Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1787/20.0T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: EUGÉNIA CUNHA
Descritores: RESOLUÇÃO DO CONTRATO DE ARRENDAMENTO
FALTA DE RESIDÊNCIA PERMANENTE
ALTERAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO
ÓNUS DA PROVA
DOENÇA DO ARRENDATÁRIO
INCONSTITUCIONALIDADE
Nº do Documento: RP202111221787/20.0T8PRT.P1
Data do Acordão: 11/22/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O tribunal de 2.ª instância apenas deve proceder à alteração da decisão da matéria de facto relativamente a matéria incorporada em registos fonográficos quando se convença, com base em elementos objetivos e lógicos, que houve erro na 1.ª instância, o que se não verifica in casu, bem tendo a convicção sido formada na imediação e oralidade;
II - O critério de distribuição do ónus da prova (v. art. 342º, do Código Civil) tem por base a relação material e orienta-se em função da natureza dos factos alegados, sendo que, tendencialmente, o direito invocado na ação é-o pelo Autor, a este competindo a prova dos factos constitutivos do seu aparecimento (nº1), e os factos impeditivos (aqueles que, contemporâneos à formação do direito, obstam ao seu aparecimento), modificativos (os que alteram o direito depois de constituído) e extintivos (os que fazem cessar a produção dos seus efeitos) do direito alegado são pelo Réu (nº2).
III - Assim, provado o fundamento de resolução do contrato de arrendamento não uso do locado por mais de um ano (al. d), do nº2, do art. 1083º, do Código Civil) tal efeito pode ser afastado pela prova de facto, taxativamente previsto no nº2, do art. 1072º, de tal diploma, que o impeça.
IV - A doença, como causa impeditiva da eficácia resolutiva da falta de residência permanente (al. a), do nº2, do art. do art. 1072º, do Código Civil), não pode ser uma qualquer doença, antes tem, para respeitar os requisitos de relevância queridos pelo legislador: i) ser doença do arrendatário; ii) demandar, por necessidade de tratamento, o afastamento do arrendatário do arrendado; iii) existir probabilidade de tal tratamento conduzir à recuperação da saúde (ser a doença, tendencialmente/previsivelmente, de natureza temporária, isto é, não ser irreversível, impeditiva do regresso ao locado); iv) ter sido ela o único motivo que levou o inquilino a deixar de viver, permanentemente, no arrendado, por forma a que, debelada, permita retomar a pretendida residência permanente.
V - Tal interpretação restritiva de doença, na adequada e proporcional, por justa e equilibrada, ponderação dos interesses em confronto, salvaguarda o do arrendatário, em preservar a sua habitação, na reversibilidade da doença (e, por isso, na previsibilidade de o uso poder ser retomado), e o do senhorio, em livremente poder explorar economicamente o seu bem imóvel, na irreversibilidade desta (e, por isso, ante a não prova da previsibilidade do regresso).
VI - Esta interpretação restritiva, a não incluir as doenças irreversíveis, não enferma de inconstitucionalidade, não gerando a referida não inclusão na al. a), do nº2, do art. 1072.º, do CC, de inconstitucionalidade por violação do princípio da igualdade, pois que, as razões da consagração legal das situações aí previstas, a reclamar e a justificar o sacrifício de direitos e interesses privados ou públicos (como o de propriedade de senhorio e da ampliação do mercado de arrendamento), não estão presentes no caso de doença que afasta definitivamente o arrendatário do locado, seja jovem seja idoso. Não se verifica qualquer discriminação, antes todos os outros casos consagrados de licitude de não uso são situações de presumível retorno ao locado.
VII - Também se não configura violação do direito à habitação, pois que tal direito (v. art. 65.º da Constituição da República Portuguesa), reveste, acima de tudo, natureza programática, dirigindo-se ao Estado, que o assegura por variados meios, e, desde logo, no referido nº2, do art. 1072.º, foi salvaguardada a parte mais frágil e as situações de essencial relevo do direito à habitação, com a eleição das taxativas situações de real interesse e utilidade na manutenção do contrato de arrendamento, situações essas em que se reclama e justifica especial proteção.
VIII - Destarte, competindo ao arrendatário o ónus de alegação e da prova da reversibilidade da doença enquanto justificação do incumprimento da obrigação de uso efetivo (transitoriedade do impedimento de habitar o locado) para que se possa enquadrar o caso, de não uso, em situação justificativa do mesmo, a não se demonstrar encontrar-se o mesmo em situação das, taxativas, previstas no n.º 2, do citado art. 1072.º, é de concluir pela eficácia resolutiva do não uso do locado há mais de um ano.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação nº 1787/20.0T8PRT.P1
Processo do Juízo Local Cível do Porto – Juiz 3

Relatora: Eugénia Maria de Moura Marinho da Cunha
1º Adjunto: Maria Fernanda Fernandes de Almeida
2º Adjunto: Maria José Simões

Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto

Sumário (cfr nº 7, do art.º 663º, do CPC):
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I. RELATÓRIO

Recorrente: B…
Recorrido: C…

C… propôs ação declarativa, com forma de processo comum, contra B…, pedindo que se declare resolvido o contrato de arrendamento e se condene a Ré a despejar, de imediato, o imóvel locado.
Alega, para tanto, que o anterior proprietário do imóvel celebrou com D…, cônjuge da ré, um contrato, que reduziram a escrito, datado de 14 de setembro de 1962, pelo qual lhe cedeu, para habitação, o imóvel que identificou mas que, tendo o arrendatário falecido em 12 de setembro de 2017, a ré deixou de residir no imóvel.
A ré contestou, defendendo-se por impugnação e por exceção. Reconheceu ter deixado de residir no imóvel locado no ano de 2018, por se encontrar doente e necessitar de cuidados de enfermagem diários para controlar e tratar uma infeção grave por lesões nas costas, encontrando-se internada na E…, sendo sua intenção regressar ao imóvel locado, ainda que com apoio de cuidados de enfermagem e outros serviços no domicílio.
Procedeu-se à audiência final, com a observância das formalidades legais.
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Foi proferida sentença com a seguinte parte dispositiva:
Pelo exposto, julgo a presente acção parcialmente procedente, declaro resolvido o contrato de arrendamento relativo ao prédio urbano sito na rua …, n.º.., na freguesia …, concelho do Porto, inscrito na matriz predial sob o n.º1136 e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º2820, e condeno a ré a entregá-lo ao autor, livre de pessoas e bens, no prazo de um mês após o trânsito em julgado da sentença.
Custas a cargo do autor e da ré, na proporção de 1/30 e 29/30, respectivamente.
Fixo o valor da acção em 1.903,50€.
Custas do incidente do valor a cargo do autor”.
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A Ré apresentou recurso de apelação, pugnando por que seja revogada a decisão e substituída por outra que julgue a ação improcedente por provada estar a exceção prevista no artigo 1072º nº2 alínea a) do Código Civil, deduzida pela ré, formulando as seguintes
CONCLUSÕES:
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O Autor apresentou contra alegações, a pugnar pela improcedência do recurso, concluindo:
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Após os vistos, cumpre apreciar e decidir o mérito do recurso interposto.
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II. FUNDAMENTOS
- OBJETO DO RECURSO
Apontemos as questões objeto do presente recurso, tendo presente que o mesmo é balizado pelas conclusões das alegações da recorrente, estando vedado ao tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso, acrescendo que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido – cfr. arts 635º, nº4, 637º, nº2 e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.
Assim, as questões a decidir são as seguintes:
1ª - Do alegado erro na apreciação da prova e, consequentemente, se é de alterar a decisão da matéria de facto fixada pelo Tribunal a quo quanto aos pontos mencionados pela Autora recorrente, e de aditar a matéria referida (8 e 9) aos factos assentes;
2ª- Se a doença da arrendatária, que resultou provada, constitui fundamento justificativo do incumprimento da obrigação de uso efetivo do locado, arrendado para habitação, tornando o não uso lícito e impedindo o direito à resolução do contrato de arrendamento, pelo senhorio, com fundamento no não uso do locado por mais de um ano, previsto na al. d), do nº2, do art. 1083º, do Código Civil;
3ª- Da inconstitucionalidade da interpretação restritiva de “doença”, da al. a), do nº2, do artigo 1072º, do CC, por violação dos princípios da igualdade e do direito à habitação, ao não incluir as doenças crónica e irreversíveis em violação do direito das pessoas idosas à manutenção da sua habitação em caso de doenças prolongadas.
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II.A – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
1. FACTOS PROVADOS
São os seguintes os factos considerados provados, com relevância, para a decisão:
1 - O prédio urbano sito na Rua …, n.º.., na freguesia …, concelho do Porto, inscrito na matriz predial sob o n.º1136 e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º2820, encontra-se registado a favor do autor, na proporção de ¼ por sucessão hereditária de F… e na proporção de ¾ por compra.
2 - Em 14 de setembro de 1962, F… celebrou com D… um acordo, que reduziram a escrito, mediante o qual aquele lhe cedeu para habitação o imóvel identificado em 1), mediante a obrigação de pagamento da renda de 10.800$00, a pagar em duodécimos de 900$00.
3 – D… faleceu no dia 12 de setembro de 2017.
4 - Em data não concretamente apurada mas, pelo menos, desde 20 de agosto de 2018, a ré deixou de pernoitar, fazer as suas refeições e receber visitas no imóvel identificado em 1).
5 - Tal aconteceu porque a Ré se encontrou doente, necessitando de cuidados de enfermagem diários por causa de uma infeção por lesões nas costas.
6 - A ré encontra-se internada na Unidade de Cuidados Continuados E….
7 - A ré manifesta o desejo de regressar ao imóvel.
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2. FACTOS NÃO PROVADOS
Não resultou provado:
a.- É previsível a recuperação da ré que lhe permita regressar ao imóvel locado.
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II.B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
1ª. Da alteração da decisão sobre a matéria de facto
Tendo a Recorrente, que impugna a decisão da matéria de facto, dado cumprimento aos ónus impostos pelo nº1, do artigo 640.º, do Código de Processo Civil, abreviadamente CPC, diploma a que nos reportamos na falta de outra menção, pois que faz referência aos concretos pontos da matéria de facto que considera incorretamente julgados (al. a)), indica os elementos probatórios que conduziriam à alteração daqueles pontos nos termos por ela propugnados (al. b)) e a decisão que, no seu entender, deveria sobre eles ter sido proferida (al. c)) e indica, ainda, as passagens da gravação em que funda o recurso (al. a), do nº2, do citado normativo), cumpre apreciar a impugnação da matéria de facto e fixar, definitivamente, tal matéria, para, de seguida, se passar à analise da modificabilidade da fundamentação jurídica, sendo as conclusões das alegações do recorrente que balizam a pronúncia do Tribunal (v. nº1, do art. 639º e art. 635º).
Cumpridos aqueles ónus – o de alegar e formular conclusões (nº1, do art. 639º e de efetuar as referidas especificações impostas pelo nº1, do art. 640º e, ainda indicadas as passagens da gravação em que se funda o recurso (nº2, deste artigo) - e, portanto, nada obstando ao conhecimento do objeto de recurso, cabe observar que se não vai realizar novo julgamento nesta 2ª Instância, mas tão só reapreciar os concretos meios probatórios relativamente aos pontos de facto impugnados, como a lei impõe.
O nº1, do art. 662º, ao estabelecer que a Relação aprecia as provas, atendendo a quaisquer elementos probatórios, pretende que a Relação faça novo julgamento da matéria de facto impugnada, que vá à procura da sua própria convicção, assegurando, desse modo, o duplo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto.
O âmbito da apreciação do Tribunal da Relação, em sede de impugnação da matéria de facto, deve conter-se dentro dos seguintes parâmetros:
a)- o Tribunal da Relação só tem que se pronunciar sobre a matéria de facto impugnada pelo Recorrente;
b)- sobre essa matéria de facto impugnada, o Tribunal da Relação tem que realizar um novo julgamento;
c)- nesse novo julgamento o Tribunal da Relação forma a sua convicção de uma forma autónoma, mediante a reapreciação de todos os elementos probatórios que se mostrem acessíveis (e não só os indicados pelas partes).
Dentro destas balizas, o Tribunal da Relação, assumindo-se como um verdadeiro Tribunal de Substituição, que é, está habilitado a proceder à reavaliação da matéria de facto especificamente impugnada pelo Recorrente, sendo que, neste âmbito, a sua atuação é praticamente idêntica à do Tribunal de 1ª Instância, apenas ficando aquém quanto a fatores de imediação e de oralidade.
E, na verdade, este controlo de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode deitar por terra a livre apreciação da prova, feita pelo julgador em 1ª Instância, construída dialeticamente e na importante base da imediação e da oralidade.
A garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto não subverte o princípio da livre apreciação da prova[1] (consagrado no nº5, do art. 607.º) que está atribuído ao tribunal da 1ª instância, mas na formação da convicção do julgador não intervêm apenas elementos racionalmente demonstráveis, já que podem entrar também, elementos que escapam à gravação vídeo ou áudio e, em grande medida, na valoração de um depoimento pesam elementos que só a imediação e a oralidade trazem.
Com efeito, no vigente sistema da livre apreciação da prova, o julgador detém a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos, objeto do julgamento, com base apenas no juízo adquirido no processo. O que é essencial é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade da convicção sobre o julgamento do facto como provado ou não provado[2].A lei determina expressamente a exigência de objetivação, através da imposição da fundamentação da matéria de facto, devendo o tribunal analisar criticamente as provas e especificar os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador (nº4, do art. 607.º).
O princípio da livre apreciação de provas situa-se na linha lógica dos princípios da imediação, oralidade e concentração: é porque há imediação, oralidade e concentração que ao julgador cabe, depois da prova produzida, tirar as suas conclusões, em conformidade com as impressões recém-colhidas e com a convicção que, através delas, se foi gerando no seu espírito, de acordo com as máximas de experiência aplicáveis[3].
E na reapreciação dos meios de prova, o Tribunal de segunda instância procede a novo julgamento da matéria de facto impugnada, em busca da sua própria convicção - desta forma assegurando o duplo grau de jurisdição sobre essa mesma matéria - com a mesma amplitude de poderes da 1.ª instância. Impõe-se-lhe, assim, que analise criticamente as provas indicadas em fundamento da impugnação (seja ela a testemunhal seja, também, a documental, conjugando-as entre si, contextualizando-se, se necessário, no âmbito da demais prova disponível, de modo a formar a sua própria e autónoma convicção, que deve ser, também, fundamentada).
Ao Tribunal da Relação competirá apurar da razoabilidade da convicção formada pelo julgador, face aos elementos que lhe são facultados.
Porém, norteando-se pelos princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e regendo-se o julgamento humano por padrões de probabilidade, nunca de certeza absoluta, o uso dos poderes de alteração da decisão sobre a matéria de facto, proferida pelo Tribunal de 1ª Instância, pelo Tribunal da Relação deve restringir-se aos casos de desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados[4], devendo ser usado, apenas, quando seja possível, com a necessária certeza e segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados.
Assim, só deve ser efetuada alteração da matéria de facto pelo Tribunal da Relação quando este Tribunal, depois de proceder à audição efetiva da prova gravada, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, apontam para direção diversa e impõem uma outra conclusão, que não aquela a que chegou o Tribunal de 1ª Instância.
Na apreciação dos depoimentos, no seu valor ou na sua credibilidade, é de ter presente que a apreciação dessa prova na Relação envolve “risco de valoração” de grau mais elevado que na primeira instância, em que há imediação, concentração e oralidade, permitindo contacto direto com as testemunhas, o que não acontece neste tribunal. E os depoimentos não são só palavras; a comunicação estabelece-se também por outras formas que permitem informação decisiva para a valoração da prova produzida e apreciada segundo as regras da experiência comum e que, no entanto, se trata de elementos que são intraduzíveis numa gravação.
Por estas razões, está em melhor situação o julgador de primeira instância para apreciar os depoimentos prestados uma vez que o foram perante si, pela possibilidade de apreensão de elementos que não transparecem na gravação dos depoimentos.
Em suma, o Tribunal da Relação só deve alterar a matéria de facto se formar a convicção segura da ocorrência de erro na apreciação dos factos impugnados.
E o julgamento da matéria de facto é o resultado da ponderação de toda a prova produzida. Cada elemento de prova tem de ser ponderado por si, mas, também, em relação/articulação com os demais. O depoimento de cada testemunha tem de ser conjugado com os das outras testemunhas e todos eles com os demais elementos de prova.
Quando o pedido de reapreciação da prova se baseie em elementos de características subjetivas – como a prova testemunhal e declarações de parte -, a respetiva sindicação tem de ser exercida com o máximo cuidado e o tribunal de 2.ª instância só deve alterar os factos incorporados em registos fonográficos quando, efetivamente, se convença, com base em elementos lógicos ou objetivos e com uma margem de segurança elevada, que houve erro na 1.ª instância.
Em caso de dúvida, deve, aquele Tribunal, manter o decidido em 1ª Instância, onde os princípios da imediação e oralidade assumem o seu máximo esplendor, dos quais podem resultar elementos decisivos na formação da convicção do julgador, que não passam para a gravação.
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Tendo presentes os mencionados princípios orientadores, vejamos se assiste razão à Ré, Apelante, nesta parte do recurso que tem por objeto a impugnação da matéria de facto nos termos por ela pretendidos.
Pretende a recorrente seja modificada a decisão da matéria de facto e sejam dados como factos provados os seguintes factos:
“8 - Em virtude da sua idade e da necessidade dos referidos cuidados diários os familiares tomaram a decisão de provisoriamente internarem a Ré na unidade de cuidados continuados E…, até que as lesões ficassem curadas.
9 - A ré apresenta um melhor estado de saúde”.
que entende provados face ao depoimento prestado pela testemunha G…, a qual mostrou ter presenciado, quando foi visitar a Ré à Unidade de Cuidados Continuados E…, que estava “melhor de saúde”.
Insurge-se contra tal o Autor que sustenta que os autos não revelam que a ré tenha saído do arrendado apenas provisoriamente para se tratar, nem que após internada o seu estado de saúde tenha melhorado, sequer que seja intenção da mesma regressar ao arrendado, sendo que a testemunha G… apenas a visitou uma vez e há muito tempo e nada sabia com rigor. Mais sustenta que nada deve ser alterado, pois que nem a referida testemunha afirmou que a ré está melhor de saúde nem isso seria credível perante o Relatório Médico.
E, na verdade, assim sucede.
Sendo irrelevante para a decisão da causa, em que parte é a Ré, decisão que possa ter sido tomada pelos familiares desta, certo é que, com efeito, apenas resulta provado que, porque a Ré se encontrava doente e a necessitar de cuidados de enfermagem diários, por causa de uma infeção por lesões nas costas, foi internada, para se tratar, em meio hospitalar (Unidade de Cuidados Continuados E…).
E provado não resulta que a Ré apresente melhor estado de saúde, menos, ainda, que seja previsível cura e recuperação da ré.
Valorou o Tribunal a quo “o documento intitulado “declaração” de fls. 27-verso e o documento intitulado “relatório de informação clínica” apresentado em audiência – em conjugação com as declarações de parte do autor e com a prova testemunhal”, referindo quanto à prova testemunhal, ter atendido e valorado o depoimento de G…, companheiro da filha da ré, arrolado pela defesa, que não obstante tal relação depôs de forma espontânea e credível, sendo que os factos “5. a 7. e a. foram julgados com base nos documentos intitulados “declaração” de fls. 27- verso e “relatório de informação clínica”, em conjugação com o depoimento de G…. De facto, deste depoimento resultou que a ré deixou de habitar o imóvel meses antes de ser integrada na instituição E… por ter sido antes institucionalizada numa unidade de Portalegre (…). Quanto ao facto da alínea a) (que se extraiu do alegado nos arts. 11.º e 17.º da contestação quanto à susceptibilidade de cura), foi o mesmo julgado não provado com referência ao documento intitulado “relatório de informação clínica”, que dá conta de um estado de saúde gravemente comprometido e irreversível, não tendo sido produzida qualquer outra prova em sentido diverso” (negrito nosso).
Assim sucede na verdade. E a única testemunha inquirida à matéria ora em causa – G… – prestou um depoimento que não permite dar como provados os factos supra referidos, não tendo afirmado, sequer, com segurança que a Ré apresente um melhor estado de saúde. Antes revelou só a ter visitado uma vez e já há bastante tempo e bem deixou transparecer as suas dúvidas sobre o estado de saúde da mesma.
Assim, nenhuma alteração cabe introduzir à decisão da matéria de facto, bem decidida, julgando-se improcedente a impugnação.
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2ª- Da licitude do não uso por doença da arrendatária impeditiva do direito à resolução pelo senhorio

Insurge-se a Ré contra a decisão de mérito por entender dever proceder a exceção que invocou - doença a tornar o não uso lícito e a impedir o direito de resolução do contrato de arrendamento.
Entende que a sua ausência do locado se ficou a dever à necessidade de cuidados de saúde, o que justifica, nos termos da al. a), do nº2, do artigo 1072º, o não uso da habitação arrendada, tendo o tribunal a quo violado tal norma, que deve ser interpretada no sentido de abranger, como motivo impeditivo da resolução do contrato de arrendamento, qualquer estado de doença, ainda que crónico e irreversível, desde que haja manifestação de vontade do arrendatário em manter o arrendamento, sob pena de inconstitucionalidade, por violação do direito das pessoas idosas à manutenção da sua habitação em caso de doenças prolongadas.
Qualificando o contrato em apreciação de arrendamento, definido nos arts. 1022.º e 1023.º do Código Civil, abreviadamente CC, diploma a que pertencem todos os preceitos que se passam a citar, como sendo “o acordo mediante o qual uma das partes se obriga a proporcionar à outra o gozo temporário de um imóvel, mediante retribuição”, constituindo, assim, principais obrigações emergentes do contrato a de proporcionar o gozo da coisa assumida pelo senhorio e a de proceder ao pagamento da renda a cargo do inquilino, obrigações estas recíprocas, bem observa o Tribunal a quo que para além destas obrigações, outras recaem sobre os contraentes, como seja a do efetivo uso do locado pelo arrendatário, consagrada no nº1, do art. 1072.º, que tem como subjacente não só a tutela do direito do senhorio, na medida em que a não utilização do imóvel importa a sua desvalorização, mas, também impede o inteiro aproveitamento dos imóveis, muito em especial dos destinados a habitação, de que o país ainda se carece.
Com efeito, revestindo o cumprimento desta obrigação de especial importância, elevou o legislador o seu incumprimento a fundamento de resolução do contrato, previsto na al. d), do nº2, do art. 1083º. E este fundamento resolutivo de não uso do locado por mais de um ano, justifica-se, na verdade, “pelo facto de o arrendatário ter uma obrigação de utilização do local arrendado (art. 1072º), em ordem a evitar a desvalorização que está normalmente associada ao não uso” e deve, mesmo “considerar-se que pode constituir fundamento de resolução do contrato não apenas a abstenção integral de utilização do locado, mas também uma redução na sua utilização de tal forma significativa que prejudique o locado”[5]. Tal fundamento resolutivo de não uso do locado por mais de um ano, compreendendo-se pelo facto de o arrendatário ter uma obrigação de utilização efetiva do local arrendado para o fim contratado (nº1, do art. 1072º), visa acautelar o interesse do senhorio de modo a evitar a desvalorização do locado associado ao seu não uso, e, reflexamente, protege, ainda, o interesse geral de fomentar o aproveitamento de todos os locais disponíveis[6].
Estatuindo o art. 1083º, que com a epígrafe “Fundamento de resolução”, estabelece no nº2, num elenco meramente exemplificativo:
“2. É fundamento de resolução o incumprimento que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento, designadamente quanto à resolução pelo senhorio:
(…)
d) O não uso do locado por mais de um ano, salvo nos casos previstos no nº2, do art. 1072º. (…)”.
dispõe o art.1072º que:
“(…) 2. O não uso pelo arrendatário é licito:
a) Em caso de força maior ou de doença; (…)” (negrito nosso).
Entendeu o Tribunal a quo “Conforme decorre do disposto no art. 1083.º, n.º2, do Código Civil, o “incumprimento que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento”, constitui fundamento de resolução, mas tendo ficado consagradas, a título exemplificativo, nas diversas alíneas da referida disposição legal, as causas de resolução que desde logo são avaliadas como graves o bastante para constituir fundamento de resolução, de tal forma que, quanto a estas, o contraente que quer resolver o contrato mais nenhuns factos tem que alegar que sejam densificadores do critério da inexigibilidade da manutenção do contrato.
Assim, o não uso do imóvel locado por mais de um ano é por si só fundamento de resolução do contrato”.
Deste modo já se havia considerado no Ac. da Rel. de Lisboa de 8/10/2009, proc. 1957/08-2 [7].
Tal entendimento não é, contudo, uniforme, bem esclarecendo Acórdão desta Relação, “o legislador da Lei nº 6/2006 pôs de lado a taxatividade das causas de resolução que vigorava no regime pretérito, introduzindo, porém, no proémio do nº 2 do art. 1083º um alargamento dos fundamentos de resolução legal, inserindo uma cláusula geral resolutiva que se funda na justa causa, a qual se encontra exemplificada nas suas várias alíneas.
Portanto, face ao NRAU não basta alegar e provar o fundamento (tipificado, ou não na nova lei) da resolução do contrato, impondo-se, ainda, alegar e provar que tal situação preenche a aludida cláusula geral (indeterminada) resolutiva, ou seja, que a conduta do arrendatário é de tal forma grave que “pela sua gravidade ou consequências torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento”[8].
E, na verdade, “Discute-se, havendo divergência doutrinária e jurisprudencial, se as alíneas do nº2 são de funcionamento autónomo ou se têm de ser conjugadas com a cláusula geral constante do proémio do nº2. Ou seja, p. ex, perante a cessão ilícita do gozo do prédio a terceiro, pode afirmar-se imediatamente que existe fundamento para resolução, ou terá de se apurar se tal cessão, pela sua gravidade ou consequências, torna inexigível ao senhorio a manutenção do arrendamento? A maioria das opiniões, e das decisões jurisprudenciais, vai no sentido de as alíneas carecerem de preencher também a cláusula geral do nº2. Vai nesse sentido também a nossa opinião, sobretudo face ao pensamento do legislador que parece transparecer da história do preceito”[9]. E também nós não podemos deixar de nos orientar por esta opinião que para além do elemento literal assim o apontar traduz o pensamento de legislador[10].
Sendo que no arrendamento para habitação, se deverá concluir pelo não uso quando o arrendatário deixa de ter no imóvel locado o seu centro da vida social, familiar e da economia doméstica, isto é, quando deixa de dormir, de tomar as refeições, de conviver, de receber correspondência no imóvel, verifica-se, contudo, que o legislador consagrou que a licitude do não uso nas situações estatuídas no nº2, do art. 1072º.
Neste preceito, previstas se encontram causas justificativas do incumprimento da obrigação de uso, fazendo-o a lei de forma tipificada, e por isso, só as situações aí estatuídas são suscetíveis de afastar a ilicitude do incumprimento da obrigação de uso efetivo do locado.
Pretendendo o Autor obter a resolução do contrato de arrendamento com base no incumprimento da obrigação do uso efetivo do locado e tendo logrado provar que, pelo menos, desde 20 de agosto de 2018, a ré deixou de pernoitar, fazer as suas refeições e receber visitas no imóvel, entendeu o Tribunal a quo ser tal suficiente para preencher o fundamento de resolução, não uso do imóvel locado superior a um ano, com referência à data da propositura da ação, consagrado na al. d), do nº2, do art. 1083.º.
Mais considerou não estar verificada a invocada causa de justificação. Entendeu que, constituindo a falta de uso efetivo do locado fundamento de resolução do contrato sempre a ação tem de proceder, na improcedência da defesa, dado não ser a doença que motivou o não uso do imóvel, suscetível de impedir a resolução. Entendeu improcedente este fundamento de defesa por, resultando provado que a ré, tendo-se encontrado doente e deixado de residir no imóvel locado dado necessitar de cuidados de diários por causa de uma infeção por lesões nas costas, encontrando-se actualmente internada na Unidade de Cuidados Continuados E… (factos julgados provados nas alíneas 4. a 6.), apesar do seu desejo de regressar ao imóvel, não provou ser a situação de saúde reversível, por forma a permitir-lhe regressar ao locado (factos julgados provados nas alíneas 7. e a.).
Seguindo o entendimento de que: “só a doença temporária e com possibilidades de cura é que constitui fundamento justificativo da falta de residência permanente” e “decalcando a síntese de Aragão Seia, adaptando-a à lei actual”, considerou “impõe- se evidenciar que a doença do arrendatário só assume relevância quando: 1) obrigar, por necessidade de tratamento, o locatário a ausentar-se do arrendado; 2) ser regressiva, ou seja, com forte probabilidade de o tratamento fora do imóvel arrendado ser decisivo à recuperação; 3) não se tratar de doença crónica, que torne o tratamento definitivo; 4) ser a doença o único motivo que levou o inquilino a deixar de residir no imóvel locado, de tal forma que, debelada, retome a residência permanente (Arrendamento Urbano. 6.ª Edição, Revista e actualizada, Livraria Almedina: Coimbra, 2002, p. 440. Também Pinto Furtado, Manual do Arrendamento Urbano, 2.ª Edição Revista e Actualizada, Livraria Almedina: Coimbra, 1999, pps. 832 e 833)” e refutou o entendimento da Ré, no sentido de se dever afastar o fundamento de resolução do contrato de arrendamento perante qualquer estado de doença, ainda que crónico e irreversível, dado que “As causas de justificação do não uso do imóvel são as tipificadas no art. 1072.º, n.º2, do Código Civil, e assentam já numa justa ponderação de interesses do arrendatário e do senhorio: ora, nem as situações de doença prolongada são específicas das pessoas idosas, de tal forma que mereçam em razão da idade um tratamento especial, sob pena, designadamente, de violação do princípio da igualdade, nem o legislador elegeu a idade como factor relevante na ponderação que a norma reflete”.
Assim, e no seguimento do decidido pelo Tribunal Constitucional (com referência à anterior norma, do art. 64.º, n.º2, al. a), do RAU), entendeu “não se vê na interpretação que a doutrina e a jurisprudência têm vindo a acolher da norma quanto ao carácter reversível e transitório da doença qualquer inconstitucionalidade (cfr. acórdão do Tribunal Constitucional n.º570/2001, publicado no DR, Série II, 4 de Fevereiro de 2002)”.

A questão objeto de recurso é a de saber se a concreta doença de que a Ré padece (“infeção por lesões nas costas”) torna o não uso do locado lícito e constitui facto impeditivo do direito do Autor à resolução do contrato de arrendamento com esse fundamento.
Certo sendo que mantendo-se a arrendatária fora do locado há mais de um ano (por referência à data de instauração da ação), a não ocorrer causa justificativa para esse não uso, prevista no n.º 2 do artigo 1072º, existe incumprimento grave do contrato de arrendamento, que legitima a sua resolução, por não ser exigível ao locador, nas circunstâncias de violação reiterada de um dever do arrendatário, que coloca em risco o estado de conservação do locado, manter o vínculo contratual existente[11].
Começa por se referir que o nº2, do art. 1072º, prevê situações em que é licito o não uso do locado pelo inquilino, situações essas “tendencialmente de natureza temporária”, sendo que a “licitude do não uso existe apenas enquanto se mantiver a situação que o justifica”, e que “as situações das previstas nas alíneas a), b) e d) correspondem a casos em que a lei considera haver motivo atendível para o não uso”[12].
Como bem salienta o Tribunal a quo, citando Aragão Seia, ob. cit., p. 440, cabe ao arrendatário alegar e provar a doença e “os pressupostos da relevância da doença enquanto justificação do incumprimento da obrigação de uso efectivo”, pressupostos do facto impeditivo do direito de que o arrendatário se arroga.
Sem que haja limite de tempo, mas sendo os casos previstos na al. a) de doença justificativa do não uso aqueles em que se prevê que o arrendatário venha a recuperar a saúde, de molde a poder voltar a habitar o locado[13], não é qualquer doença de que padeça o inquilino a constituir impedimento à justa causa de resolução do contrato pelo não uso do arrendado, prevista na referida alínea.
A doença, como causa impeditiva da eficácia resolutiva da falta de residência permanente (al. a), do nº2, do art. do art. 1072º, do Código Civil), não pode ser uma qualquer doença, antes tem, para respeitar os requisitos de relevância queridos pelo legislador, de:
i) ser doença do arrendatário;
ii) demandar, por necessidade de tratamento, o afastamento do arrendatário do arrendado;
iii) existir probabilidade de tal tratamento conduzir à recuperação da saúde - (ser a doença, tendencialmente/previsivelmente, de natureza temporária (reversível), isto é, não ser irreversível e impeditiva do regresso ao locado);
iv) ter sido ela o único motivo que levou o inquilino a deixar de viver, permanentemente, no arrendado, por forma a que, debelada, permita retomar a pretendida residência permanente.
E porque de matéria de exceção se trata, compete ao arrendatário o ónus de alegação e da prova da doença e da sua reversibilidade, da transitoriedade do impedimento de habitar o locado e da intenção, real e séria, de voltar a residir no mesmo, em conformidade com o disposto no nº2, do art. 342º, nº2[14] [15] [16], pois que, tendo o critério de distribuição do ónus da prova (v. art. 342º, do Código Civil) por base a relação material, orienta-se em função da natureza dos factos alegados, sendo que, tendencialmente, o direito invocado na ação é-o pelo Autor, a este competindo a prova dos factos constitutivos do seu aparecimento (nº1), e os factos impeditivos (aqueles que, contemporâneos à formação do direito, obstam ao seu aparecimento), modificativos (os que alteram o direito depois de constituído) e extintivos (os que fazem cessar a produção dos seus efeitos) do direito alegado são pelo Réu (nº2).
Deste modo, tendencialmente, a doença do arrendatário só será relevante se o mesmo, em consequência dela ficar, apenas, temporariamente impedido de residir no local arrendado[17] [18], tendo a doença de ser, também, curável, ou pelo menos existir forte probabilidade de o tratamento a efetuar fora do locado ser necessário e imprescindível à recuperação da saúde, sendo, assim, previsível o regresso ao arrendado, manifestando-se a correspetiva vontade[19], e a licitude do não uso existe apenas enquanto se mantiver a situação que o justifica.
Cabia, pois, à Ré provar, para além da sua doença e da necessidade de efetuar o tratamento fora do locado para recuperar a sua saúde, o único motivo de deixar de residir no locado, ser a doença reversível, regressiva, por forma a ser previsível e possível o regresso ao arrendado.
Ora, tendo-se provado que a Ré deixou de pernoitar, fazer as suas refeições e receber visitas no locado por se ter encontrado doente, necessitando de cuidados de enfermagem diários por causa de uma infeção por lesões nas costas, tendo para se tratar, sido internada na Unidade de Cuidados Continuados E…, não se provou, contudo, ser previsível recuperação da Ré que lhe permita o regresso ao locado. Com efeito, estando a ser tratada fora do domicílio desde, pelo menos, 20/8/2018, não logrou demonstrar melhoria do seu estado de saúde, menos ainda, cura, sequer que esta seja previsível.
Face a isso, tratando-se de matéria de exceção, competia à arrendatária o ónus da prova da tendencial/previsível reversibilidade e transitoriedade do impedimento de habitar o locado, a pretender a procedência da exceção perentória e a sua absolvição do pedido, ao abrigo do disposto no nº1 e 3, do art. 576º, do CPC. Na falta de prova de requisito exigido para a doença - sempre temporária, pois que tem de ser previsível o regresso ao locado para que o não uso seja licito, o que nunca seria proporcional nem equilibrado na absoluta incerteza menos, ainda, em caso de doença irreversível – tem a exceção perentória de improceder.
A interpretação restritiva de doença que cumpre efetuar, e que, como vimos, é preconizada pela doutrina e seguida, na concreta aplicação, pela jurisprudência, contém em si a adequada e proporcional, por justa e equilibrada, ponderação dos interesses em confronto, o dos proprietários à exploração económica dos seus bens e o dos inquilinos à preservação da sua habitação, e embora nunca podendo o legislador pretender regular no sentido de o proprietário ficar inibido de explorar uma casa, que por via da doença irreversível do inquilino não poderia mais ser habitada por quem quer que seja até ao fim da vida deste, o que seria absolutamente desprovido de equilíbrio e de utilidade, também não quis impedir o previsível e possível regresso do arrendatário, em situação vulnerável, à sua habitação, revertida e curada a doença ou, pelo menos, a ser previsível a melhoria da situação de saúde deste, por forma a tornar possível o regresso ao locado.

3ª- Da inconstitucionalidade da interpretação restritiva de “doença”, da al. a), do nº2, do artigo 1072º, do CC, por violação dos princípios da igualdade e do direito à habitação, ao não incluir as doenças crónicas e irreversíveis em violação do direito das pessoas idosas à manutenção da sua habitação em caso de doenças prolongadas.

Não se vislumbra que a interpretação restritiva dada a este preceito, no sentido de, para doença poder ser tida como relevante, tornar o não uso licito e impedir a resolução com esse fundamento ter de assumir caráter reversível e transitório, seja inconstitucional.
Na verdade, para que o não uso se possa justificar, é necessário que haja possibilidade de o uso ser retomado ou, pelo menos que se anteveja o regresso ao locado como possível. Se a doença que impôs a saída do locado, por efetiva necessidade de tratamento fora do locado se revela irreversível, se se não demonstrar ser o regresso do arrendatário previsível, não bastando este desejá-lo, tendo, ainda, de estar reunidas as condições para tal, a doença do arrendatário não tem aptidão para justificar o não uso e impedir a resolução do contrato de arrendamento pelo senhorio.
Na verdade, cabendo ao legislador regular de modo proporcional e equilibrado os interesses em confronto, nunca uma solução em que o proprietário ficasse inibido de explorar a casa, que em virtude da doença irreversível do inquilino não mais poderia ser habitada por quem quer que seja, até ao fim da vida deste (sujeitando-a às nefastas consequências do não uso), a não poder o regresso deste desenhar-se como provável e, para tanto, desejado e possível, seria admissível, desde logo dada a inutilidade que estaria subjacente.
Tal não afronta qualquer princípio constitucional, nomeadamente o princípio da igualdade (art. 13º, da CRP) e do direito à habitação (art. 65º, da CRP).
Vejamos as razões por que se considera não violado o princípio da igualdade, sequer o direito à habitação.
O princípio da igualdade engloba: “(i)tratamento igual de situações iguais (ou tratamento semelhante de situações semelhantes); (ii) tratamento desigual de situações desiguais, mas substancial e objetivamente desiguais e não criadas ou mantidas artificialmente pelo legislador; (iii) tratamento em moldes de proporcionalidade das situações relativamente iguais ou desiguais e que, consoante os casos, se converte para o legislador ora em mera faculdade, ora em obrigação; (iv) tratamento das situações não apenas como existem mas também como devem existir (acrescentando-se, assim, uma componente ativa ao princípio e fazendo da igualdade perante a lei uma verdadeira igualdade através da lei); (v) consideração do princípio não como uma “ilha”, antes como princípio a situar no âmbito dos padrões materiais da Constituição”[20].
Ora, não sendo as situações iguais, sequer similares, mas, ao invés, diferentes é exigível e impõe-se, para ser observado o princípio da igualdade, um tratamento e interpretação normativa desigual, distinta, não se verificando, quando se consagra, em casos de previsível regresso, se mantenha o contrato e em casos em que o não seja a permissão da sua extinção, uma discriminação injusta e arbitrária e, consequentemente, a violação do princípio da igualdade, consagrado no art. 13.º da Constituição.
Na verdade, é aqui de afirmar a “máxima de que o princípio da igualdade postula o tratamento igual de situações iguais e o tratamento desigual de situações desiguais”[21], e, seja o doente mais ou menos jovem, em causa está a ponderação da probabilidade de o regresso ocorrer, havendo casos em que tal é provável e casos em que tal se revela impossível, pelo que, ao desigualá-los, como se desigualou, entendendo-se não consagrada a situação destes no referido preceito, em nenhuma inconstitucionalidade se incorreu.
Sem que esteja em causa a dignidade da pessoa e o respeito pela situação de uma pessoa já de idade avançada, observado se mostra o princípio da igualdade ao dar tratamento igualitário ao que é igual e tratamento desigual ao que é divergente, bem sendo de interpretar restritivamente a norma e de nela não incluir a situação de doença irreversível (doença que impôs a saída do locado para tratamento e que, não tendo cura, faz persistir a causa do afastamento, tornando o não uso definitivo).
Assim, doença que acarreta não uso temporário e doença que acarreta um não uso definitivo porque desiguais exigem tratamentos diversos e diferentes regulamentações normativas.
*
E, também, não ocorre a violação do direito à habitação (consagrado no art. 65.º, da Constituição), pois que tal direito reveste, acima de tudo, natureza programática, dirigida ao Estado, e está contemplada no nº2, do art. 1072º, a parte essencial do direito à habitação, ao estabelecer casos em que o assegura, casos esses que assentam na justa ponderação dos interesses do arrendatário e do senhorio, encontra-se salvaguardada, adequadamente, a essência do direito à habitação em relação às pessoas mais vulneráveis, situações em que mais se justifica uma proteção especial e a real utilidade da mesma. Por isso, ao legislar nos termos conhecidos, o Estado, no âmbito da sua função soberana enquanto legislador, assegurou, em termos razoáveis, o direito à habitação[22].
E, como decidiu a Relação de Lisboa, seguindo a orientação que vem sendo traçada pelo Tribunal Constitucional, o “art.1º, que baseia a República Portuguesa, além do mais, na dignidade da pessoa humana, tem, no caso, que ser conjugado com o direito à habitação a que alude o citado art.65º. Na verdade, a dignidade da pessoa humana é que legitima e justifica, designadamente, a garantia de condições dignas de existência, que, por seu turno, é indissociável do direito à habitação. É certo que este implica determinadas obrigações positivas do Estado (nºs 2, 3 e 4, do citado art.65º), embora não confira um direito imediato a uma prestação efectiva dos poderes públicos, mediante a disponibilização de uma habitação. Todavia, o incumprimento por parte do Estado e demais entidades públicas das referidas obrigações constitucionais constitui uma omissão constitucional. É igualmente certo que o direito à habitação também pode ser realizado por via do direito de arrendamento, cumprindo ao Estado, além do mais, fomentar a oferta de casas para arrendar. No entanto, como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa, Anotada, vol.I, 4ª ed., págs.836 e 837, «… o direito à habitação não preclude o funcionamento de um mercado de arrendamento, através da possibilidade de despejos em casos justificados e da liberdade de fixação de rendas. O direito à habitação justifica seguramente limitações à propriedade no caso de prédios arrendados e não só (…). Mas essas limitações devem obedecer a um princípio de equidade e de proporcionalidade». E acrescentam aqueles autores, in ob. e loc. cits., «Os titulares passivos do direito à habitação, como direito social, são primacialmente o Estado e as demais colectividades públicas territoriais e não principalmente os proprietários e senhorios».
Assim, a Constituição “reconhece a todos, no artigo 65º, o direito à habitação e, em conjugação com o artigo 1º, o direito a uma morada digna, onde cada um possa viver com a sua família” e, “enquanto direito fundamental de natureza social, tal direito “pressupõe a mediação do legislador ordinário destinada a concretizar o respetivo conteúdo” (Ac. nº829/96 – cfr. ainda Acs. nºs 131/92, 508/99 e 29/00)” [23]. Tal artigo, é configurado, fundamentalmente, como um direito à proteção do Estado. O nº2 impõe ao Estado um conjunto de incumbências em vista a assegurar o direito de todos à habitação e os nºs 3 e 4 têm igualmente como destinatários os poderes públicos. Tal direito não se move, à partida, no círculo das relações entre particulares. Destinatários do direito à habitação são o Estado, as regiões autónomas e as autarquias locais e não, em princípio, os proprietários de habitações ou os senhorios (Ac. nº. 130/92 – cfr. Ainda Ac. nº 590/04)[24], sendo que, contudo, a propriedade tem uma “função social” a ponderar sempre que há conflito de interesses entre o inquilino e o senhorio, embora se não revele legítimo, adequado, proporcional nem constitucional “obrigar os proprietários a sub-rogarem-se ao Estado no cumprimento das incumbências infungíveis que, por expresso imperativo constitucional, sobre ele recaem. Por outro lado, a realização do direito à habitação através da imposição de limitações intoleráveis e desproporcionadas ao direito de propriedade, não só não é constitucionalmente exigível (Ac. nº 633/95 – cfr. ainda Acs. nºs 101/92, 130/92 e 570/01), como, em rigor, se apresenta como constitucionalmente interdita”[25].
Deste modo, atentas as razões da licitude do “não uso do locado” e as situações em que tal regime, de exceção, é aplicável, entendemos que a interpretação efetuada pela decisão recorrida em nenhuma violação ao direito à habitação, constitucionalmente consagrado, incorre.
Na verdade, não se verifica a invocada inconstitucionalidade, pois que específicas razões há para, no domínio do arrendamento, acautelar determinadas situações de presumida maior vulnerabilidade, afastando o direito de resolução do contrato de arrendamento, pelo senhorio, nuns casos e não o fazendo noutros. No caso, em que o retorno ao locado não é previsível, não podem ser sacrificados interesses superiores, do senhorio e públicos, ante a mera conveniência particular, que sequer se materializa em, demonstrado, efetivo e real interesse na manutenção da habitação.
As situações de doença temporária nenhuma similitude têm com o caso dos autos, em que se não demonstrou a possibilidade de reversão da doença, não resultando violado o princípio da igualdade, constitucionalmente consagrado, e situações distintas merecem soluções legais diversas.
E a restrição ou compressão do direito à habitação é admitida e aceite pela Constituição, limitando-se, validamente, o mesmo na medida do estritamente necessário à salvaguarda de outro direito ou interesse constitucionalmente protegido (o direito de propriedade privada e de livre iniciativa económica, direitos expressamente previstos nos artºs 61º e 62º da CRP).
Não se nos afigura, assim, desproporcional a solução consagrada no regime legal em questão, em que direitos dos inquilinos apenas foram restringidos na medida do necessário a assegurar o direito dos senhorios e o interesse público.
E, com efeito, nem as situações de doença irreversível são específicas das pessoas idosas de tal forma que estas mereçam, em razão da idade, um tratamento especial nem o legislador entendeu, na ponderação de interesses que fez, a idade como fator relevante na estatuição de não uso lícito que, taxativamente, enunciou no nº2, do art. 1072º.
Destarte, na falta de verificação de requisito de relevância da doença - a sua reversibilidade que permita o regresso ao locado -, o não uso do locado é ilícito, e, como tal insuscetível de justificar o incumprimento de obrigação imposta ao arrendatário, tendo, pois, a exceção perentória invocada de ser julgada improcedente e, não se encontrando a Ré em situação das, taxativamente, previstas em alínea do n.º 2, do citado art. 1072.º, justificativas de não uso, é de concluir pela eficácia resolutiva do não uso do locado há mais de um ano (art. 1083º, nº 2), al. d)).
Improcedem, por conseguinte, as conclusões da apelação, sendo de manter a decisão recorrida.
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III. DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, os Juízes desta Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar a apelação improcedente e, em consequência, na improcedência da exceção perentória invocada – doença da Ré a tornar lícito, a justificar, o não uso do locado -, mantêm a sentença recorrida.
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Custas pela Ré/apelada, pois que ficou vencida – art. 527º, nº1 e 2, do CPC.

Porto, 22 de novembro de 2021
Assinado eletronicamente pelos Juízes Desembargadores
Eugénia Cunha
Fernanda Almeida
Maria José Simões
______________
[1] Acórdãos RC de 3 de Outubro de 2000 e 3 de Junho de 2003, CJ, anos XXV, 4º, pág. 28 e XXVIII 3º, pág 26
[2] Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, pág. 348.
[3] Lebre de Freitas, Código de Processo Civil, vol II, pag.635.
[4] Acórdão da Relação do Porto de 19/9/2000, CJ, 2000, 4º, 186 e Apelação Processo nº 5453/06.3
[5] Luís Meneses Leitão, Arrendamento Urbano, 9ª Edição, 2019, Almedina e, neste sentido, Ac. RG de 22/2/2011, in CJ, 2011, 1, pág. 308 e segs
[6] Ac. da RG de 27/6/2019, proc. 408/17.2T8VRL.G2, in dgsi.pt
[7] Cfr. Ac. da Rel. de Lisboa de 8/10/2009, proc. 1957/08-2, in dgsi.pt, aí se tendo entendido que “Nas várias alíneas do n.º 2 do art.º 1083º do Código Civil, exemplificam-se as situações em que o incumprimento contratual, pela sua objectivada gravidade ou inerentes consequências, torna inexigível ao senhorio a manutenção do arrendamento” e “Assim, não é necessária prova acrescida de preencherem tais situações a cláusula geral de inexigibilidade consagrada no corpo do n.º 1, do mesmo artigo”.
[8] Ac. da RP de 18/2/2019, proc. 1668/17.4T8PVZ.P1 (Relator: Miguel Baldaia de Morais),in dgsi.pt
[9] Elsa Sequeira Santos em anotação ao artigo 1083º, in Ana Prata (Coord.) Código Civil Anotado, volume II, 2017, Almedina, pág. 1322 e seg.
[10] Cfr. ibidem, pág 1322 e seg.
[11] Ac. da RP de 7/6/2021, proc. 2942/18.8T8PRT.P1, in dgsi.pt
[12] Ibidem, pág. 1302
[13] Elsa Sequeira Santos, Idem, pág .1302
[14] Ac. RE de 21-2-2008: Proc. 3132/07-3.dgsi.Net, citado em anotação ao artigo 1072º, in Abílio Neto, Código Civil Anotado, 20ª Edição, 2018, Ediforum, pág 1008
[15] Ac. RP de 10/10 2011, proc. 720/09.4TBGDM.P1, in dgsi.pt
[16] Edgar Valles, Arrendamento Urbano Constituição e Extinção, Almedina, 2019, pág. 126
[17] Ac. RE de 28/5/2015, proc. 533/11.3TBPTG.E1, in dgsi.pt
[18] V., ainda, Ac. da RL de 30/6/2005, proc. 6901/2005-6, in dgsi.pt onde se decidiu “I – A doença do arrendatário, como circunstância impeditiva do direito à resolução do contrato de arrendamento por falta de residência permanente, deve revestir as seguintes características: gravidade que obrigue ao afastamento do local arrendado; regressividade, no sentido de existir forte probabilidade de o tratamento ser decisivo à recuperação; não se tratar de doença crónica; e ser o único motivo que levou ao afastamento do local. II -Daí que não baste um estado patológico qualquer para integrar o conceito de doença (…) tornando-se necessário que a doença, pela sua natureza e circunstâncias da sua terapêutica, torne impossível a habitação ou residência permanente no arrendado. III - A doença, justificativa da ausência do inquilino do arrendado e impeditiva da resolução do contrato do arrendamento, não deverá, assim, ser definitivamente impeditiva do regresso do inquilino, só se justificando essa ausência desde que seja imposta por necessidade de tratamento da doença e pelo tempo que esse tratamento durar”.
[19] Ac. RP de 24/11/2015, proc. 1805/13.8TJPRT.P1, in dgsi.pt
[20] Jorge Miranda, Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, volume I, Universidade Católica Editora, pág. 166 e seg
[21] Ibidem, pág. 167
[22] Acs da RL de 12 de novembro de 2015, processo n.º 894/13.0TVLSB.L1-6, e de 09-12-2015 processo 396/14.7TVLSB-A.L1-2 (OLINDO GERALDES), onde se considerou que “O regime transitório, fixado no Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU), continua a manter-se em vigor enquanto subsistirem os contratos de arrendamento para habitação celebrados antes ou durante a vigência do Regime do Arrendamento Urbano, aplicando-se aos contratos de arrendamento para habitação posteriores o regime previsto no art. 1106.º do Código Civil” in dgsi.net.
[23] Jorge Miranda, Rui Medeiros, idem, pág. 958 e seg
[24] Ibidem, pág 961
[25] Ibidem, pág 961