Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
176/14.0T8OAZ-AE.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RUI MOREIRA
Descritores: DEVER DE URBANIDADE E CORRECÇÃO
ADVOGADO
MULTA
Nº do Documento: 20230418176/14.0T8OAZ-AE.P1
Data do Acordão: 04/18/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO IMPROCEDENTE; DECISÃO CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Consubstancia violação de deveres de urbanidade e correcção do Advogado vir este afirmar, no âmbito de um procedimento tendente à fixação da remuneração variável do administrador de insolvência, que ele é inoperacional e incompetente, que fez arrastar por interesse próprio o processo de insolvência; que faz apenas o necessário para servir os interesses de especulação imobiliária que defende; que providencia no sentido de fruir dos bens apreendidos, de se poder, com outros intervenientes, apropriar de bens da massa insolvente, actuando incompetentemente e permitindo que esta seja depauperada; bem como que o tribunal irá branquear a sua actuação caso se pronuncie contrariamente ao por si defendido.
II - A violação dos deveres de urbanidade e correcção é passível de censura por via da aplicação de uma multa ao Il. Advogado subscritor da peça processual onde assim se afirma.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 176/14.0T8OAZ.P1
Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro
Juízo de Comércio de Oliveira de Azeméis - Juiz 1

REL. N.º 765
Relator: Rui Moreira
Adjuntos: João Diogo Rodrigues
Anabela Andrade Miranda

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ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO


1 – RELATÓRIO

Nos autos de insolvência relativos A..., S.A., tendo sido ouvidos os credores a propósito da fixação da remuneração variável do administrador da insolvência, e nesse âmbito se tendo pronunciado o credor B..., Ltd, representado pelo seu Il. Mandatário Dr. AA, concluiu o tribunal pela inadequação dos termos dessa pronúncia, em face do que decidiu aplicar-lhe uma multa fixada em 4 Uc. E determinou a comunicação, à Ordem dos Advogados, do respectivo teor, bem como da própria decisão.
Consta do seguinte, o segmento da decisão que vem colocado em causa:
“(…) A B..., tal como aliás admite, deixou transitar em julgado a sentença proferida no apenso de prestação de contas, em cujo julgamento por diversas vezes dirigiu insultos ao Liquidatário, às testemunhas, ao Tribunal e aos credores.
Aliás, na sentença proferida nesse apenso (apenso O) fez-se contar que que a B... ultrapassou o que se pode configurar como “uso normal do processo”, embora se tenha optado por não condenar a B... nesses autos como litigante de má-fé.
Como se vê, o Il. Mandatário da B... mantém a postura censurável a que tenta habituar-nos e, a propósito de um pedido de pagamento de remuneração, apelida o Exmo. Liquidatário (cuja atuação foi já validada por sentença com a qual a B... se conformou) de inoperacional e incompetente, afirma que o mesmo persegue interesses de especulação imobiliária e que usa o processo para usufruir de bens e termina afirmado que o Tribunal branqueia o passado.
O Estatuto da Ordem dos Advogados consagra no seu artigo 95.º o dever geral de urbanidade estabelecendo que “no exercício da profissão o advogado deve proceder com urbanidade, nomeadamente para com os colegas, magistrados, árbitros, peritos, testemunhas e demais intervenientes nos processos, e ainda oficiais de justiça, funcionários notariais, das conservatórias e de outras repartições ou entidades públicas ou privadas.
Também o artigo 9º do Código de Processo Civil, consagrando o dever de recíproca correcção, dispõe que todos os intervenientes no processo devem agir em conformidade com um dever de recíproca correção, pautando-se as relações entre advogados e magistrados por um especial dever de urbanidade e nenhuma das partes deve usar, nos seus escritos ou alegações orais, expressões desnecessária ou injustificadamente ofensivas da honra ou do bom nome da outra, ou do respeito devido às instituições.
Ora, se ao longo destes anos sempre fomos lendo expressões como as acima transcritas por parte do Il. Mandatário da B..., actuação que teve o seu maior palco no decurso do julgamento do apenso de prestação de contas (que aliás está gravado), nunca o Il. Mandatário da B... recebeu da parte do Tribunal e do Exmo. Liquidatário tratamento indigno ou insultuoso.
Talvez por isso a advertência feita na sentença proferida no apenso O tenha “caído em saco roto” fazendo crer ao Il. Mandatário da B... que poderia continuar livremente a dirigir insultos ao Tribunal e ao Liquidatário.
Ainda que tentássemos “desculpar” a actuação do Il. Mandatário com as inúmeras e infundadas suspeitas que a B... levantou acerca das contas nestes autos e acerca da capacidade e aptidão do Liquidatário para exercer as funções para as quais foi nomeado (e note-se que, para nós, nada pode justificar a linguagem usada pois que existem formas processuais de reacção para cada uma das questões levantadas sem que a boa educação tenha de ser posta em causa) neste momento em que está transitada a sentença proferida no apeno O e atendendo a que nunca o Il. Mandatário da B... logrou obter uma decisão de destituição do Liquidatário, não podemos permitir que o Mandatário da B... ultrapasse os limites da urbanidade e da recíproca correcção e mantenha os insultos a cada requerimento que apresenta.
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Pelo que, por ser absolutamente inadmissível a linguagem insultuosa que o Mandatário da B... usa nos requerimentos que dirige ao Tribunal, violadores dos deveres de urbanidade e de recíproca correcção, previstos nos artigos 95º do EOA e 9º do Código de Processo Civil, decide-se, ao abrigo do disposto no artigo 27º do RCP, aplicar ao Il. Mandatário multa que se fixa em 4 UC.
Mais se determina a extração de certidão do referido requerimento e deste despacho e o seu envio à Ordem dos Advogados nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 115º do EOA.
Notifique.”
É desta decisão que vem interposto o presente recurso, pelo Il. Mandatário destinatário da condenação, que o termina formulando as seguintes conclusões:
I. No apenso de liquidação do processo de falência da A..., SA que já dura há vinte e três anos, e em resposta a inquérito junto dos credores sobre a posição que tomarão caso o Juiz do processo decida remunerar pela quantia de 15.000 euros o liquidatário, o Mandatário Recorrente, pela sua representada B..., credora hipotecária que aguardou 23 anos para uma decisão sobre a reclamação;
II. Informou os autos que discordava de tal compensação que considerava violadora de decisão de suspensão de pagamentos ao mesmo liquidatário até que o processo de liquidação terminasse, tomado pelo mesmo tribunal e transitada em julgado.
III. Mais justificando que não aceitaria tal decisão de que a ser tomada recorreria, por se tratar de liquidatário que durante 19 anos tinha já recebido centenas de milhares de euros de remuneração, o que tinha aliás, justificado a decisão de suspensão destas pela juíza de então, e mais referindo como factos que o mesmo liquidatário tinha sido acusado de práticas abusivas na liquidação, que foram julgadas pelo tribunal e que este as tinha legitimado, ou seja branqueado na sua possível ilegitimidade.
IV. A sentença ora recorrida, faz expressa referência à sentença proferida no apenso de apreciação provisória das contas, em que considerando a eventualidade de má-fé na no requerimento da prestação de contas e nas acusações formuladas, sem que tivesse sido aplicada qualquer sanção, mas valendo agora como expresso primeiro aviso, a Meritíssima Juíza dos autos entendeu que deveria condenar o mandatário em multa, por 4 unidades de conta e apresentar queixa do mandatário na Ordem dos Advogados, por comportamento não urbano para com participantes nos autos.
V. Decisão que no mesmo dia deu execução apresentando queixa à Ordem dos Advogados, sem qualquer hipótese de recurso de tal decisão, exercício do contraditório e apreciação por tribunal superior, com o intuito deliberado e óbvio até de provocar o dano de imediato na tranquilidade deste.
VI. Não porque o Mandatário tenha de recear a justiça praticada pela Ordem dos Advogados, mas porque a existência de um qualquer processo disciplinar ou a ameaça deste coarta o advogado na independência com que pode exercer o seu mandato ou o vigor com que defende os interesses de quem nele confia.
VII. E quando assim usado o poder de queixa, em conjunto com infundadas aplicação de penas de multa, ou ameaças de condenação como litigante de má-fé, que se não entende poder existir como ameaça, pois existe e é aplicada a sanção, ou não existe e a sua mera referência é espúria e irrelevante.
VIII. Pelo que a queixa à Ordem dos Advogados, sendo uma possibilidade que assiste ao Juiz, é um abuso de poder, quando utilizado como resposta e reação às opiniões dos Mandatários, como aquela que foi pedida e emitida em sentido discordante:
IX. Como é um abuso de poder quando é usada como retaliação ao que é entendido como um excesso de litigiosidade no processo, ou de retaliação do que é a mera defesa dos interesses da representada pelo Mandatário Recorrente.
X. Bem como constitui desvio de poder quando a intenção, como é o caso do despacho recorrido como efeito da posição discordante do Mandatário, será a de evitar novos recursos, requerimentos, ou outras formas de contestar as más decisões do julgador.
XI. Aliás a comunicação imediata, no próprio dia, do despacho recorrido no que respeita à queixa apresentada, disso é evidência.
XII. Bem como o é a preocupação de proferir o despacho, referindo expressamente a já interposição do recurso da decisão proferida no apenso de reclamação de créditos, quando à data, ainda não tinha sido este apresentado,
XIII. O Mandatário Recorrente nunca faltou ao respeito ao Tribunal nem ao Juiz do processo, nem mesmo ao Liquidatário ou a qualquer membro da comissão de credores, limitando-se a denunciar factos de que teve conhecimento, a promover a sua leva a julgamento e aí defender porque razões entendia que existiam factos que deveriam levar a uma responsabilidade de tais intervenientes.
XIV. O facto, que é facto, de o Mandatário Recorrente não ter recorrido da decisão que decidiu pela legitimidade da atuação de tais ajudantes do tribunal, como contratos de cessão de créditos simulados e sem preço, tentativas conseguidas de adiar o recebimento de centenas de milhares de euros durante anos; de recusa de informação das contas da liquidação durante dezenas de anos; despesas abusivas e mal justificadas; de incompetências no cumprimento das obrigações fiscais com prejuízo para a Massa e para os credores da ordem das centenas de milhares de euros, apenas revela respeito extremo pelo Tribunal.
XV. Já que o Mandatário Recorrente entendendo que tal recurso colocaria em cheque direto os valores do tribunal e o modo como este conduz a liquidação, se coibiu de ir por tal caminho. Ademais quando tal responsabilidade de aferição dos valores adotados pelo Tribunal não lhe compete.
XVI. A decisão recorrida, que é final no que ao Mandatário Recorrente respeita, e é lesivo dos seus interesses, não apenas pela condenação em multa de 4 unidades de conta, valor considerável, mas também pelas despesas, intranquilidade, e danos da sua reputação pelo simples facto de ter sido desencadeado um processo disciplinar, e que se computam e atribuem pelo menos em quinze mil euros.
XVII. Não há conteúdo suficiente nem no despacho recorrido nem na sentença anterior que é referenciada pelo Juiz a quo como primeiro e ignorado aviso, que justifique a falta de urbanidade.
XVIII. Sendo, concluiu-se a conclusão, nada mais do que a expressão de uma mera irritação ou crispação contra o Mandatário pelo excesso de litigiosidade que lhe atribui, como retaliação pelas queixas apresentadas ao Conselho Superior de Magistratura ou como tentativa de tentar moderar o mesmo nas reações às erradas e más decisões de que o processo é extremo reflexo há mais de 23 anos.
Termos em que deve o presente recurso ser julgado procedente e o despacho recorrido ser revogado.”
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Não foi oferecida qualquer resposta ao recurso.
O recurso foi admitido como apelação, com subida em separado e efeito devolutivo.
Cumpre apreciá-lo.
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2- FUNDAMENTAÇÃO

Não podendo este Tribunal conhecer de matérias não incluídas nas conclusões, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - arts. 635º, nº 4 e 639º, nºs 1 e 3 do CPC - é nelas que deve identificar-se o objecto do recurso.
No caso, a questão a decidir refere-se à legalidade das duas decisões em que se reparte o despacho em crise: a da participação dos factos selecionados pelo tribunal como integradores de uma violação de deveres de urbanidade e correcção, à Ordem dos Advogados; a da condenação do Il. Mandatário ora apelante em multa, por essa mesma violação.
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A decisão a proferir exige que se tenha presente o teor do requerimento que constitui a premissa menor da decisão recorrida, o qual, aliás, vem nela mesma transcrito.
Assim escreveu o Il. Mandatário ora apelante: “Porque se é certo que da apresentação de contas provisórias e da decisão que sobre ela recaiu, não recorreu, tal não significa a subscrição da opinião de que o liquidatário não seja mais do que um inoperacional e incompetente interveniente no presente processo, que em muito faz arrastar há dezenas de anos, por mero interesse próprio.
(…)
(…) haverá de prevenir que se criem as condições para que o processo prossiga por mais uma dezena de anos, com o liquidatário a considerar que terá direito a mais centenas de milhares de euros de honorários, apenas por emprestar o seu nome ao processo, e apenas fazendo o necessário para servir os interesses de especulação imobiliária que defende.
(…) transformando-se o que deveria ser uma simples liquidação dos bens apreendidos para a massa falida, num processo de fruição dos bens apreendidos, em proporção absolutamente desproporcionada, para ser apropriada pelo liquidatário e outros intervenientes, ou simples e gratuitamente depauperada pela atuação incompetente do liquidatário.
Pretender agora o tribunal branquear, também no que respeita aos honorários depauperantes do liquidatário, o passado, desistindo de analisar a final da liquidação os honorários devidos ou excessivos, não apenas é contraditório com o decidido anteriormente, como abre porta a mais honorários a pagar no futuro.”
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As alegações do apelante, das quais as conclusões são, por definição, uma súmula onde se especificam as questões a decidir e onde, por isso mesmo, se reflecte o conteúdo daquelas, compreendem uma descrição de alguns elementos do processo de insolvência e seus apensos e incidentes, a qual é apenas útil na contextualização dos factos relevantes e na compreensão do juízo inserido na sentença recorrida, bem como das razões da sua impugnação.
Em qualquer caso, não cabe no âmbito deste recurso a apreciação daqueles elementos, sejam eles o da qualidade das funções exercidas pelo administrador da insolvência, o do acerto das contas apresentadas ou o do mérito da decisão sobre a fixação da remuneração variável a atribui-lhe.
Neste contexto, o objecto deste recurso reconduz-se exclusivamente às duas questões acima assinaladas.
A primeira dessas questões respeita à participação à Ordem dos Advogados dos factos selecionados pelo tribunal como integradores de uma violação de deveres de urbanidade e correcção.
Alega o apelante que tal participação, que refere como tendo sido cumprida de imediato, mesmo sem trânsito em julgado, constitui uma forma de abuso de poder e de desvio de poder, por se destinar a “…tentar impedir o Mandatário de prosseguir a defesa dos interesses da sua constituinte, nomeadamente o exercício dos seus direitos de pronúncia e de recurso no processo e nas questões que nele são discutidas.”
Acontece, porém, que a comunicação de determinado facto à Ordem dos Advogados para que, no exercício de competências próprias e exclusivas, aprecie da sua eventual relevância disciplinar não consubstancia qualquer acto decisório que, adjectiva ou substantivamente, produza qualquer efeito no processo.
Com efeito, uma tal decisão esgota-se na comunicação de um facto a outrem, não dispondo sobre quaisquer direitos, não impondo quaisquer obrigações, não condicionando por qualquer forma a prática de qualquer acto dentro do próprio processo.
Perante uma tal comunicação, a Ordem dos Advogados poderá iniciar um procedimento disciplinar e, por efeito disso, apreciar e concluir pela existência de responsabilidade disciplinar do Il. Mandatário, pela sua inexistência, ou pode mesmo arquivar a participação e nem sequer iniciar qualquer procedimento. Porém, toda essa actividade decorrerá para além do processo e de qualquer intervenção do próprio tribunal que fez a comunicação. Pelo contrário, dentro do próprio processo nenhum efeito advém para as partes ou para qualquer interveniente. Nada, no âmbito do processo e dos interesses que nele estão em litígio, sofre qualquer efeito em resultado desse despacho.
Verifica-se, pois, que uma tal decisão de comunicação de factos ocorridos num processo, à Ordem dos Advogados, para apreciação da eventual responsabilidade disciplinar do seu autor, não é recorrível, nos termos do nº 1 do art. 630º do CPC. Como refere Abrantes Geraldes, Recursos no Novo C.P.C., pg. 56, devem ser tidos como de mero expediente os despachos que de forma alguma possam interferir no resultado da lide, os quais, como tal, não podem ser objecto de recurso. É o que acontece com o despacho em questão.
De resto, esta solução é exactamente paralela à actuação de qualquer das partes ou de qualquer interveniente que pretenda obter uma certidão de determinado acto processual para apresentar, a esse propósito, uma participação disciplinar ao CSM. Também aí não se poderá limitar essa actuação da parte, sujeita à sua livre disponibilidade, não se admitindo, por exemplo, que o necessário despacho de emissão e entrega dessa certidão seja sujeito a impugnação por recurso da parte contrária, por exemplo, sob a alegação de que essa iniciativa tenderia a condicionar a actuação futura do tribunal.
E isso, de resto, será exactamente igual no caso de ser um Mandatário de uma das partes a requerer uma certidão de um acto processual praticado por outro Mandatário, para participar disciplinarmente à Ordem dos Advogados.
Nenhuma destas situações tem qualquer efeito processual sobre o litígio que constitui o objecto do processo, pelo que as correspondentes decisões são meramente instrumentais, sem conteúdo decisório adjectivo ou substantivo que possa justificar a sua impugnação por recurso.
Por isso, coerentemente, o cumprimento de um despacho como o visado pelo ora apelante não carece de aguardar o seu trânsito em julgado, nenhuma anomalia se verificando no procedimento descrito pelo apelante, acerca do seu imediato cumprimento pela secretaria.
Acresce que a ausência de conteúdo decisório, bem como de qualquer efeito processual, prejudica que a comunicação à Ordem dos Advogados determinada na decisão em crise consubstancie qualquer abuso de poder ou desvio de poder.
Com efeito, de uma tal iniciativa do Tribunal não resulta qualquer inibição para o apelante em relação à prática de qualquer acto que entenda dever praticar no processo, designadamente na representação dos interesses que lhe estão confiados. Neste contexto, obviamente não poderá relevar qualquer perspectiva estritamente subjectiva e anímica. Assim, o que é certo é que não estamos sequer perante um acto discricionário do tribunal, mas perante um acto de mero expediente, insusceptível de revisão por um tribunal superior.
Pelo exposto, no que à primeira questão se refere, tem-se por insuscetível de crítica a decisão recorrida.
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No que respeita à segunda questão, cumpre sindicar a conclusão sobre ter o Il. Mandatário ora apelante incorrido na violação de deveres de urbanidade e correcção, justificando a sua condenação em multa, como definido na decisão recorrida.
Dispõe o art. 95º do ESTATUTO DA ORDEM DOS ADVOGADOS (Lei n.º 145/2015, de 09 de Setembro): “No exercício da profissão o advogado deve proceder com urbanidade, nomeadamente para com os colegas, magistrados, árbitros, peritos, testemunhas e demais intervenientes nos processos, e ainda oficiais de justiça, funcionários notariais, das conservatórias e de outras repartições ou entidades públicas ou privadas.”
Norma paralela se encontra no art. 9º do CPC, que estipula:
“1 - Todos os intervenientes no processo devem agir em conformidade com um dever de recíproca correção, pautando-se as relações entre advogados e magistrados por um especial dever de urbanidade.
2 - Nenhuma das partes deve usar, nos seus escritos ou alegações orais, expressões desnecessária ou injustificadamente ofensivas da honra ou do bom nome da outra, ou do respeito devido às instituições.”
Urbanidade consiste na observância de regras de educação e de respeito para com os restantes sujeitos e intervenientes processuais. Correcção tem sentido semelhante, impondo a o cumprimente de tais regras de urbanidade.
A observância de tais deveres de correcção e urbanidade não exclui o direito à expressão de opinião, de crítica, de reacção contra actos tidos como indevidos ou contrários aos interesses próprios ou representados.
Impõe, isso sim, que tais críticas e reacções sejam enunciadas e operadas sem agressão à honra e consideração de outros sujeitos ou intervenientes processuais e, sendo caso disso, que se operem através de meios processuais adequados, para que não sejam obliterados os fins do próprio processo.
Assim, e atentando na situação sub judice, cabendo ao Il. Mandtário ora apelante, em representação do seu cliente B..., manifestar-se sobre a pretensão do administrador de insolvência de recebimento de determinado valor a título de componente variável da remuneração prevista, tinha aquele todo o direito de manifestar a sua discordância, arguir a contradição entre essa pretensão e um despacho anterior que entendia prejudica-la, sustentar o não merecimento da remuneração em função da falta de mérito que atribuía à prestação funcional desenvolvida. Mas sempre teria de o fazer com observância daqueles deveres de urbanidade e correcção, o que lhe impunha a proibição de recorrer ao uso de expressões atentatórias dos valores morais pelos quais as pessoas gostam de se definir e de ser reconhecidas. Sem prejuízo, em sede própria, na eventualidade de identificação de condutas reveladoras da violação desses valores, sempre poderá qualquer pessoa ou entidade promover a respectiva avaliação e censura, sendo caso disso.
Entendeu, porém, o tribunal que os termos em que o Il. Mandatário ora apelante se pronunciou não se limitaram a enunciar o seu desacordo e crítica, para motivação desse mesmo desacordo, antes resultando na agressão àqueles valores e, assim, em violação do dever de correcção e urbanidade imposto pelas regras citadas.
Analisado o requerimento em que se materializou a actuação do Il. Advogado ora apelante, é impossível divergir da conclusão do tribunal recorrido.
Com efeito, afirma ali que o liquidatário é inoperacional e incompetente, que fez arrastar por interesse próprio o processo de insolvência; que tem interesse em fazer arrastar o processo por mais uma dezena de anos para ter direito a mais centenas de milhares de euros, fazendo apenas o necessário para servir os interesses de especulação imobiliária que defende; que providencia no sentido de fruir dos bens apreendidos, de se poder, com outros intervenientes, apropriar de bens da massa insolvente, ou actuando incompetentemente e permitindo que esta seja depauperada.
Para além disso, afirma que se o tribunal decidir remunerar o administrador da insolvência, isso traduzirá uma pretensão de branquear aquela actuação que acabou de classificar.
Desnecessário se torna referir os meios de impugnação que, a seu tempo e a propósito das diferentes matérias, o credor B... poderia e certamente terá usado para censurar e reverter a conduta que considera desadequada, do administrador de insolvência. Tal como desnecessário se torna reconhecer a sua independência e liberdade para se pronunciar sobre a legalidade, adequação ou mérito da pretensão de pagamento do valor remuneratório em discussão.
Todavia, o que não pode fazer é manifestar o seu desacordo quanto a essa concreta pretensão – nas circunstâncias em que só isso está em discussão - imputando ao administrador de insolvência aquelas condutas desvaliosas, o respectivo interesse pessoal na obtenção de proventos e vantagens para si, em detrimento dos credores e a pressuposta intenção de prolongar a situação
Por outro lado, estando-lhe reservada a faculdade de discordar da decisão do tribunal sobre a pretensão remuneratória em causa e de a impugnar por recurso, não lhe é alternativa e é violador dos mesmos deveres de urbanidade e correcção dizer que o tribunal, decidindo da forma que lhe desagrada, irá branquear o anteriormente ocorrido.
Com efeito, ao utilizar a expressão “branquear”, o Il. Mandatário ora apelante deixa inferir a sua intenção de afirmar que o tribunal deixará voluntariamente de cumprir a sua função fiscalizadora, em benefício do administrador, que ficará isento de uma responsabilidade pelo incumprimento anterior da sua função, ou pela prática de qualquer ilícito no exercício da mesma. Dessa forma, o Il. Mandatário imputa ao tribunal a disponibilidade para deixar de exercer as suas competências, em favorecimento de outrem, atentando contra os valores pelos quais o tribunal deve ser reconhecido.
Conclui-se, pois, em concordância com o tribunal a quo, pela violação de deveres de urbanidade e correcção pelo Il. Mandatário da B..., ora apelante.
Esta conclusão de forma alguma é afectada pelo conjunto de circunstâncias relatadas pelo apelante, segundo uma perspectiva claramente subjectiva, e que, a seu ver, poderiam dar azo à justeza da sua avaliação crítica. Por um lado, uma tal crítica só poderá ter lugar – e terá tido – em sede própria, a propósito do cumprimento de cada uma das funções do administrador judicial; por outro lado, a crítica e pretensão de censura de qualquer acto jamais poderá deixar de observar, em si mesma, o cumprimento dos referidos deveres de correcção e urbanidade.
Identificada a violação dos referidos deveres, é legítima a responsabilização do Il. Mandatário ora apelante por via da aplicação e uma multa, atento o disposto no art. 150º, nº 1 do CPC, sendo que nada foi oposto aos termos da aplicação do regime do art. 27º, nº 4 do RCP, designadamente quanto ao montante da multa.
Resta, em suma, em plena concordância com a decisão recorrida, negar provimento ao presente recurso.
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Sumariando:
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3 - DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes que constituem este Tribunal em julgar improcedente a apelação, com o que confirmam a douta decisão recorrida.

Custas pelo apelante.

Registe e notifique.
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Porto, 18 de Abril de 2023
Rui Moreira
João Diogo Rodrigues
Anabela Miranda