Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
736/03.4TOPRT-SJ.P2
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA LEONOR ESTEVES
Descritores: APREENSÃO EM ESTABELECIMENTO BANCÁRIO
DEPÓSITO BANCÁRIO
RESTITUIÇÃO
REDUÇÃO
Nº do Documento: RP20110202736/03.4TOPRT-SJ.P2
Data do Acordão: 02/02/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: PROVIDO.
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Com a acusação ou o despacho de pronúncia deve-se reduzir a apreensão de depósitos bancários [saldo de contas bancárias] do arguido aos valores correspondentes às condutas imputadas.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso Penal nº 736/03.4TOPRT-SJ.P2

Acordam, em conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

1. Relatório
No processo comum com intervenção de tribunal colectivo que, com o nº 736/03.4TOPRT, corre termos na 4ª vara criminal do Porto e em que é arguido, além de outros, B…, devidamente identificado nos autos, foi proferido despacho de indeferimento relativamente ao levantamento do arresto da diferença entre o valor arrestado, de 606.355,42 €, e ao valor da liquidação feita a final, de 222.082,60 €, que havia requerido.
Inconformado com esse despacho, dele veio o arguido interpor recurso, pugnando pela sua revogação e substituição por outro que determine a pretendida redução da apreensão, para o que apresentou as seguintes conclusões:

1. O arguido está acusado de se ter apropriado ilicitamente de € 222.580,86; Por conta desta acusação, o arguido tem apreendidos montantes no valor de 606.355,42€; O montante apreendido representa sensivelmente o triplo do montante que o arguido está acusado de se ter apropriado ilicitamente;
2. O regime das apreensões previsto no CPP tem como pedra basilar o princípio da necessidade;
3. As restrições de direitos, liberdades e garantias são norteadas pelo princípio da proporcionalidade;
4. Uma apreensão de valores correspondentes ao triplo do que previsivelmente será necessário para assegurar os interesses da acusação pública é absolutamente desnecessária e manifestamente desproporcional, pelo que o montante apreendido deve ser reduzido para o constante da acusação pública (€ 222.580,86)
5. Nesta medida e por tudo quanto foi exposto, deverão V. Exas. conceder provimento ao presente Recurso e determinar a revogação do despacho proferido bem como a sua substituição por outro que aceda ao requerido pelo Arguido, determinando a redução do Arresto sobre as quantias que excedem a liquidação efectuada.

Na resposta, o MºPº defendeu a improcedência do recurso considerando, por um lado, que existem fundadas razões para crer que os saldos das contas bancárias estão relacionados com um crime e se revelarão de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, não estando em causa o montante pecuniário apreendido, antes a relação das contas bancárias com a prática dos crimes; por outro, que, não tendo transitado em julgado o acórdão condenatório, já que dele foi interposto recurso, abrangendo toda a decisão, pelo MºPº e, nomeadamente, pelo próprio recorrente, não se pode considerar como definitivamente fixado o montante de 228.082,60 € como sendo o valor das vantagens ilícitas por ele auferidas O recurso foi admitido.
O Exmº Procurador-geral Adjunto junto deste Tribunal emitiu parecer, igualmente no sentido da improcedência do recurso, subscrevendo as considerações tecidas pelo MºPº na resposta ao recurso e invocando, ainda, o disposto no nº 2 do art. 186º do C.P.P.
Cumprido o disposto no art. 417º nº 2 do C.P.P., não foi apresentada resposta.
Colhidos os vistos legais, foi o processo submetido à conferência.
Cumpre decidir.

2. Fundamentação
Revestem-se de interesse para a decisão do recurso as seguintes ocorrências processuais:
- no decurso do inquérito, o MºPº, considerando indiciada a prática por vários arguidos, entre eles o recorrente, de crimes de corrupção passiva para acto ilícito, de peculato e de associação criminosa, ps. e ps., respectivamente, pelos arts. 372º nº 1, 375º nºs 1 e 4 al. b), e 299º nº 1, todos do C. Penal, determinou a detenção dos mesmos para serem presentes a interrogatório judicial e, além do mais, promoveu que “nos termos do disposto nos artº 178º e 181º do Código de Processo Penal, se proceda à apreensão dos saldos credores das contas bancárias, constituídas nas Instituições bancárias de fls. 732 a 735, de que os seguintes indivíduos sejam titulares ou co-titulares: (…) 4. B… (…)” (cfr. fls. 24-29);
- foi, então, proferido despacho a ordenar que se procedesse à apreensão nos termos promovidos (cfr. fls. 42);
- com a acusação, o MºPº deduziu liquidação “nos termos do disposto no art.º 8º, nº 1 da Lei 5/2002, de 11 de Janeiro”, na qual alegou que “Com as condutas descritas na acusação: (…) G) O arguido B… obteve proventos não inferiores a 222.580,86 €” e requereu que “a final, nos termos do disposto nos arts. 7º da Lei 5/2002, de 11 de Janeiro, e 109 a 111º do Código Penal, sejam declarados perdidos a favor do Estado os sobreditos valores” e “para garantia do pagamento do valor referido no art. 7º da Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro, e nos termos do disposto nos arts. 10.º do sobredito normativo legal e 186º, n.º 3 do Código de Processo Penal, se decrete o arresto dos saldos credores de contas bancárias, títulos mobiliários e veículos apreendidos aos arguidos contra os quais é deduzida a presente liquidação” (cfr. fls. 98-103);
- requerida a abertura da instrução, foi no seu termo proferido despacho que, além do mais, considerou suficientemente indiciados os factos imputados ao recorrente e pronunciou-o pela prática de dois crimes de peculato, três crimes de corrupção para acto ilícito, três crimes de participação económica em negócio e um crime de associação criminosa, ps. e ps., respectivamente, pelos arts. 375º nº 1, 372º nº 1, 377º nº 1 e 299º nº 2 com referência ao art. 386º nº 1 al. c), todos preceitos do C. Penal (cfr. fls. 268vº- 454vº);
- no início da audiência de julgamento foi proferido despacho que decidiu que “o destino de todos os bens apreendidos neste processo, será apreciado e decidido de acordo com o regime legal em vigor à data da prática dos factos e previsto no Código Penal, designadamente, face ao regime previsto nos artº 109º a 112º, deste diploma” e indeferiu “quer o pedido de arresto quer a declaração de perda do património presumivelmente ilícito, nos termos do artigo 7º da Lei nº 5/2002” (cfr. fls. 109vº-113vº), despacho este que transitou relativamente ao recorrente em virtude de o recurso que dele foi interposto abranger apenas uma parte do mesmo, sem que o tenha afectado (cfr. fls. 471-475vº e 518-521vº);
- realizado o julgamento, foi proferido acórdão que, além do mais, deu como provado que “1418. De toda a actividade resultou os seguintes proveitos: (…) 1425. – O arguido B… a quantia de € 228.082,60 (duzentos e vinte e oito mil oitenta e dois euros e sessenta cêntimos)”, tendo condenado o recorrente pela prática de um crime de peculato de uso e de três crimes de corrupção passiva para acto ilícito, ps. e ps., respectivamente, pelos arts. 376º nº 1 e 372º nº 1, ambos do Código Penal, absolvendo-o do mais por que vinha pronunciado, e decidido que “Nos termos do art. 111º, nºs 1 e 4, do Código Penal, declaram-se perdidos a favor do Estado os saldos bancários apreendidos ou no caso de não estarem apreendidos valores suficientes dos que infra vão descritos, vão condenados, em substituição da perda, a pagar ao Estado os respectivos valores: (…) – O arguido B… a quantia de € 228.082,60 (duzentos e vinte e oito mil oitenta e dois euros e sessenta cêntimos)” e “Nos termos do art. 109º, do Código Penal, ordena-se o levantamento da apreensão dos saldos das contas bancárias dos arguidos que vão absolvidos (…), bem como do valor dos arguidos que vão condenados que excede o valor declarado perdido a favor do Estado” (cfr. fls. 577-1174);
- do acórdão interpôs recurso o MºPº, circunscrevendo-se a sua discordância, na parte que afecta o recorrente, à absolvição pelos crimes de participação económica em negócio, defendendo que, ao contrário do decidido, estes se encontram em concurso real com os crimes de corrupção passiva, à qualificação jurídica dos factos como crime de peculato de uso, defendendo que se trata antes de crime de peculato, e, por isso também, à medida das penas parcelares e única e à suspensão da sua execução;
- também o recorrente, à semelhança de outros arguidos, apresentou recurso, quer da matéria de facto, quer da matéria de direito ( cfr. fls. 128-258 );
- na sequência, o recorrente, sustentando que, não obstante a interposição de recurso, não é possível que, no que lhe respeita, o valor da quantia ali declarada perdida a favor do Estado venha a aumentar em virtude de corresponder ao máximo dos proveitos que poderia ter tido com a prática da totalidade dos crimes pelos quais havia sido pronunciado, veio requerer a emissão de certidões para “apresentar nas entidades bancárias competentes para proceder ao levantamento do arresto na diferença entre os € 228.082,60 (duzentos e vinte e oito mil oitenta e dois euros e sessenta cêntimos) e os € 608.000,00 que se encontram arrestados em nome do Dr. B…” (cfr. fls. 30-34);
- na sequência da promoção do MºPº no mesmo sentido, foi proferido despacho de indeferimento do requerido com o fundamento de que “O acórdão proferido nestes autos em 12 de Janeiro de 2009 foi objecto de recurso interposto pelo Ministério Público, pelo que, pode ser alterado o teor da decisão final pelos tribunais superiores a matéria decidida relativamente às apreensões” (cfr. fls. 35 e 37);
- desse despacho foi interposto recurso sobre o qual incidiu acórdão que o declarou irregular, por omissão de fundamentação, e determinou a remessa dos autos à 1ª instância para reparação daquele vício (cfr. fls. 70-78);
- em cumprimento dessa determinação, veio a ser proferido o despacho recorrido, cujo teor é o seguinte:

Em obediência ao Acórdão proferido em 18 de Novembro de 2009 (fls. 70/78), pelo Venerando Tribunal da Relação do Porto, profere-se o presente despacho,
O arguido B…, requereu a emissão de oito certidões com o teor da decisão final proferida, por forma a apresenta-las nas entidades bancárias, para lhe permitir proceder ao levantamento do arresto, entre a diferença do valor arrestado (€ 606.355,42 — seiscentos e seis mil, trezentos e cinquenta e cinco euros e quarenta e dois cêntimos) e o valor da liquidação que, a final, no caso deste arguido, foi efectuada (€ 228.082,60 - duzentos e vinte e oito mil e oitenta e dois euros e sessenta cêntimos).
Sobre tal requerimento foi proferido despacho com o seguinte teor:
“(...) Os arguidos B… e C… vêm requerer o levantamento da apreensão dos seus saldos bancários, decretada nestes autos na fase de Inquérito.
O acórdão proferido nestes autos em 12 de Janeiro de 2009 foi objecto de recurso interposto pelo Ministério Publico, pelo que, pode ser alterado o teor da decisão final pelos tribunais superiores a matéria decidida relativamente às apreensões.
Nesta conformidade, indefere-se o requerido.”
Foram juntas certidões do processo principal que se encontra no Tribunal da Relação do Porto, por forma, a propiciar mais informação, sobre a questão em apreço, face à complexidade da tramitação dos autos,
Apreciando.
Na fase de inquérito, o Ministério Público promoveu a fls. 4.999 ao Juiz de Instrução que, nos termos dos artigos 178° e 181° do Código de Processo Penal, determinasse a apreensão dos saldos credores das contas bancárias, constituídas nas instituições bancárias, das quais fosse titular ou co-titular o arguido B…, o qual ordenou a apreensão das contas bancárias indicadas a fls. 732 a 735, por despacho proferido, em Novembro de 2002, a fls. 5.003 dos autos principais.
O Ministério Público deduziu liquidação nos termos e para os efeitos do disposto no artº 8°, nº l, da Lei nº 5/2002, de 11/01, constante dos autos principais a fls, 12.548 a 12.559, do volume 40°, entre outros, contra o arguido B… e requer que a final, nos termos do disposto nos arts. 7° da Lei 5/2002, de 11 de Janeiro, e 109° a 111° do Código Penal, seja declarado perdido a favor do Estado, o montante de € 222.580,86.
Termina pedindo que se decrete o arresto dos imóveis descritos na liquidação, bem como dos saldos das contas bancárias, títulos mobiliários e veículos apreendidos aos arguidos contra os quais é deduzida a liquidação.
No início da audiência de julgamento a 22/01/2007, o Colectivo de Juízes conheceu e decidiu como questão prévia, relativamente às três liquidações deduzidas pelo Ministério Público, susceptível de obstar à apreciação do mérito da causa, ao abrigo do art° 338°, nº l, do C.P.P., nos seguintes termos:
“Os juízes que constituem o Tribunal Colectivo decidem conhecer e decidir uma questão prévia, relativamente às liquidações deduzidas pelo Ministério Público, susceptível de obstar à apreciação do mérito da causa, ao abrigo do art° 338°, nº l, do C.P.P.
O Ministério Público deduziu liquidação na acusação contra os arguidos D…, E…, F… e G…, H…, I…, J…, C…, B…., K…, L…, M…, N…, O…, P…, Q…, S…, T…, U…, V…, W…, X…, Y… e Z… a fls. 12.547 a 12.559 do vol. 40° e contra AB… na liquidação adicional de fls. 13.216 e 13.217 do vol. 42°, AC…e AD… na liquidação adicional de fls. 12.759 a 12.761 do vol. 41°, liquidações cujo teor se dá por integralmente reproduzido. Termina requerendo que a final, nos termos do art° 7° da Lei n° 5/2002, de 11/01 e art° 109° e 111°, sejam declarados perdidos a favor do Estado os valores liquidados e ainda que se decrete o arresto dos imóveis descritos na liquidação, bem como dos saldos bancários e veículos apreendidos.
As três liquidações dos patrimónios dos arguidos referidas reportam-se a períodos compreendidos entre os anos de 1997 a 2001, quanto ao arguido M… a respectiva liquidação compreende o período entre 1997 a 2002.
Os arguidos H…, J…, AC…, Q…, AB…, F…, G… e AD… apresentaram contestação às liquidações.
O arguido Q… oferece o merecimento dos autos.
O arguido J… contestou a liquidação contra si deduzida, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, impugnando os valores do movimento das suas contas bancárias, apreendidas nos autos e justificando a origem das quantias em dinheiro, cheque e transferências bancárias depositadas, bem como, os rendimentos do agregado familiar do arguido.
O arguido H… contestou a liquidação contra si deduzida, alega em síntese, iniciou o exercício efectivo das funções de liquidatário no na de 1999, o prédio sito na …, sito em …, Guimarães, foi adquirido em 13/10/1988, o estabelecimento comercial foi adquirido no dia 8/07/1993, ambos descritos na liquidação, alega ainda que a embarcação apreendida foi adquirida em Março de 2001, adquirida através de sucessivas trocas por outras embarcações de recreio adquiridas, tendo sido o primeiro barco adquirido há mais de 15 anos, relativamente ao automóvel A6 estava na sua posse por contrato de aluguer, por fim justifica as aplicações financeiras as quais são provenientes do rendimento auferido bem como de empréstimos bancários. Conclui pela improcedência da liquidação.
O arguido AB… contestou a liquidação adicional contra si deduzida, alega em síntese, que não actuou como descrito na acusação, como não obteve qualquer provento designadamente os € 42.400,00. Justifica que esta quantia entrou na escrita e património da AE…, em satisfação do pagamento por ela exigido na venda do prédio, de que tinha garantia real, directamente a terceiro e cuja a adjudicação para si podia requerer assim se dispensando venda posterior a esse terceiro. Mais alega que os saldos positivos das contas bancárias do arguido, iniciadas havia mais de 5 anos antes da sua constituição como tal, resultam do rendimento da sua actividade lícita de gestor comercial e participação social noutra sociedade. Termina pedindo que a liquidação seja julgada injustificada e sem efeito a ordenada apreensão libertando-se as contas em causa.
O arguido AC… na contestação alega que o artº 7° da Lei n° 5/2002, de 11/01, não lhe é aplicável, porquanto não está pronunciado pelos crimes previsto no art° l, do mesmo diploma, pelo que a liquidação deve ser liminarmente indeferida. Mais alega que, nos termos do artigo 7° dessa Lei. sempre o valor dos bens a apreender não deve ultrapassar a vantagem da actividade criminosa, presumindo-se que esta é a diferença entre o valor do património do arguido e aquele que seja congruente com o seu rendimento lícito. Mas da liquidação não constam os necessários factos para se aferir de tal diferença quedando-se pelo valor total recebido pelo arguido nos actos que lhe são imputados na acusação. Por fim alega que nada disso consta da liquidação o que acarreta a sua manifesta improcedência.
O arguido AD… na sua contestação, alega em síntese, quatro questões, as quais na sua opinião conduzem à total improcedência da liquidação contra si deduzida.
Em primeiro lugar, defende a inaplicabilidade do incidente de liquidação previsto na Lei n° 5/2002, de 11/01, alegando para tanto que no art° 7° estabelece-se que a referida perda de bens pode ter lugar “em caso de condenação pela prática de crime referido no artigo 1°, sendo tais crimes os de tráfico de estupefacientes, terrorismo e organização terrorista, tráfico de armas, corrupção passiva e peculato, branqueamento de capitais, associação criminosa, contrabando, tráfico e viciação de veículos furtados, lenocínio e tráfico de menores e contrafacção de moeda e de títulos equiparados a moeda. Ora o arguido não foi pronunciado por nenhum desses crimes. Invoca ainda a inconstitucional, por violação do artigo 29° n.° 3 da Constituição da República Portuguesa, a interpretação do artigo 7° nº l da Lei n.° 5/2002, de 11 de Janeiro, no sentido de a mesma ser aplicável analogicamente, extravasando o âmbito de aplicação delimitado pelo artigo 1° n.° l do mesmo diploma.
Em segundo lugar, o arguido alega a intempestividade da dedução da liquidação adicional, porquanto, nos termos do art° 8°, n° l e 2, da Lei n° 5/2002, de 11/01, o Ministério Público deduz a liquidação, na acusação e, “’Se não for possível a liquidação no momento da acusação, ela pode ainda ser efectuada até ao 30° dia anterior à data designada para a realização da primeira audiência de discussão e julgamento, sendo deduzida nos próprios autos”. Ora nos presentes autos e nos termos em que está deduzida a liquidação dita adicional, é notório que tal impossibilidade não existia, pois o Ministério Público já dispunha de todos os elementos necessários para a dedução da liquidação contra o arguido. Por fim alega a inconstitucional, por violação do artigo 29° n.° 3 da Constituição, a interpretação do complexo normativo constituído pelos artigos 7° e 8° n°l e 2 da Lei n.° 5/2002, de 11 de Janeiro, no sentido de poder ser deduzida liquidação pelo Ministério Público em momento posterior ao da dedução da acusação em situações em que seja possível fazê-lo com aquele libelo, numa inadmissível aplicação analógica do mencionado artigo8° n.°2.
Em terceiro lugar, o arguido alega a ilegitimidade passiva relativamente ao incidente de liquidação deduzido, porquanto “o Ministério Público imputa ao arguido a totalidade do montante da pretensa vantagem da actividade desenvolvida nos casos das duas falências em apreço. Mas, concomitantemente, reconhece no libelo acusatório que a comissão dita ilícita foi recebida por pessoa jurídica distinta, como inequivocamente demonstram recibos emitidos por «AF…, Lda.». Concluiu que na pronúncia não se encontram descritos factos referentes a uma transferência dos montantes era causa do património de “AF…, Lda” para o património do arguido AD….
Em último lugar, o arguido invoca erróneo apuramento do montante cuja perda a favor do Estado se promoveu, com os fundamentos de falta de coincidência entre os valores contemplados na pronúncia e os valores cuja perda a favor do Estado se promoveu; a imputada repartição das vantagens com o arguido D…; a restituição parcial da comissão cobrada no âmbito do processo falimentar da “AG…, S.A” e ainda o direito à remuneração a que “AF…, Lda” nos termos descritos na pronúncia de acordo com o art° 34°, do CCJ.
Os arguidos F… e G… na acusação conjunta que apresentaram, alegam em síntese as seguintes questões:
- invocam a inconstitucionalidade dos art° 7°, 8° e 9°, da Lei n° 5/2002, de 11/01, regime que inverte o ónus de prova em processo penal quanto à proveniência do património dos arguidos, por violação dos art° 23° e 18°, da Constituição da República Portuguesa e os princípios que tais normativos consagram, de presunção de inocência do arguido, garantias de defesa no processo penal e o de igualdade de armas entre arguidos, pedem ainda a anulação de todo o processado após a acusação para que os arguidos possam exercer o direito de defesa, mormente optando pelo silêncio, não só em audiência de julgamento, como na própria contestação.
- Alegam que o regime de Perda de Bens estabelecido na Lei n° 5/2002, de 11/01, designadamente o art° 7°, entrou em vigor no dia “10/02/2003”, a qual possui matriz substantiva, como lei penal apenas se aplica às meras situações futuras, atento os princípios da tipicidade e legalidade das normas criminais (nullum crimine sine legem e nulla poena sine legem) a menos que mais favorável ao arguido. No entanto este regime por que estabelece a referida presunção de proveniência de património ilícito é mais gravoso para os arguidos do que o regime anterior, estatuído nos art° 109° a 111°, do Código Penal, que a não previa, pelo que não pode ser aplicada retroactivamente.
Termos em que deve ser indeferida a liquidação efectuada pelo Ministério Público.
Apreciando.
A Lei n° 5/2002, de 11/01 entrou em vigor no dia 11 de Fevereiro de 2002, conforme resulta do art° 16° do mesmo diploma.
Dispõe o art° 7°, da Lei n° 5/2002, de 22/01, com o título “Perda de bens” o seguinte:
“1. Em caso de condenação pela prática de crime referido no artigo 1°, e para efeitos de perda de bens a favor do Estado, presume-se constituir vantagem de actividade criminosa a diferença entre o valor do património do arguido e aquele que seja congruente com o seu rendimento lícito.
2. Para efeitos desta lei, entende-se por património do arguido o conjunto dos bens:
a) Que estejam na titularidade do arguido, ou em relação aos quais ele tenha o domínio e o benefício, à data da constituição como arguido ou posteriormente;
b) Transferidos para terceiros a título gratuito ou mediante contraprestação irrisória, nos cinco anos anteriores à constituição como arguido;
c) Recebidos pelo arguido nos cinco anos anteriores à constituição como arguido, ainda que não se consiga determinar o seu destino.
3. Consideram-se sempre como vantagens de actividade criminosa os juros, lucros e outros benefícios obtidos com bens que estejam nas condições previstas no artigo 111.° do Código Penal.”
Nos termos do art° 8°, n° l, o Ministério Público liquida, na acusação, o montante apurado como devendo ser perdido a favor do Estado.
Este novo regime introduziu no ordenamento jurídico português, para efeito de perda de bens, uma presunção de origem ilícita de certos bens identificados pela acusação e, em consequência, atribui ao arguido o ónus da prova do contrário.
Antes da entrada em vigor deste diploma, a questão da perda de bens a favor do Estado apenas estava regulada nos art° 109° a 111°, do Código Penal.
Analisada a liquidação constata-se que relativamente aos arguidos N…, O…, P…, Q…, S…, AH…, T…, U…, V…, W…, X… e Y… e Z… não foi elencado qualquer património. Ora, como refere Jorge Godinho in “Liber Discipulorum para Jorge Figueiredo Dias”, pág. 1342 o “pressuposto de índole fáctica é desde logo a titularidade ou disponibilidade de bens: se a acusação não identificar quaisquer bens susceptíveis de confisco, a medida não tem aplicação prática, por falta de objecto.”
Relativamente aos arguidos AC… e AD…, para além de não estar elencado o respectivo património presumível ilícito dos arguidos, estes não se encontram pronunciados pela prática de qualquer dos crimes taxativamente indicados no artigo 1° da mencionada Lei.
Assim sendo, quanto a estes arguidos o regime previsto no artigo 7° da Lei n° 5/2002 não é aplicável.
Quanto aos arguidos D…, E…, F…, G…, H…, I…, J…, C…, B…, K…, L… e M…, cujo património foi elencado na liquidação, coloca-se a questão da sucessão de leis no tempo quer no que concerne à sua aplicação a crimes praticados antes da entrada em vigor, quer no que respeita à sua aplicação ao património obtido antes da entrada em vigor do referido artigo 7°.
"Na verdade, o facto de a presunção de origem ilícita se estender aos bens adquiridos nos cinco anos anteriores levanta um problema de aplicação da lei penal no tempo que consiste em determinar se o regime entra todo em vigor de imediato,
O princípio da legalidade (art° 29°, n° l e n° 3, CRP; artº 1° do CP) determina que os crimes, as penas, as medidas de segurança e os seus pressupostos devem estar previstos em “lei anterior” ao momento da prática dos factos.
Cremos que se deverá entender que o regime irá entrando progressivamente em vigor, e só ao fim de cinco anos de vigência se aplicará plenamente. (...) O Confisco alargado não se deve aplicar retroactivamente a bens adquiridos antes da entrada em vigor da Lei n° 5/2002, de 11/01, pois só a partir de tal data é de conhecimento público a eventual necessidade de justificar a origem de todo e qualquer património detido nos anteriores cinco anos, sob pena. de aplicação de uma reacção penal.” (Jorge Godinho, obra citada, pág. 1.347)
No mesmo sentido, o da inaplicabilidade a factos praticados antes da vigência da Lei n° 5/2002, pronunciou-se o Tribunal da Relação do Porto, no acórdão proferido no Recurso Penal n° 5.821/04 (no âmbito deste processo), nos seguintes termos:
"A regra geral, quanto à aplicação da lei penal no tempo, é a de que se aplica a lei vigente "no momento da prática do facto" (art. 29° da CRP e art. 2°, l do C, Penal), ou seja, o momento em que o “agente actuou ou deveria ter actuado”' (art° 3°). Ta! regra decorre do princípio da legalidade, na sua vertente “nullum crimen, nulla poena sine lege praevia” e assenta em postulados político-jurídicos desde há muito indiscutíveis, pois só assim se evitará uma inaceitável “incriminação persecutória ou o arbítrio ex post” — CASTANHEIRA NEVES, o Princípio da Legalidade Criminal BFDUC ''Estudos em Homenagem ao Prof. Doutro Eduardo Correia -J984. A ser de outra forma, ninguém estaria seguro de não cometer crimes.”
No entanto, importa, analisar se no caso concreto este regime previsto no art° 7°, da Lei n° 5/2002, de 11/01 é mais favorável para os arguidos de acordo com o princípio da aplicação da lei mais favorável previsto no art° 4°, n° 4. do Código Penal.
Segundo o AC. do TRP acima citado “Tal lei penal, através da inversão do ónus da prova quanto à ligação de determinados bens à actividade criminosa, consagra, sem dúvida, um regime mais gravoso que o antigo, previsto nos artigos 109° a 111° do C. Penal e, por isso, também não pode ser aplicável por força do disposto no arf 4°, n. ° 4 do C.Penal.”
No entanto, na pronúncia constam factos praticados em data posterior a 11/02/2002, os quais passamos a descrever:
Relativamente à Falência da AI… consta de fls. 15.677, factos ocorridos em 16/05/2002, em que o arguido AJ… terá entregue dinheiro ao arguido AB…;
Falência AK… consta de fls. 15.692 a descrição de factos imputados ao arguido D… quanto a um crime de peculato, cuja cessação terá ocorrido em Julho de 2002.
Falência da AL…, Lda consta de fls. 15.759, factos ocorridos em Julho de 2002, relativamente a pagamentos efectuados pela AS… aos arguidos J… e H…;
Falência da AM… consta de fls. 15.771, factos ocorridos em Maio de 2002, relativamente a pagamentos efectuados pela AN… ao arguido H…;
Falência da AO…, Lda consta de fls. 15.778, factos ocorridos em Março de 2002, relativamente a pagamentos efectuados pela AN… ao arguido H…;
Falência da AP… consta de fls. 15.782, factos ocorridos em Março de 2002, relativamente a pagamentos efectuados pela AQ… à arguida N…:
Falência da AT… consta de fls. 15.839, factos ocorridos de 26/06/2000 a 21/02/2002, relativamente a um crime de peculato imputado ao arguido F…;
Falência da AU… consta de fls. 15.874, factos ocorridos a 11/06/2002, relativamente a pagamentos efectuados pela AS… ao arguido U….
Mas mesmo relativamente a estes factos supra descritos e ocorridos após a entrada em vigor da Lei n° 5/2002, de 11/01, o regime previsto no art° 7° não pode ser aplicado, porquanto do património descrito pelo Ministério Público não consta a data da respectiva aquisição, nem teria de constar, mas uma vez que o regime só se aplica aos factos praticados posteriormente e bem assim ao património também posteriormente adquirido, pelo que o Ministério Público sempre teria de indicar a data da respectiva aquisição.
Como quer que seja e para efeitos do artigo 7°, o Ministério Público indicou na liquidação, tal como já consta da pronúncia, as vantagens obtidas com a prática dos crimes cujo perdimento já decorria do regime previsto nos artigos 109° a 112° do Código Penal, sendo certo que o regime do artigo 7° é um regime excepcional que vai além do regime dos artigos 109° a 112° do Código Penal, mas que não colide com este. “Tratando-se, aqui, de uma sanção pecuniária, baseada em vantagens presumidas, que nada têm a ver com o (s) crime (s) por que o agente foi condenado, não podem caber nela, para efeitos de cálculo, as “efectivas” e reais vantagens que, propriamente, devem ser declaradas perdidas a favor do Estado ou, no caso de impossibilidade de apropriação em espécie, avaliadas. Pois, sendo estas vantagens reais (estamos a pensar nos arts. 109.° e 111.° do CP, mas também em todas as outras disposições semelhantes previstas em legislação avulsa), têm um regime próprio, tanto substantivo como processual” nos termos do art° 178°, do Código de Processo Penal (Damião da Cunha, in Perda de bens a favor do Estado, Medidas de Combate à Criminalidade Organizada e Económico-Financeira, CEJ, pág. 141).
Termos em que sempre está ressalvado o perdimento das reais e efectivas vantagens provenientes do crime ao abrigo do citado regime geral de perdimento.
Assim sendo, o destino de todos bens apreendidos neste processo, será apreciado e decidido de acordo com o regime legal em vigor à data da prática dos factos e previsto no Código Penal, designadamente, face ao regime previsto nos art° 109° a 112°, deste diploma.
A entender-se deste modo, fica prejudicado o conhecimento das questões suscitadas pelos arguidos nas suas contestações às liquidações deduzidas pelo Ministério Público, nos termos e para os efeitos dos art° 7° a 12°, da Lei n° 5/2002, de 1 1/01.
Por todo o exposto, decide-se indeferir quer o pedido de arresto quer a declaração
de perda do património presumivelmente ilícito, nos termos do artigo 7° da Lei n° 5/2002.”
*
O Ministério Público interpôs recurso deste despacho, por determinação hierárquica, a 06/02/2007 (fls. 25.502 e sgts), para o Tribunal da Relação do Porto (Recurso n° 2077/07), por Acórdão proferido a 15/10/2007, decidiu conceder provimento ao recurso relativamente aos arguidos afectados pelo mesmo, a saber: D…, E…, F…, G…, H…, J…, N…, U…, AC…, AB…, W…, X…, Y… e Z…, nos seguintes termos:
“Concede-se provimento ao recurso e, em consequência, revoga-se o despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro em que, tendo em conta o atrás exposto, se determine o arresto dos bens para eventual declaração de perda dos mesmos a final.”
Assim sendo, fica demonstrado que o despacho de indeferimento do pedido de arresto dos saldos das contas bancárias apreendidas ao requerente, à luz do art° 10°, da Lei n° 5/2002. de 11/01. transitou em julgado relativamente a este arguido, razão pela qual não foi ordenado o arresto dos saldos das contas bancárias no processo, nem lhe é aplicável o regime de redução do arresto previsto no art° 11°, da citada lei.
Tendo em conta os expostos actos processuais e face ao elevado número de requerimentos apresentados pelos arguidos e semanalmente por mim conhecidos, no despacho recorrido proferido em 28/04/2009, limitei-me a indeferir o levantamento da apreensão dos saldos das contas bancárias do arguido (por os mesmos não se encontrarem efectivamente arrestados nos autos).
Porém, os saldos das contas bancárias do arguido B…, encontram-se apreendidos nos termos dos art° 178° n° l e 181°, n° l, do Código de Processo Penal.
No acórdão proferido em 05/01/2009, não transitado em julgado, o arguido B… foi condenado:
- pela prática de um crime de peculato de uso p. e p. pelo art° 376°, n° l e de três crimes de corrupção passiva para acto ilícito, p. e p. pelo 372°, n° l, ambos do Código Penal, na pena única de cinco anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período
- foi declarado perdido a favor do Estado a quantia de € 228.082,60 (duzentos e vinte e oito mil oitenta e dois euros e sessenta cêntimos), correspondente ao valor das vantagens auferidas pelo arguido, através dos factos ilícitos praticados, que o tribunal deu como provado, nos termos do art° 111°, n° l, do Código Penal, e consequentemente, declarou perdido a favor do Estado os saldos bancários aprendidos, ordenando o levantamento da apreensão do valor que excede o montante declarado perdido a favor do Estado.
O arguido invoca a violação do direito de propriedade consagrado no art° 62°, n° l, da Constituição da República Portuguesa, o qual dispõe que “A todos é garantido o direito à propriedade privada”...)”.
Vejamos os dispositivos legais previstos na lei processual penal aplicáveis ao caso em análise.
Dispõe o art° 178°, n° l, que são apreendidos os bens que constituírem o produto, lucro, ou recompensa de um crime e relativamente à Apreensão em estabelecimento bancário, versa o art° 181°, n° l que “O juiz procede à apreensão em bancos ou outras instituições de crédito de documentos, títulos, valores, quantias e quaisquer outros objectos, mesmo que em cofres individuais, quando tiver fundadas razões para crer que eles estão relacionados com um crime e se revelarão de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, mesmo que não pertençam ao arguido ou não estejam depositados em seu nome.”
Por outro lado, impõe o art° 186.°, n.° l, relativamente à restituição de objectos apreendidos que “Logo que se tomar desnecessário manter a apreensão para efeito de prova, os objectos apreendidos são restituídos a quem de direito” e, o n° 2 do mesmo preceito, impõe que, só após o trânsito em julgado da sentença sejam restituídos a quem de direito os objectos apreendidos, a menos que tenham sido declarados perdidos a favor do Estado.
Mas no caso concreto, após condenação sem trânsito em julgado, não se mostra necessário manter a apreensão dos saldos das contas bancárias apreendidas na fase de inquérito para efeito de prova?
Nas alegações apresentadas pelo arguido B…, sobre o despacho recorrido, vem alegar que já não se justifica a apreensão, devendo reduzir-se ao montante apurado na liquidação efectuada pelo Ministério Público no ano de 2003 ou ao valor resultante da ampliação em virtude do facto de se ter procedido a uma alteração não substancial dos factos, em sede de Audiência e Julgamento - no que respeita ao valor alegadamente auferido com a prática do crime de Peculato correspondente ao valor dos juros dos quais alegadamente o arguido se apropriou.
Como é do conhecimento do arguido, o julgamento e/ou acórdão da primeira instância pode ser anulado, face às nulidades/inconstitucional idades invocadas, na fase de inquérito, na fase de instrução, estando ainda a serem conhecidos os recursos interpostos pelos arguidos da decisão instrutória, bem como das dezenas de recursos interlocutórios interpostos pelo Ministério Público e arguidos na fase de julgamento com subida deferida e, ainda, dos recursos interpostos pelo Ministério Público e arguidos do Acórdão de 5/01/2009.
Veja-se a questão prévia suscitada pelo arguido nas alegações de recurso que apresentou a fls. 131 destes autos, PERDA DA EFICÁCIA DA PROVA PRODUZIDA EM SEDE DE JULGAMENTO, para concluir nos seguintes termos “Revertendo para o recurso em apreço, deve o Tribunal “a quem” declarar a perda da eficácia da prova produzida, por violação do n° 6 do art° 328° do CPP e proceder-se ao reenvio do processo para as Varas Criminais do Círculo do Porto, para renovação de toda a prova oral.” (fls. 135 verso). Ou seja, terá de se realizar novo julgamento, deliberação e acórdão, nos quais poderão resultar apuradas vantagens patrimoniais ilícitas auferidas pelo arguido iguais, superiores ou inferiores às provadas no primeiro julgamento.
E no caso de anulação de todo o primeiro julgamento e reenvio para novo julgamento? A conclusão é a mesma, não há qualquer alteração do fundamento do despacho que decretou as apreensões das contas bancárias do arguido.
Nesta conformidade, face ao valor total das contas bancárias apreendidas, aos crimes imputados ao arguido e os respectivos valores apurados no 1° julgamento, entendemos que, a redução dos valores apreendidos, só teria fundamento se estivessem apreendidas quantias de valor consideravelmente elevado, tendo em conta a condição económica do requerente retratada no processo principal.
Em conclusão, as apreensões dos saldos das contas bancárias do arguido (bem como dos demais arguidos) mantêm o mesmo fundamento que determinaram a apreensão, as quais não se alteraram com o acórdão da primeira instância, pelo contrário, reforçaram as fundadas suspeitas de que tais contas estão relacionadas com a prática de crimes e continuam a ter grande interesse para a prova e descoberta da verdade, à luz dos art° 178° e 181°, do CPP.
Salvo o devido respeito, por opinião contrária, que é muito; os fundamentos que o requerente invoca, não impõe decisão diversa da regra (diariamente aplicada nos acórdãos/sentenças proferidos na 1a instância) constante do art° 186°, n° 2, do CPP, ou seja, transitado em julgado o acórdão, restitua os objectos apreendidos.
Nesta conformidade, indefere-se o requerido.
Notifique.

- é do nosso conhecimento funcional que, ainda antes de estes autos terem sido remetidos à conferência, foi proferido acórdão[1] que conheceu dos recursos acima aludidos, tendo, além do mais, concedido parcial provimento ao recurso do recorrente, ordenando o reenvio do processo para novo julgamento relativamente a questões concretas ali identificadas ( quanto a ele, relacionadas com a falta de exame crítico da prova, que não explica devidamente as razões pelas quais alguns dos factos foram considerados como provados ), e negado provimento relativamente a outras questões, como a alegada perda de eficácia da prova.

3.O Direito
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar[2], sem prejuízo das de conhecimento oficioso.
As questões suscitadas pelo recorrente reconduzem-se à de determinar se existe fundamento para reduzir a apreensão dos saldos das contas bancárias de que era titular para o montante constante da acusação (222.580,86 €) como sendo o correspondente ao valor dos proventos que ali lhe foi imputado como tendo sido por ele ilicitamente auferidos.

Refira-se, antes de mais, que a apreensão aludida pelo recorrente não se encontra documentada em nenhum dos elementos com que o presente recurso foi instruído e, embora neles se encontrem várias referências à sua efectivação e subsistência, em lado nenhum, senão nas alegações de recurso, encontramos a discriminação de quais as contas bancárias e respectivos saldos envolvidos (presumimos que ela se encontre a fls. 732-735 dos autos principais, de que não veio cópia). Mas, como o que o recorrente alega a esse respeito não mereceu qualquer reacção ou correcção, aceitamos como certos os dados por ele indicados, ou seja, que aquela apreensão incidiu sobre os valores e produtos existentes nas instituições bancárias tal como discriminados no quadro a fls. 1222, e que perfazem o valor total de 606.355,42 €.
Seja como for, resulta claramente dos elementos que acima elencámos que essa apreensão foi ordenada e levada a cabo ao abrigo do disposto nos arts. 178º e 181º do C.P.P. Destes preceitos, interessam-nos aqui em particular o nº 1 do primeiro, nos termos do qual “São apreendidos os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir a prática de um crime, os que constituírem o seu produto, lucro, preço ou recompensa, e bem assim todos os objectos que tiverem sido deixados pelo agente no local do crime ou quaisquer outros susceptíveis de servir de prova.” e o nº 1 do segundo, que estabelece que “O juiz procede à apreensão em bancos ou outras instituições de crédito de documentos, títulos, valores, quantias e quaisquer outros objectos, mesmo que em cofres individuais, quando tiver fundadas razões para crer que eles estão relacionados com um crime e se revelarão de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova (…)”. À colação chamaremos também o art. 186º do mesmo diploma legal, em particular os seus nºs 1 e 2 que rezam, respectivamente: “Logo que se tornar desnecessário manter a apreensão para efeito de prova, os objectos apreendidos são restituídos a quem de direito” e “Logo que transitar em julgado a sentença, os objectos apreendidos são restituídos a quem de direito, salvo se tiverem sido declarados perdidos a favor do Estado”.
É inequívoco que os proventos que o recorrente tenha auferido ilicitamente através da prática dos factos que lhe foi imputada, a ficar firmemente decidido que assim sucedeu, deverão ser declarados perdidos a favor do Estado. Só por aí existe justificação bastante para que a apreensão do correspondente valor se mantenha até que seja proferida decisão final. Sucede, no entanto, que o valor inscrito na acusação e posteriormente na pronúncia é consideravelmente inferior ao valor dos saldos objecto de apreensão, e nem mesmo com a prolação do acórdão veio a sofrer aumento significativo. É certo que esta decisão veio a ser revogada pelo acórdão entretanto proferido por esta Relação, mas foi-o em termos que reforçam sem margem para dúvidas um dos argumentos esgrimidos pelo recorrente, o de que não se perspectiva, de todo, que o valor da quantia que o acórdão acima aludido havia declarado perdida a favor do Estado - pese embora a redacção menos cuidada e não muito clara utilizada, o que ali havia sido decidido não era senão a perda do valor de 228.082,60 €, correspondente ao valor dos proventos ilícitos, e a restituição do remanescente apreendido ao recorrente - venha a sofrer qualquer agravamento. E isto porque as condutas imputadas ao recorrente reportam-se exclusivamente a três situações concretas e definidas, relacionadas com os processos de falência da AT…, AV… e AW…, SA, estando relacionados apenas com estas os benefícios ilicitamente auferidos e que foram contabilizados em montantes que não ultrapassam aquele valor total. Daí que, para dar em devido tempo cumprimento ao disposto no art. 111º do C. Penal, na eventualidade de assim vir a ser decidido, não exista qualquer justificação para manter a apreensão de valores que excedam, e excedem largamente, a quantia acima mencionada.
Em contrário também não colhem os argumentos invocados no despacho recorrido e aos quais o MºPº também se arrimou. Se é verdade que, enquanto elemento de prova, toda a documentação que registe e comprove a existência das contas bancárias e dos valores em causa, bem como a sua proveniência e movimentação, se deve manter apreendida, de forma a poder ser analisada e valorada para ajudar a determinar os contornos da conduta do recorrente, outro tanto não sucede com os valores pecuniários existentes nessas contas, que são fungíveis e a boa parte dos quais não foi, nem se vislumbra que possa vir a ser, pelo menos nos presentes autos, atribuída qualquer proveniência ilícita. Não sendo, neste caso, o dinheiro, em si mesmo, como objecto, que constitui meio de prova, mas sim o percurso que ele seguiu e que sempre se poderá apurar e reconstituir através dos registos que a sua passagem deixou nas contas bancárias em questão, a manutenção da sua apreensão de nenhum interesse se reveste para a descoberta da verdade e, na parte em que excede o valor acima referido, não só não tem qualquer justificação legal como até representa uma restrição desnecessária, intolerável, dos direitos do recorrente.
Em conclusão: dadas as características do objecto da apreensão, é a documentação bancária relativa às contas da titularidade do recorrente e bem assim o valor correspondente aos proventos ilícitos alegadamente auferidos, admitindo-se que com o acréscimo considerado no acórdão da 1ª instância entretanto revogado, que devem manter-se apreendidos e não o valor pecuniário excedente. Não existindo quaisquer razões para crer, face ao estado dos autos, que aquele valor possa vir a ser superior a 228.082,60 €, há que, desde já e sem necessidade de aguardar a prolação de decisão final transitada, determinar o levantamento da apreensão do valor que exceda aquela quantia, cabendo ao tribunal determinar, de entre as contas apreendidas, quais as que deverão manter o respectivo saldo apreendido.

4. Decisão
Nos termos e pelos fundamentos expostos, julgam procedente o recurso e revogam a decisão recorrida, determinando que o valor dos saldos bancários de que o recorrente é titular e que foram objecto de apreensão seja reduzido para 228.082,60 € (duzentos e vinte e oito mil e oitenta e dois euros e sessenta cêntimos).

Porto, 2 de Fevereiro de 2011
Maria Leonor de Campos Vasconcelos Esteves
Vasco Rui Gonçalves Pinhão Martins de Freitas
_____________________
[1] Datado de 7/7/10 e que, nas partes mais relevantes, também se encontra publicado no site da dgsi.
[2] cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª ed., pág. 335, e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada).