Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
953/11.3T2AVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: CAIMOTO JÁCOME
Descritores: CONTRATO DE EMPREITADA
RESTITUIÇÃO DE VEÍCULO
LOCATÁRIA
Nº do Documento: RP20150202953/11.3T2AVR.P1
Data do Acordão: 02/02/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Contrato bilateral ou sinalagmático é o que gera obrigações recíprocas a cargo de ambos os contraentes. Essas obrigações encontram-se numa relação de correspectividade e interdependência. Exemplo de contrato bilateral ou sinalagmático é o contrato de prestação de serviços, na modalidade de empreitada.
II - A entrega de uma viatura acidentada para reparação numa oficina, por acordo com o dono desta, integra um contrato de empreitada e não um contrato misto de empreitada e depósito, sendo o depósito da viatura uma mera obrigação acessória e complementar por parte do empreiteiro.
III - Enquanto locatária do veículo em causa (locação financeira ou ALD), a autora, colocada na posição de um normal adquirente, pode utilizar todos os instrumentos de tutela deste, incluindo o direito a ordenar a reparação do veículo e a pedir a restituição da coisa.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 953/11.3T2AVR.P1 - APELAÇÃO

Relator: Desem. Caimoto Jácome (1509)
Adjuntos: Desm. Macedo Domingues
Desem. Oliveira Abreu

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

1-RELATÓRIO

B…, S.A., com sede na …, freguesia …, concelho de Aveiro, intentou acção declarativa, sob a forma de processo comum sumário, contra C…, residente na Rua …, …, …, Aveiro, pedindo a condenação deste a restituir-lhe o veículo que identifica no artigo 4º da petição inicial e a pagar-lhe a quantia de €10.000,00, a título de lucros cessantes pelo facto de ter estado impedida de usar o dito veículo na sua actividade comercial, pelo menos, durante quatro anos; bem assim a quantia diária de €25,00, a contar da data da citação até que concretize a restituição do dito veículo.
Alega, em síntese, que é uma sociedade comercial, que se dedica ao comércio e aluguer de veículos sem condutor e que o réu dedica-se à reparação de veículos automóveis.
Mais alega que à semelhança do que já tinha acontecido anteriormente, no dia 28/11/2003, entregou na oficina do réu o veículo, da marca Toyota, marca …, com a matrícula ..-..-VC, da sua propriedade, para que fosse efectuada, a 19/12/2003, uma peritagem, por o veículo se encontrar acidentado. Algum tempo depois da realização da peritagem, a autora deu ordem de reparação do veículo ao réu. Acontece que, por razões desconhecidas e nunca explicadas pelo réu, este nunca procedeu à reparação do veículo, e muito menos o restituiu à autora, retendo-o na sua posse sem qualquer motivo válido para o fazer, o que se verifica até aos dias de hoje.
Por causa desta situação, a autora ficou privada do uso do veículo no exercício da sua actividade comercial, pelo menos durante 4 anos. Com efeito, durante este período, e considerando que o tipo de veículo em causa tem uma taxa de utilização quase diária, a autora deixou de auferir um lucro, no total de €10.000,00 (cerca de €2.500,00 ano).
Citado, o réu contestou (fls 11-16), alegando que só não entregou a viatura por a autora não lhe ter pago a reparação. Aliás, o réu tem conhecimento que a companhia de seguros procedeu ao pagamento da reparação à autora e o veículo está reparado há anos, como a autora bem sabe.
O demandado deduziu reconvenção (procedeu à reparação do veículo) pedindo a condenação da autora a pagar-lhe a quantia de €4.900,84, ou seja, o valor da reparação que foi arbitrado pela companhia de seguros, quantia esta acrescida de juros de mora, a contar da citação até integral e efectivo pagamento.
Houve resposta da autora/reconvinda, na qual alega que o réu, pelo menos até à propositura da acção, não tinha reparado o veículo em causa, nem o restituiu, como lhe foi solicitado por várias vezes, nunca lhe comunicou que o veículo estava reparado, nunca enviou a respectiva factura, nunca solicitou o pagamento do custo da reparação. Mais refere que, em meados de 2007, perante as suas insistências, o réu pediu a esta determinado valor, que lhe foi entregue e cujo comprovativo protestou juntar.
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Saneado e instruído o processo, após julgamento, foi proferida sentença, na qual se decidiu (dispositivo):
“Nestes termos, de acordo com o supra exposto, decido:
a)julgar improcedente a acção, por não provada e, em consequência, absolver o réu C… dos pedidos formulados pela autora B…, S.A. (actualmente massa insolvente desta);
b)julgar improcedente a reconvenção, por não provada e, em consequência, absolver a autora do pedido formulado pelo réu.
»Custas da acção pela autora e da reconvenção pelo réu - cfr. artigo 527º, n.º 1 e 2 do Código de Processo Civil, por referência ao artigo 6º, n.º1 do Regulamento das Custas Processuais e Tabela I-A anexa ao dito Regulamento.
» Valor da acção: o estabelecido no despacho saneador.”.
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Inconformada, a autora apelou da sentença tendo formulado, na sua alegação, as seguintes conclusões:
1. A Recorrente não se conforma com a decisão que a julgou parte ilegítima para intentar a presente ação e pedir a condenação do Recorrido a restituir-lhe um veículo de que é proprietária e que se encontra na garagem daquele para reparação, desde 2003, bem como a pagar-lhe lucros cessantes pelo facto de estar impedida de usar o veículo na sua atividade comercial, assim como uma determinada quantia por cada dia de atraso na reparação e entrega da viatura.
2. Em primeiro lugar, porque considera que a data que deve ser tida por referência a fim de aferir da sua qualidade de proprietária do veículo em questão nos autos é a data da propositura da ação, e não a data da celebração do contrato de prestação de serviços/da ordem de reparação. O que apenas pode levar a concluir que tem legitimidade para pedir a condenação do Recorrido a entregar-lhe a viatura, já que, a essa data, já a havia adquirido, detendo, assim, a sua propriedade.
3. Em segundo lugar, porque considera que não foi tomado em conta o regime da locação financeira, verificando-se, deste modo, erro na determinação da norma aplicável.
4. A Recorrente, na data em que ordenou ao Recorrido a reparação, estava incumbida de manter e conservar o veículo, porquanto assumia a posição de locatária no contrato que havia celebrado com a D…, S.A., aqui se inserindo a responsabilidade pela perda ou deterioração do mesmo (15.º e 10.º n.º 1 als. e) e f) do Decreto-Lei n.º 149/95 de 24/06).
5. Entre a Recorrente e a D…, S.A., existia um contrato de locação financeira, na modalidade de ADL (Aluguer de Longa Duração), através do qual a segunda concedeu à primeira o gozo temporário e retribuído do bem móvel em causa.
6. À data em que o Recorrido aceitou receber o veículo na sua garagem para reparação, a Recorrente era locatária do veículo, pelo que, embora não sua proprietária (mas sim a locadora), assumia os deveres de um verdadeiro proprietário (despesas de transporte, montagem, instalação e reparação do bem locado, bem como despesas referentes ao seguro, de que se torna tomador).
7. Tendo celebrado com o Recorrido um válido contrato de prestação de serviços, e perante o seu incumprimento, toda a legitimidade assistia à Recorrente para apresentar uma ação de condenação do mesmo a restituir-lhe a viatura que o Recorrido estava obrigado a reparar por força do contrato celebrado entre as partes.
8. O objecto do contrato de prestação de serviços é o resultado do trabalho, neste caso, a reparação da viatura. A qual nunca se concluiu.
9. O tribunal a quo decidiu, e bem, que o Recorrido não poderia ter invocado a exceção de não cumprimento para justificar a retenção do veículo, por não ter concluído a reparação (sendo o crédito daí decorrente inexigível).
10. Contudo, errou ao considerar que a propriedade da Recorrente não se verifica à data que, supostamente, releva, pelo que a mesma apenas pode ser parte ilegítima na ação. Decisão com a qual a Recorrente não concorda, pois encontra-se provada a existência e a validade do contrato de prestação de serviços, encontra-se provado o incumprimento do contrato por parte do Recorrido (o qual não tem qualquer legitimidade para reter o veículo), encontra-se provado que a Recorrente se tornou, antes da propositura da ação, proprietária do veículo e que, na data em que o mandou reparar, havia alugado o veículo à D…, S.A., com a qual havia celebrado um ADL... Ora depois de todos estes factos provados, como pode a Recorrente carecer de legitimidade para exigir a restituição?
11. Atente-se que, não foi tido em consideração, na sentença recorrida, o facto de que, à data em que foi celebrado o contrato de prestação de serviços, a Recorrente era locatária do veículo, assumindo os deveres de conservação do bem (respondendo pelo risco de perda ou deterioração) como um verdadeiro proprietário. No contrato de locação financeira, o locatário, ainda que não seja o verdadeiro proprietário, age como tal. Assim se explica o facto de poder reagir contra o comprador ou empreiteiro no caso do bem locado apresentar vícios (cfr. art. 12.ºdo DL). Ainda que apenas assumisse a posição de locatária, isso não lhe retira o direito de exigir a reparação e a restituição do veículo.
12. Além de que, posteriormente, adquiriu a propriedade do veículo à locadora, o que logrou demonstrar. Portanto, à data em que intentou a ação (2011), já era a proprietária do veículo, tendo, desse modo, legitimidade para deduzir o pedido de condenação.
13. E é a esse período que nos devemos reportar (data da apresentação da ação), para efeitos de aferir da propriedade, ou não, da Recorrente. Sendo proprietária à data em que propôs a ação, é-lhe legítimo exigir a sua devolução, face à impossibilidade de concretização da reparação – por facto meramente imputável ao Recorrido (é de sua vontade não concluir o trabalho).
14. E ainda que assim não se entenda, mas sim que a data a reportar será a da celebração do contrato da prestação de serviços, deve ser aplicado o regime da locação financeira, detendo, ainda assim, a Recorrente toda a legitimidade para exigir do Recorrido a reparação do veículo, por, enquanto locatária, usufruir dos mesmos direitos que o locador.
15. Já no que respeita ao ónus da prova, importa salientar os artigos 798.º e 799.º do Código Civil, onde se encontra estabelecido que incumbe ao devedor — que falta culposamente ao cumprimento da obrigação e que assim se torna responsável pelo prejuízo que causar — provar que a falta de cumprimento não procede de culpa sua. Ora, transpondo isto para o caso sub judice, significa que competia ao Recorrido demonstrar que não teve culpa no incumprimento do contrato. O que não demonstrou.
16. Por sua vez, a Recorrida conseguiu provar ser a proprietária do veículo à data em que apresentou a ação. E demonstrou ser locatária na data em que deu a ordem de reparação. Concluindo-se, assim, que a mesma logrou provar todos os factos que alegou.
17. Por fim, é de referir que, sendo a Recorrente proprietária do veículo e possuindo, como tal, legitimidade para requerer a restituição da viatura, por ser quem de direito, tem também legitimidade para requerer o pagamento dos lucros cessantes, por todo o período em que não pôde utilizar o veículo na sua actividade comercial. Pelo menos, desde que do mesmo se tornou proprietária, ou seja, desde Janeiro de 2006 até à presente data. Já lá vão oito anos...
Nestes termos, deverá ser dado inteiro provimento ao presente recurso, e, consequentemente, ser revogada a sentença de que se recorre, devendo a mesma ser substituída por outra que condene o Recorrido a restituir o veículo à Recorrente e a pagar os lucros cessantes pela inviabilização de utilização da viatura de que a Recorrente é legítima proprietária.

Na resposta à alegação, o apelado defende o decidido.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

2- FUNDAMENTAÇÃO

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - arts. 684º, nº 3, e 685º-A, nº 1 e 3, do C.P.Civil (actualmente arts. 635º, nº 4, e 640º, nºs 1 e 2).

2.1- OS FACTOS

Está provada a seguinte matéria de facto:
1. A autora é uma sociedade comercial por quotas que se dedica ao comércio e aluguer de veículos sem condutor, tendo sido, conforme informação de folhas 46, declarada insolvente por sentença proferida a 14 de maio de 2012.
2. C… é um empresário em nome individual que se dedica à reparação de veículos automóveis.
3. Na sequência do exercício da actividade comercial de ambos, antes do ano de 2003, a autora entregava na oficina do réu alguns veículos da sua frota para que este procedesse à sua reparação, quando tal fosse necessário.
4. No dia 28/11/2003, a autora entregou na oficina do réu, o veículo da marca Toyota, modelo …, com a matrícula ..-..-VC, que se encontrava acidentado, com vista a que o mesmo fosse submetido a uma peritagem.
5. A aludida peritagem foi efectuada a 19/12/2003.
6. Com data de 22/01/2004, foi elaborado o relatório de folhas 19-23, que orçou o custo da reparação do veículo no montante de 4.900,84.
7. Em conformidade com a relação de peças e mão-de-obra de folhas 18, foi indicada como data de início da reparação o dia 26/01/2004 e como período necessário para a reparação 9 dias.
8. A autora deu ordem de reparação do veículo ao réu.
9. O réu iniciou a reparação do veículo.
10. A reparação do veículo não se encontra finda, falta, ainda, concretizar a pintura e a montagem final.
11. Durante o ano de 2004, a autora perguntou ao réu, pelo menos três/quatro vezes se a reparação do veículo já estaria concluída.
12. Por escrito de folhas 135, o veículo acima identificado foi alugado à autora pela D…, S.A., entre o período de 21/07/2004 a 19/08/2004.
13. O veículo encontra-se registado a favor da D1..., S.A., conforme certidão de folhas 141.
14. Pela factura n.º …….., com data de 19/01/2006, de folhas 139, o veículo foi adquirido à D1…, S.A., pela autora, pelo preço de € 8.499,27, com IVA incluído.
15. Na sequência do acidente em que esteve envolvido o veículo acima identificado e da peritagem referida em 4. e 5., a Companhia de Seguros E… liquidou à autora, a 9/03/2004, a quantia global de €4.268,35, sendo €4.118,35, para a reparação sem IVA, e €150,00, para a paralisação, conforme recibo de folhas 87.
16. Para além do mais, o réu emitiu a favor da autora:
- no ano de 2003, a factura n.º …., com data de 24/03/2003, referente ao veículo ..-..-RZ, no valor de €1.388,68, de folhas 150; a factura n.º …., com data de 15/07/2003, referente ao veículo com a matrícula ..-..-NU, no valor de €389,55, de folhas 145; a factura n.º …., com data de 15/07/2003, referente ao veículo ..-..-SU, no valor de €421,82, de folhas 147; a factura n.º …., com data de 15/07/2003, referente ao veículo ..-..-RP, no valor de €101,64, de folhas 146; a factura n.º …., com data de 15/07/2003, referente ao veículo ..-..-RN, no valor de €172,04, de folhas 148; e a factura n.º …., com data de 24/10/2003, referente ao veículo ..-..-QN, no valor de €943,41, de folhas 144;
- no ano de 2004, a factura n.º …., com data de 5/02/2004, referente ao veículo ..-..-UZ, no valor de €388,87, de folhas 143; a factura n.º …., com data de 21/07/2004, referente ao veículo ..-..-VC, no valor de €35,13, de folhas 149; a factura n.º …., com data de 22/07/2003, referente ao veículo ..-..-TN, no valor de €1.560,31, de folhas 151; a factura n.º …., com data de 22/07/2003, referente ao veículo ..-..-TN, no valor de €921,27, de folhas 152; a factura n.º …., com data de 22/07/2003, referente ao veículo ..-..-VC, no valor de €260,01, de folhas 153; a factura n.º …., com data de 22/07/2003, referente ao veículo ..-..-VC, no valor de €109,00, de folhas 154; a factura n.º …., com data de 22/07/2003, referente ao veículo ..-..-TT, no valor de €355,32, de folhas 155; a factura n.º …., com data de 22/07/2003, referente ao veículo ..-..-VR, no valor de €201,70, de folhas 156; e a factura n.º …., com data de 22/07/2003, referente ao veículo ..-..-TL, no valor de €259,05, de folhas 142.
17. Por seu turno, a autora emitiu a favor do réu:
- a factura n.º ………, com data de 05/01/2004, referente ao aluguer de duas viaturas, com as matrículas ..-..-VC e ..-..-TT, para o condutor ali indicado F…, no valor de €341,71, de folhas 118, tendo já sido emitido o recibo respectivo com o n.º …., com data de 31/05/2004, de folhas 117;
- a factura n.º ………, com data de 05/04/2005, referente ao aluguer de uma viatura, com a matrícula ..-..-ZP, para o condutor ali indicado, o aqui réu, no valor de €38,28, de folhas 120, tendo já sido emitido o recibo respectivo com o n.º ….., com data de 30/04/2005, de folhas 119;
- a factura n.º ………, com data de 16/07/2005, referente ao aluguer de uma viaturas, com a matrícula ..-..-XP, para o condutor ali indicado, o aqui réu, no valor de €375,22, de folhas 122, tendo já sido emitido o recibo respectivo com o n.º ….., com data de 20/07/2005, de folhas 121; Comarca do Baixo Vouga Aveiro - Juízo de Média e Peq. Instância Cível - Juiz 2 Pr. Marquês de Pombal - ….-… Aveiro Telef: ……… Fax: ……… Mail: aveiro.sj@tribunais.org.pt Proc.Nº 953/11.3T2AVR
- as facturas n.ºs ………, com data de 04/08/2005, referente ao aluguer de uma viatura, com a matrícula ..-..-XP, para o condutor ali indicado, o aqui réu, no valor de €88,68, de folhas 124; ………, com data de 13/10/2005, referente ao aluguer de uma viatura, com a matrícula ..-..-XQ, para o condutor ali indicado, o aqui réu, no valor de €120,98, de folhas 125; ………, com data de 18/10/2005, referente ao aluguer de uma viatura com a matrícula ..-..-XQ, para o condutor ali indicado, o aqui réu, no valor de €11,57, de folhas 126; tendo já sido emitido o recibo único respectivo com o n.º ….., com data de 14/11/2005, de folhas 123;
- as facturas n.ºs ………, com data de 17/02/2006, referente ao aluguer de duas viaturas, com as matrículas ..-AD-.. e ..-..-ZQ, para o condutor ali indicado, o aqui réu, no valor de €218,41, de folhas 128; e ………, com data de 17/02/2006, referente ao aluguer de uma viatura, com a matrícula ..-AD-.., para o condutor ali indicado, o aqui réu, no valor de €356,76, de folhas 129; tendo já sido emitido o recibo único respectivo com o n.º ….., com data de 16/05/2006, de folhas 127;
- a factura n.º ………, com data de 10/10/2006, referente ao aluguer de uma viatura com a matrícula ..-BV-.., para o condutor ali indicado, o aqui réu, no valor de €289,01, de folhas 130; tendo já sido emitido o recibo respectivo n.º ….., com data de 22/11/2006, de folhas 131.
18. Do extracto da conta corrente do réu, junto da autora, de folhas 132, resulta um saldo a favor do réu, no valor de €1502,12.

2.2 - O DIREITO

Assente a matéria de facto, analisemos o direito.
Contrato bilateral ou sinalagmático é o que gera obrigações recíprocas a cargo de ambos os contraentes. Essas obrigações encontram-se numa relação de correspectividade e interdependência (M.J. Almeida Costa, Direito das Obrigações, 7ª ed., pág. 306 e segs.).
Exemplo de contrato bilateral ou sinalagmático é o contrato de prestação de serviços, na modalidade de empreitada - arts. 1154º, 1155º e 1207º, do Código Civil (CC).
A noção de contrato de empreitada é-nos dada pelo artº 1207º, do C. Civil: "...o contrato pelo qual uma das artes se obriga em relação à outra a realizar certa obra, mediante um preço".
Trata-se, como referido, de uma espécie de contrato de prestação de serviço (cfr. artº 1154º, do CC), particularizando-se pela natureza do seu objecto e pela essencialidade da sua onerosidade.
O contrato de empreitada caracteriza-se, pois, da seguinte forma: a) pela existência da obrigação de uma das partes proporcionar à outra certo resultado do seu trabalho que executa com autonomia em relação ao credor; b) que esse resultado se traduza na realização de uma obra; c) que tenha como contrapartida um preço.
Como contrato que é, esse negócio jurídico deve ser pontualmente cumprido, ou seja, o cumprimento deve coincidir ponto por ponto com a prestação a que o devedor se encontra adstrito. Só pode modificar-se ou extinguir-se (resolução, revogação ou denúncia) por mútuo consentimento dos contraentes ou nos casos admitidos na lei (art. 406º, nº 1, do C.Civil).
Decorre do artº 762º, nº 1, do CC, que o devedor cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que está vinculado.
O empreiteiro deve executar a obra em conformidade com o que foi convencionado, e sem vícios que excluam ou reduzam o valor dela, ou a sua aptidão para o uso ordinário ou previsto no contrato (artº 1208º, do CC).
Atendendo ao efeito ou resultado, existem três formas de não cumprimento: a falta de cumprimento ou incumprimento definitivo, a mora ou atraso no cumprimento e o cumprimento defeituoso (A. Varela, Das Obrigações em Geral, 9ª ed., II, págs. 62 e segs., e M.J. Almeida Costa, Direito das Obrigações, 7ª ed., págs. 927 e segs., I. Galvão Teles, Direito das Obrigações, 7ª ed., p. 299 e segs.).
A falta de cumprimento ocorre quando a prestação deixou de ser executada no devido tempo e já não pode ser cumprida e por se tornar impossível (arts. 801º e 802º, do CC).
O cumprimento defeituoso traduz-se numa forma de violação da obrigação (violação contratual positiva). O cumprimento efectuado não corresponde à conduta devida. Constitui uma das espécies da figura genérica do cumprimento inexacto, ou seja, aquele em que a prestação efectuada não tem os requisitos idóneos (v.g. qualitativos ou quantitativos) a fazê-la coincidir com o conteúdo do programa obrigacional, tal como este resulta do contrato e do princípio geral da correcção e boa fé (A. Varela, ob. cit., p. 126-131 e, também, M. J. Almeida Costa, ob. cit., p. 947-952).
Quanto à causa da falta de cumprimento existem duas modalidades de não cumprimento: inimputável ao devedor e imputável ao devedor.
Só nos casos de não cumprimento imputável ao devedor se pode rigorosamente falar em falta de cumprimento.
A resolução consiste no acto de um dos contraentes dirigido à dissolução do vínculo contratual, em plena vigência deste, e que tende a colocar as partes na situação que teriam se o contrato não se houvesse celebrado (M.J. Almeida Costa, Direito das Obrigações, 7ª ed., pág. 268).
Admite-se a resolução do contrato fundada na lei ou a convencional (artº 432º, nº 1, do CC), podendo aquela fazer-se, extrajudicialmente, mediante declaração à outra parte (artº 436º, nº 1, do C. Civil) ou judicialmente.
Feitas estas genéricas considerações de natureza normativa e doutrinal, revertendo ao caso em apreço, diremos que dúvidas não existem de que nos encontramos na presença de um contrato sinalagmático (empreitada), que impõe a ambos os contraentes (dono da obra e empreiteiro) obrigações correspectivas (ver, entre muitos outros, o acórdão do STJ de 10/10/2002, e os acórdãos desta Relação de 06-04-2000, 22-01-2002, 11-07-2002, 09-02-2004, 21-04-2005, 04-12-2006 e de 09-02-2009, todos disponíveis, em texto integral ou em sumário, em www.dgsi.pt, e PEDRO ROMANO MARTINEZ, Contrato de Empreitada, 1994, p. 102, e LUIS MANUEL TELES DE MENEZES LEITÃO, em Direito das Obrigações–Contratos em Especial, vol. III, 6.ª edição, p. 508).
Com efeito, a entrega de uma viatura acidentada para reparação numa oficina, por acordo com o dono desta, integra um contrato de empreitada e não um contrato misto de empreitada e depósito, sendo o depósito da viatura uma mera obrigação acessória e complementar por parte do empreiteiro (ver acórdãos de 29/07/1982 e 06/04/2000, desta Relação, e de 23/11/1999, da RC, acessíveis em www.dgsi.pt).
Focando-nos no caso em apreço, importa referir que o réu/recorrido invocou o direito de retenção (artº 754, do CC) e/ou a exceptio non adimpleti contractus (artº 428º, do CC).
Porém, o Tribunal recorrido não lhe reconheceu tal direito ou excepção, decidindo pela improcedência da reconvenção, decisão transitada em julgado, por ausência de recurso do réu, o que nos impede de apreciar tal assunto.
Findo o contrato de empreitada (haja cumprimento integral, revogação unilateral, desistência ou incumprimento), o empreiteiro está obrigado a entregar a coisa (veículo), no estado em que se encontrar, ao dono da obra.
Está provado que o réu não reparou, integralmente, o veículo com a matrícula ..-..-VC, nem o restituiu à autora.
Com a presente acção, a demandante pede, implicitamente, a resolução contratual e, de modo explícito, a restituição da aludida viatura.
Os factos descritos em 1. a 11., do item 2.1, apontam, razoavelmente, no sentido da falta de cumprimento imputável ao réu/reconvinte.
Na verdade, cabia ao réu, enquanto devedor (obrigação de reparar, em tempo razoável, e restituir o veículo automóvel em causa), a prova dos factos que afastariam ou paralisariam a sua obrigação bem como a presunção de culpa prevista no artº 799º, do CC (responsabilidade civil contratual), o que não logrou fazer.
Justifica-se, assim, a resolução contratual e a consequente obrigação de restituição do veículo.
Isto dito, constata-se, por outro lado, que na fundamentação da sentença recorrida se considerou “Acontece porém que a autora, à data da apresentação da acção, embora o tivesse alegado, não detinha a qualidade de proprietária do veículo, como já se referiu. E a verdade é que não logrou provar que qualidade, à data, detinha sobre o veículo identificado nos autos, uma vez que o contrato que apresentou reporta-se a um período posterior à situação relatada.
A questão, agora, suscitada, prende-se com a legitimidade substantiva das partes, nomeadamente da autora. E esta tem de ser aferida por referência àquela data e não a qualquer outra.
Na decorrência do acabado de expender, afigura-se-nos que a autora não logrou provar ser a titular das pretensões que deduz contra o réu e, nessa medida, a acção terá de improceder, na sua totalidade.”.
Aceita-se que se trataria de uma situação de legitimidade material ou substantiva, respeitante às condições subjectivas da titularidade do direito. A questão da legitimidade substantiva tem a ver, obviamente, com o mérito da causa.
Ora, a nosso ver, face à matéria de facto alegada e provada e ao direito aplicável (ver supra), torna-se imperioso concluir pela legitimidade material da sociedade demandante (ver a causa de pedir e o pedido).
Com efeito, está provado que, à data da propositura da acção, a autora já havia adquirido (comprado) o veículo ..-..-VC, à D1…, S.A., pelo preço de € 8.499,27, com IVA incluído, conforme factura n.º …….., com data de 19/01/2006, de folhas 139.
Sendo o registo meramente declarativo, não releva o facto de veículo se encontrar registado a favor da D1…, S.A. (ver artº 879º, al. a), do CC).
Ora, o proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito e a consequente restituição do que lhe pertence. Havendo reconhecimento do direito de propriedade, a restituição só pode ser recusada nos casos previstos na lei (artº 1311º, do CC).
Como vimos, o réu não demonstrou ter o direito de retenção ou qualquer outro direito a legitimar a actual detenção do veículo.
Por outro lado, apurou-se que, por escrito de folhas 135, o veículo acima identificado foi alugado à autora pela D…, S.A., entre o período de 21/07/2004 a 19/08/2004.
Dada a escassez de factos (o documento de fls. 135 não é muito elucidativo), não sabemos a configuração exacta do aluguer, ou seja, se se trata de locação financeira ou de aluguer de longa duração (ALD), que são realidades jurídicas distintas (ver DL nº 149/95, de 24/06, com a redacção introduzida pelos DL nº 285/2001, de 3/11 e nº 30/2008, de 25/02, e o DL nº 359/91, de 21/09, bem com a doutrina de Calvão da Silva, Locação Financeira e Garantia Bancária, p. 24; Leite Campos, Locação Financeira, págs. 136 e 137, e Fernando Gravato Morais, Manual de Locação Financeira, p. 131, e, entre outros, os acórdãos do STJ de 14/05/2009, 14/09/2009, 12/10/2010 e 01/02/2011, acessíveis em www.dgsi.pt)).
Sabemos, no entanto, que, enquanto locatária do veículo em causa, a autora, colocada na posição de um normal adquirente, pode utilizar todos os instrumentos de tutela deste, incluindo o direito a ordenar a reparação do veículo e a pedir a restituição da coisa.
Em suma, impõe-se a condenação do réu a restituir a viatura quer com base no incumprimento contratual e consequente resolução judicial, enquanto detentor adstrito à obrigação de entregar a coisa (artº 433º, do CC) quer no reconhecimento do domínio da autora sobre o veículo 31-49-VC (reivindicação - artº 1311º, do CC).
No tocante aos alegados lucros cessantes, não logrou a autora demonstrar, como lhe competia (artº 342º, nº 1, do CC), os factos integradores da pertinente responsabilidade civil contratual e seus pressupostos (todos): o facto (danoso) objectivo do não cumprimento, a ilicitude (desconformidade entre a conduta devida e o comportamento observado), o prejuízo sofrido pelo credor/lesado e o nexo de causalidade entre aquele facto e o prejuízo - arts. 406º, n.º 1, 762º, n.º 1, 798º e 799º, do CC, e A. Varela, Das Obrigações em geral, 7ª ed., vol. II, pág. 94, M. J. Almeida Costa, Direito das Obrigações, 7ª ed., p. 483 e segs., e I. Galvão Teles, Direito das Obrigações, 7ª ed., p. 331 e segs.).
Com efeito, não provou o prejuízo/dano (ver C. dos factos não provados).
Procede, assim, na medida do expendido, o concluído na alegação do recurso.

3- DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em:
a) Julgar parcialmente procedente o recurso de apelação, revogando-se a decisão recorrida na parte do dispositivo em que decidiu julgar improcedente a acção, por não provada e, em consequência, absolver o réu C… do pedido de restituição do veículo automóvel de matrícula ..-..-VC formulado pela autora B…, S.A. (actualmente massa insolvente desta)”.
b) Julgar parcialmente procedente a acção e condenar o réu a restituir à autora o veículo com a matrícula ..-..-VC, mantendo-se a absolvição do demandado do mais peticionado pela autora, conforme decidido na sentença recorrida.
Custas da apelação por apelante e apelado, na proporção de metade cada.
Custas da acção por autora e réu, na proporção de metade cada.

Porto, 02/02/2015
Caimoto Jácome
Macedo Domingues
Oliveira Abreu
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SUMÁRIO (artº713º, nº 7, do CPC, actual artº 663º, nº 7):
I-Contrato bilateral ou sinalagmático é o que gera obrigações recíprocas a cargo de ambos os contraentes. Essas obrigações encontram-se numa relação de correspectividade e interdependência. Exemplo de contrato bilateral ou sinalagmático é o contrato de prestação de serviços, na modalidade de empreitada.
II- A entrega de uma viatura acidentada para reparação numa oficina, por acordo com o dono desta, integra um contrato de empreitada e não um contrato misto de empreitada e depósito, sendo o depósito da viatura uma mera obrigação acessória e complementar por parte do empreiteiro.
III- Enquanto locatária do veículo em causa (locação financeira ou ALD), a autora, colocada na posição de um normal adquirente, pode utilizar todos os instrumentos de tutela deste, incluindo o direito a ordenar a reparação do veículo e a pedir a restituição da coisa.

Caimoto Jácome