Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1677/15.8T8VNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JORGE SEABRA
Descritores: CASO JULGADO
CASO JULGADO FORMAL
CASO JULGADO MATERIAL
EXCEPÇÃO DILATÓRIA
EXCEPÇÃO DO CASO JULGADO
AUTORIDADE DE CASO JULGADO
Nº do Documento: RP201611211677/15.8T8VNG.P1
Data do Acordão: 11/21/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 637; FLS.533-541)
Área Temática: .
Sumário: I - O caso julgado constitui uma excepção dilatória, que tem por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de repetir ou contradizer uma decisão anterior – arts. 577º, al. i)-, e 580º, n.º 2, do CPC.
II - A excepção de caso julgado tem em vista o efeito negativo de obstar à repetição de causas, implicando a tríplice identidade a que se refere o artº 581º do CPC -, ou seja a identidade de sujeitos, pedido e a causa de pedir.
III - A autoridade de caso julgado visa o efeito positivo de impor a força vinculativa da decisão antes proferida [e transitada em julgado] ao próprio tribunal decisor ou a qualquer outro tribunal (ou entidade) a quem se apresente a dita decisão anterior como questão prejudicial ou prévia em face do «thema decidendum» na acção posterior.
IV - A autoridade de caso julgado tem a ver com a existência de relações entre acções, já não de identidade jurídica (própria da excepção de caso julgado), mas de prejudicialidade entre acções, de tal ordem que julgada, em termos definitivos, uma certa questão em acção que correu termos entre determinadas partes, a decisão sobre essa questão ou objecto da primeira causa, se impõe necessariamente em todas as acções que venham a correr termos, ainda que incidindo sobre objecto diverso, mas cuja apreciação dependa decisivamente do objecto previamente julgado, perspectivado como relação condicionante ou prejudicial da relação material controvertida na acção posterior.
V - Não intercedendo entre o objecto dos processos em concurso (anterior e posterior) a aludida relação de prejudicialidade ou de condição prévia não é invocável a força vinculativa da autoridade de caso julgado.
VI - A parte que em acção de reivindicação obtém sentença declaratória do seu direito de propriedade sobre determinado imóvel não pode, regra geral, em confronto com um terceiro (que não interveio sob qualquer título na aludida acção prévia) invocar a seu favor a autoridade de caso julgado e para efeitos de impor a este último, de forma reflexa, um certo conteúdo do direito de propriedade (não concretamente esgrimido e decidido na acção anterior) excludente do direito invocado pelo terceiro em posterior acção contra si interposta.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 1677/15.8T8VNG.P1 - Apelação
Origem: Comarca do Porto – VNG – Instância Local – Secção Cível – J2.
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Relator: Jorge Seabra
1º Adjunto Des. Sousa Lameira.
2º Adjunto Des. Oliveira Abreu
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Sumário:
I. O caso julgado constitui uma excepção dilatória, que tem por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de repetir ou contradizer uma decisão anterior – arts. 577º, al. i)-, e 580º, n.º 2, do CPC.
II. A excepção de caso julgado tem em vista o efeito negativo de obstar à repetição de causas, implicando a tríplice identidade a que se refere o artº 581º do CPC -, ou seja a identidade de sujeitos, pedido e a causa de pedir.
III. A autoridade de caso julgado visa o efeito positivo de impor a força vinculativa da decisão antes proferida [e transitada em julgado] ao próprio tribunal decisor ou a qualquer outro tribunal (ou entidade) a quem se apresente a dita decisão anterior como questão prejudicial ou prévia em face do «thema decidendum» na acção posterior.
IV. A autoridade de caso julgado tem a ver com a existência de relações entre acções, já não de identidade jurídica (própria da excepção de caso julgado), mas de prejudicialidade entre acções, de tal ordem que julgada, em termos definitivos, uma certa questão em acção que correu termos entre determinadas partes, a decisão sobre essa questão ou objecto da primeira causa, se impõe necessariamente em todas as acções que venham a correr termos, ainda que incidindo sobre objecto diverso, mas cuja apreciação dependa decisivamente do objecto previamente julgado, perspectivado como relação condicionante ou prejudicial da relação material controvertida na acção posterior.
V. Não intercedendo entre o objecto dos processos em concurso (anterior e posterior) a aludida relação de prejudicialidade ou de condição prévia não é invocável a força vinculativa da autoridade de caso julgado.
VI. A parte que em acção de reivindicação obtém sentença declaratória do seu direito de propriedade sobre determinado imóvel não pode, regra geral, em confronto com um terceiro (que não interveio sob qualquer título na aludida acção prévia) invocar a seu favor a autoridade de caso julgado e para efeitos de impor a este último, de forma reflexa, um certo conteúdo do direito de propriedade (não concretamente esgrimido e decidido na acção anterior) excludente do direito invocado pelo terceiro em posterior acção contra si interposta.
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Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto:

I-RELATÓRIO

1. B… e C…, propuseram a presente acção comum contra “ D…, Lda. ”, pedindo, a final, que seja a Ré condenada (i) a reconhecer o seu direito de domínio ou propriedade sobre a dependência e o quintal que abusivamente ocupou; (ii) com a consequente restituição da aludida dependência e quintal, livre e devolutas; (iii) a desobstruir a porta de acesso do quintal à via pública; (iv) a abster-se de praticar quaisquer actos lesivos do aludido direito de propriedade.
Como fundamento, e no essencial, invocam as autoras que são elas donas, em comum, do prédio urbano destinado a habitação, composto de casa de dois pisos, dependência e quintal, sito na Rua …, n.º …, da União de Freguesias de …., concelho de VN Gaia, descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o n.º 02434/20020830 (antes sob o n.º 46 346, a fls. 91 verso, do livro B-119) e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 762 (antes sob o artigo 2 da extinta freguesia de …), ocupando a aludida casa ou moradia a área de 105 m2, a dependência a área de 40 m2 e o quintal a área de 290 m2.
Invocam, ainda, a seu favor não só a aquisição derivada do aludido prédio (com a sobredita configuração e áreas) por escritura pública de compra e venda de 7.08.2002 a E… (que, por sua vez, o havia adquirido a “ Massa Insolvente da Sociedade F…, Lda. “, na mesma data de 7.08.2002), assim como, ainda, a sua aquisição originária por via de usucapião, considerando, para tanto, a «posse» de tal prédio por si e antepossuidores.
No que se reporta à aludida dependência sustentam que a mesma foi ocupada e anexada (com destruição das paredes e telhado) a um armazém que é pertença da Ré e, quanto ao aludido quintal, que a Ré invoca que o mesmo também se integra no seu prédio (dela Ré), sendo certo que a mesma tapou a única porta que permitia o acesso do quintal à via pública com tijolos e cimento.
Por último, ainda, sustentam as autoras que os prédios da Ré (e que identificam sob o art. 8º da petição inicial) não possuem, nem jamais possuíram, qualquer dependência ou quinta (área descoberta), sendo irrelevantes, nesse conspecto, as demolições efectuadas após a aquisição do prédio e a sua transformação em terreno para construção.
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2. A Ré deduziu contestação impugnando a factualidade alegada pelas AA. e invocando a excepção de autoridade de caso julgado, sustentando, nessa matéria, de essencial, que nos autos de acção ordinária n.º 4952/08.4TBVNG [em que eram partes, como Autora, a ora Ré “ D…, Lda. “, e ali Ré “ G…, Lda. ”], da extinta 2ª Vara de Competência Mista do Tribunal Judicial de Vila Nova de Gaia, foi considerado provado, na sentença ali proferida e no próprio Acórdão desta Relação de 27.03.2014 (sob apelação da ali Ré) que a mesma é proprietária do prédio urbano composto por armazém de um cume térreo e amplo, sito na Rua …, n.º … a …, da freguesia de …, concelho de VN Gaia, inscrito na matriz sob o artigo urbano 3893 (actual 3429) e descrito na Conservatória sob o n.º 46350, a fls. 93 verso do livro B-119.
Sucede que, segundo ainda sustenta a Ré, por via da presente acção, as AA. visam precisamente que lhes seja reconhecida a propriedade sobre uma parcela de terreno que faz parte integrante do seu aludido prédio sito à Rua …, com entrada pelo n.º … da União de Freguesias de …, concelho de VN Gaia.
Em suma, e segundo se alcança da posição da Ré, sustenta esta última que, situando-se as áreas de terreno reivindicadas pelas AA. (40 m2 da alegada «dependência» e 290 m2 do alegado «quintal») no seu prédio antes referido (n.ºs 200 a 206), e mostrando-se definitivamente reconhecido e declarado nas aludidas decisões judiciais (sentença e acórdão proferidos) que o mesmo prédio lhe pertence, este sentido ou segmento decisório impõe-se perante as mesmas AA., que, assim, não o podem esgrimir novamente, sob pena de violação da autoridade de caso julgado.
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3. Cumprido o legal contraditório quanto à matéria de excepção, as AA. responderam pugnando pela sua improcedência.
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4. Com prévio acordo dos Ils. Mandatários, foi dispensada a realização de audiência prévia, sendo proferido despacho saneador em que se sentenciou no sentido de julgar procedente a excepção da autoridade do caso julgado e se declarou extinta a instância.
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5. Inconformadas com a aludida decisão, vieram as AA. interpor recurso de apelação, formulando as seguintes
CONCLUSÕES
A) Não se verifica, «in casu», qualquer exceção de autoridade de caso julgado e/ou de caso julgado, porquanto:
B) Sujeitos, causa de pedir e pedidos desta demanda não coincidem minimamente Com iguais elementos constantes do proc. 4952/98.4TBVNG. sobre o qual a Demandada sustenta toda a sua defesa;
C) Tendo considerado procedente aquela exceção o Tribunal recorrido violou - por erro de interpretação, entre outras normas - o estatuído nos artigos 577º/i); 580º; 581º e 277º/e), todos do C.P. Civil,
D) Bem como o disposto nos artigos 591º e 595º/1, b) do C.P. Civil.
Concluíram, assim, as apelantes pela procedência da apelação e pela revogação da decisão proferida, com a consequente prossecução dos normais termos do processo.
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6. Não foram oferecidas contra-alegações.
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7. Foram cumpridos os vistos legais.
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II- FUNDAMENTOS
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso -cfr. cfr. arts. 635º, nº 3, e 639º, nsº 1 e 2, do Código de Processo Civil, na redacção emergente da Lei n.º 41/2013 de 26.06 [doravante designado apenas por CPC].
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Como assim, a única questão que se suscita nos autos é a de saber se ocorrem no caso sub judice os pressupostos do caso julgado ou da autoridade de caso julgado.
Neste âmbito, importa, liminarmente, distinguir as duas figuras antes convocadas e os seus pressupostos.
O efeito mais importante a que a sentença pode conduzir é o caso julgado.
Diz-se que a sentença forma caso julgado quando a decisão nela contida se torna imodificável. A imodificabilidade da sentença é assim o núcleo essencial do caso julgado.
Neste sentido, refere M. TEIXEIRA de SOUSA [1], que «o caso julgado traduz-se na inadmissibilidade da substituição ou modificação por qualquer tribunal (incluindo aquele que a proferiu) em consequência da insusceptibilidade da sua impugnação por reclamação ou recurso ordinário. O caso julgado torna indiscutível o resultado da aplicação do direito ao caso concreto que é realizada pelo tribunal, ou seja, o conteúdo da decisão deste órgão.»
Deste modo, a formação do caso julgado supõe ou exige que não seja ela susceptível de recurso ordinário ou de reclamação por nulidades ou obscuridades ou, ainda, para reforma quanto a custas e/ou multa, em conformidade com o preceituado no art. 628º do CPC.
Neste conspecto, tanto podem transitar em julgado as sentenças ou despachos recorríveis, relativos a questões de caracter processual/formal, como a decisão referente ao mérito da causa, isto é referente à concreta relação material controvertida sob litígio.
No primeiro caso, como é consabido, forma-se o caso julgado formal ou interno; no segundo caso, forma-se o caso julgado material ou externo.
Ambos pressupõem, nos termos expostos, a preclusão dos recursos ordinários ou da reclamação, mas têm efeito ou relevo radicalmente distinto.
O caso julgado formal tem força obrigatória apenas dentro do processo, obstando a que o juiz possa, na mesma acção, alterar a decisão proferida, mas não impedindo que, noutra acção, a mesma questão processual concreta seja decidida em termos diferentes pelo mesmo tribunal, ou por outro entretanto chamado a apreciar a causa. – Cfr. art. 620º, n. 1 do CPC.
Por seu turno, o caso julgado material tem força obrigatória dentro do processo e fora dele, impedindo que o mesmo ou outro tribunal, ou qualquer outra autoridade, possa definir em termos diferentes o direito concreto aplicável à relação material litigada. – cfr. art. 619º, n.º 1 do CPC. [2]
Em suma, enquanto o caso julgado formal tem valor intraprocessual, ou seja, só é vinculativo no próprio processo em que a decisão foi proferida, o caso julgado material, além de uma eficácia intraprocessual, é susceptível de valer num processo distinto daquele em que foi proferida a decisão transitada. Deste modo, o caso julgado material é sempre vinculativo no próprio processo onde a decisão foi proferida, mas também o pode ser num outro processo.
No caso dos autos, em termos liminares, sendo indiscutido que o caso julgado suscitado nos presentes autos se reporta ou tem por referência o conteúdo decisório inserido na sentença/acórdão proferidos nos autos de acção ordinária que correu termos pela (extinta) 2ª vara mista do Tribunal Judicial de VN Gaia sob o n.º 4952/08.4TBVNG, não existem dúvidas de que não curamos de uma situação de caso julgado formal, pois que a aludida decisão não versou sobre qualquer questão processual ou formal, antes versou sobre a concreta relação material controvertida sob litígio na aludida acção.
Aliás, diga-se que, face ao antes exposto, se sobre a aludida decisão em apreço se tivesse formado apenas caso julgado formal, não poderia ela ser invocada nos presentes autos, pois que, como se viu já, o caso julgado formal apenas tem força vinculativa no próprio processo onde a decisão foi proferida, sendo externamente destituída de qualquer efeito vinculativo.
Assim, em termos liminares, a questão situa-se, como é indiscutido, em sede de caso julgado material e dos seus efeitos vinculativos externos.
Quanto ao caso julgado material e aos seus efeitos externos (que a doutrina e a jurisprudência usualmente denominam de «extensão do caso julgado») é ele definido pela tríplice identidade, ou seja pela identidade de sujeitos, do pedido e da causa de pedir em ambas as acções, sendo certo que é sempre pressuposto da figura do caso julgado (e da litispendência) a repetição de uma causa – cfr. arts. 580º e 581º, ambos do CPC.
A excepção de caso julgado (material) pressupõe, de facto, a repetição de uma causa e verifica-se depois de a primeira ter sido decidida, por sentença que já não admite recurso ordinário, destinando-se a evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior, atento o estipulado pelo artigo 580º, nºs 1 e 2, do CPC.
Ora, como também se evidencia do art. 581º do mesmo Código, a causa repete-se quando se propõe uma ação idêntica a outra, quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir, sendo certo que existe identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas, sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica, existe identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico e identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico, nos termos do preceituado pelo artigo 581º, nºs 1 a 4, do CPC.
Como salienta M. TEIXEIRA de SOUSA [3], perante o sobredito circunstancialismo (relação de identidade entre os objectos de ambas as decisões, decorrente de ambas as acções possuírem a mesma causa de pedir e nelas ser formulado o mesmo pedido – e abstraindo, por ora, do âmbito subjectivo do caso julgado), o caso julgado vale, no processo posterior, como excepção de caso julgado, evitando que o tribunal seja colocado perante a alternativa de contradizer ou de reproduzir a decisão antes transitada em julgado.
Como assim, a função da excepção de caso julgado é tanto a de proibir que o tribunal da segunda acção, dada a sua vinculação ao caso julgado da decisão transitada, profira uma decisão contraditória com a anterior, como a de obviar a que esse órgão seja obrigado, numa situação de identidade de causas, a repetir a decisão já antes transitada.
“A abstenção de pronúncia de qualquer decisão sobre o mérito é, por isso, a única coerente com a dupla função da excepção de caso julgado.“
O alcance do caso julgado que a sentença constitui, estabelece-se, em conformidade com o disposto pelo artigo 621º, do CPC, “ nos precisos limites e termos em que julga ”, que são, assim, traçados pelos aludidos elementos identificadores da relação ou situação jurídica substancial definida pela sentençaos sujeitos, o objecto e a fonte ou título constitutivo (causa de pedir).
Em suma, como tem sido afirmado pelo Supremo Tribunal de Justiça, a expressão utilizada no art. 621º do CPC, “ nos precisos limites e termos em que julga ”, para definir o alcance ou extensão objectiva do caso julgado, afere-se pelas regras substantivas relativas à natureza da situação que ele define, à luz dos factos jurídicos invocados pelas partes e do pedido ou pedidos formulados na acção, compreendendo todas as questões solucionadas na sentença e conexas com o direito a que se refere a pretensão do autor.
Neste sentido, a mesma jurisprudência do Supremo (e das Relações) tem reafirmado que são abrangidas pelo caso julgado não apenas o segmento decisório final enquanto conclusão a partir de determinados fundamentos (o denominado «silogismo judiciário»), mas, ainda, as próprias questões apreciadas e que constituam antecedente lógico indispensável da conclusão ou parte dispositiva da sentença.[4]
O fundamento e o objectivo da excepção do caso julgado, com o que se obtém o conceito funcional da mesma, consistem em evitar que o Tribunal da segunda acção se veja “ colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior.”
Nesta mesma linha de pensamento, salienta MIGUEL TEIXEIRA de SOUSA, que “… a excepção de caso julgado visa evitar que o órgão jurisdicional, duplicando as decisões sobre idêntico objecto processual, contrarie na decisão posterior o sentido da decisão anterior ou repita na decisão posterior o conteúdo da decisão anterior: a excepção do caso julgado garante (…) a impossibilidade de o Tribunal decidir sobre o mesmo objecto duas vezes de maneira diferente (...), mas também a inviabilidade do Tribunal decidir sobre o mesmo objecto duas vezes de maneira idêntica… ” (sublinhado nosso) [5]
Esta noção corresponde à função, habitualmente, atribuída à excepção, que se traduz em proteger a força e autoridade de uma decisão que, transitada, adquiriu força de caso julgado material, nos termos definidos pelo artigo 619º, nº 1, tutela essa, aliás, que, se falhar, se encontra ainda prevista, no artigo 625º, nº 1, ambos do CPC, já que a segunda decisão, em qualquer hipótese, será inútil.
De facto, conforme era ensino de MANUEL de ANDRADE, o fundamento do caso julgado reside no prestígio dos tribunais, considerando que “ tal prestígio seria comprometido no mais alto grau se a mesma situação concreta, uma vez definida por eles em dado sentido, pudesse depois ser validamente definida em sentido diferente ” e, numa razão de certeza ou segurança jurídica, sendo certo que “ sem o caso julgado cair-se-ia numa situação de instabilidade jurídica verdadeiramente desastrosa ”. (sublinhados nossos) [6]
Dito isto, resulta, a nosso ver, seguro que a figura da excepção do caso julgado material e a sua força vinculativa supõe a verificação de uma situação de identidade do objecto do processo em ambas as acções concorrentes, identidade que decorre da identidade de sujeitos, de causa de pedir e do pedido formulado.
Sendo assim, como é, no caso em apreço, não ocorre, a nosso ver, manifestamente, a aludida excepção.
Com efeito, mostra-se indiscutido não só que as partes em ambas as acções não são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica (as aqui Autoras B… e C… não intervieram, de todo, na acção ordinária n.º 4952/08.4TBVNG, sendo ali Autora a aqui Ré “D…, Lda.“ e ali Ré “G…, Lda. ”), como, ainda, que a causa de pedir e os pedidos formulados na sobredita acção ordinária não são idênticos à causa de pedir e aos pedidos formulados nestes outros autos.
Com efeito, como se alcança da certidão da sentença proferida e do acórdão subsequente desta Relação, juntos aos autos, a causa de pedir ali invocada reportou-se à propriedade da ali Autora (e aqui Ré) sobre o prédio descrito sob o art. 1º da petição inicial da sobredita acção judicial [«composto por dois prédios, correspondentes a um prédio urbano composto por um armazém de um cume térreo e amplo, sito na Rua …, n.º …, da freguesia de … (…), e ao prédio urbano sito na freguesia de …, composto de dois pisos, com vinte divisões no primeiro piso e uma sala no segundo piso, destinada à fábrica, sito na Rua …, n.º …, inscrito na matriz predial sob o art. 21º e descrito na Conservatória sob o n.º 46. 347, a fls. 92 do livro B-119»] e à ocupação indevida ou intitulada pela ali Ré “G…, Lda.“ de um dos armazéns que fazia parte do aludido prédio descrito na conservatória sob o n.º 46.347 [concretamente, um dos armazéns que fazia parte dos sete armazéns que integravam o prédio da ali Autora – cfr. factos provados em a), b), c), e), f), g) h) da sobredita acção], consistindo, precisamente, a pretensão jurídica formulada pela ali Autora no reconhecimento deste seu direito de propriedade e, ainda, na condenação da ali Ré na entrega ou restituição do citado armazém, como, aliás, veio a ser sentenciado em 1ª instância e confirmado pelo já aludido acórdão desta Relação.
Ora, sucede que, no caso dos autos, para além de ser patente que as partes (em particular, do lado activo da lide) não são as mesmas, como já antes salientado, também a causa de pedir e a pretensão jurídica não assumem qualquer identidade com a aludida acção ordinária que correu termos pela extinta 2ª vara mista do Tribunal de VN Gaia.
De facto, o que aqui se dirime é saber se faz (e sempre fez) parte do prédio das autoras (melhor identificado sob o art. 7º da petição inicial) uma dependência com 40 m2 e um quintal com 290 m2 e se as mesmas (e seus antecessores) praticaram sobre tais espaços prediais os «actos possessórios» invocados nos autos, cuja propriedade pretendem ver reconhecida e decretada a consequente e efectiva restituição, ou, ao invés, se, como é a tese sustentada pela aqui Ré, os espaços prediais antes referidos descritos pelas autoras correspondem a um parcela de terreno que sempre fez parte do seu prédio urbano sito à Rua …, com entrada pelo n.º …, da união das freguesias de …, concelho de VN Gaia.
Aliás, se bem se alcança o sentido da contestação da Ré, não sustenta ela própria a excepção de caso julgado, mas antes a autoridade de caso julgado formado pela sentença e acórdão desta Relação, antes proferidos.
E, ao contrário do que parece ser entendimento das apelantes nas suas alegações, a decisão recorrida também não convoca como seu fundamento decisório a excepção de caso julgado (atenta a inexistência da citada tríplice identidade), mas antes a autoridade de caso julgado, que sustenta existir e excluir, assim, a possibilidade de uma decisão de mérito sobre a pretensão das autoras.
Destarte, sendo de afastar a excepção de caso julgado, mas tendo presente o que antes se expôs sobre o fundamento jurídico da decisão recorrida, cumpre conhecer desta outra figura, isto é da autoridade de caso julgado.
Sobre esta figura, refere MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, que o caso julgado realiza dois efeitos: - um efeito negativo (que decorre da excepção de caso julgado, antes caracterizada), que se traduz na insusceptibilidade de qualquer tribunal (mesmo, portanto, aquele que decidiu) se voltar a pronunciar sobre a decisão proferida, seja proferindo decisão oposta, seja repetindo a anterior; - um efeito positivo, que resulta da vinculação do tribunal que proferiu a decisão e, eventualmente, de outros tribunais ao que nela foi definido ou estabelecido. [7]
Em suma, de acordo com o Il. Professor, o mesmo instituto do caso julgado produz dois efeitos distintos: um efeito negativo exercido através da excepção dilatória do caso julgado,
a qual tem por fim evitar a repetição de causas idênticas, segundo o critério já antes referido (identidade de partes; identidade de causa de pedir; identidade do pedido); um efeito positivo, através da autoridade de caso julgado, impondo a força vinculativa da decisão proferida ao próprio tribunal decisor ou a outro tribunal a quem se apresente a dita decisão anterior como questão prejudicial ou prévia face ao “ thema decidendum ” no processo posterior.
Neste mesmo sentido, refere J. LEBRE de FREITAS, que “… pela excepção [de caso julgado] visa-se o efeito negativo da inadmissibilidade da segunda acção, constituindo-se o caso julgado em obstáculo a nova decisão de mérito “ (…), ao passo que “… a autoridade do caso julgado tem antes o efeito positivo de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível de segunda decisão de mérito. (...). Este efeito positivo assenta numa relação de prejudicialidade: o objecto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda acção, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida ”.[8]
Ainda a propósito da distinção das figuras em apreço, refere MIGUEL TEIXEIRA de SOUSA, que a excepção de caso julgado manifesta-se no sentido de evitar que o órgão jurisdicional, duplicando as decisões sobre idêntico objecto processual, contrarie na decisão posterior o sentido da decisão anterior ou repita na decisão posterior o conteúdo da decisão anterior, ao passo que quando vigora como autoridade de caso julgado, “… o caso julgado material manifesta-se pela proibição de contradição da decisão transitada: autoridade de caso julgado é o comando de acção, a proibição de omissão respeitante à vinculação subjectiva à repetição do processo subsequente do conteúdo da decisão anterior e à não contradição no processo posterior do conteúdo da decisão anterior.” [9]
A nossa jurisprudência, como já antes referido, vem entendendo que a autoridade do caso julgado, diversamente da excepção de caso julgado, pode funcionar, ainda que a título excepcional, independentemente da verificação da tríplice identidade (sujeitos, pedido e causa de pedir), pressupondo, porém, a decisão de determinada e concreta questão prejudicial ou prévia que não pode voltar a ser discutida. [10]
Neste sentido, refere-se, nos antes citados Acórdãos do STJ de 13.12.2007 e de 23.11.2011, que “A autoridade de caso julgado da sentença transitada e a excepção de caso julgado constituem efeitos distintos da mesma realidade jurídica, pois enquanto a excepção de caso julgado tem em vista obstar à repetição de causas e implica a tríplice identidade a que se refere o artº 498º do CPC (de sujeitos, pedido e causa de pedir), a autoridade de caso julgado de sentença transitada pode actuar independentemente de tais requisitos, implicando, contudo, a proibição de novamente apreciar certa questão. “ (sublinhado nosso)
Por outro lado, é ainda entendimento dominante, como já antes referido, que a força do caso julgado material abrange, para além das questões directamente decididas na parte dispositiva da sentença, as que sejam antecedente lógico necessário ou indispensável à emissão da parte dispositiva do julgado. [11]
Desta forma, poder-se-á concluir que a força e autoridade do caso julgado visam evitar que a questão decidida pelo órgão jurisdicional possa ser validamente definida, mais tarde, em termos diferentes por outro ou pelo mesmo tribunal e que possui também um valor enunciativo, que exclui toda a situação contraditória ou incompatível com aquela que ficou definida na decisão transitada e afasta todo o efeito incompatível, isto é, todo aquele que seja excluído pelo que foi definido na decisão transitada.
Em síntese conclusiva, e face ao exposto, é de considerar que a autoridade de caso julgado tem a ver com a existência de relações, já não de identidade jurídica (exigível apenas em sede de excepção de caso julgado), mas de prejudicialidade entre objectos processuais : julgada, em termos definitivos, certa questão em acção que correu termos entre determinadas partes, a decisão sobre o objecto dessa primeira causa, sobre essa precisa «quaestio judicata», impõe-se necessariamente em todas as acções que venham a correr termos entre as mesmas partes, ainda que incidindo sobre um objecto diverso, mas cuja apreciação dependa decisivamente do objecto previamente julgado, perspectivado como verdadeira relação condicionante ou prejudicial da relação material controvertida na acção posterior.
Feito este enquadramento prévio, cremos ser patente que também a autoridade do caso julgado não é invocável no caso dos autos.
Com efeito, se é certo que a propriedade da Ré sobre os prédios já acima identificados foi afirmada e reconhecida nos autos de acção ordinária n.º 4952/08.4TBVNG, uma tal afirmação judicial – nos termos em que foi proferida, ou seja no contexto de acção de reivindicação em que a ali Autora (ora Ré) invocava que essa sua propriedade abrangia um armazém ilegitimamente [isto é, sem título] ocupado pela ali Ré – não se constitui como questão condicionante ou prejudicial relativamente às questões concretamente suscitadas nestes autos e que delimitam o seu objecto, qual seja a de saber se faz parte do reivindicado prédio das aqui autoras uma dependência e quintal, ou, pelo contrário, se tais espaços fazem parte do prédio da ora Ré.
Com efeito, compulsados os ditos autos (através das certidões juntas) a questão do exacto conteúdo do direito de propriedade da ora Ré (e ali Autora) por confronto com o prédio das autoras (e de que, alegadamente, fará parte a aludida dependência e quintal), não constitui, de todo, questão que tenha sido dirimida ou decidida nos mesmos autos ou que nela constitua pressuposto necessário ou antecedente lógico, em ordem a que constitua, como era suposto para efeitos de autoridade de caso julgado, uma questão condicionante ou prejudicial relativamente à sentença a proferir oportunamente nestes autos.
Destarte, sendo certo que a atribuição de valor de caso julgado com base numa relação de prejudicialidade supõe ou exige que o fundamento da decisão transitada condicione a apreciação do objecto de uma acção posterior, não se vislumbrando na sentença/acórdão desta Relação uma qualquer condicionante à apreciação do concreto objecto destes autos (atenta a inexistência de uma qualquer relação de prejudicialidade entre ambos os processos e entre as questões neles debatidas), seguro é, a nosso ver, que inexiste a excepção de autoridade de caso julgado.
Aliás, deve dizer-se que, salvo casos excepcionais - que não estão em causa nos presentes autos [12] –, o caso julgado (nas suas duas vertentes, positiva e negativa) apenas vincula as partes na acção, não podendo, também em regra, afectar terceiros. Esta regra constitui um reflexo do princípio do contraditório (art. 3º, n.º 1 do CPC), no sentido de que, quem não pôde defender os seus interesses num processo pendente, por nele não ser parte ou interveniente processual [13], não pode ser afectado (beneficiado e, por maioria de razão, prejudicado) pela decisão que nele foi proferida.
Ora, no caso dos autos, e com o devido respeito, a pugnar-se pela procedência do caso julgado e/ou pela autoridade de caso julgado decorrentes do sentenciado na acção ordinária acima referida, lograria a aqui Ré impor às autoras (sem contraditório das mesmas), por via reflexa ou indirecta, a definição exacta do conteúdo do seu direito de propriedade sobre os prédios referidos nos autos, no sentido de nele incluir a dependência e o quintal que as autoras (com fundamento ou não, a final se verá) reivindicam como de sua pertença, enquanto parte integrante do seu prédio melhor descrito nos autos, o que nos afigura uma interpretação demasiado excessiva do caso julgado e dos seus reflexos externos.
E este resultado é, ainda, de afastar quando este outro objecto do litígio não foi, manifestamente, questão ou objecto apreciado ou dirimido na sobredita acção ordinária e, por consequência, não constitui questão prévia ou prejudicial, que o tribunal corra o risco de contrariar por meio da prolação da oportuna sentença a proferir nestes autos.
Como assim, por todo o antes exposto, deverá proceder a apelação, com o consequente prosseguimento dos autos.
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IV-DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente a apelação, revogando o despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro que faça prosseguir os ulteriores termos do processo.
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Sem custas, nesta instância, pois que inexiste parte vencida - art. 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC.
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Porto, 21.11.2016
Jorge Seabra
Sousa Lameira
Oliveira Abreu [Tem voto de conformidade, não assina por se encontrar ausente em serviço oficial do CSM – art. 153º, n.º 1 do CPC]
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[1] MIGUEL TEIXEIRA de SOUSA, “ Estudos sobre o Novo Código de Processo Civil ”, Lex, 2ª edição, 1997, pág. 567.
[2] Sobre a distinção, vide, por todos, M. TEIXEIRA de SOUSA, “ Estudos … ”, cit., pág. 569 e A. VARELA, “ Manual de Processo Civil ”, Coimbra Editora, 2ª edição, pág. 703-704.
[3] MIGUEL TEIXEIRA de SOUSA, “ Estudos … ”, cit., pág. 574-575.
[4] Vide, neste sentido, por todos, M. TEIXEIRA de SOUSA, “ Estudos … ”, cit., pág. 580 [com menção de vária jurisprudência do Supremo e das Relações], e, ainda, a título de arestos mais recentes, por todos, AC STJ de 16.02.2016, Processo n.º 53/14.4TBPTB-A.G1.S1, relator Sr. Juiz Conselheiro Hélder Roque, AC STJ de 26.01.2016, Processo n.º 310/ 13.7TBVLG.P1.S1, relator Srª Juiz Conselheira Maria Clara Sottomayor, AC STJ de 17.11.2015, Processo n.º 34/12.2 TBLMG.C1.S1, relator Sr. Juiz Conselheiro Sebastião Póvoas e AC STJ de 12.07.2011, Processo n.º 129/07.4TBPST.S1, relator Sr. Juiz Conselheiro Moreira Camilo, todos in www.dgsi.pt.
[5] MIGUEL TEIXEIRA de SOUSA, “ O Objecto da sentença e o Caso Julgado ”, BMJ 325º, pág. 49.
[6] MANUEL de ANDRADE, “ Noções Elementares de Processo Civil ”, Coimbra Editora, 1979, pág. 306.
[7] MIGUEL TEIXEIRA de SOUSA, “ Estudos … ”, cit., pág. 572.
[8] J. LEBRE de FREITAS, A. MONTALVÃO MACHADO, RUI PINTO, “ Código de Processo Civil Anotado ”, II volume, Coimbra Editora, 2011, pág. 325.
[9] MIGUEL TEIXEIRA de SOUSA, “ O Objecto da sentença … ”, cit., pág. 49.
[10] Vide, por todos, AC STJ de 7.05.2015, Processo n.º 15698/04.2YYLSB-C-L1-S1, relator Sr. Juiz Conselheiro Granja da Fonseca, AC STJ de 23.11.2011, Processo n.º 644/08.2TBVFR.P1.S1, relator Sr. Juiz Conselheiro Pereira da Silva, AC STJ de 6.03.2008, Processo n.º 08B402, relator Sr. Juiz Conselheiro Oliveira Rocha e AC STJ de 13.12.2007, Processo n.º 07A3739, relator Sr. Juiz Conselheiro Nuno Cameira, todos in www.dgsi.pt.
[11] Vide, neste sentido, os arestos do STJ já antes referenciados sob a nota 4.
[12] Vide sobre a matéria atinente à eficácia reflexa do caso julgado e à extensão do caso julgado a terceiros, MIGUEL TEIXEIRA de SOUSA, “ Estudos … ”, cit., pág. 590 e segs…
[13] Abstraindo, por ora, dos fenómenos de sucessão (inter vivos ou mortis causa) na titularidade do objecto processual.