Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
565/13.7TBLSD-C.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MENDES COELHO
Descritores: ALTERAÇÃO DA REGULAÇÃO DE RESPONSDABILIDADES PARENTAIS
CONVÍVIO ENTRE AVÓS E OS NETOS
PODERES DO MINISTÉRIO PÚBLICO
Nº do Documento: RP20200924565/13.7BLSD-C.P1
Data do Acordão: 09/24/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Face à regra específica de legitimidade prevista no art. 42º nº1 do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, a avó paterna do menor, não sendo pessoa a quem a criança tenha sido confiada, não tem legitimidade para requerer a alteração da regulação do exercício das responsabilidades parentais relativas ao mesmo.
II – Se tal avó entende que algo se passa com a convivência, educação, saúde ou formação do menor que carece de ser analisado e/ou acautelado por via do tribunal, pode perfeitamente, ou deve mesmo, comunicar os dados que tem sobre isso ao Ministério Público, que, face à competência que lhe atribui o art. 17º nº2 do diploma supra referido, indagará e avaliará a situação da criança e, representando o seu interesse, interporá ou não a competente providência.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº565/13.7TBLSD-C.P1
(Comarca do Porto Este – Tribunal de Família e Menores de Paredes – Juiz 3)

Relator: António Mendes Coelho
1º Adjunto: Joaquim Moura
2º Adjunto: Ana Paula Amorim
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
I Relatório
B…, avó paterna do menor D…, nascido a 7/12/2012, veio intentar contra C…, progenitora daquele, acção de alteração do regime do exercício das responsabilidades parentais relativo a tal menor, pedindo que lhe seja atribuída a sua guarda.
Alegou para tal, em síntese, que a Requerida, após a regulação do exercício daquelas responsabilidades parentais – que teve lugar a 4/6/2013 no âmbito do processo de divórcio por mútuo consentimento que dissolveu o casamento dos progenitores, em sede do qual ficou homologado por sentença que o menor ficou confiado à guarda e cuidados da mãe –, obsta a que o menor tenha acesso a si e tenha consigo o relacionamento de proximidade que com ele teve desde o nascimento (artigos 6º a 23º do requerimento inicial) e, além disso, que a Requerida negligencia o menor a nível dos cuidados básicos, nomeadamente de higiene, saúde, alimentação e segurança, o que leva a que o mesmo revele problemas cognitivos e de linguagem e se encontre num nível de desenvolvimento muito abaixo do que seria esperado para a sua idade (artigos 24º a 35º do requerimento inicial).
Citada a Requerida nos termos e para os efeitos do art. 42º nº3 do RGPTC (Regime Geral do Processo Tutelar Cível), por esta foram apresentadas as alegações constantes de fls. 17 e 18, em sede das quais impugna todos os factos alegados pela Requerente para fundamentar a sua pretensão de alteração da regulação das responsabilidades parentais; além disso, ao alegado pela Requerente contrapôs, nomeadamente, que “sempre cuidou e cuida do seu filho com muito afinco, dedicação e amor”, que “nunca obstou o contacto com a requerente, e actualmente o menor tem contactos e visita a avó paterna com regularidade, inclusive, no Natal de 2019 a requerida e menor presentearam a mesma com uma visita e prenda de Natal”, que “o menor está a estudar, frequenta o 1º ano, na Escola Básica E…, é um excelente aluno, graças ao empenho e dedicação diário da mãe, ora requerida” e que o mesmo “é assíduo, pontual e gosta de estudar e não tem problemas cognitivos ou de linguagem”, juntando sobre estes pontos um documento emitido pela respectiva escola (onde, designadamente, se diz que o menor “conseguiu um bom aproveitamento em todas as áreas”) e um outro documento, este emitido pela professora titular de turma (onde, designadamente, se diz que “o aluno é assíduo e pontual, não apresentando faltas até à data”, “apresenta-se sempre limpo e asseado, dentro dos parâmetros normais de higiene e conforto”, “traz sempre lanche variado para os intervalos, almoçando regularmente na escola”, “é participativo e interessado revelando boas capacidades de aprendizagem, o que se reflecte nos seus resultados escolares”, “é uma criança amiga dos colegas, relacionando-se bem com os seus pares e com os adultos” e que “a encarregada de educação, até à data, esteve sempre presente nas reuniões para as quais foi convocada e vem à escola com bastante frequência para solicitar informação sobre o percurso escolar do seu educando”); alegou ainda, naquela linha de contraposição com o alegado pela Requerente, que ela e o menor “residem sozinhos, numa habitação modesta, mas com condições dignas, estando o pai do menor emigrado no estrangeiro”, que “o menor tem uma vida normal, inserido na comunidade local, escolar, familiar e social”, que “os avós maternos apenas convivem com o menor ao fim de semana de visita, como convive a avó paterna” e que “o menor durante a semana tem um horário escolar, tem um horário para as suas refeições, tem um horário para o seu descanso e só tem mais tempo disponível durante o fim-de-semana para o convívio/visita aos avós”.
Foi aberta vista ao MºPº, tendo pelo Sr. Procurador da República sido defendido (referindo o disposto no art. 42º do RGPTC) que a Requerente não acolhe legitimidade para instaurar a presente acção de alteração da regulação do exercício das responsabilidades parentais.
De seguida foi proferido despacho em que, julgando-se verificada a excepção dilatória da ilegitimidade da Requerente, se indeferiu liminarmente o requerimento inicial.
De tal despacho veio a Requerente interpor recurso, tendo na sequência da respectiva motivação apresentado as seguintes conclusões, que se transcrevem:

I) A recorrente enquanto avó-paterna do menor D… tem legitimidade para por si só requerer a regulação das responsabilidades parentais.

II) A recorrente é ascendente da criança a que os autos se reportam.

III) Enquanto ascendente da criança tem direito à iniciativa processual que o artigo 17º, nº 1 do Regulamento Geral do Processo Tutelar Cível (RGPTC) lhe confere.

IV) O legislador certamente não se expressou de forma correta na previsão do artigo 43º, do mesmo RGPTC.

V) Há que interpretar esta disposição de forma corretiva e harmonizá-la com os demais princípios informadores deste tipo de processos, em particular com o disposto no seu citado artigo 17º, do RGPTC.

VI) Mesmo no sentido se considerar que há uma lacuna que careça de ser correctivamente integrada.

VII) Os superiores interesses da criança impõem que se considere que a avó-recorrente tenha legitimidade e direito à iniciativa processual para requerer a necessária regulação das responsabilidades parentais da criança.

VIII) Decidindo de forma diferente o Meritíssimo Juiz “a quo” violou o disposto nos artigos 17º e 43º do Regulamento Geral do Processo Tutelar Cível (RGPTC), bem como a previsão dos artigos 9º e 10º do Código Civil.

IX) Merecendo o douto Despacho-Sentença “sub judice” ser revogado, considerando-se que a recorrente tem direito à iniciativa de requerer e promover a tão necessária regulação das responsabilidades parentais do menor.

A Requerida apresentou resposta às alegações da Requerente (fls. 34 dos presentes autos), nas quais pugna pela manutenção da decisão recorrida.
O Mº Pº, através do Sr. Procurador da República (fls. 39 a 43 dos presentes autos), apresentou também resposta ao recurso interposto pela Requerente, defendendo igualmente a manutenção da decisão recorrida.

Foram dispensados os vistos nos termos previstos no art. 657º nº4 do CPC.
Considerando que o objecto do recurso – sem prejuízo de eventuais questões de conhecimento oficioso – é delimitado pelas suas conclusões (arts. 635º nº4 e 639º nº1 do CPC), há apenas uma única questão a tratar: saber se a Requerente tem legitimidade para requerer a alteração da regulação do exercício das responsabilidades parentais.
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II – Fundamentação
Os dados a ter em conta são os acima alinhados no relatório.
Vamos ao tratamento da questão enunciada.
O art. 42º nº1 do RGPTC (Regime Geral do Processo Tutelar Cível, aprovado pela Lei 141/2015, de 8 de Fevereiro) dilucida as situações em que pode haver lugar a nova regulação do exercício das responsabilidades parentais, assim como a legitimidade para a requerer.
Prevê-se nele o seguinte: “Quando o acordo ou a decisão final não sejam cumpridos por ambos os pais, ou por terceira pessoa a quem a criança haja sido confiada, ou quando circunstâncias supervenientes tornem necessário alterar o que tiver sido estabelecido, qualquer um daqueles ou o Ministério Público podem requerer ao tribunal, que no momento for territorialmente competente, nova regulação do exercício das responsabilidades parentais”.
Este é o preceito aplicável ao caso dos autos, pois, como se vê do apenso em que foi proferida a decisão que existe (no caso, homologatória de acordo dos progenitores), está em causa uma regulação que ocorre na sequência de divórcio por mútuo consentimento dos progenitores, embora tal preceito, como expressamente se prevê no nº1 do art. 43º do mesmo diploma – e seja meridianamente de perceber, pois estão em causa as mesmas questões e os mesmos interesses ligados à criança – também seja igualmente aplicável à regulação do exercício das responsabilidades parentais de filhos de cônjuges separados de facto (portanto, pessoas ainda unidas pelo casamento mas que já não fazem vida em comum), de filhos de progenitores não unidos pelo matrimónio e ainda de crianças apadrinhadas civilmente quando os padrinhos cessem a vida em comum (o regime jurídico do apadrinhamento civil consta da Lei 103/2009, de 11 de Setembro).
Como decorre daquele referido art. 42º nº1, a nova regulação pode ser accionada nos seguintes casos:
- em caso de incumprimento do acordo (devidamente homologado judicialmente) ou da decisão final (decisão judicial que não integra a homologação de um acordo e antes consiste numa decisão de mérito autónoma do tribunal) que já existe, ocasionado por parte dos pais ou por terceira pessoa a quem a criança haja sido confiada;
- quando circunstâncias supervenientes tornem necessário alterar o que tiver sido estabelecido (no acordo homologado ou decisão final proferida que já existe).
Por outro lado, como dali também expressamente decorre, têm legitimidade para requerer a alteração, em qualquer daqueles casos, qualquer uma daquelas pessoas – portanto, qualquer um dos pais ou a terceira pessoa a quem a criança haja sido confiada – ou o Ministério Público.
Ora, como dos autos em que foi proferida a decisão de regulação claramente se evidencia, em tal regulação, além do menor, apenas constam como sujeitos obrigados à mesma os seus progenitores, sendo que por via dela o menor foi confiado à guarda e cuidados da mãe (a Requerida nos presentes autos).
Portanto, a Requerente, embora avó paterna, não sendo pessoa a quem a criança tenha sido confiada, não se integra em nenhuma daquelas pessoas.
Defende porém a Requerente/Recorrente que, como ascendente, deve ser-lhe reconhecida legitimidade para requerer a alteração à regulação por via do disposto no art. 17º nº1 do RGPTC, devendo pois a supra referida previsão ser interpretada de forma correctiva e de acordo com o conteúdo deste preceito.
Preceitua-se neste art. 17º nº1, com a epígrafe “Iniciativa processual” e integrado nas “disposições processuais comuns” do processo tutelar cível (arts. 12º a 33º), que “Salvo disposição expressa e sem prejuízo do disposto nos artigos 52º e 58º, a iniciativa processual cabe ao Ministério Público, à criança com idade superior a 12 anos, aos ascendentes, aos irmãos e ao representante legal da criança”.
Mas não lhe pode ser reconhecia razão, pois os termos da inserção de tal norma no todo do diploma em causa e o seu próprio teor assim o ditam.
Efectivamente, inserindo-se tal norma, como já se referiu, nas “disposições processuais comuns”, o seu natural campo de aplicação é o dos procedimentos tutelares cíveis cujos termos e tramitação não sejam contrariados pelas regras especiais relativas a cada um dos processos especificamente previstos no mesmo diploma [os quais constam regulados sob o seu capítulo III, Secções I, II, III, IV, V, VI, VII, VIII e IX, artigos 34º e sgs., e são os seguintes: “Regulação do exercício das responsabilidades parentais e resolução de questões conexas” (arts. 34º a 44º-A), “Alimentos devidos a criança” (arts. 45º a 47º), “Da efectivação da prestação de alimentos” (art. 48º), “Entrega judicial de criança” (arts. 49º a 51º), “Inibição e limitações ao exercício das responsabilidades parentais” (arts. 52º a 59º), “Averiguação oficiosa da maternidade ou da paternidade” (arts. 60º a 64º), “Processos regulados no Código de Processo Civil” (art. 65º), “Apadrinhamento civil” (art. 66º) e “Acção tutelar comum” (art. 67º)].
Aliás, consentaneamente com a sua natureza de disposição processual “comum”, a mesma começa logo por excepcionar à regra de legitimidade ou iniciativa processual que ali prevê – ao ali dizer logo no seu início “Salvo disposição expressa (…)” – a existência de disposição expressa que regule, num concreto processo, tal legitimidade ou iniciativa de forma diferente.
Diga-se aliás que esta é técnica legislativa bastante seguida pelo legislador, como se pode ver, por exemplo, no regime dos incidentes da instância em processo civil (vide art. 292º do CPC) e no regime dos procedimentos cautelares (vide art. 376º nº1 do CPC), onde expressamente se prevê a não aplicação de disposições gerais de tais regimes quando há regulação especial e própria de cada um daqueles concretos incidentes ou procedimentos cautelares.
Portanto, aquele próprio art. 17º nº1 afasta o seu regime para ser aplicado aquele que esteja previsto na disposição expressa que ressalva e que confere regra específica de legitimidade, diferente da que ali prevê.
O já referido art. 42º nº1 integra aquela disposição expressa que regula de forma própria e diferente a legitimidade ou iniciativa processual, prevendo uma regra especifica de legitimidade para requerer a alteração à regulação do exercício das responsabilidades parentais.
E faz todo o sentido aquela norma a prever tal especifica legitimidade, pois estando em causa a alteração de uma regulação já existente, além do Ministério Público – a quem especialmente compete representar as crianças em juízo, requerendo acções de regulação e defesa dos seus direitos e usando de quaisquer meios judiciais necessários à defesa dos seus direitos e superior interesse, como expressamente se prevê no art. 17º nº2 do RGPTC –, só faz sentido possibilitar a iniciativa da alteração a quem figura como vinculado na regulação.
Ora, face a tal norma, como já vimos, não pode ser reconhecida legitimidade à Requerente, pois a mesma não se integra em nenhuma das pessoas ali previstas.
De resto, se a Requerente, como avó paterna do menor, entende que algo se passa com a convivência, educação, saúde ou formação deste que carece de ser analisado e/ou acautelado por via do tribunal, pode perfeitamente, ou deve mesmo, comunicar os dados que tem sobre isso ao Ministério Público, que, face à competência que lhe atribui o art. 17º nº2 e que já se referiu – e como anota o Sr. Procurador da República nas suas alegações de resposta ao recurso [citando o Sr. Procurador da República Pedro Faria (in “Questões do Regime Geral do Processo Tutelar Cível”, Ebook do CEJ, 2019] – “indagará e avaliará a situação da criança e, representando o seu interesse, interporá ou não a competente providência”.

Na sequência de tudo quanto se veio de referir, é de manter a decisão recorrida, com a consequente improcedência do recurso.
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Sumário (da exclusiva responsabilidade do relator – art. 663 º nº7 do CPC):
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III – Decisão
Por tudo o exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente.
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Porto, 24 de Setembro de 2020
Mendes Coelho
Joaquim Moura
Ana Paula Amorim