Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2664/19.2T8VFR-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ IGREJA MATOS
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
REVERSÃO
Nº do Documento: RP202101262664/19.2T8VFR-A.P1
Data do Acordão: 01/26/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A competência da jurisdição afere-se em função da relação material em litígio tal como surge configurada pelo autor na petição inicial e nos termos de causa de pedir e pedido por este formulados.
II – Assim, é da competência dos tribunais comuns decidir do pedido de resolução de um contrato de compra e venda de um imóvel celebrado entre um Município e um particular quando esteja em causa a aplicação de uma cláusula de reversão a favor do Município, livremente acordada pelas partes contratantes e regulada pelo Direito Civil.
III – Não obsta ao carácter privado de tal relação contratual a circunstância de tal reversão decorrer da aplicação de um regulamento camarário que definiu as condições de venda de lotes municipais destinados à instalação de unidades industriais ou armazéns de retém, aprovado pela Câmara Municipal e pela Assembleia Municipal.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 2664/19.2T8VFR-A.P1

O Município B…, com sede na …, …. Santa Maria da Feira veio intentar a presente acção declarativa de condenação contra C…, viúvo, residente na Rua …, nº …, …, Santa Maria da Feira, formulando os seguintes pedidos:
a) Ser declarada a resolução da escritura de compra e venda celebrada entre o A e o R;
b) Ser declarada por força de tal resolução a reversão da parcela (prédio identificado no artº 1) para a propriedade do A;
c) Ser condenado o R a reconhecer o direito de propriedade do A sobre a referida parcela e em consequência;
d) Ser condenado o R a entregar a parcela ao A livre de quaisquer ónus ou encargos;
e) Ser ordenado o cancelamento na respectiva Conservatória do Registo Predial de todos e quaisquer registos efectuados sobre a parcela depois da referida compra e venda a favor do R, bem como todos os registos efectuados com referência ou base nesse contrato.
Alega para o efeito, em síntese, que:
- Por escritura de compra e venda outorgada no dia 24 de Julho de 2000, o A declarou vender ao R pelo preço de 4.565.000$00 (22.770,14 €) um prédio urbano, sito no …, freguesia …, Santa Maria da Feira;
- A venda supra referida foi sujeita ao ónus de reversão a favor do Município, até integral cumprimento de todas as disposições contidas nas “Condições de Venda de Lotes Municipais destinados à Instalação de Unidades Industriais ou Armazéns de Retém” aprovadas pela Câmara Municipal B… e pela Assembleia Municipal;
- Nomeadamente, o R ficou obrigado, sob pena de reversão do prédio adquirido, a:
a) – apresentação de projecto de construção em 120 dias
b) – início das obras em 270 dias
c) – conclusão das obras – 730 dias todos a contar da data da adjudicação
- O prédio foi vendido (adjudicado) ao R em 24 de Julho de 2000.
- tendo em conta uma serie generalizada de incumprimentos, o Município criou um Regulamento afecto à Zona Industrial, ficando o prédio (modulo) em causa abrangido pelos novos prazos que determinavam o seguinte:
a) apresentação de projecto 30/12/2015
b) início das obras 30/06/2016
c) conclusão das obras 30/12/2017
- O R apresentou projecto até ao final de 2015 e tendo sido notificado para proceder ao levantamento do alvará de construção, não o fez.
- O R, em Março de 2018 veio requerer a emissão do alvará de construção, requerimento indeferido em Maio de 2018, sem qualquer manifestação posterior do R.
- Em Janeiro de 2019 o R apresentou novo pedido de licenciamento, o qual foi indeferido por estar fora do prazo;
- decorridos que se mostram 19 anos sobre a data da escritura, estão ultrapassados o prazo inicial de 730 dias, para conclusão das obras, bem como o novo prazo concedido em 2015 e que permitiria a conclusão de obras pelo R até 30.12.2017;
O réu contestou invocando, além do mais, a exceção de incompetência absoluta, em razão da matéria, do tribunal por considerar que o litígio em causa se enquadra no âmbito das questões enunciadas nas diversas alíneas do n.º 1 do art. 4.º do ETAF, competindo, por isso, a sua competência aos Tribunais Administrativos e Fiscais.
O tribunal apelado ordenou a notificação do autor para, querendo, no prazo de dez dias, se pronunciar sobre as exceções dilatórias e substantivas deduzidas pelo Réu na contestação, designadamente da alegada incompetência absoluta em razão da matéria
Na resposta, o autor alegou que a análise dos factos relativos ao contrato de compra e venda é matéria de jurisdição dos tribunais comuns, estando vedada aos tribunais administrativos a jurisdição sobre direitos de propriedade. Acrescenta que, de e resto, mostram-se julgadas pelo tribunal da comarca, outros processos da mesma natureza.
O tribunal recorrido proferiu decisão, ora sob recurso, na qual concluiu ser competente em razão da matéria.
Assim, transcrevendo a parte dispositiva:
“Nestes termos, julgo o presente Juízo Local Cível de Santa Maria da Feira, do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, o competente para apreciar e decidir apresente demanda e consequentemente julgo improcedente a invocada excepção dilatória da incompetência material.”
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Inconformado o réu deduziu o presente recurso onde formula as seguintes conclusões:
1) A douta decisão proferida pelo Tribunal “a quo” decidiu julgar, improcedente a invocada excepção de incompetência em razão da matéria.
2) Na presente ação a Autora, Município B…, peticiona, o seguinte: (reprodução dos pedidos acima já recenseados)
3) Trata-se pois, de um contrato de compra e venda de dois módulos, em loteamento industrial, sendo o terreno municipal, e de uma deliberação que revoga ou pretende a reversão, a favor do município, do direito de propriedade incidente sobre lotes por este vendidos a particulares, conforme também resulta dos documentos juntos.
4) E em apreciação está pois uma relação contratual entre o Município e um particular, sendo a primeira um ente público administrativo e o segundo um ente de direito privado, mas em que as questões a decidir, de acordo com a respetiva causa de pedir é uma relação contratual de natureza administrativa.
5) Assim sendo, a competência material para dirimir o litígio é dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
6) E, por esse facto a excepção de incompetência em razão da matéria, deve ser julgada procedente.
7) Deve pois ser revogada a douta decisão, julgando-se verificada a excepção de incompetência em razão da matéria.
8) E, em consequência deve o R., ora recorrente, ser absolvido da instância (artº 576º nº 2, 577 a) do CPC).
9) Violou a douta sentença, entre outros o disposto nos artigos 99º, 576º, 577º, 578º, do CPC, e artº 1º e 4º do ETAF.
Termina a recorrente requerendo seja revogada a sentença proferida, procedendo o recurso formulado.
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II – Delimitação do objecto do recurso; questões a apreciar;
O objecto do recurso é delimitado pelas alegações e decorrentes conclusões, não podendo este Tribunal de 2.ª instância conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser em situações excepcionais que aqui não relevam.
Está em causa na presente instância recursal decidir da procedência da excepção de incompetência material do tribunal recorrido.

III. Direito Aplicável
Constitui entendimento jurisprudencial e doutrinário pacífico que a competência em razão da matéria do tribunal se afere pela natureza da relação jurídica, tal como é configurada pelo autor na petição inicial, ou seja, no confronto entre a pretensão deduzida (pedido) e os respectivos fundamentos (causa de pedir); neste mesmo sentido, a sentença recorrida invoca um acórdão justamente desta Relação do Porto.
Por outro lado, em termos de competência residual, regula o art. 64º do C.P.C. que “são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional” sendo certo que a nossa Constituição define no seu artº 212.º, n.º 3, que a competência dos Tribunais Administrativos diz respeito ao julgamento das acções cujo objecto tenha por fundamento apenas “os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.
No caso dos autos, tivemos o cuidado de transcrever os pedidos e, sumariamente, os fatos que sustentam a causa de pedir, precisamente para aferir da natureza da relação jurídica ora em crise. Assim temos que o Município B…, agindo, “hoc sensu”, como qualquer particular, vendeu um terreno de que era proprietário a uma determinada pessoa, ora réu.
A venda foi outorgada em escritura pública, no notário, e nesta pode ler-se a concretização de uma venda como qualquer outra, a título privado. O terreno é vendido contra o pagamento do preço; fixou-se uma cláusula de reversão a que as partes se vincularam no exercício das respetivas liberdade contratual e autonomia de vontade.
O contrato em litígio qualifica-se como de compra e venda por via do qual se transmite a propriedade de uma coisa ou outro direito, mediante um preço (artº 874º do CC). A sua resolução, peticionada em função do incumprimento de condição a ele aposta, vinculativa em particular para o comprador, abona a favor da natureza de questão de direito civil (cfr artº 270º e ss e 432º e ss. do CC).
Conclui-se, pois, que o núcleo deste litígio e dos corolários jurídicos que se pretendem extrair nos apontam para um contrato de natureza exclusivamente civil e privado, celebrado pelas partes (a compra e venda) e um conjunto de factos que, comprovados, enquadrarão fundamento para a sua resolução e consequente restituição do imóvel no domínio de direito da mesma natureza. Aliás, este raciocínio acompanha o expresso no Acórdão do Tribunal de Conflitos de 15 de Maio de 2013, processo nº 026/12, no qual, da mesma forma, estava em causa a resolução do contrato de compra e venda de um lote de terreno pertença do Município D… com o pedido de condenação dos réus, dois particulares, a restituí-lo ao Autor por violação igualmente de uma cláusula acordada e, de forma ainda mais evidente, um outro Acórdão do mesmo Tribunal de 22 de Setembro de 2011, processo 030/10 em que se discutia, justamente, a validade destas cláusulas de reversão no contexto de um eventual incumprimento de prazos por parte do comprador de terrenos (lotes) para instalação de unidades industriais.
A sentença apelada explica, com detalhe, a natureza privada da relação jurídica.
Reproduzamo-la, “data venia”:
Na situação submetida a juízo, tal como está descrita, a Câmara Municipal actua sem que a sua intervenção esteja suportada em qualquer acto administrativo, age como qualquer privado, no âmbito de relações reguladas pelo direito civil.
Efectivamente, conforme a acção é delineada pelo Autor, não se discute questões relativas à “validade de atos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes”, enquadrável no regime previsto no art. 4.º, n.º 1, al. e), do ETAF, na redacção em vigor à data da entrada em juízo da presente acção, emergente do Decreto-Lei 214-G/2015, de 2 de Outubro.”
De igual modo, também não nos enquadramos no âmbito de um contrato administrativo ou de compra e venda objecto de contrato celebrado nos termos de legislação sobre contratação pública.
Pertinentemente, invoca-se ainda, na decisão apelada, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 19.12.2013 cujo sumário expressamente explica que: “É da competência dos tribunais comuns conhecer da questão do incumprimento de um contrato de compra e venda de um imóvel celebrado entre uma entidade privada e uma Câmara Municipal, embora o imóvel transaccionado fosse propriedade da Autarquia e do aludido contrato constem uma cláusula que manda aplicar às omissões as disposições do Regulamento Municipal de Atribuição de Lotes Industriais e uma cláusula resolutiva que prevê a reversão do direito de propriedade do bem imóvel para o vendedor, em caso de incumprimento por parte do comprador.”
Argumentando em sentido inverso, temos que o recorrente alega estar em causa uma relação contratual entre o Município e um particular, sendo a primeira um ente público administrativo e o segundo um ente de direito privado, mas em que as questões a decidir de acordo com a respetiva causa de pedir resultariam de uma relação contratual de natureza administrativa. Para fundamentar tal conclusão, invoca ser referido o Regulamento aprovado pela Assembleia Municipal para a aquisição de lotes e citam-se dois acórdãos anteriores temporalmente aos acima por nós citados, um desta Relação, Proc. nº 60/08.6TBMCD de 06/05/2010, do qual dissentimos muito embora esteja em causa, diferentemente do nosso caso, a própria nulidade das condições resolutivas, e um outro do STA proc. nº 0232/02 de 22/06/2004. Em relação a este último aresto do Supremo Tribunal Administrativo, julgamos, salvo o devido respeito, ser bastante diversa a situação nele abordada; assim, o que esteve em causa nesse processo foi a própria deliberação da câmara municipal que determinou, após precedência de concurso público, celebrar com determinada pessoa um contrato promessa de compra e venda de um lote, em loteamento industrial. Pretendia-se, directamente, pôr em causa essa deliberação camarária e não, como no nosso caso, o contrato de compra e venda celebrado pela Câmara com um particular, segundo normas de Direito Privado.
Ou seja: não está nestes autos em discussão a validade de qualquer procedimento pré-contratual a que esteja subordinado o contrato celebrado, como acontecia no citado acórdão do STA, sendo que o facto de um dos contraentes ser pessoa de direito público não põe minimamente em causa ter o mesmo actuado, nesta relação contratual, em pé de igualdade com o particular.
Deste modo, o contrato de compra e venda celebrado, uma vez confrontado com o citado documento denominado “Condições de Venda de Lotes Municipais destinados à Instalação de Unidades Industriais ou Armazéns de Retém”,constitui um instrumento distinto, novo, que, no âmbito do princípio da liberdade contratual, resultada expressão de duas declarações de vontade autónomas, numa relação jurídico-privada, sem que a Câmara exerça, perante o apelante, qualquer “iusimperium”. Neste contexto, permanece válida a distinção proposta por Freitas do Amaral, (Lições de Direito Administrativo, III, págs. 439-440) que definiu a relação jurídica administrativa como “aquela que confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à Administração perante particulares, ou que atribui direitos ou impõe deveres públicos aos particulares perante a Administração”; ora, essa relação jurídica administrativa, como vimos, inexiste na discussão dos autos.
Julgamos, pois, tendo em conta as especificidades substanciais do caso concreto, ser competente o tribunal recorrido e ser esta a jurisdição própria para a tramitação da presente ação em linha com a orientação dominante deste tribunal de recurso.
Deve, pois, confirmar-se a decisão apelada.
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Resta proceder à sumariação prevista no artigo 663º, nº7 do Código do Processo Civil:
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V – Decisão
Pelo exposto, decide-se julgar improcedente o recurso deduzido, confirmando-se a sentença apelada.
Custas pelo recorrente.

Porto, 26 de Janeiro de 2021
José Igreja Matos
Rui Moreira
João Diogo Rodrigues