Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2049/11.9PAVNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA DOLORES DA SILVA E SOUSA
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
ELEMENTOS DO TIPO
Nº do Documento: RP20120919PAVNG.P1
Data do Acordão: 09/19/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Na Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.° 98/X, que esteve na origem da Lei n.° 59/2007, de 4/9, escreve-se: «na descrição típica da violência doméstica e dos maus tratos, recorre-se, em alternativa, às ideias de reiteração e intensidade, para esclarecer que não é imprescindível uma continuação criminosa.»
II - Para a realização do crime torna-se necessário que o agente reitere o comportamento ofensivo, em determinado período de tempo, admitindo-se, porém, que um singular comportamento bastará para integrar o crime quando assuma uma intensa crueldade, insensibilidade, desprezo pela consideração do outro como pessoa, isto é, quando o comportamento singular só por si é claramente ofensivo da dignidade pessoal do cônjuge.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 2049/11.9PAVNG.P1
Vila Nova de Gaia.
Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto.
2ª secção.

I-Relatório.
No Processo Comum com intervenção de Tribunal Singular nº 2049/11.9PAVNG. do 1º Juízo Criminal de Vila Nova de Gaia foi submetido a julgamento o arguido B…, solteiro, gestor, nascido a 06.12.1969, no Brasil, filho de C… e D…, residente na Rua …, n.º .., …., …, Maia.
A sentença de 09 de Maio de 2012, depositada no mesmo dia, tem o seguinte dispositivo:
“Em face do exposto, julgo a acusação procedente, por provada, e, em consequência, condeno o arguido B…:
1.1. Pela prática, como autor material, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo art. 152º, n.º 1, al. b) e nº 2 do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos de prisão cuja execução, ao abrigo do disposto pelos art. 50º do Código Penal, suspendo pelo período de 2 (dois) anos, acompanhada de regime de prova - que incida, fundamentalmente, na prevenção da violência doméstica e com a obrigação de frequência do Programa para Agressores de Violência Doméstica - e sujeita à regra de conduta de proibição de contactar com a ofendida.
1.2. No pagamento das custas, fixando-se em 3 UC a taxa de justiça e nos demais encargos a que a sua actividade deu causa - art. 513º, n.º 1 do CPP e art. 3º, nº 1, 8º, nº 5 do RCP e Tabela III do mesmo.
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Após trânsito:
- Remeta boletim à D.S.I.C da DGSJ;
- Comunique à APAV;
- Cumpra o disposto pelo art. 37º da Lei 112/09 de 16/9, comunicando a presente decisão, sem dados nominativos, à Direcção Geral da Administração Interna e à Comissão para a Cidadania e Igualdade do Género;
- Comunique o teor da presente sentença aos serviços de reinserção social nos termos do disposto pelo art. 494º, nº 2 do Código de Processo Penal;
- Solicite aos serviços de reinserção social que, no prazo de 30 dias, procedam à elaboração do plano de readaptação nos termos do disposto pelo art. 494º, nº 3 do Código de Processo Penal, que incida na prevenção da violência doméstica;
- Comunique a extinção das medidas de coacção – art. 214º, nº 1, al. e) do Código de Processo Penal – ao OPC da área da residência da ofendida (fls. 74) e à ofendida;
- Cumpra o disposto pelo art. 191º, al. a) da Lei 23/07 de 4/7 remetendo cópia certificada da presente decisão ao SEF.”
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Inconformado, o arguido interpôs recurso, apresentando a motivação de fls. 266 a 274, que remata com as seguintes conclusões:
“A) Os pontos 3, 5, 6, 7 e 8 dos factos da matéria de facto, considerados provados na Sentença posta em causa, foram apenas afirmados em audiência de julgamento pela pretensa vítima, a ofendida, sem no entanto terem sidos referidos, muito menos confirmados por qualquer outra testemunha apresentada pela Acusação.
A própria fundamentação da matéria de facto considerada como provada apresentada na Sentença recorrida, não apresenta quaisquer referências a estes factos.
Assim, considera-se que existe uma manifesta insuficiência de prova para dar como provados estes factos contidos nos pontos 3, 5, 6, 7 e 8 da matéria de facto considerada provada, pelo que deve o arguido não ser condenado pelos mesmos.
B) Os factos 9, 10, 11, 12 da matéria de facto dada como provada não se podem considerar como provados, uma vez que apenas forma relatados em audiência de julgamento pela ofendida, sem terem sido confirmados por qualquer testemunha apresentada.
Assim os factos aludidos nos pontos 9° a 12° dos factos provados na sentença recorrida, não se encontram fundamentados, carecem de prova, pois nenhuma testemunha à excepção da própria queixosa, confirmaram os mesmos factos, razão pela qual devem ser considerados como não provados, sendo o arguido absolvido da prática dos mesmos.
C) Não deve o recorrente ser condenado pela prática dos factos contidos no ponto 15° da matéria de facto dada como provada.
Devem Vª EXªs Juízes Desembargadores entender que o recorrente foi atacado pela mãe da ofendida, E… e ainda cercado pela ofendida, o que levou o recorrente a empurrar a ofendida, para se proteger da mesma
Razão pela qual devem ser considerados estes factos como não provados, sendo o arguido absolvido da prática dos mesmos.
D) O Arguido não tem antecedentes criminais. O Arguido encontra-se inserido socialmente na sociedade. O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste, a intensidade do dolo, no caso em análise, não se apresentam de grau elevado.
Assim sendo, é de inteira justiça invocar para os devidos efeitos legais, no caso concreto, a atenuação especial da pena, ao abrigo do disposto nos artigos 72° nº 1, 2 e 73° do Código Penal, devem os Excºs Sr Juízes Desembargadores deste Tribunal, perante estes factos, atenuar a pena em que o Recorrente foi condenado, entre outros, e assim, reduzir a pena ao seu mínimo legal.
E) Não se encontram preenchidos os elementos do tipo de ilícito objectivo do crime pelo qual o recorrente foi condenado, crime de violência doméstica, nomeadamente a verificação de uma agressão no corpo ou na saúde da vítima. Ora, como se observou acima, o Tribunal "a quo" não fez prova deste elemento, assim, decorrente das declarações do Recorrente, bem como dos depoimentos das testemunhas não afirmaram terem visto o recorrente a agredir a ofendida, a única coisa que viram foi o recorrente a tentar entrar em casa da ofendida e a defender-se desta e da sua mãe quando já se encontravam na via pública, o que nunca poderá ser considerado como um comportamento agressivo do recorrente para com a ofendida.
Ainda, da análise da matéria de facto dada como provada, não se afere que o recorrente tenha de forma reiterada violentado a ofendida, nem sequer os acontecimentos ocorridos a 13 de Novembro de 2011 permitem concluir que o arguido praticou adoptou com a ofendida um comportamento violente de extrema gravidade.
Assim, devem os Exºs Sr.s Juízes Desembargadores deste Tribunal, perante estes factos, entender como não provado que o Recorrente tenha através da sua conduta preenchido os elementos invocados do tipo de ilícito objectivo do crime em análise.
F) Não se encontra preenchido o elemento do tipo de ilícito subjectivo do crime de violência doméstica previsto pelo artigo 152 do Código Penal.
O preenchimento do tipo subjectivo, pressupõe uma conduta intencional dirigida à lesão do corpo ou da saúde da vítima.
Ora, o recorrente apenas empurrou a ofendida para se defender, uma vez que estava a ser abordado por esta e atacado pela mãe da ofendida, na altura em que empurrou a ofendida para evitar uma agressão daquela.
Assim, devem os Exºs Srºs Juízes Desembargadores deste Tribunal, perante estes factos, entender como não provado que o Recorrente tenha agido com dolo, manifestando a intenção de agredir o corpo da ofendida.
Perante estes dados, devem os Excrs Sros Juízes Desembargadores, decidir com base no principio "in dubio pro reo" que se encontra constitucionalmente fundado no principio da "presunção de inocência" até ao trânsito em julgado da Sentença condenatório, disposto no artigo 32º nº2 da C.R.P. Ora, não nos parece que haja aqui um convencimento para além de toda a dúvida razoável da veracidade dos factos aduzidos em juízo pela Acusação, tendo em conta os factos que acima referimos, que suscitam grandes dúvidas acerca da veracidade, logo deve ser aplicado o presente princípio e desta forma, serem os factos imputados ao arguido dados como não provados, valorados a seu favor.
Termos em que, deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando a decisão proferida na Sentença recorrida e em consequência, ser substituída por douto Acórdão que absolva o Recorrente da prática do crime de violência doméstica.
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O Mº Pº junto do Tribunal respondeu, conforme fls. 283 a 299, formulando as seguintes conclusões:
1º- Em sede de apreciação da prova, em Direito Penal, vigora o Princípio da Livre Apreciação da Prova, consagrado no artigo 127º, do Código de Processo Penal, segundo o qual, “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”, tendo ainda em consideração, no que concerne à prova testemunhal, a imediação e a oralidade com que a prova é produzida, relevando, para além do conteúdo das declarações e dos depoimentos prestados, o modo como os mesmos são assumidos pela testemunha e a forma como são transmitidos ao tribunal.
2º- Nos presentes autos, o Tribunal procedeu à análise conjugada de toda a prova, efectuada também à luz de juízos de normalidade e experiência comum, analisando os depoimentos prestados de acordo com a oralidade e imediação, tendo o Tribunal efectuado uma correcta apreciação da prova e apuramento dos factos que considerou como provados, tal como se explicita de forma clara e complete na motivação da matéria de facto.
3º- A circunstância de apenas a ofendida ter relatado alguns dos factos considerados como provados, designadamente os ocorridos no interior da residência comum, não obsta a que o Tribunal os considere provados. Caso contrário, estaria ao Tribunal vedado apreciar e condenar a maior parte dos crimes de violência doméstica, porquanto os mesmos pressupõe actuações que sobretudo ocorrem no interior da residência do casal e das quais não existem outras testemunhas para além das próprias vitimas.
4º- Essencial é que o Tribunal considere o depoimento das referidas vítimas credível e verdadeiro, tendo em consideração a oralidade e a imediação com que o mesmo é produzido, de acordo com o princípio da livre apreciação da prova.
5º- Nos presentes autos, o Tribunal considerou o depoimento da ofendida credível e verdadeiro sendo que os factos ocorridos no dia 13 de Novembro (data em que o arguido por três vezes se dirigiu à residência da ofendida) foram corroborados pelas restantes testemunhas inquiridas.
7º- Não se verificam os pressupostos previstos para a atenuação especial da pena, sendo que a pena concreta aplicada ao arguido se situa no limite mínimo da pena abstracta aplicável.
8º- Mostram-se preenchidos os pressupostos do crime de violência doméstica.
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O recurso foi admitido para este Tribunal da Relação do Porto, por despacho constante de fls. 300.
Nesta Relação, o Excelentíssimo PGA emitiu Parecer no sentido da improcedência do recurso.
Cumprido o artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não houve resposta.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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II- Fundamentação.
Como é jurisprudência assente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada, em que sintetiza as razões do pedido - artigo 412.º, n.º 1, do CPP -, que se delimita o objecto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior.
1.-Questões a decidir
Face às conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação apresentada, são as seguintes as questões a apreciar e decidir:
A)- Impugnação da matéria de facto.
B)- Violação do princípio in dubio pro reo.
C)- Subsunção jurídica.
D)- Atenuação especial da pena.
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2. Factos provados
Segue-se a enumeração dos factos provados e não provados.
Factos provados:
1 - Desde data não apurada do ano de 1993 o arguido e F… viveram como se de marido e mulher se tratassem, tendo dessa relação nascido, em 23.09.1994, a menor G….
2 - O arguido e a companheira passaram a residir, primeiro na …, em número de polícia não apurado, depois na Rua …, nº …, …, e, desde Março de 2010, na Rua …, nº …, …, em …, todas elas em Vila Nova de Gaia.
3 - Em data não apurada que se situa no mês de Abril de 2004, no interior da residência do casal, sita na Rua …, após terem discutido por questões de dívidas, o arguido agarrou na F… e atirou-a contra o guarda-fatos e depois atirou-a contra a parede do quarto do casal, tendo a ofendia caído ao chão e sentido dores nas zonas do corpo atingidas.
4 - Em data não apurada do início do mês de Setembro de 2011, o arguido saiu de casa.
5 - No dia 30 de Outubro de 2011, cerca das 20:00 horas, o arguido dirigiu-se à residência da ofendida sita na Rua …, discutiu com ela e proferiu-lhe as expressões “ó puta isto está-te na massa do sangue, eu vou-me embora mas volto”.
6 - Nessa ocasião o arguido quis ainda bater na ofendida, tendo sido impedido pela filha menor de ambos, que interveio em defesa da mãe.
7 - Na madrugada do dia 6 de Novembro de 2011, entre as 02:00 horas e as 03:00 horas, o arguido telefonou à ofendida e disse-lhe: “és uma puta, és uma vaca, fodes com todos, és uma vadia, uma porca, badalhoca, vai-te lavar… tens amantes” e que, caso fosse à sua residência, iria dar-lhe com um vaso na cabeça.
8 - O que causou medo à ofendida.
9 - No dia 13 de Novembro de 2011, da parte da manhã, a hora não apurada, o arguido enviou para o telemóvel da ofendida uma mensagem de texto (sms) com o seguinte teor “vou aí a casa chama a polícia, faz o que quiseres”.
10 - A ofendida leu essa mensagem e ficou assustada.
11 - Nesse dia, cerca das 15:00 horas, porque a ofendida não o deixava entrar na habitação, o arguido começou a pontapear a porta da entrada, ao mesmo tempo que dizia que queria entrar, que a casa lhe pertencia e lhe chamava “puta” e “vaca”.
12 - Com receio do que lhe pudesse acontecer, a si e à filha menor, atenta a agressividade do arguido, a ofendida contactou a P.S.P., tendo ali comparecido agentes que aconselharam o arguido a ausentar-se do local.
13 - Cerca das 18:10 horas desse dia, o arguido regressou à habitação da ofendida e, porque queria entrar, muniu-se de ferramentas e tentou remover a fechadura da porta de entrada, ao mesmo tempo que lhe dizia “ó puta abre a porta”.
14 - A ofendida, com medo que o arguido conseguisse entrar na sua habitação, contactou com a autoridade policial que ali compareceu, e o impediu de alcançar os seus propósitos.
15 - Cerca das 20:38 horas desse mesmo dia, o arguido, aproveitando-se do facto da ofendida se encontrar na via pública, junto da mencionada habitação, abeirou-se dela e empurrou-a várias vezes, até que esta perdeu o equilíbrio, caiu e bateu com a cabeça no chão, onde ficou inanimada.
16 - Em virtude dessa conduta a ofendida recebeu tratamento médico no Centro Hospitalar de ….
17 - E sofreu lesões no pescoço, nomeadamente, mobilidade osteo-articular de amplitudes máximas simétricas e mantidas, com dores à inclinação lateral direita, que lhe determinaram dois dias para a cura, sem afectação da capacidade para o trabalho geral e profissional, não tendo resultado, em condições normais, quaisquer consequências permanentes.
18 - O arguido agiu com o propósito conseguido de molestar psicológica e fisicamente a ofendida F…, sua ex-companheira e ainda quando ambos viviam juntos como se de marido e mulher se tratassem, fazendo-a temer pela sua integridade física, o que fez no interior da habitação da ofendida e onde ambos viveram e, por vezes, na presença da filha menor de ambos.
19 - Agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
20 - O arguido é solteiro, tem uma filha menor, está desempregado e não aufere qualquer rendimento, reside com a irmã, que provê ao seu sustento.
21 - Não lhe são conhecidos antecedentes criminais.
22 - É licenciado em direito.
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Factos não provados:
a) Durante o período em que coabitou com a ofendida, o arguido, por várias vezes, em datas não apuradas, no interior da residência de ambos, proferiu-lhe as expressões “puta”, “vaca” e “vadia”.
Não se provaram outros factos que não se mostrem descritos como provados ou não provados.
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3.- Apreciação do recurso.
A)- Impugnação da matéria de facto.
O recorrente impugna os factos provados sob os artigos 3,5,6,7,8,9,10,11,12 e 15.
Para tanto sustenta nas suas conclusões A) e B) em relação aos factos 3 e 5 a 12, essencialmente que nenhuma testemunha à excepção da própria ofendida confirmaram tais factos. E em relação ao facto provado sob o n.º 15 que o recorrente foi atacado pela mãe da ofendida e cercada pela ofendida, tendo o arguido empurrado a ofendida para se proteger da mesma.
Atenta a forma inócua como o recorrente impugnou a matéria de facto, é curial verificar como fez o tribunal a valoração da prova e como fundamentou a sua convicção. E nesta sede escreveu o Tribunal:
“A convicção do tribunal alicerçou-se no conjunto da prova produzida e examinada em audiência.
O arguido afirmou nunca ter agredido, ameaçado ou insultado a ofendida e admitiu apenas ter-se deslocado à sua residência no dia 13 de Novembro, data em que tentou arrombar a porta e retirar o canhão da fechadura. Afirmou que assim procedeu por não ter onde pernoitar e entender ter direito a permanecer nessa residência.
A ofendida F… disse que viveu em união de facto com o arguido durante cerca de 18 anos, sempre em Vila Nova de Gaia, primeiro na …, depois na Rua … e, finalmente, na Rua …. Essa relação decorreu inicialmente sem incidentes mas, a partir de determinada altura, o arguido passou a chamar-lhe louca e, porque era obesa, afirmava que tinha “gordura acumulada no cérebro”, fazia-a sentir-se “uma nulidade”. Quanto à primeira agressão física situou-a no ano de 2004, quando a filha tinha 10 anos e em data próxima do 25 de Abril, disse que discutiram por causa de dívidas e que no decurso da discussão foi empurrada pelo arguido contra o armário do quarto e depois atirada com a cabeça contra a parede.
Não descreveu outras agressões enquanto coabitaram, assim como não confirmou ter sido insultada com os impropérios que constavam da acusação, durante esse período.
Quanto à separação do casal situou-a em Setembro de 2011, altura em que o arguido saiu de casa. Porém, porque a separação foi amigável continuou a permitir ao arguido que ali se deslocasse para ver a filha, sendo que numa dessas ocasiões, em Outubro, no decurso de uma discussão, relacionada com o facto de o arguido não aceitar a sua decisão de não permitir que ali voltasse a residir, foi por ele apelidada de “puta”, dizendo-lhe que regressaria e dirigindo-se a si de modo agressivo, tendo a filha de ambos intervindo por forma a evitar qualquer confronto.
Confirmou a ocorrência constante de insultos, após a separação, sendo apelidada pelo arguido de “puta”, “vaca” e “badalhoca” e acusada de ter amantes.
Quanto ao episódio de 6 de Novembro disse que nesse dia tinha permitido que a sua filha fizesse uma festa em casa e que o arguido, tendo passado no local e julgando que tinha homens em casa, lhe telefonou e proferiu aquelas expressões. E quando lhe disse que seria melhor falarem pessoalmente afirmou que se fosse a sua casa seria para lhe atirar um vaso à cabeça, o que lhe causou medo.
Relativamente ao sucedido no dia 13 de Novembro, um domingo, afirmou que se viu obrigada a chamar a polícia várias vezes porque o arguido começou a enviar-lhe mensagens escritas de manhã avisando-a que iria arrombar a porta, tendo procurado concretizar essa ameaça quando se deslocou à sua residência, depois do almoço, pontapeando a porta e ordenando-lhe que a abrisse ao mesmo tempo que lhe chamava “puta” e “vaca”. Com medo, chamou a polícia que ali compareceu e conseguiu que o arguido abandonasse o local. Todavia, cerca das 18:00 horas, quando estava acompanhada pela filha e pela mãe, o arguido retornou acompanhado por um outro homem e, munido de ferramentas, começou a tentar desmontar o canhão da fechadura da porta da residência. Perante estes factos chamou novamente a polícia que impediu o arguido de prosseguir os seus intentos. Referiu que estes factos lhe causaram muito medo e inquietação, o que se agravou nessa noite quando o arguido voltou ao local e a agrediu. Nessa ocasião, porque a sua mãe tinha que regressar a casa e não se sentia apta para conduzir, pediu a um amigo que a transportasse. Deste modo, acompanhou-a até à porta de entrada do prédio onde ficou a aguardar que entrasse no carro, altura em que vê o arguido a dirigir-se à sua mãe. Então, com receio do que ele lhe pudesse fazer, saiu do prédio, foi em sua direcção, tendo-se iniciado uma discussão no decurso da qual o arguido lhe desferiu vários empurrões, tendo um deles a projectado ao solo onde embateu com a cabeça e ficou inconsciente. Mostrou grande pesar por ser constantemente incomodada pelo arguido, mesmo depois de terem terminado o relacionamento.
A testemunha H…, agente da PSP, disse ter sido chamado à residência da vítima, no dia 13 de Novembro depois do almoço, onde encontrou o arguido. A ofendida transmitiu-lhe que momentos antes este havia tentado arrombar a porta aos pontapés. No local pôde confirmar esses factos já que ali existiam vestígios que os confirmavam. Afirmou que a ofendida e a filha estavam visivelmente perturbadas e amedrontadas e que ambas recusaram permitir a entrada do arguido na residência. Contactou também o arguido que lhe referiu pretender retornar àquela que havia sido a habitação conjugal e a quem transmitiu que não o poderia fazer e que deveria abandonar o local como, de facto, abandonou.
A testemunha I…, agente da PSP, referiu ter sido chamado ao local, pelas 18:00 horas, desse mesmo dia tendo encontrado o arguido munido de ferramentas a tentar abrir a porta da residência da ofendida. Disse que tanto a ofendida, a filha e a mãe estavam visivelmente assustadas.
A testemunha J…, agente da PSP, disse passar ocasionalmente no local quando viu uma senhora no chão e várias pessoas à sua volta a fazerem sinais para que parasse. Dirigiu-se a essas pessoas e viu a ofendida prostrada no chão inconsciente. No local estavam presentes a mãe e uma vizinha da ofendida.
A testemunha E…, mãe da ofendida, disse ter presenciado o episódio do dia 13 de Novembro, ao fim da tarde, quando o arguido tentou arrombar a porta e à noite quando agrediu a sua filha. Estava em casa com a filha e a neta, quando o arguido munido de ferramentas começou a tentar desmontar a fechadura ao mesmo tempo que dizia “ó puta abre a porta”, o que muito assustou a ofendida, receando que o arguido ali entrasse. À noite quando saía do prédio o arguido mais uma vez ali compareceu, parou o carro perto do carro da pessoa que a ia transportar a casa e dirigiu-se a si. Ao vê-lo a ofendida, que estava à porta do prédio, e com receio do que o arguido lhe pudesse fazer, foi ao seu encontro tendo por ele sido empurrada caindo ao chão onde ficou inanimada. No mais afirmou nunca ter presenciado qualquer agressão física do arguido à ofendida, mas ter escutado, por vezes, a chama-la “louca” e que “tinha gordura no cérebro”.
A testemunha K…, vizinha da ofendida, reside no …, disse ter escutado o arguido a chamar “puta” e “vaca” à ofendida, já depois da separação e que no dia 13 de Novembro ouviu gritos, foi à varanda e viu a ofendida estendida no chão e o arguido a introduzir-se no carro e a fugir do local. Foi prestar auxílio à ofendida que se encontrava inanimada, tendo sido transportada de ambulância ao hospital.
A testemunha L…, empregada doméstica da mãe da ofendida e que, por vezes, também prestava serviços de limpeza na residência do casal disse nunca ter presenciado quaisquer agressões ou insultos enquanto o casal coabitou, mas ter escutado, por uma vez, já depois da separação, um telefonema do arguido à ofendida onde a apelidou de “puta”.
Os depoimentos destas testemunhas foram credíveis, isentos, revelaram conhecimento directo dos factos e, como tal, mereceram acolhimento. Na verdade, os agentes da PSP limitaram-se a relatar os factos que presenciaram no exercício de funções, sendo que nenhum deles conhecia o arguido ou a ofendida. A testemunha K…, demonstrou ser amiga do arguido e da ofendida, no decurso das declarações, espontaneamente, dirigiu-se ao arguido pedindo desculpa por estar a relatar os factos que presenciou. A mãe da ofendida também prestou um depoimento que o tribunal reputou isento e desinteressado, disse nunca ter presenciado qualquer agressão física antes da ocorrida em Novembro e relatou apenas o que presenciou nesse dia, sendo certo que os agentes policiais confirmaram a sua presença no local no dia em questão. O depoimento da ofendida também não nos mereceu qualquer reserva, foi sincero e sereno, foi corroborado pelos depoimentos das restantes testemunhas e pelos elementos clínicos juntos aos autos e não nos pareceu que tivesse qualquer animosidade para com o arguido, ao invés o tribunal ficou convencido que foi um culminar de atitudes violentas e intimidatórias por parte do arguido que a levaram a denunciar os factos.
O mesmo não se poderá dizer do depoimento da testemunha M…, irmã do arguido, que pretendeu fazer crer que acompanhou o arguido no dia 13 de Novembro à noite, afirmando estar presente nessa ocasião. Todavia, referiu que a ofendida não estava inconsciente, que ainda tentou falar com ela e que não viu a polícia no local, factos frontalmente contrariados pelos depoimentos das testemunhas J…, E… e K…, já que nenhuma delas confirmou a sua presença no local e todas elas afirmaram que a ofendida ficou inanimada no solo tendo recuperado os sentidos já na ambulância, o que a ofendida também confirmou. O tribunal ficou, por isso, convencido de que esta testemunha nada presenciou porque não esteve sequer no local e que, ao afirmar o contrário, mentiu.
O depoimento da testemunha N…, cunhado do arguido, em nada adiantou na medida em que afirmou não ter presenciado nenhum dos factos denunciados. Quanto ao relacionamento do casal disse que nunca presenciou qualquer agressão ou injúria, o que é normal, dado usualmente estes factos não ocorrem na presença de terceiros.
A testemunha G…, filha do arguido, recusou-se validamente a depor.
Quanto à prova documental o tribunal valorou o conjunto dos documentos juntos aos autos, designadamente, o contrato de compra e venda de fls. 20 a 23, o assento de nascimento de fls. 91 e 92, o exame médico-legal de fls. 93 a 96 e 152 a 155, os registos clínicos de fls. 105 a 107 e 109 a 113, a certidão de fls. 148 a 151 e o certificado do registo criminal de fls. 229.
Quanto às condições de vida do arguido foram valoradas as suas próprias declarações.
O facto não provado assim se considerou porquanto a ofendida, como se deixou exposto, não o confirmou, assim como não o fizeram as testemunhas inquiridas.”
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As als. a) e b) do nº 3 do art. 412 do CPP dispõem que a impugnação da matéria de facto implica a especificação dos «concretos» pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados e das «concretas» provas que impõem decisão diversa. Este ónus tem de ser observado para cada um dos factos impugnados. Em relação a cada um têm de ser indicadas as provas concretas que impõem decisão diversa e em que sentido devia ter sido a decisão. Pois, há casos em que, face à prova produzida, as regras da experiência permitem ou não colidem com mais do que uma solução.
Ora, lida a motivação de recurso, verifica-se que o recorrente indicando como factos que não deveriam ter sido dado como provados, os factos n.ºs 3, 5 a 12 e 15 dos factos provados, não indica qualquer prova que imponha decisão diversa da tomada pelo tribunal. Pretende que a única prova produzida foi aquela que resultou do depoimento da ofendida e, que uma vez que o arguido negou a prática desses factos e mais nenhuma testemunha os confirmou, não devia o Tribunal ter dado tais factos por provados.
Não há dúvidas, em face do expendido que o que o recorrente não aceita e, portanto, critica e ataca a forma como o tribunal valorou a prova. Ataca a credibilidade que o tribunal deu às declarações da ofendida, pretextando que não houve prova alguma que a corroborasse.
O recurso da matéria de facto não se destina a postergar o princípio da livre apreciação da prova, que tem consagração expressa no art. 127 do CPP e do qual decorre que a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente. No seu recurso, o arguido em momento algum reputou como violadas essas regras da experiência.
A fundamentação do tribunal, que se transcreveu é rigorosa, efectuou a análise crítica da prova, cruzou as declarações da ofendida com as declarações das testemunhas H…, I… e J… todos agentes da PSP, que consecutivamente, nos vários momentos do dia 13 de Novembro em que o arguido se acercou da ofendida, presenciaram factos que condizem com os relatados pela ofendida e, o último deles, pela ofendida e sua mãe. Levou em atenção os elementos clínicos juntos aos autos (fls. 105 a 107 e 109 e 110 e exame do IML de fls. 153 a 155) de onde resulta que a ofendida deu entrada no serviço de urgência do Centro Hospitalar de …, no dia 13 de Novembro de 2011, pelas 21:21h com traumatismo occipital e dor occipital e cervical. Levou em atenção o depoimento das testemunhas E…, mãe da ofendida, que corroborou os acontecimentos ocorridos pelas 18:00 e pelas 20.38h do dia 13 de Novembro e da testemunha K… que disse “ter escutado o arguido a chamar “puta” e “vaca” à ofendida, já depois da separação e que no dia 13 de Setembro ouviu gritos, foi à varanda e viu a ofendida estendida no chão e o arguido introduzir-se no carro e a fugir do local”.
Portanto, não se trata, na prova produzida e tida em conta pelo Tribunal a quo, da versão da ofendida contra a versão do arguido, trata-se da prova produzida pela ofendida coadjuvada por múltipla outra prova de factos essenciais, ou na vizinhança destes, que dão grande credibilidade ao que a ofendida contou ao tribunal. Não existe qualquer prova que imponha decisão diversa, nomeadamente quanto aos factos 9 a 12.
Em relação ao facto provado sob o n.º 15 pretende o arguido, na sua conclusão C) que “foi atacado pela mãe da ofendida, E… e ainda cercado pela ofendida, o que levou o recorrente a empurrar a ofendida, para se proteger da mesma” e na sua motivação refere ainda que a sua sogra disse “ele saiu do carro em direcção a nós e eu com o guarda-chuva na mão” e que depois perguntada se a testemunha tinha levantado o guarda-chuva ao arguido, ou seja, se tinha feito gestos no sentido de tentar agredir o arguido, a mesma respondeu desta forma: “Pois… eu fazia que lhe estava a bater e ele fugia”. Ora, não há neste trecho do depoimento da mãe da ofendida, mesmo que não estivesse descontextualizado (e está, como pudemos ouvir aos minutos invocados pelo recorrente na sua motivação) uma confirmação de que bateu no arguido como este pretende, há apenas uma confirmação de que ergueu o guarda-chuva quando o recorrente se dirigia para ela e que ela, o que levou o arguido a rir-se e a saltitar na frente dela (“parecia um tolo”, disse) e mesmo que houvesse essa confirmação, não o autorizaria a dirigir os seus intentos agressivos para uma pessoa que nada tem a ver com o assunto (a sua ex-companheira) com quem o arguido tentou beligerar toda a tarde e a quem toda a tarde infernizou a vida. Aliás o comportamento da mãe da ofendida e do arguido é perfeitamente convergente com as regras da experiência, tendo em atenção que a mãe da ofendida tinha, à data, 70 anos de idade e o arguido 41 anos de idade, pelo que não tem qualquer plausibilidade a invocação, aliás prematura, de que agiu em defesa da sua integridade física contra um guarda-chuva da sua “sogra”, por a sua ex-companheira se apressar a vir ver o que se passava, quando o arguido se dirigiu para a sua “sogra” que se aprontava para entrar num automóvel a fim de ser conduzida a casa.
Por fim lembra-se ao recorrente que a ofendida não deduziu pedido de indemnização civil nem se constituiu assistente, pelo que mais reforçada sai a sua credibilidade.
Não há qualquer prova que imponha decisão diversa.
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B)- Violação do princípio in dubio pro reo.
Sustenta o recorrente apenas nas suas conclusões que não lhe “parece que haja aqui um convencimento para além de toda a dúvida razoável da veracidade dos factos aduzidos pela acusação…logo deve ser aplicado o presente princípio e desta forma, serem os factos imputados ao arguido dados como não provados…”
O princípio in dubio pro reo funda-se constitucionalmente no princípio da presunção da inocência até ao trânsito em julgado da sentença condenatória - artigo 32º, n.º2 da CRP -, impondo que qualquer non liquet na questão da prova seja valorado a favor do arguido, apresentando-se aquele, na fase da decisão, como corolário daquela presunção – vide Ac. do TC n.º 533/98, DR, II série de 25/02.1999.
O princípio in dubio pro reo estabelece que na decisão de factos incertos a dúvida favorece o arguido.
A existência de violação do princípio in dubio pro reo só pode ser afirmada quando do texto da decisão recorrida, se extrair, de forma evidente, que o tribunal, na dúvida, optou por decidir contra o arguido, neste sentido se pronunciaram variadíssimos Acórdãos do STJ de que, a título meramente exemplificativo, referimos os Acs. do STJ de 04.10.2006, proc. 812/2006-3ª, de 11.04.2007, proc. 3193/06-3ª.
No caso, em apreço e tendo em atenção o texto da sentença da primeira instância não resulta que o tribunal a quo tenha dado como provados os factos elencados como tal, tendo dúvidas sobre a verificação de algum ou alguns deles, nomeadamente as agressões perpetradas pelo recorrente na pessoa da ofendida e as palavras que lhe dirigiu com o intuito de a amedrontar ou achincalhar.
Não resulta do texto da decisão que perante uma dúvida sobre a prova, tenha o Tribunal a quo optado por uma solução desfavorável ao arguido, decorrendo, isso sim, do texto da decisão que na primeira instância não ficou qualquer dúvida em relação a qualquer facto.
O que o recorrente parece sustentar é que em face da negação dos factos pelo arguido e de, na sua perspectiva, o depoimento da ofendida ter sido o único meio de prova, de alguns dos factos dados como provados pelo Tribunal, devia o tribunal ter absolvido o recorrente, em atenção ao princípio in dubio pro reo.
Não obstante, estranhamente, o recorrente não atacou a fase de formação da convicção do tribunal a quo, nomeadamente com invocação de violação das regras da experiência comum ou da lógica, que aliás se mostram absolutamente convergentes com a decisão tomada.
Sem embargo, convenhamos que o Tribunal não colocou o depoimento da ofendida no mesmo nível de credibilidade das declarações do arguido, nem o podia fazer, pois o depoimento da ofendida teve a seu favor coadjuvantes de prova que lhe conferem grande credibilidade, como sejam o depoimento de sua mãe que presenciou os factos do dia 13 de Novembro à tarde e à noite, nomeadamente o empurrão do arguido e a queda da ofendida; as chamadas telefónicas para os agentes da autoridade, durante esse dia, a que compareceram elementos da GNR que, ouvidos, relataram o que viram e o motivo porque compareceram na residência da ofendida; o depoimento da testemunha Luís Alves que viu a ofendida estendida no chão, o arguido a introduzir-se no carro e a fugir do local, no dia 13 de Novembro à noite; testemunhas que presenciaram parte dos factos apurados, e cujo depoimento por coincidir com o relatado pela ofendida traz um acréscimo de credibilidade ao depoimento desta.
Por outro lado, não é de todo legítimo ao recorrente pretender substituir a sua convicção sobre credibilidade, isenção e objectividade dos depoimentos esgrimidos pelo tribunal para a formação da sua convicção, pela convicção do Tribunal, que nesse particular é soberana, porque motivada e, consequentemente, objectivada e não arbitrária.
Pelo exposto improcede a questão posta. Mantendo-se definitivamente como provados e não provados os factos constantes da sentença.
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C- Subsunção jurídica.
Subsunção jurídica dos factos.
Sustenta o recorrente que os factos provados na sentença não são susceptíveis de integrar os elementos objectivos e subjectivo da prática do crime de violência, porque não praticou os factos pelas razões que já aduziu nas conclusões A) a C).
Vejamos:
Como vimos foi improcedente a sua argumentação, aliás sem qualquer consistência, de que não praticou os factos que impugnou.
Em conformidade, tanto bastaria para se manter a subsunção efectuada, sem mais considerandos.
Vejamos, com brevidade, o tipo de crime.
Estabelece o artigo 152º, do Código Penal, sob a epígrafe “violência doméstica”:
«1- Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:
b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;
n.º2 – No caso previsto no número anterior, se o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.
Este tipo de ilícito surge na sequência do crime de maus tratos, que na anterior redacção do Código Penal (anterior à Lei n.º 59/2007, de 4/9), estava previsto no artigo 152.º, n.º1 e 2, com a seguinte previsão: “quem infligir ao cônjuge, ou a quem com ele conviver em condições análogas às dos cônjuges, maus tratos físicos ou psíquicos ou o tratar cruelmente, é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos, se o facto não for punível pelo artigo 144.º do mesmo diploma”.
Com as alterações introduzidas ao Código Penal pela Lei n.º 59/2007, de 4/9, no que concerne ao crime de maus tratos, houve um desdobramento do tipo, verificando-se a autonomização do crime de violência doméstica (artigo 152.º), passando o crime de maus tratos a estar previsto no artigo 152.º-A.
Até à entrada em vigor da Lei n.º 59/2007, de 4/9, o crime de maus tratos pressupunha, em regra, uma reiteração de condutas.
Em face da nova redacção introduzida pela citada lei 59/2007 o crime de violência doméstica pode ser cometido mesmo que não haja reiteração de condutas, embora só em situações excepcionais o comportamento violento único, pela gravidade intrínseca do mesmo, preencha o tipo de ilícito – já nesse sentido e antes quer da redacção actual quer da que foi dada ao artigo 152º, pela Lei 7/2000, vide ac. do STJ de 13.11.1997, ACS. STJ, V, III, 235.
Na Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 98/X, que esteve na origem da Lei n.º 59/2007, de 4/9, escreve-se «na descrição típica da violência doméstica e dos maus tratos, recorre-se, em alternativa, às ideias de reiteração e intensidade, para esclarecer que não é imprescindível uma continuação criminosa.» - vide Diário da Assembleia da República, II Série-A, n.º 10, de 18/10/2006.
Em suma, para a realização do crime torna-se necessário que o agente reitere o comportamento ofensivo, em determinado período de tempo, admitindo-se, porém, que um singular comportamento bastará para integrar o crime quando assuma uma intensa crueldade, insensibilidade, desprezo pela consideração do outro como pessoa; isto é quando o comportamento singular só por si é claramente ofensivo da dignidade pessoal do cônjuge.
O bem jurídico protegido por este tipo de crime é a saúde – bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental –, o qual pode ser afectado por toda a multiplicidade de comportamentos que afectem a dignidade pessoal do cônjuge – vide Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, pág. 332 e Ac. do STJ de 04.02.2004, proc. n.º 2857/03-3, confirmado em plenário das secções criminais.
Assim, não é suficiente qualquer ofensa à saúde física, psíquica, emocional ou moral da vítima, para o preenchimento do tipo legal.
No crime de violência doméstica as condutas típicas podem integrar diversos tipos legais, nomeadamente o crime de ofensa à integridade física simples, o de ameaça, o de injúria e o de difamação e mesmo o de sequestro simples.
Neste sentido, salienta o Prof. Pinto de Albuquerque que «o crime de violência doméstica encontra-se numa relação de especialidade com os crimes de ofensas corporais simples ou qualificadas, os crimes de ameaças simples ou agravadas, o crime de coacção simples, entre outros, em que a punição do crime de violência doméstica afasta a destes crimes. Tratando-se de crimes puníveis com pena mais grave do que a prisão até 5 anos, a violência doméstica encontra-se numa relação de subsidariedade expressa (“se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”)» - vide Comentário do Código Penal, 2ª edição actualizada, páginas 406 e 407.
Revertendo ao caso dos autos, importa ter em consideração que: Da matéria de facto provada resulta que o arguido e a ofendida viveram como se de marido e mulher se tratassem, desde de 1993, tendo uma filha em comum nascida em 23.09.1994.
Em data não apurada do mês de Abril de 2004, no interior da residência do casal, sita na Rua …, após terem discutido por questões de dívidas, o arguido agarrou na F… e atirou-a contra o guarda-fatos e depois atirou-a contra a parede do quarto do casal, tendo a ofendia caído ao chão e sentido dores nas zonas do corpo atingidas.
Também se provou que, em data não apurada do início do mês de Setembro de 2011, o arguido saiu de casa. Porém, no dia 30 de Outubro de 2011, cerca das 20:00 horas, dirigiu-se à residência da ofendida sita na Rua …, discutiu com ela e proferiu-lhe as expressões “ó puta isto está-te na massa do sangue, eu vou-me embora mas volto”. Nessa ocasião quis ainda bater na ofendida, tendo sido impedido pela filha menor de ambos, que interveio em defesa da mãe.
Na madrugada do dia 6 de Novembro de 2011, entre as 02:00 horas e as 03:00 horas, telefonou à ofendida e disse-lhe: “és uma puta, és uma vaca, fodes com todos, és uma vadia, uma porca, badalhoca, vai-te lavar… tens amantes” e que, caso fosse à sua residência, iria dar-lhe com um vaso na cabeça. O que causou medo à ofendida.
E no dia 13 de Novembro de 2011, da parte da manhã, a hora não apurada, enviou para o telemóvel da ofendida uma mensagem de texto (sms) com o seguinte teor “vou aí a casa chama a polícia, faz o que quiseres”. A ofendida leu essa mensagem e ficou assustada.
Nesse dia, cerca das 15:00 horas, porque a ofendida não o deixava entrar na habitação, começou a pontapear a porta da entrada, ao mesmo tempo que dizia que queria entrar, que a casa lhe pertencia e lhe chamava “puta” e “vaca”. Com receio do que pudesse acontecer, a si e à filha menor, atenta a agressividade do arguido, a ofendida contactou a P.S.P., tendo ali comparecido agentes que aconselharam o arguido a ausentar-se do local.
Cerca das 18:10 horas desse dia, o arguido regressou à habitação da ofendida e, porque queria entrar, muniu-se de ferramentas e tentou remover a fechadura da porta de entrada, ao mesmo tempo que lhe dizia “ó puta abre a porta”.
A ofendida, com medo que o arguido conseguisse entrar na sua habitação, contactou a autoridade policial que ali compareceu e o impediu de alcançar os seus propósitos.
Cerca das 20:38 horas desse mesmo dia o arguido, aproveitando-se do facto da ofendida se encontrar na via pública, junto da mencionada habitação, abeirou-se dela e empurrou-a várias vezes, até que esta perdeu o equilíbrio, caiu e bateu com a cabeça no chão, onde ficou inanimada. Em virtude dessa conduta a ofendida recebeu tratamento médico no Centro Hospitalar … e sofreu lesões no pescoço, nomeadamente, mobilidade osteo-articular de amplitudes máximas simétricas e mantidas, com dores à inclinação lateral direita, que lhe determinaram dois dias para a cura, sem afectação da capacidade para o trabalho geral e profissional, sem quaisquer consequências permanentes.

Com os factos provados, afigura-se-nos claro que os actos praticados pelo arguido correspondem segundo o conjunto de regras sociais vigentes e aceites pela comunidade, a um achincalhamento físico e moral, voluntariamente praticado, na pessoa da ofendida, sua ex-companheira, na presença da filha menor do casal, G…, o que configura a comissão do crime violência doméstica pelo qual vem acusado.
Dos factos acabados de transcrever resulta claramente uma actuação violadora da dignidade e integridade pessoal da ofendida que se configura como integrante do tipo objectivo previsto no artigo 152.º, nºs 1, b) e 2 do Código Penal.
Tendo o arguido agido sempre livre deliberada e conscientemente, sabendo que ao assim actuar, resultariam para a ofendida dores e lesões, assim como sentimentos de vergonha, humilhação e medo e não desconhecendo ser o seu comportamento proibido e punido por lei, não obstante o que não deixou de actuar da forma descrita, agindo pelo menos numa dessas situações na presença de sua filha menor, preenchido está também o tipo subjectivo do tipo legal em causa.
Assim, tendo presentes os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal de crime previsto e punido pelo artigo 152.º, nºs 1, b) e 2 do Código Penal, a subsunção jurídica operada não merece qualquer censura.
Improcede, portanto, também esta questão.
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D- Atenuação especial da pena.
Sustenta o recorrente que não tem antecedentes criminais, se encontra inserido socialmente. Que o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a intensidade do dolo, no caso em análise, não se apresentam de grau elevado… pelo que é seu entendimento que perante estes factos e o disposto nos artigos 72º, n.ºs1 e 2 e 73º do C.Penal, deve ser atenuada a pena e reduzida ao mínimo legal.
Não tem razão.
Vejamos:
O crime praticado pelo arguido é punível com pena de 1 a 5 anos de prisão.
Ficou provados nos factos 20 a 22 que: 20 - O arguido é solteiro, tem uma filha menor, está desempregado e não aufere qualquer rendimento, reside com a irmã, que provê ao seu sustento. 21 - Não lhe são conhecidos antecedentes criminais. 22 - É licenciado em direito.
Nos termos do art. 72º n.º 1 do CP: “O tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena”.
Para além dos casos expressamente previstos na lei, como tentativa e cumplicidade – artigos 23, nº 2 e 27º, n.º2 do CPP – são causa de atenuação especial da pena, a diminuição de ilicitude do facto, da culpa do agente ou da necessidade da pena decorrente de circunstâncias anteriores, contemporâneas ou posteriores ao crime, nomeadamente, as que a título de exemplo se apontam no n.º 2 do preceito citado.
O arguido não tem condenações conhecidas, mas atentos os factos provados a ausência de antecedentes criminais nem sequer é sinónimo de bom comportamento.
O arguido não demonstrou qualquer arrependimento nem os factos demonstram qualquer juízo de auto-censura pelos seus comportamentos.
Compulsando as circunstâncias do n.º2 do artigo 72º, nenhuma delas se mostra verificada.
No caso concreto, os factos apurados apontam para um grau de ilicitude moderado tendo em conta a sua persistência na violação do bem jurídico.
Em relação à necessidade da pena, não se vê qualquer factor que reduza as exigências de prevenção, mormente geral (já que a especial se mostra diminuída) que a aplicação deverá satisfazer – art. 4º, nº1 e 71º, ambos do CP. No caso, não se vislumbram circunstâncias que permitam supor que tal suceda e que nesse plano essas exigências se mostrem assim esbatidas, o que serve para concluir que não será por razões de diminuição acentuada da necessidade da pena que se poderá justificar a atenuação especial.
Quanto à culpa, também não assiste razão ao recorrente, com efeito o arguido actuou com um dolo directo, intenso e persistente, o que resulta das várias investidas efectuadas contra a ofendida e contra a segurança do seu domicílio.
Assim não se vê como se possa falar da chamada diminuição acentuada da culpa que justifique a atenuação. Também não se vislumbram outras circunstâncias decorrentes do art. 72º, n.º2, do C.P. No fundo, o que se pretende quando se trata da atenuação especial da pena, é que ocorra uma dada circunstância de valor atenuativo especial e que ela mesma diminua a forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena de modo a podermos dizer que ‘a imagem global do facto resultante da atenuante se apresenta com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em tais hipóteses quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao tipo de facto respectivo’.
Não é, de todo, o caso dos autos.
Improcede a última questão colocada e, com ela, o recurso.
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III- Decisão.
Pelo exposto, acordam os juízes desta secção do Tribunal da Relação do Porto em negar total provimento ao recurso interposto pelo recorrente B…, confirmando-se a sentença recorrida.
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Custas pelo recorrente, nos termos dos artigos 513º, n.º s 1, 2 e 3 e 514º, n.º 1, do Código de Processo Penal (na redacção anterior à que lhes foi dada pela Lei n.º 34/2008, de 26 de Fevereiro – Regulamento das Custas Processuais - com as alterações introduzidas pelo artigo 156º da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro, uma vez que de acordo com o artigo 27º daquela Lei, o novo regime de custas processuais só é de aplicar aos processos iniciados a partir de 20 de Abril de 2009), e nos termos dos artigos 74º e 87º, n.º 1, alínea a) e n.º 3, do Código das Custas Judiciais, com taxa de justiça de 5 unidades de conta.
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Processado em computador e revisto pela relatora – artigo 94º, n.º 2, do CP.P.

Porto, 19 de Setembro de 2012
Maria Dolores da Silva e Sousa
Maria de Fátima Cerveira da Cunha Lopes Furtado