De resto, nada indica que o requerido tenha deixado de pagar a respetiva renda ou que o contrato, com qualquer fundamento, tivesse sido declarado inválido.
Não ocorre, pois, a invocada nulidade.
Mas, a apelante também alega que o tribunal a quo conheceu de questões de que não podia tomar conhecimento.
No artigo 615º, nº 1, alínea d), do C.P.C., estabelece-se que a sentença é nula, quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
A nulidade prevista neste preceito traduz-se no incumprimento, por parte do juiz, do dever prescrito no nº 2 do artigo 608º do C.P.C., que é o de resolver todas as questões submetidas à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, e o dever de não poder ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
A requerente/apelante fundamenta a invocada nulidade, alegando que o objeto do procedimento cautelar é somente a restituição da posse e o tribunal tomou em consideração o alegado contrato de arrendamento e decidiu pela sua existência e validade.
Nem o agente de execução considerou a existência de qualquer contrato de arrendamento, nem o pretenso arrendatário teve qualquer intervenção nos autos de execução.
No entanto, a alínea b) do nº 1 do artigo 372º do C.P.C., precisamente, permite ao requerido que não tenha sido ouvido antes de ser decretada a providência cautelar, como foi o caso, «deduzir oposição quando pretenda alegar factos ou produzir meios de prova não tidos em conta pelo tribunal e possam afastar os fundamentos da providência ou determinem a sua redução».
E o fundamento da oposição à providência decretada consiste na alegada existência de um contrato de arrendamento celebrado a 15.9.2010, com a anterior proprietária do prédio rústico.
O tribunal a quo conheceu de uma questão, relativamente à qual não podia deixar de tomar conhecimento e, portanto, não se verifica a invocada nulidade.

II. Alega a apelante que o edital de venda do imóvel não fez qualquer menção à existência de um arrendatário no prédio. Tal venda do imóvel foi autorizada e determinada por despacho judicial, tendo posteriormente sido emitido o competente título de transmissão pelo agente de execução. Tal despacho judicial que determinou o preço e a venda do imóvel não foi objeto de recurso. Nem daqueles autos resulta a intervenção do requerido.
Ao considerar existente e válido o suposto contrato de arrendamento, o tribunal a quo proferiu uma decisão de mérito que contraria uma outra, anterior e definitiva, proferida no aludido processo executivo.
Verifica-se a exceção do caso julgado nos termos do artigo 580º do C.P.C., que manteve o mesmo regime do 497º do revogado C.P.C., se uma causa se repete depois da primeira ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário.
Repete-se a causa quando se propõe uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir – artigo 581º do C.P.C.
E, como expressamente refere o citado artigo 580º, a exceção do caso julgado tem por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou reproduzir uma decisão anterior.
No processo executivo, como a própria apelante reconhece, o agente de execução designado não considerou a existência de qualquer contrato de arrendamento, nem o arrendatário teve aí qualquer intervenção.
Neste contexto, para além da falta do requisito da identidade dos sujeitos, apenas pode haver caso julgado quando o pedido em causa já tenha sido submetido ao conhecimento do tribunal e este proferiu decisão sobre ele, o que, na situação em apreço, não ocorreu.
A questão relativa à existência e validade do contrato de arrendamento não foi apreciada e conhecida no processo executivo e, por isso, não é verificável a finalidade do caso julgado, precisamente a de evitar que se contrarie ou reproduza na decisão posterior o sentido de uma anterior.
Não se verifica, pelas ditas razões, a exceção dilatória do caso julgado.

III. Os casos em que, pela via do recurso, se há-de reapreciar a prova produzida em primeira instância, terão de ser, concretamente evidenciados pelo recorrente, destacando-os dos demais, indicando os depoimentos em que se funda, por referência ao assinalado na ata, nos termos do nº 2, do citado artigo 155º (artigo 640º, nº 2, alínea a), do C. P. C.).
A apelante, mencionando os concretos meios probatórios, constantes do processo que, em seu entender, impõem decisão diversa da recorrida, preenche aqueles requisitos legalmente impostos, para que se possa apreciar o alegado erro na apreciação da matéria de facto.
Os pontos da matéria de facto que a apelante considera incorretamente julgado são os seguintes: “O ora requerido B... celebrou com H..., S.A., o contrato escrito de arrendamento, datado de 15/09/2010, junto a fls. 186, do qual constam as seguintes cláusulas: 1ª – A primeira outorgante (H..., S.A.) é legítima proprietária de um prédio rústico, sito no ..., freguesia ..., concelho de Ovar, inscrito na matriz sob o artigo 1424, a confinar do norte com I..., do sul com J... e outro, e do nascente e poente com caminho; 2ª – Pelo presente contrato, a primeira e segundo (o ora Requerido B...) outorgantes reduzem a escrito o contrato de arrendamento que vigora entre ambos desde maio de 2006, celebrado verbalmente, e que tem como objeto o prédio identificado no item anterior; 3ª – O contrato é celebrado pelo prazo de um ano, tendo-se iniciado em 01/05/2006 e o seu termo em 30/04/2007, renovando-se automaticamente nos termos legais; 4ª – A renda anual é de €3.000,00, a pagar em duodécimos de €250,00, no primeiro dia útil do mês a que disser respeito; 5ª – O local arrendado destina-se exclusivamente à instalação de uma unidade de tratamento de resíduos sólidos de metais, não lhe podendo ser dado outro fim sem o consentimento expresso da primeira outorgante; 6ª – O segundo outorgante não pode ceder ou sublocar, no todo ou em parte, onerosa ou gratuitamente, o direito ao arrendamento sem o consentimento expresso da primeira outorgante; 7ª – As benfeitorias que se encontram implantadas no prédio objeto do presente contrato, concretamente, muros de vedação, piso, escritório e ETAR, foram executadas pelo segundo outorgante e são sua propriedade”; “A 01/05/2006, o prédio identificado em 1 dos factos provados (e que é o cuja posse foi mandada restituir à requerente pela decisão proferida a fls. 100/108) era um terreno de pinhal”; “O requerido exerceu atividade no imóvel até meados de 2015”; “Continua, porém, a receber correspondência no imóvel”; “Em dezembro de 2016, o ora requerido deslocou-se ao imóvel com o seu irmão D... e encontrou à porta do mesmo o Sr. E..., que lhe disse que era o atual proprietário do imóvel”.
Com base na reapreciação dos depoimentos das testemunhas E..., G... e L..., a apelante pretende que os referidos pontos 1, 2, 6, 7 e 12 dos factos provados passem a fazer parte da matéria não provada.
A testemunha E... referiu saber que “esse senhor B... já tinha tido aquele espaço arrendado há alguns anos atrás. Mas, esse senhor B... é que chegou lá e disse que tinha. Ele (senhor B...) disse que aquilo que era, que ele tinha, ele disse na altura que aquilo tinha um contrato de arrendamento daquilo. Ele disse que tinha, agora se tinha ou não, isso não sei”.
A testemunha G..., agente de execução, nega a existência de qualquer contrato de arrendamento. “Porque se até houvesse algum tipo de contrato de arrendamento até poderia, eventualmente, de haver algum tipo de direito de preferência na venda”.
A testemunha L... nada disse de relevante no que respeita ao contrato de arrendamento, referindo apenas que trabalhava para a testemunha D..., desde janeiro de 2012. Há 2 ou 3 anos atrás, o patrão lhe pediu para ir ao terreno pôr de comer aos cães. “Como a mim me ficava a caminho de casa, eu ofereci-me, como não me custava nada. A partir daí andei lá uns dois, três meses a pôr de comer aos animais. Mais tarde é que vim a saber que aquele terreno era do irmão dele e foi a partir daí que fiquei a conhecer o senhor B..., mas conhecer antes nunca o conheci”.
No entanto, a fls. 186, encontra-se o contrato escrito de arrendamento, datado de 15.9.2010, com o carimbo da H..., S.A., e subscrito pelo, então administrador desta e pelo requerido.
A testemunha B... foi administrador da H..., S.A., a pedido do patrão, M.... Assinou o referido contrato de arrendamento, a pedido daquele, e uns recibos de renda. Conheceu o requerido quando este arrendou, em 2004, parte do terreno da serração e o ocupou com sucata. Depois, o senhor M... arrendou-lhe o terreno que ficava em frente da serração e prometeu vender-lho. O requerido pagava todos os meses uma renda; por vezes, era a testemunha que a ia buscar, eram mais de €600,00.
Quando o requerido entrou para o terreno, este era um terreno vazio. Foi o requerido que começou a fazer muros e que, depois, construiu o escritório.
As testemunhas N... e D... referiram que o requerido já não mantinha actividade no terreno, desde cerca de meados de 2015.
A testemunha D... referiu que, em finais de 2015 ou princípios de 2016, se deslocou ao terreno com o irmão e constataram que a chave estava mudada. O requerido ligou ao E..., tendo este confirmado que comprara o terreno.
O requerido disse ao E... que tinha contrato de arrendamento e que foi ele que fez as obras que se encontravam no terreno.
A fls. 218 a 224 e 232/233 encontra-se o relatório pericial, no qual foram avaliadas as obras efetuadas no terreno arrendado.
É convicção desta Relação que os concretos meios probatórios especificados pela requerente/apelante – restritos aos depoimentos das testemunhas E..., G... e L... – não permitem que a matéria de facto provada e que foi objecto de impugnação seja considerada não provada.
Nestes termos, tendo em conta a globalidade dos depoimentos das testemunhas inquiridas na audiência final, o documento junto a fls. 186 (contrato escrito de arrendamento, datado de 15.9.2010) e o relatório pericial de fls. 218 a 224 e 232/233, a convicção desta Relação é a de que as dúvidas levantadas pela apelante não tinham fundamento, considerando-se, por isso, correta a forma como o tribunal a quo decidiu a matéria de facto questionada.

IV. Como fundamento da oposição à providência decretada foi invocada a existência de um contrato de arrendamento celebrado com a anterior proprietária, H..., S.A., a 15.9.2010, portanto, antes de realizada a penhora em 17.7.2013, na execução que levou à venda executiva.
Como resulta dos factos provados, a 15.9.2010, o requerido celebrou com a então proprietária, H..., S.A., o contrato de arrendamento do prédio rústico, sito no ..., freguesia ..., concelho de Ovar, inscrito na matriz sob o artigo 1424, mediante a renda anual é de €3.000,00, a pagar em duodécimos de €250,00, no primeiro dia útil do mês a que dissesse respeito.
Nos termos da cláusula 5ª do contrato, “o local arrendado destina-se, exclusivamente, à instalação de uma unidade de tratamento de resíduos sólidos de metais, não lhe podendo ser dado outro fim sem o consentimento expresso da primeira outorgante.
Como resulta do ponto 4 dos factos provados, o arrendamento destinava-se ao exercício da atividade comercial exercida pelo requerido de compra e venda de sucata
Cremos que, tal como foi considerado na decisão recorrida, o arrendamento celebrado por escrito de 15.9.2010 deve ser qualificado como arrendamento de prédio rústico para comércio, por se destinar à atividade comercial de compra e venda de sucata do arrendatário, ora requerido.
O RAU (aprovado pelo artigo 1º do DL nº 321-B/90, de 15/10) dava uma noção de arrendamento para comércio ou indústria: “considera-se realizado para comércio ou indústria o arrendamento de prédios ou parte de prédios urbanos ou rústicos tomados para fins diretamente relacionados com uma atividade comercial ou industrial”.
Hoje, não existe norma equivalente nas leis do arrendamento. Existe apenas a distinção entre arrendamentos urbanos para fins habitacionais e não habitacionais no artigo 1967º do C.C. e referências esporádicas ao estabelecimento comercial nos artigos 1109º, nº 1, e 1112º do C.C.
De tudo isto parece ser de concluir que o contrato em questão é um contrato atípico de arrendamento de prédio rústico para fim diretamente relacionado com uma atividade comercial do arrendatário de compra e venda de sucata, ao qual serão aplicáveis as normas gerais da locação, bem como as disposições do arrendamento para fins não habitacionais dos artigos 1108º a 1113º do C.C., aplicáveis por analogia.
O contrato de arrendamento foi sujeito à forma escrita e, portanto, devendo considerar-se válido, interessa saber se o mesmo caduca em consequência da venda executiva.
O artigo 1057º do C.C. estabelece que o adquirente do direito com base no qual foi celebrado o contrato sucede nos direitos e obrigações do locador, sem prejuízo das regras do registo.
Por sua vez, o nº 2 do artigo 824º do mesmo diploma dispõe que, na venda em execução os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os oneram, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com exceção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros independentemente do registo.
Maioritariamente, a doutrina e a jurisprudência são no sentido de que na venda executiva de imóvel arrendado, tal como na venda voluntária, por aplicação do citado artigo 1057º do C.C., o arrendamento não caduca.
O artigo 1057º consagra o princípio emptio nom tollit locatum e, nesse sentido, como refere Menezes Cordeiro, «o locador subsequente fica na precisa posição do seu antecessor, com os mesmos direitos e as mesmas obrigações. Entenda-se, porém: na mesma precisa posição do locador inicial enquanto locador. Assim, se o locador inicial se constituiu civilmente responsável, perante o locatário, por inobservância de deveres contratuais que lhe incumbissem, a obrigação indemnizatório não se transmite.
(…) Hoje, pode assentar-se no seguinte: a venda judicial, por si, não faz caducar a locação, eventualmente existente; por via do artigo 1057º, o adquirente fica, automaticamente, na posição do (novo) locador». Leis do Arrendamento Urbano Anotadas, pág. 123.
Por sua vez, Amâncio Ferreira defende que, «por o contrato de arrendamento não conferir ao locatário um direito real, mas antes um direito de crédito, não caduca o referido contrato por via da venda executiva, quando outorgado pelo executado anteriormente ao registo da penhora. Daí o bem vendido ser transmitido ao adquirente sem afetar o direito do arrendatário, em aplicação da regra emptio non tolllit locatum estabelecida no artigo 1057º do C.C., que vale tanto para a venda voluntária como para a venda executiva». Curso de Processo de Execução, 10ª edição, pág. 395.
No mesmo sentido, Teixeira de Sousa, A Ação Executiva Singular, pág. 390; e Pedro Romano Martinez, Venda Executiva – Aspetos do Novo Processo Civil, pág. 334; e Acórdãos do STJ, de 25.2.1993, 20.9.2005 e 27.3.2007, respectivamente, CJ/STJ, ano I, tomo I, pág.147, Ano XIII, tomo III, pág. 29, e Ano XV, tomo I, pág. 146.
Adere-se, pois, à posição doutrinal e jurisprudencial de que o nº 2 do artigo 824º do C.C. se refere a direitos de garantia e outros direitos reais, não abrangendo o arrendamento, que tem natureza obrigacional, e, por conseguinte, na venda executiva de imóvel arrendado, tal como na venda voluntária, por aplicação do citado artigo 1057º do C.C., o arrendamento não caduca.
Daí que a oposição tem fundamento e a providência decretada não pode manter-se, pois, está comprovada a existência de um contrato de arrendamento de um prédio rústico com destino a atividade ligada diretamente ao comércio de compra e venda de sucata que o arrendatário exercia a título profissional; o contrato foi celebrado em data anterior à penhora que levou à venda do prédio em execução judicial; e, nos termos da parte final do nº 2 do artigo 824º do C.C., o arrendamento não caduca, por a sua natureza de direito pessoal de gozo e o artigo 1057º do mesmo diploma o excecionarem da caducidade operada pela venda executiva.
Improcede, deste modo, o recurso da requerente F..., Lda.

Decisão:
Pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes desta secção cível em julgar improcedente a apelação e, consequentemente confirmar a decisão recorrida.

Custas pela apelante.

Sumário:
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Porto, 11.7.2018
Augusto de Carvalho
Carlos Gil
Carlos Querido