Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
4766/20.3T8VNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO DIOGO RODRIGUES
Descritores: ERRO NA FORMA DE PROCESSO
HERANÇA E DIVISÃO DE COISA COMUM
Nº do Documento: RP202204054766/20.3T8VNG.P1
Data do Acordão: 04/05/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 2. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - No âmbito dos processos especiais, o erro na forma de processo corresponde a um desajustamento entre o pedido formulado na ação e a finalidade para que a mesma foi legalmente instituída.
II - A finalidade da ação de divisão de coisa comum é a cessação da comunhão patrimonial, ocorrida no âmbito dos direitos reais.
III - Pedindo os autores, numa ação desse tipo, a divisão da compropriedade que integra, na proporção de metade, as heranças de que os mesmos se afirmam, juntamente com dois dos réus, únicos titulares, e, na outra metade, heranças distintas das quais alegam serem únicos titulares os restantes réus, não há erro na forma de processo.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 4766/20.3T8VNG.P1
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Sumário:
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto,

I - Relatório
1- AA, e BB, instauraram a presente ação especial de divisão de coisa comum contra, CC e esposa, DD, EE e esposa, FF, GG e marido, HH, II, JJ e marido, KK, LL, MM e marido, NN, OO e PP, alegando, em breve resumo, que:
Os AA. e os RR., CC, e EE, têm cada um deles, o direito e ação a um oitavo indiviso, totalizando um meio, os RR., GG, II, JJ e LL o direito a ação de um décimo cada um, e os RR., MM, OO e PP o direito e ação de um trinta avos cada um, de três imóveis que identificam.
Estes prédios pertenceram, aos avós dos AA. e dos RR., CC e EE, GG, II, JJ e LL, e bisavós dos restantes RR., QQ e esposa, RR, que os adquiriram, a título oneroso, há mais de um século.
Os referidos imóveis foram adjudicados ao viúvo, QQ, em inventário orfanológico instaurado por óbito de RR, ocorrido no dia 22/01/1934.
Por óbito do viúvo, QQ, ocorrido no dia 04/07/1955, os mesmos imóveis foram adjudicados às filhas, SS ou TT, casada com UU, e a VV, em inventário judicial, em comum e partes iguais, ou seja na proporção de 1/2 para cada uma.
A comproprietária, VV, faleceu no dia 12/04/1996, tendo deixado testamento outorgado no dia 30/08/1994, no qual instituiu seus únicos herdeiros, sua irmã, WW e marido, XX.
A herdeira, WW, faleceu no dia 26/02/2008, tendo deixado como únicos herdeiros o viúvo, já falecido, XX, os AA., e os RR., AA, CC e EE.
O viúvo, XX, faleceu no dia 15/04/2015, deixando como únicos herdeiros os AA. e os RR., CC e EE.
Os RR. são os atuais e únicos sucessores da adjudicatária, SS e marido, UU, sendo os RR., GG, II, JJ e LL, filhos e os RR., MM, OO e PP, netos, os quais representam os pais, e avós, e os irmãos e tios, YY, ZZ, falecidos em 20/07/200 e 15/04/2004.
A aquisição da metade dos prédios dos AA. está registada a favor da tia destes e dos RR., CC e EE, VV.
AA. e RR, CC e EE, em nome próprio, e, anteriormente, em nome dos ascendentes destes, vêm exercitando a posse dos prédios, em termos de 1/2 para os AA. e os dois primeiros RR., e de 1/2 para os restantes RR., ignorando lesar do direito de outrem, à vista de toda a gente, e sem oposição de quem quer que seja.
E que, assim exercida e mantida, por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade, faculta aos possuidores, AA. e RR. a aquisição do direito de propriedade do imóveis, por usucapião, na proporção de 1/2, para os AA. e dois primeiros RR., e de 1/2 para os restantes RR.
Por conseguinte, pretendem que se julgue a presente ação procedente, e, em consequência, se proceda à divisão da compropriedade dos AA. e dos RR.
2- Com exceção dos RR., CC e esposa, DD, EE e esposa, FF, todos os demais contestaram (ainda que separadamente[1]), suscitando diversas problemáticas, mas para o que ora importa, impugnando o direito de compropriedade de que os AA. se arrogam titulares.
3- Os AA. responderam reafirmando, nessa parte, a sua tese inicial.
4- Terminados os articulados e a instrução que se teve por pertinente foi, após contraditório, proferida sentença que absolveu os RR. da presente instância, devido a erro na forma de processo.
Isto, porque, em síntese, no caso em apreço, os AA. e os RR são apenas herdeiros dos comproprietários originais, sendo que as heranças não foram partilhadas. Nessa medida, “[i]nexistindo partilha, não podemos falar em compropriedade dos bens pois os herdeiros são apenas titulares de um direito sobre a herança” e não comproprietários. Como tal, “estamos perante uma situação em que não se mostram reunidos os pressupostos legalmente exigidos para a utilização da ação de divisão de coisa comum o que impede o tribunal de conhecer do mérito da causa”.
5- Inconformados com esta sentença, dela recorrem os AA., que terminam a sua motivação com as seguintes conclusões:
“1ª- A compropriedade dos prédios dos autos foi estabelecida na partilha judicial no inventário do processo número 189 de 1955 da 2ª Secção da 2ª Vara Cível do Porto, instaurado por óbito do avô dos autores, pela adjudicação em comum e partes iguais das irmãs SS ou TT e VV.
2ª- A compropriedade estabelecida vigora perpetuamente até à extinção por confusão na mesma pessoa, ou partes em nome de pessoas diversas, mediante a transformação de propriedade coletiva em propriedade singular dos bens ou de partes deles.
3ª- A extinção da compropriedade ou a transformação da propriedade coletiva em propriedade singular pode ser feita amigavelmente, por divisão, permuta ou qualquer outro ato sujeito à forma da compra e venda, ou nos termos da lei do processo, mais precisamente por ação de divisão de coisa comum, como se prevê no artigo 1413º do Código Civil.
4ª- A modificação subjetiva da quota-parte da compropriedade não altera, nem muito menos extingue, a compropriedade.
5ª- A alteração da quota-parte modifica essa quota-parte, mas não extingue a compropriedade.
6ª- Os contitulares têm o direito de dispor e de onerar a respetiva quota ou parte dela, como se prevê no artigo 1408º do Código Civil.
7ª- As pessoas que sucedem por morte ao comproprietário ocupam as relações patrimoniais do falecido, nos termos do disposto no artigo 2024º do Código Civil.
8ª- Todos os sucessores do autor da herança, em conjunto, têm o direito de propriedade que possuía o falecido comproprietário, de acordo com a norma do artigo 2091º do Código Civil.
9ª- Em conjunto, podem pedir a divisão de coisa comum.
10º- Nos autos pedem a divisão de coisa comum dois dos herdeiros e os outros dois não se opõem, ou consentem, admitindo os atos praticados pelos demandantes, como estatui o n.º 2 do artigo 574º do Código de Processo Civil.
11ª- Como representantes e titulares da quota-parte pedem a divisão, aos representantes da outra quota de que não são sucessores, exercendo o direito de propriedade que pertencia aos autores das heranças e mais remotamente à quota-parte de uma das constituintes da compropriedade, no uso dos poderes que lhes são conferidos pelo artigo 2091º do Código Civil.
12ª- Na falta de acordo, o que não é o caso dos autos, os autores ou só um deles podiam pedir a partilha da quota-parte da compropriedade e, depois, pedirem eles ou os irmãos, a divisão de coisa comum contra os titulares da outra quota-parte, mas entenderam mais adequada a opção usada, tendo em conta a posição dos titulares da quota-parte alheia que reclamam a totalidade dos bens.
13ª- Assim, pedem a divisão de coisa comum, no exercício do direito previsto no artigo 1412º do Código Civil e, depois, pedirão a partilha dos bens obtidos da compropriedade e dos mais das heranças, no exercício do direito previsto no artigo 2101º do Código Civil.
14ª- Evidentemente que pedindo a divisão com a quota-parte em comum e sem determinação de parte ou direito, os bens a encabeçar ou o produtos dos vendidos, mantêm a mesma titularidade em comum e sem determinação de parte ou direito.
15ª- A douta sentença incorre na nulidade prevista na segunda parte da alínea d) do n.º 1 do artigo 615º do Código de processo Civil, ao entender que os autores querem dividir entre si e os requeridos os bens da compropriedade, quando o que dizem é que queram a divisão dos bens com os titulares da outra quota-parte.
16ª- O que pressupõe, naturalmente, que a titularidade dos bens da transformação da quota-parte de que têm o direito e ação, continue em comum e sem determinação de parte ou direito.
17ª- Não há erro no processo usado nos autos.
18ª- Como não havia erro no caso da partilha anteriormente à divisão.
19ª- Mas há erro da douta sentença ao entender e querer impor uma das opções que os autores são livres de escolher, mas não é a quer pretendem, nos autos.
20º - O processo utilizado está certo e é o mais adequado, atendendo ao disposto nos artigos 1125º e 1126º do Código de Processo Civil que preveem a alteração da partilha”.
Terminam pedindo que se revogue a sentença recorrida e se ordene o prosseguimento dos autos.
6- Não consta que tivesse havido resposta.
7- Recebido o recurso, fixado o do valor da causa e preparada a deliberação, importa tomá-la.
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II- Mérito do recurso
1- Inexistindo questões de conhecimento oficioso, o objeto do recurso em apreço, delimitado, como é regra, pelas conclusões das alegações dos recorrentes [artigos 608.º n.º 2, “in fine”, 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º1, do Código de Processo Civil (CPC)], é constituído essencialmente pela questão de saber se não ocorre o erro na forma de processo, identificado na sentença recorrida.
2- Baseando-nos nos factos descritos no relatório supra exarado - que são os únicos relevantes para o efeito -, vejamos como solucionar esta questão:
Como é sabido, o erro na forma de processo corresponde a uma inadequação entre, por um lado, a providência jurisdicional solicitada pelo autor[2] , e, por outro lado, a forma de processo por ele escolhida para obter essa providência. Ou, dito por outras palavras, no âmbito dos processos especiais, corresponde a um desajustamento entre o pedido formulado na ação e a finalidade para que a mesma foi legalmente instituída[3].
Ora, tendo presente esta relação, verificamos, antes de mais, que o pedido formulado pelos AA. nesta ação se adequa perfeitamente à finalidade para a qual o processo especial de divisão de coisa comum foi criado.
Na verdade, os AA. pediram a “divisão da compropriedade dos autores e dos réus”, pressupondo que os prédios sobre que incide essa compropriedade podem “ser adjudicados em quinhões ou lotes” (artigo 24.º da petição inicial), e o artigo 925.º do CPC, prevê justamente que a coisa comum possa ser dividida por essa forma, pondo assim termo à compropriedade. O que também é consentido pelo disposto no artigo 1413.º, n.º 1, do Código Civil.
Nessa medida, não se vê qualquer desadequação entre o referido pedido e a finalidade da ação de divisão de coisa comum, que se reconduz, no fundo, à cessação da comunhão patrimonial ocorrida no âmbito dos direitos reais.
Nem mesmo por ainda não ter havido partilha da herança comproprietária dos prédios que os AA. pretendem dividir, como se considerou na sentença recorrida.
Com efeito, ao contrário do que aí se pressupôs, os AA. não se apresentam nestes autos a exercer um direito de compropriedade próprio e individualizado. Como resulta do alegado na petição inicial, os mesmos afirma-se titulares, juntamente com os dois primeiros RR., CC e EE, do direito a ½ desses prédios, mas na qualidade de herdeiros do património deixado pelos pais de todos eles, (XX e WW), que o adquiriram por óbito da irmã desta última, VV, a qual, por sua vez, o viu ingressar na sua esfera jurídica, por óbito do respetivo pai, QQ, conforme foi decidido no inventário judicial a que na altura se procedeu (inventário judicial que correu termos na 2ª Secção do 5.º Juízo Cível do Porto, no ano de 1955, sob o n.º 189)[4].
Ou seja, os AA. apresentam-se nestes autos a exercer não um direito de compropriedade próprio[5], mas um direito de compropriedade das heranças primeiramente referidas.
Questão diferente é a de saber se o podem fazer colocando-se eles na posição ativa e os referidos RR. na posição passiva, quando é certo que o artigo 2091.º, n.º 1, do Código Civil, exige um litisconsórcio entre todos os herdeiros para “a generalidade dos atos e negócios jurídicos de frutificação anormal, de melhoramento do património hereditário e de disposição dos bens hereditários que envolvam a sua alienação ou oneração”[6], como é manifestamente o caso. Isto é, nessa hipótese, de disposição de bens hereditários, os atos que a ela conduzam só podem ser praticados por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros.
Mas essa questão está completamente fora do âmbito deste recurso, pois que, no fundo, se reconduz a um problema de legitimidade que não vem colocado, nem antes foi decidido na sentença recorrida. Portanto, dela não trataremos.
O que se impõe aqui reafirmar é que, em função do pedido formulado nesta ação e da finalidade que legalmente é conferida ao processo especial de divisão de coisa comum, ambos são perfeitamente harmonizáveis e não obsta a essa harmonização a circunstância dos AA. se arrogarem titulares da comunhão hereditária onde situa a compropriedade que pretendem fazer cessar.
Claro está que, mantendo-se este pressuposto, a final, nenhuma quota ou direito pode ser individualmente conferido aos ditos herdeiros. Só lhes pode ser atribuído, quando muito, um direito conjunto que ulteriormente terão de partilhar. Mas essa é uma consequência que em nada interfere com a idoneidade deste processo.
A herança não partilhada pode, ela própria, ser titular do direito de compropriedade, tal como lhe assiste a faculdade de fazer cessar esse direito por uma das formas previstas na lei. Ponto é, em qualquer circunstância, que, depois de aceite, todos os herdeiros ajam nessa qualidade, uma vez que, como já vimos, a lei exige a intervenção conjunta de todos eles (artigo 2091.º, n.º 1, do Código Civil). Mas, cumprido este requisito, nenhum obstáculo existe a que a herança faça cessar os direitos de compropriedade de que é titular nos mesmos termos em que o fazem os demais sujeitos jurídicos. Tal como nenhum obstáculo existe a que a herança não partilhada seja também demandada por terceiros para a mesma finalidade, desde que, obviamente, uma vez mais, estejam em juízo todos os herdeiros que legitimam a sua atuação[7]/[8].
Ora, no caso, como vimos, os AA. invocam esta última qualidade. E é com base nela que pedem a divisão dos prédios que dizem pertencer em compropriedade às heranças de que são titulares.
Por conseguinte, nenhum motivo há para reconhecer o erro na forma de processo identificado na sentença recorrida e, consequentemente, essa sentença só pode ser revogada, procedendo, assim, o presente recurso, sem necessidade de qualquer outro desenvolvimento.
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III- Dispositivo
Pelas razões expostas, acorda-se em conceder provimento ao presente recurso e, consequentemente, revoga-se a sentença recorrida.
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- Em função deste resultado, as custas deste recurso, na vertente de custas de parte liquidandas, serão suportadas pelos RR. - artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC.

Porto 5/4/2022
João Diogo Rodrigues
Anabela Miranda
Lina Baptista
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[1] Os RR., JJ e marido, KK, por um lado, e os demais RR. contestantes, por outro.
[2] E, adjunvantemente, pela causa de pedir, como refere António Santos Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, I Volume, 2ª ed. Revista e Ampliada, Almedina, pág. 280.
[3] Como ensinava Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, 3ª edição, Reimpressão, Coimbra Editora (1981), págs. 288 e 289, “a questão da propriedade ou impropriedade do processo especial é uma questão, pura e simples, de ajustamento do pedido da ação à finalidade para a qual a lei criou o respetivo processo especial”.
[4] Tendo tais prédios advindo à titularidade deste, QQ, por óbito da sua esposa, RR, ocorrido no dia 22/01/1934, tendo também aí havido inventário orfanológico (n.º 840 da 2ª Secção Cível do Porto).
[5] Que, aí sim, não podiam exercer sem prévia partilha. Como refere Luís Filipe Pires de Sousa, Processos Especiais de Divisão de Coisa Comum e de Prestação de Contas, 2016, Almedina, págs. 18 e 19, “[a]té à partilha, os herdeiros são apenas titulares de um direito sobre o conjunto da herança e não sobre bens certos e determinados.
Enquanto não se fizer a partilha, os herdeiros têm sobre os bens que constituem a herança indivisa um direito indivisível, recaindo tal direito sobre o conjunto da herança e não sobre bens certos e determinados desta. A contitularidade do direito à herança implica um direito a uma parte ideal desta considerada em si mesma e não sobre cada um dos bens que a compõem.
Nessa medida, não se tratando de coisa comum de que sejam comproprietários, não podem os herdeiros instaurar acção de divisão de coisa comum para dividir prédio que integre a herança.
Só após a atribuição dos bens em partilha é que os herdeiros podem recorrer à acção de divisão de coisa comum”.
No mesmo sentido, por exemplo, Ac. STJ de 30/01/2013, Processo n.º 1100/11.7TBABT.E1.S1, consultável em www.dgsi.pt
[6] Rabindranath Capelo de Sousa, Lições de Direito das Sucessões, II, 1980/82, Coimbra Editora, pág.80.
[7] Luís Filipe Pires de Sousa, ob cit., pág. 19.
No mesmo sentido, fazendo a distinção entre esta situação e aquela em que os herdeiros se arrogam do direito de compropriedade em nome próprio, Ac. RLx, de 02/02/2021, Processo n.º 284/18.8T8LSB.L1-7, consultável em www.dgsi.pt.
[8] Também neste sentido, Ac. RP de 22/03/2021, Processo n.º 25509/18.6T8PRT.P1, consultável em www.dgsi.pt