Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1112/12.3TJPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: CARLOS GIL
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
DANO
NEXO DE CAUSALIDADE
REVOGAÇÃO DO CHEQUE
EXTRAVIO FALSO
RECUSA DE PAGAMENTO
DAÇÃO PRO SOLVENDO
Nº do Documento: RP201604181112/12.3TJPRT.P1
Data do Acordão: 04/18/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 623, FLS.338-346)
Área Temática: .
Sumário: I - Apesar do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 3/2016, ter subjacente um caso de recusa de pagamento de cheques com fundamento na invocação de vício da vontade, a consequência jurídica nele delineada é inteiramente transponível para o caso de recusa de pagamento de cheques com fundamento na comunicação de extravio dos títulos em causa.
II - A entrega de cheques para satisfação do preço devido pelos fornecimentos de tabaco que a recorrente fez à chamada presume-se iuris tantum uma dação pro solvendo.
III - A entrega de cheque pro solvendo visa facultar ao credor um meio mais expedito de satisfação do seu crédito, não tendo, em qualquer caso, como consequência e em decorrência da simples entrega, qualquer efeito extintivo do crédito, o qual apenas se extingue quando e na medida em que for satisfeito.
IV - O não desempenho da função solutória pelos cheques que foram entregues pro solvendo, apenas impede que a facilidade na satisfação do crédito produza os seus efeitos, mas nenhuns reflexos tem sobre a subsistência do crédito que por aquela via se pretendia solver.
V - É de concluir pela falta de nexo causal entre o facto e o putativo dano sempre que se constate a irrelevância da conduta ilícita do recorrido para o resultado verificado, pois que mesmo que tivesse agido licitamente, o não pagamento dos títulos sempre se verificaria.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 1112/12.3TJPRT.P1

Sumário do acórdão proferido no processo nº 1112/12.3TJPRT.P1 elaborado pelo seu relator nos termos do disposto no artigo 663º, nº 7, do Código de Processo Civil:
1. Apesar do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 3/2016, ter subjacente um caso de recusa de pagamento de cheques com fundamento na invocação de vício da vontade, a consequência jurídica nele delineada é inteiramente transponível para o caso de recusa de pagamento de cheques com fundamento na comunicação de extravio dos títulos em causa.
2. A entrega de cheques para satisfação do preço devido pelos fornecimentos de tabaco que a recorrente fez à chamada presume-se iuris tantum uma dação pro solvendo.
3. A entrega de cheque pro solvendo visa facultar ao credor um meio mais expedito de satisfação do seu crédito, não tendo, em qualquer caso, como consequência e em decorrência da simples entrega, qualquer efeito extintivo do crédito, o qual apenas se extingue quando e na medida em que for satisfeito.
4. O não desempenho da função solutória pelos cheques que foram entregues pro solvendo, apenas impede que a facilidade na satisfação do crédito produza os seus efeitos, mas nenhuns reflexos tem sobre a subsistência do crédito que por aquela via se pretendia solver.
5. É de concluir pela falta de nexo causal entre o facto e o putativo dano sempre que se constate a irrelevância da conduta ilícita do recorrido para o resultado verificado, pois que mesmo que tivesse agido licitamente, o não pagamento dos títulos sempre se verificaria.
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Acordam os juízes abaixo-assinados da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto:
1. Relatório[1]
Em 21 de junho de 2012, nos Juízos Cíveis do Porto, B…, Lda. intentou a presente ação declarativa sob a forma de Regime Processual Civil Experimental[2] contra Banco C…, SA pedindo que o réu seja condenado a pagar-lhe a quantia de € 15.959,52, acrescida de €29,12 de despesas bancárias, no total de €15.988,64, bem como de juros de mora, à taxa legal comercial, desde a recusa de pagamento de cada um dos três cheques até efectivo e integral pagamento.
Em síntese, alega que é legítima possuidora de três cheques sacados por D…, Lda, sobre uma conta bancária por esta titulada junto do Banco réu, os quais eram destinados ao pagamento de fornecimentos que a autora havia efectuado à sacadora; tendo apresentado os ditos cheques a pagamento dentro do prazo legal de oito dias, foi este recusado com indicação de “extravio”, motivo falso e que o réu não cuidou de averiguar; caso tivesse averiguado a regularidade da ordem de revogação, o réu saberia que a autora há muito mantinha relações comerciais com a sacadora dos cheques, inclusive titulados por cheques sobre a mesma conta, de forma normal e corrente; da recusa de pagamento resultou o não pagamento parcial da dívida que a sacadora dos cheques tinha para com a autora, sendo posta em causa a sua honorabilidade em consequência do alegado extravio para fundamentar a recusa de pagamento dos cheques, resultando da devolução dos cheques despesas bancárias que a autora suportou.
Citado por carta registada com aviso de receção, o réu contestou, impugnando alguns dos factos por desconhecimento, nomeadamente os danos e sustentou, no essencial, que a sacadora dos cheques, através de serviço pelo réu disponibilizado via internet, procedeu ao cancelamento dos mesmos, pelo motivo de extravio, tendo, por isso, o réu devolvido os cheques, quando apresentados a pagamento, em cumprimento das instruções que lhe foram dadas pela sua cliente, não podendo sindicar as razões que originaram a ordem de cancelamento dos cheques; não se verificam os pressupostos ilicitude e culpa, necessários à afirmação da responsabilidade civil extracontratual; a conta bancária em causa não se encontrava devidamente provisionada para o pagamento dos cheques, pelo que o seu pagamento nunca teria ocorrido, ainda que o réu não acatasse a ordem de não pagamento, o que exclui ainda a verificação do nexo de causalidade adequada entre a actuação do réu e o dano.
O réu requereu a intervenção acessória provocada da sacadora dos cheques, pretensão a que a autora não se opôs e que veio a ser admitida.
Efetuada a citação com hora certa da chamada na pessoa da sua gerente, esta não interveio nos autos.
As partes foram notificadas para os efeitos previstos no nº 4, do artigo 5º da Lei nº 41/2013, de 26 de junho, vindo ambas oferecer os seus meios de prova e opondo-se o réu ao depoimento de parte do réu requerido pela autora.
A autora foi notificada para, na falta de oposição das partes, responder à matéria de exceção invocada na contestação.
A autora respondeu impugnando a matéria que considerou constituir defesa por exceção.
A audiência prévia foi dispensada, fixou-se o valor da causa no montante de € 15.988,64, proferiu-se despacho saneador tabelar, identificou-se o objeto do litígio, organizaram-se os temas de prova e admitiram-se as provas oferecidas pelas partes.
Após audição das partes sobre a duração previsível da audiência final, designou-se data para o efeito.
Na data designada para realização da audiência, logo após a sua abertura, além do mais, a autora informou que a chamada se encontra em situação de insolvência, requerendo o adiamento da diligência, a fim de que o Administrador da Insolvência da chamada assuma a sua representação nos autos.
A Sra. Juíza que presidia à audiência final determinou a solicitação de informações sobre o estado dos autos de insolvência da chamada e sobre a identidade do seu Administrador de Insolvência, decretando a suspensão da instância até que seja definida a posição a assumir pelo Administrador de Insolvência da chamada.
Obtida a identidade do Administrador de Insolvência da chamada, foi o mesmo notificado da existência destes autos, bem como para assegurar a representação da chamada nos mesmos e para em dez dias requerer o que tivesse por conveniente.
O Sr. Administrador da chamada nada veio requerer ou dizer nos autos.
Designou-se nova data para realização da audiência final, vindo após isso o Sr. Administrador da Insolvência da chamada requerer a extinção da instância nestes autos com fundamento em inutilidade superveniente da lide, em virtude de quer a autora, quer o réu se encontrarem reconhecidos como credores da massa insolvente da chamada.
Realizou-se a audiência final em duas sessões.
Em 05 de novembro de 2015[3], foi proferida sentença a julgar a ação totalmente improcedente e a absolver o réu do pedido.
Inconformada com a sentença, B…, Lda. interpôs recurso de apelação, terminando as suas alegações de recurso com as seguintes conclusões:
I. A Recorrente intentou o presente recurso por entender que a Meritíssima Juiz a quo não efectuou uma correcta apreciação da prova produzida, nem efectuou uma correcta interpretação e aplicação do direito, razão pela qual não concorda com as conclusões retiradas e que ficaram plasmadas na sentença e, naturalmente, com a decisão recorrida.
II. Entende a Recorrente que a sentença violou o disposto nos artigos 483.º, n.º 1, 562.º e 563 do Código Civil, pelo que deverá ser revogada e, em consequência, substituída por outra que faça a correcta interpretação aplicação do direito e, em consequência, condene o banco Recorrido na totalidade do pedido, conforme se demonstrará.
III. São pressupostos da responsabilidade civil extracontratual pela prática de factos ilícitos: a ilicitude do facto, a culpa, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano, tendo todos eles sido provados pela Recorrente, pelo que o banco Recorrido deveria ter sido condenado no pedido.
IV. O banco Recorrido recusou ilicitamente o pagamento dos cheques de que a ora Recorrente era legítima possuidora, com base numa declaração de revogação falsa - “extravio”.
V. O banco Recorrido aceitou, sem mais, a revogação dos cheques por alegado “extravio”, tendo descurado as obrigações a que estava obrigado, colocado em causa o regular desempenho da actividade bancária e causado à Recorrente prejuízo patrimonial equivalente ao não pagamento dos montantes titulados pelos cheques.
VI. Nos termos do artigo 32.º da Lei Uniforme sobre os Cheques, “A revogação do cheque só produz efeito depois de findo o prazo de apresentação”, impondo-se ao banco Recorrido a obrigação de pagar o cheque, ainda que a sacadora “D…” tenha emitido declaração de revogação.
VII. O AUJ do STJ n.º 4/2008, de 28.02.2008, salienta que “uma instituição de crédito sacada que recusa o pagamento do cheque, apresentado dentro do prazo estabelecido no artigo 29.º da LUCH, com fundamento em ordem de revogação do sacador, comete violação do disposto da primeira parte do artigo 32.º do mesmo diploma, respondendo por perdas e Decreto n.º 13004 e 483.º, n.º 1 do Código Civil”.
VIII. Nos termos do artigo 14.º do Decreto 13004, de 12.01.1927, “se porém o sacador, ou o portador, tiver avisado o sacado de que o cheque se perdeu, ou se encontra na posse de terceiro ou consequência de um facto fraudulento, o sacado só pode pagar o cheque ao seu detentor se este provar que o adquiriu por meios legítimos”, encontrando-se nesta norma a tutela de diversos interesses, a saber: o interesse do portador do cheque, o interesse da segurança nas relações cambiárias – em especial, a credibilidade do cheque – e o interesse do subscritor do cheque.
IX. É no equilíbrio destes três interesses que, é forçoso concluir que a conduta do banco foi ilícita quando recusou, ainda no período legal de apresentação dos cheques, o pagamento dos mesmos, com base na aceitação, sem mais, da fórmula tabelar “revogação com justa causa – extravio”.
X. Nos termos do referido AUJ, “o motivo da ordem de não pagamento dentro do prazo legal de apresentação tem de ser concretamente alegado e fundamentado pelo sacador, indicando o facto justificante com foros de seriedade (…) dispor de elementos que (…) não se reduzem a uma fórmula ou qualificação jurídica como “extravio”, “furto” ou outras, mas que acrescentem circunstâncias de facto que tornem credível tal fundamento (…) de modo a que o Banco, usando a ponderação e prudência (…) possa tomar uma decisão justificada”.
XI. Nos termos do referido AUJ, “Não sendo de exigir tal prova efectiva, isso não exime o sacado de agir com a máxima diligência, só aceitando os motivos justificantes para o não pagamento no período legal de apresentação, quando disponha dos referidos indícios sérios de que a situação comunicada pelo sacador se verificou ou, pelo menos, dadas as circunstâncias concretas de cada caso, tinha grande probabilidade de se ter verificado”.
XII. Não obstante o “extravio” não se tratar de uma “revogação pura e simples” (32.º da LUCH), é entendimento unânime na jurisprudência que o banco não deixa de ser onerado com o dever de agir com elevado grau de diligência.
XIII. Não é aceitável, à luz do artigo 32.º da LUCH, que o banco Recorrido, face à indicação de extravio dos cheques em causa, tenha, sem mais, executado a operação bancária de cancelamento das ordens de pagamento, ainda antes de decorrido o prazo de 8 dias para apresentação dos cheques (29.º LUCH), pelo que violou a tutela legal que visa proteger as danos perante o legítimo portador do cheque, nos termos do disposto da segunda parte do posições subjectivas na rede cambiária, incorrendo em responsabilidade civil.
XIV. A colocação nas mãos do sacado da possibilidade de pagar ou não pagar o cheque, de acordo com o seu critério, é uma violência enorme na relação de confiança que deve haver entre os intervenientes na relação cambiária em causa e entre o público em geral.
XV. À luz do artigo 8.º, n.ºs 2 e 3 do Decreto-Lei n.º 454/91, de 28/12, o banco Recorrido, sob pena de ilicitude, ao recusar o pagamento dos cheques, devia tê-lo feito justificadamente, apresentado a indicação de indícios sérios, seguros, dos quais resultasse a forte probabilidade de se ter verificado, pois a colocação nas mãos do banco a possibilidade de pagar ou não pagar, de acordo com o seu critério, é uma violência enorme na relação de confiança que deve haver entre os intervenientes da relação cambiária e o público em geral, pois, de outro modo, ficaria aberta a “porta” a todas as fraudes possíveis que, camufladas por uma mera qualificação jurídica, apenas tenham como objectivo evitar, sem fundamento, o pagamento de um cheque.
XVI. Não pode ser tida como boa prática bancária a interpretação, simplista e imprudente, pelo banco Recorrido, da declaração de “extravio” como justa causa para a recusa do pagamento dos cheques em apreço nos autos, uma vez que tal declaração de “extravio” se traduz de uma mera qualificação jurídica, pois era exigível ao banco Recorrido uma atitude mais cuidadosa, rigorosa e prudente, que passava por um contacto directo com a sua cliente, “D…, Lda.”, com vista a pedir explicações sobre as declarações de revogação do cheque com fundamento em “extravio”, o que não fez.
XVII. O Tribunal a quo – e bem – entendeu que “o banco Recorrido não procedeu a qualquer diligência, por mínima que fosse, com vista a assegurar-se de que a ordem de cancelamento por extravio possuía real fundamento”, “não procedeu à averiguação da regularidade e legitimidade da ordem de revogação da ordem de pagamento dos cheques junto da entidade sacadora com o objectivo de afastar quaisquer dúvidas que pudesse ter sobre a emissão e detenção dos mesmos”, e “não cuidou de obter prova suficiente do alegado desapossamento dos referidos cheques, nomeadamente, cópia da declaração policial de extravio ou furto dos cheques”.
XVIII. O banco Recorrido descurou os deveres que sobre si impendiam e decorrentes da obrigação de tutelar a fé pública que os cheques merecem no tráfico jurídico, enquanto meio de pagamento.
XIX. Conforme Acórdãos do STJ, de 02.06.1997, e 07.12.2005, “o Banco sacado que aceita, sem mais, a ordem de revogação de cheque antes de findo o prazo de apresentação a pagamento, e com violação, por isso, do artigo 32.º, n.º 1, da LUCH não procede com a diligência de pessoa normal, medianamente capaz, prudente, avisada e cuidadosa, e impedindo indevidamente com a sua omissão a cobrança do cheque pelo seu legítimo portador, causando-lhe prejuízo, torna-se civil responsável perante o portador por tal prejuízo, na conformidade do disposto no artigo 483.º do Código Civil”.
XX. Do Acórdão do TRP, de 14.10.2008 (Relator Exmo. Juiz Desembargador Guerra Banha), lê-se:“Provado que os actos de revogação do cheque pelo sacador e de recusa a pagar pelo banco sacado resultaram de “uma acção concertada e estudada entre ambos devido à falta de saldo da conta sacada, e, para além de mais, evitar uma rescisão da convenção do uso de cheque por parte do banco e a inclusão do seu cliente na lista de sacadores de risco junto do Banco de Portugal” está configurada uma recusa ilegítima de carácter doloso por parte do banco sacado, visando o encobrimento de uma conduta fraudulenta do cliente, e não apenas negligente”.
XXI. Agir com culpa significa actuar em termos de a conduta do lesante merecer a reprovação, quando pela sua capacidade e em face das circunstâncias concretas da situação, se concluir que ele podia e devia agir de outro modo, modo esse pelo qual agiria um bom pai de família perante as mesmas circunstâncias – Cfr. artigo 487.º, n.º 2 do Código Civil.
XXII. Dúvidas não restam em qualificar como ilícito e culposo a conduta do banco Recorrido que aceitou, sem mais, a revogação de cheques com fundamento em “extravio” sem qualquer concretização factual de tal conceito e recolha de indícios sérios, tendo tando recusa ocorrido dentro do prazo de apresentação dos cheques a pagamento.
XXIII. O Tribunal a quo – e bem – afirma pela ilicitude e a culpa do banco Recorrido, e conclui dizendo que, “em princípio”, a afirmada ilicitude e a culpa do banco Recorrido se traduzirá na frustração do recebimento do montante titulado pelos cheques, acrescido das despesas de devolução, com a consequente obrigação de indemnização, nos termos dos artigos 562.º e 563.º do Código Civil.
XXIV. Sucede que, o Tribunal a quo, não obstante a afirmada ilicitude e culpa, decidiu mal quando entendeu que a Recorrente não provou o dano sofrido nem o nexo de causalidade entre o facto e o dano, sendo que é aqui que a sentença recorrida merece censura.
XXV. É reprovável quando o Tribunal a quo considera que a Recorrente “não logrou provar o dano real, isto é, que os cheques só não lhe foram pagos pela sua devolução (ilícita) feita sacado”.
XXVI. Integra o conceito de “prejuízo patrimonial” (art. 11.º, n.º 1, DL n.º 454/91, de 28/12) o não recebimento, para si ou para terceiro, pelo portador do cheque, aquando da sua apresentação a pagamento, do montante devido, correspondente à obrigação subjacente relativamente à qual o cheque constituía meio de pagamento.
XXVII. Na medida em que a ilicitude em apreço consiste na recusa de pagamento do cheque, a medida do dano da Recorrente é equivalente aos montantes titulados dos cheques e que não foram pagos, pelo que é inquestionável que a recusa de pagamento dos cheques, pelo banco Recorrido, determinou a diminuição do património da Recorrente.
XXVIII. O não recebimento dos montantes apostos nos cheques, e apresentados a pagamento dentro do prazo legal (29.º LUCH) é, com efeito, é o dano real que, in casu, a ora Recorrente sofreu!
XXIX. O dano real da Recorrente consiste no prejuízo patrimonial equivalente aos montantes titulados nos cheques - do valor total de € 15.959,52 – bem como no montante despendido – de € 29,12 – com as despesas inerentes à recusa de pagamento.
XXX. O nexo de causalidade naturalístico entre o facto e o dano constitui matéria de facto cuja prova pode fazer-se directamente através da demonstração de factos que o suportem, ou por meio de presunções, para, atendendo às regras da experiência comum, a partir de um facto conhecido desde se extraírem ilações que conduzam á prova de outros que levam a ajuizar nesse sentido.
XXXI. Da factualidade provada nos autos resulta o nexo naturalístico existente entre a recusa de pagamento dos cheques pelo banco Recorrido e os danos produzidos na esfera patrimonial da ora Recorrente, cujo património ficou reduzido no montante correspondente aos cheques e despesas correlativas.
XXXII. Merece censura o entendimento do Tribunal a quo quando fundamenta que a ora Recorrente não logrou provar que, não obstante a conta sacada não se encontrava provisionada, ainda assim, os cheques teriam obtido pagamento caso o banco Recorrido não tivesse acatado a ordem de não pagamento dos cheques.
XXXIII. Salvo o devido respeito, a única causa real e efectiva da recusa de pagamento dos cheques foi, pura e simplesmente, o facto do banco Recorrido ter aceite, sem mais, a comunicação de revogação dos cheques com fundamento em “extravio”.
XXXIV. A causa real do dano não se traduz na “falta de provisão”, mas sim na revogação dos cheques por “extravio”.
XXXV. Lê-se do sobredito AUJ n.º 4/2008:“Podia dizer-se (…) que não se verificaria o nexo causal entre o dano e facto culposo se a conta sacada não se encontrasse provisionada quando os cheques foram apresentados a pagamento. Porém, a ser assim, o réu teria de recusar o pagamento com tal fundamento (…) Mas (…) o banco ao aceitar ilicitamente a revogação dos cheques (uma vez que apresentado a pagamento no prazo legal) impediria que se verificasse o facto que implicava a notificação do sacador para regularizar a situação dentro dos trinta dias referidos no art. 1.º do DL n.º 316/97 e comunicação ao Banco de Portugal (…) Aliás, a falta de provisão na data da apresentação a pagamento de cada um dos cheques não é equivalente a falta absoluta de provisão”.
XXXVI. Assim: qual a relevância e/ou efeito da falta de provisão da conta sacada? Nenhuma!
XXXVII. O Tribunal a quo pecou quando afirmou pela relevância da teoria da causa virtual e pela consequente exoneração do banco Recorrido, sendo reprovável o entendimento de que: ainda que o banco Recorrido não tivesse tido o comportamento ilícito e culposo de recusa de pagamento dos cheques – isto é, caso não tivesse recusado o pagamento com fundamento em “extravio” – o dano ter-se-ia igualmente verificado por um outro facto: a falta de provisão da conta sacada.
XXXVIII. É reprovável o entendimento do Tribunal a quo quando conclui que ”esta argumentação (da teoria da causa virtual) (…) afasta a responsabilidade do banco em caso de ilícita recusa de pagamento de cheque sacado sobre conta não provisionada: a responsabilidade fica afastada por não prova, afinal, do pressuposto do dano” e, assim, não se provou o dano real, “isto é, que os cheques só não lhe foram pagos pela sua devolução (ilícita feita pelo sacado)”.
XXXIX. Salvo o devido respeito, atenta a factualidade assente, a ora Recorrente não vê que outros factos deveria ter alegado ou provado!!! Aliás, o único facto alegado pela ora Recorrente que foi dado como não provado foi que “honorabilidade foi ferida e posta em causa pelo fundamento de recuso de pagamento com base num alegado “extravio”! – Cfr. artigo 28.º, in fine, da Petição Inicial.
XL. Da factualidade assente resulta verificado o nexo causal entre o facto, ilícito culposo, e o dano sofrido, pois na medida em que o cheque é um meio de pagamento, a recusa de pagamento por parte do banco Recorrido tem como óbvio efeito o não recebimento da quantia constante dos cheques de que a ora Recorrente era legítima possuidora.
XLI. O banco Recorrido, ao ter recusado o pagamento dos cheques com fundamento em “extravio”, impediu que fosse desencadeado o mecanismo previsto nos artigos 1.º e 2.º do Decreto-Lei n.º 454/91, de 28/12 (Cfr. Acórdão proferido pelo TRL, de 26.11.2015, Relator Exmo. Juiz Desembargador António Valente).
XLII. Pela sua importância, passa-se a transcrever passagens do Acórdão do STJ, de 15.04.2015 (1025/10.3TVLSB.P2.S1) (Relator Exmo. Juiz Conselheiro Álvaro Rodrigues):
“VI. O dano causado não é outro senão o prejuízo patrimonial a que se reporta o n.º 1 do art. 11.º do Regime Jurídico do Cheque, pois os portadores do cheque não receberam tal pagamento relativos aos cheques apresentados para tal dentro do prazo legal.
VII. Factos provados são realidades ontológicas, rectius, ônticofenomenológicas, que se movem no plano do ser (sein, na expressão germânica) e não do dever ser (sollen), como sucede com um juízo valorativo condicional do tipo “se não tivessem sido devolvidos” (…) referindo-se à circunstância dos cheques virem a ser devolvidos por falta da provisão da conta sacada, mesmo que não tivessem sido revogados.
VIII. A relevância negativa da causa virtual tem sido recusada por reputados civilistas, apenas sendo admitida pela lei nalguns casos excepcionais em que há um agravamento da responsabilidade, sendo então atendida para ilibar o autor da causa real (cfr. arts. 491.º, 492.º, 493.º, 807.º, n.º 2 e 1136.º, n.º 2, do CC).
IX. Não é de sufragar o entendimento (…) de que o tomador lesado teria ainda que alegar e provar que, não obstante se ter feito prova do dano e da respectiva conexão causal efectiva com a conduta da ré, se os cheques tivessem sido apresentados a pagamento este seria efectuado mesmo sem existir saldo suficiente na conta sacada, por tal representar uma inútil e injusta sobrecarga do ónus da prova de uma situação meramente conjectural.
X. Tal facto conjectural (não acontecido no plano ontológico), nem pode ser provado, na medida em que as provas destinam-se à demonstração da realidade dos factos e tal realidade pressupõe que os factos probandos tenham acontecido, pertençam ao mundo do ser e não ao mundo puramente conjectural, o que não poderá verificar-se, nem nunca o será em virtude da entidade bancária ter devolvido os cheques com o fundamento exclusivo de falta ou vício da vontade.
XI. Se tivesse ocorrido a devolução dos cheques com o fundamento da falta de provisão na conta, tal situação em si mesma, poderia, segundo as regras da experiência, não causar dano patrimonial às empresas portadoras dos cheques, na medida em que diversas medidas estão legalmente previstas para tal situação, por forma a constranger a emitente, violadora da lei do cheque, a regularizar a situação.
XII. Não recusando o banco réu o pagamento dos cheques com a indicação expressa de falta de provisão, antes aceitando ilicitamente a revogação dos mesmos, suprimiu tais possibilidades legais ao alcance das autoras”.
XLIII. O banco que recusa o pagamento de um cheque revogado determina, segundo as regras da experiência e a partir das circunstâncias do caso, que o tomador se veja privado do respectivo montante, assim dando azo à verificação do correspondente dano na esfera jurídica do seu portador – Cfr. Ac. STJ, de 12.10.2010.
XLIV. A teoria da relevância da causa virtual dever-se-á rejeitar, pois não é razoável que alguém que ilícita e culposamente causa, de facto, a outrem um prejuízo, fique subtraído à sanção consistente no dever de o reparar só porque, mesmo sem a sua conduta, a fatalidade, sob a forma de um acontecimento fortuito, teria infligido a vítima dano igual, pelo que cada um deve responder pelos prejuízos que, com ofensa da ordem jurídica, causa efectivamente aos outros, não importando que estes os sofressem ainda que o culpado os não tivesse produzido.
XLV. Apenas em casos excepcionais, onde há um agravamento da responsabilidade, é que a lei dá relevância à teoria da causa virtual, estabelecendo presunções de culpa (Cfr. artigos 491.º, 492.º e 493.º do Código Civil) pelo que devemo-nos pautar pelo princípio de que a causa virtual não exonera o lesante da obrigação de indemnizar, salvo disposição legal em contrário.
XLVI. A coexistência do facto da falta de fundos – funcionando este facto como causa virtual do dano – nunca se sobreporá à causa real do dano, isto é, à ordem de revogação aceite, sem mais e acriticamente, pelo banco Recorrido, pois a falta de provisão dos cheques nas datas da apresentação dos mesmos não é equivalente à absoluta falta de provisão, uma vez que se os cheques tivessem sido recusados por falta de provisão, nada nos diz que os mesmos não pudessem ser novamente apresentados a pagamento e obtivessem provisão – Cfr. Ac. TRP, de 25.11.2014 (Relator Exmo. Juiz Desembargador Henrique Araújo).
XLVII. A teoria da “causa virtual” é irrelevante e inapta para se sobrepor à causa real e efectiva do dano provocado pelo banco Recorrido, pois a verdade é que os cheques não foram pagos, única e exclusivamente, com fundamento na revogação por “extravio”, sendo esta a causa real e efectiva do dano.
XLVIII. É reprovável a consideração do Tribunal a quo quando entendeu que competia à Recorrente, ainda, alegar e provar que “se os cheques tivessem sido apresentados a pagamento este seria efectuado mesmo sem existir saldo suficiente na conta sacada”, não passando tal exigência de uma inútil e injusta sobrecarga sobre a Recorrente do ónus da prova de uma situação, em si mesma, meramente conjectural.
XLIX. Do Ac. do TRP, de 04.01.2011 (Relator Exmo. Juiz Desembargador M. Pinto dos Santos), lê-se: a responsabilidade do Banco só fica excluída se este alegar e provar que a conta sacada não dispunha de fundos suficientes (não só no momento da apresentação dos cheques a pagamento e nos oito dias seguintes, mas também no período que mediou até à instauração da acção, por os cheques poderem ser apresentados a pagamentos e pagos depois daquele prazo) e que os cheques nunca obteriam pagamento (mesmo que este não tivesse sido recusado com fundamento em revogação), designadamente por não ter sido convencionada (entre ele, Banco, e o respectivo titular) a possibilidade da conta ficar a descoberto e de, nessa situação, poderem ser pagos cheques”.
L. Nos autos apenas se provou nos autos a insuficiência de provisão da conta sacada na data da apresentação dos cheques a pagamento, no entanto não se provou que a insuficiência de provisão se manteve no período dos oito dias subsequentes à data da apresentação dos cheques, nem no período que mediou até à instauração da acção que os cheques nunca obteriam pagamento por insuficiência de fundos, muito menos se provou que a conta sacada não podia ficar a descoberto.
LI. A responsabilidade do banco recorrido não pode ser excluída (nem limitada ao nível da medida da obrigação de indemnizar) com a simples prova – a cargo do Banco (n.º 2, art. 342.º CC - por se tratar de factologia integradora de defesa por excepção peremptória) da insuficiência de fundos no momento da apresentação do cheque a pagamento, pois é sabido que muitas vezes os contratos de depósito bancário permitem que as contas fiquem a descoberto até determinados limites e seja, ainda assim, possível o desconto/pagamento de cheques apesar das mesmas se encontrarem a descoberto e até com saldo negativo – Cfr. Ac. TRP, de 04.01.2011.
LII. As provas destinam-se à demonstração da realidade dos factos e tal realidade pressupõe que os factos probandos tenham acontecido e que, efectivamente, pertençam ao “mundo do ser” e não ao “mundo puramente conjectural”, sendo certo que esta recai sobre uma condição que nunca se chegou a verificar, nem nunca será, em virtude de, in casu, o banco recorrido ter aceite, sem mais, a revogação dos cheques com fundamento, exclusivo, de “extravio”.
LIII. Ressalvadas as situações excepcionais especialmente reguladas para presunções legais de culpa, a causa virtual é irrelevante, pois não exclui a responsabilidade do autor do dano real, pelo que a causa virtual não pode exonerar o banco Recorrido da obrigação de indemnizar, recaindo sobre este a sua responsabilidade pelos prejuízos que a sua conduta de recusa de pagamento dos cheques com base na revogação do sacador causou – Cfr. Ac. TRP, de 26.10.2010 (Relatora Exma. Juiz Desembargadora Maria Cecília Agante).
LIV. Caso tivesse ocorrido a devolução dos cheques como o fundamento da falta de provisão da conta sacada, tal situação, em si mesma, poderia até nem causar dano patrimonial à Recorrente, em virtude da existência de mecanismos legais destinados a compelir o devedor ao pagamento, pelo que a conduta do banco Recorrido – revogação dos cheques por “extravio” – impediu, definitivamente, a Recorrente de lançar mão de tais mecanismos legais.
LV. A conduta do banco Recorrido impediu a notificação da sacadora para regularizar a falta de provisão em 30 dias (art. 1.º A, DL n.º 454/91, 28/12), a notificação do Banco de Portugal para inclusão da sacadora na listagem de utilizadores de risco de cheques (art. 2.º e 3.º, DL n.º 454/91, 28/12), a participação pelo crime de crime de emissão de cheque sem provisão (art. 11.º, n.º 1, al. a), DL n.º 454/91, de 28/12), a constituição de título executivo e a possibilidade de reutilização o cheque para nova apresentação a pagamento – Cfr. Ac. STJ, de 21.03.2013 (Relator Exmo. Conselheiro Abrantes Geraldes) e Ac. do STJ, de 10.05.2012 (Relator Exmo. Juiz Conselheiro Oliveira Vasconcelos).
LVI. Verifica-se que a conduta do banco Recorrido determinou a diminuição do património da Recorrente em igual medida das importâncias constantes dos cheques, sendo certo que tal dano teve como causa adequada, nos termos do artigo 563.º do Código Civil, a conduta ilícita e culposa do banco Recorrido.
LVII. Se a conta sacada se encontrasse provisionada na data da apresentação a pagamento dos cheques, e caso fosse aceite pelo banco Recorrido a ordem de revogação por “extravio”, o dano – não pagamento – ter-se-ia, de igual modo, produzido, do mesmo modo que se produziria ainda que a conta sacada não tivesse provisão suficiente.
LVIII. A revogação dos cheques é, por si só, causa adequada do dano, ainda que posteriormente ocorresse um outro facto susceptível de conduzir ao mesmo resultado, pois este outro facto – inexistência de provisão – não está legalmente previsto como causa susceptível de suplantar a outra.
LIX. Com uma correcta apreciação e aplicação do direito, necessariamente se conclui que comportamento ilícito e culposo foi adequado à produção do dano, pelo que não poderia o Tribunal a quo afastar a causa real do dano para prevalecer a causa virtual, uma vez que o caso dos autos não se enquadra nas situações – excepcionais – previstas na lei, onde a causa virtual prevalece sobre a causa real do dano.
LX. Dúvidas não restam de que o banco Recorrido não se pode ver exonerado da obrigação de indemnização, no todo ou em parte, pelo facto da “causa virtual” ser susceptível de produzir o mesmo dano.
LXI. A conduta do banco Recorrido foi suficiente, segundo as regras da experiência e a partir das circunstâncias do caso sub judice, para que a Recorrente se visse definitivamente privada dos montantes titulados pelos cheques em causa, encontrando-se demonstrada o nexo de causalidade adequada e o dano sofrido pela ora Recorrente, o que conduz à procedência do presente recurso.
LXII. Mostram-se verificados todos os pressupostos da responsabilidade extracontratual por factos ilícitos, nos termos do artigo 483.º, n.º 1 do Código Civil, designadamente aqueles não afirmados pelo Tribunal a quo – o dano e o nexo causal – pelo que a sentença recorrida deverá ser revogada e substituída por outra que condene o banco Recorrido na totalidade do pedido.
O recorrido contra-alegou pugnando pela total improcedência do recurso, tendo ainda dentro do prazo de que dispunha para contra-alegar oferecido novas contra-alegações relevando o acórdão uniformizador de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça nº 3/20016 e requerendo que as contra-alegações oferecidas por último substituam as primeiramente oferecidas, pretensão que não foi apreciada pelo tribunal a quo.
Com o acordo dos Excelentíssimos Juízes-adjuntos, atendendo à natureza estritamente jurídica do objeto do recurso e à circunstância de sobre o mesmo existir jurisprudência uniformizada recente do Supremo Tribunal de Justiça, decidiu-se dispensar os vistos e nada obstando ao conhecimento do objeto do recurso, cumpre apreciar e decidir.
2. Questões a decidir tendo em conta o objeto do recurso delimitado pela recorrente nas conclusões das suas alegações (artigos 635º, nºs 3 e 4 e 639º, nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil, na redação aplicável a estes autos), por ordem lógica e sem prejuízo da apreciação de questões de conhecimento oficioso, observado que seja, quando necessário, o disposto no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil
As questões a decidir resumem-se ao apuramento do dano e do nexo causal entre o facto e o dano.
3. Fundamentos de facto[4] exarados na sentença recorrida que não foram impugnados e que se mantêm por não se preencher qualquer hipótese legal que permita a sua reapreciação oficiosa
3.1 Factos provados
3.1.1
A autora é uma sociedade comercial por quotas cujo objecto consiste no depósito e distribuição de tabacos nacionais e estrangeiros.
3.1.2
A autora é possuidora de três cheques emitidos pela gerência da "D…, LDA.", e sacados sobre a conta bancária identificada com o número … … … .., do "Banco C…, S.A. ", ora réu.
3.1.3
No exercício da sua actividade, a autora estabeleceu relações comerciais com a sociedade "D…, LDA." cujo objeto social consiste na comercialização de jornais, revistas, tabaco, lotarias e outros jogos de apostas da Santa Casa da Misericórdia e, ainda, no comércio de brindes, prendas e acessórios.
3.1.4
No exercício dessa actividade comercial, a autora forneceu, ao longo do tempo, à "D…, LDA.", tabacos em grande volume e elevado valor.
3.1.5
Para pagamento de fornecimentos de tabaco, a "D…, LDA." entregou à autora, nas datas que neles constam, três cheques, sacados sobre a instituição bancária ré.
3.1.6
A autora obteve o pagamento de outros cheques entregues, sacados pela "D…, LDA." sobre a sua conta na instituição bancária ora ré.
3.1.7
No entanto, quando apresentados a pagamento os três cheques aqui em causa, o mesmo foi recusado pelo réu com indicação de "extravio", pelo que os mesmos foram devolvidos à autora.
3.1.8
Os aludidos cheques, cujo pagamento foi recusado pelo réu, têm os números e montantes que abaixo se discriminam:
- cheque nº … ….. .., no montante de € 4.000,00[5];
- cheque n.º … … .. .. no montante de € 8.500,00; e
- cheque n.º … …… … no montante de € 3.459,52[6].
3.1.9
O valor titulado pelos cheques referidos no artigo anterior atinge o valor total de €15.959,52[7].
3.1.10
Tais cheques foram emitidos e assinados pelos responsáveis da sociedade "D…, LDA.".
3.1.11
E entregues directamente a um colaborador da Autora no estabelecimento “D…, LDA.” na Maia.
3.1.12
Os cheques têm aposto o respectivo carimbo e encontram-se emitidos "não à ordem".
3.1.13
A autora apresentou a pagamento os cheques sacados sobre a instituição bancária, ora ré, dentro do prazo legal estabelecido, oito dias contados desde a data de emissão dos mesmos, respectivamente, em 13.09.2011[8], 15.09.2011 e 16.09.2011.
3.1.14
O motivo apresentado para a recusa de pagamento dos cheques, "extravio", é falso, porque fundado num alegado extravio que não ocorreu.
3.1.15
O ora réu não procedeu à averiguação da regularidade e legitimidade da ordem de revogação da ordem de pagamento dos cheques junto da entidade sacadora com o objectivo de afastar quaisquer dúvidas que pudesse ter sobre a emissão e detenção dos mesmos.
3.1.16
Se o ora réu tivesse averiguado a regularidade, saberia que a "D…, LDA." há muito mantém relações com a ora autora, titulados inclusive por cheques sobre a conta do banco réu.
3.1.17
Sendo a emissão, entrega e pagamento de cheques por aquela sociedade à autora, normal e corrente, inclusive com cheques do "C…", ora réu.
3.1.18
O réu não inquiriu a sacadora "D…, LDA." sobre a detenção dos cheques pela autora, pois, nesse caso obteria confirmação sobre a legítima detenção dos cheques pela autora.
3.1.19
A ora ré não cuidou de obter prova suficiente do alegado desapossamento dos referidos cheques, nomeadamente, cópia da declaração policial de extravio ou furto dos cheques.
3.1.20
Sendo credora da “D…, LDA.”, a autora, com os cheques visava o pagamento parcial da dívida que esta última tinha para consigo, vendo as suas expectativas de pagamento frustradas com a devolução dos mesmos.
3.1.21
Com a "devolução dos cheques", a autora ainda teve de suportar as despesas bancárias inerentes à recusa de pagamento do valor titulado pelos mesmos, no valor total de € 29,12[9].
3.1.22
A sociedade “D…, Lda.” abriu uma conta de depósitos à ordem com o nº 1-…………….., na agência do Banco C… – ….
3.1.23
Em 16.10.2003, a ora chamada D…, Lda. aderiu ao serviço C…Net Empresas, na opção “E…”, no seu interesse, de acordo com as condições previstas e aceites no contrato junto à contestação.
3.1.24
Por sua livre vontade, conhecedora das vantagens e das obrigações decorrentes da utilização do serviço de homebanking disponibilizado pelo Banco réu aos seus clientes, no exercício da sua actividade e para os fins por estes entendidos como necessários.
3.1.25
O serviço C…Net empresas é um serviço com funcionalidades adaptadas para empresas e permite efetuar, de acordo com a opção “E…” escolhida pela chamada, um vasto leque de operações bancárias, tais como, as de requisição e cancelamento de cheques.
3.1.26
A ora chamada designou o seu gerente F… como utilizador do serviço C…Net Empresas, no aludido “E…”, ou seja, o seu utilizador tem acesso a todas as operações disponibilizadas por esta funcionalidade sem limite de montantes.
3.1.27
No caso concreto, em Setembro de 2011, o gerente da ora chamada, F…, estava contratualmente autorizado a proceder à utilização do serviço C…Net Empresas, em representação da chamada.
3.1.28
No âmbito de tal serviço e através da plataforma do serviço C…Net Empresas, o supra identificado gerente da chamada, através de pessoa por si a tanto autorizada, procedeu ao cancelamento do cheque nº ………., pelo motivo de “Extravio”, no dia 15.09.2011, às 22h40m20s.
3.1.29
De igual forma e através da mesma pessoa, o gerente da chamada procedeu ao cancelamento dos cheques nº ………. e nº ………..), pelo motivo de “Extravio”, no mesmo dia 15.09.2011, às 22h41m53s.
3.1.30
Tais cheques foram apresentados a pagamento nas datas apostas nos mesmos e foram devolvidos, por “Extravio”, no estrito cumprimento das instruções transmitidas pela ora chamada.
3.1.31
Ao devolver os cheques em causa nos autos, o Banco réu limitou-se a cumprir as
instruções que havia recebido da sua cliente, ora chamada.
3.1.32
Assim, a devolução dos cheques em causa nos autos obedeceu a instruções expressas, escritas dadas ao Banco réu pela sacadora, sua cliente.
3.1.33
Nas respectivas datas de apresentação a pagamento, a conta sacada não se encontrava devidamente provisionada para o efeito.
3.2 Factos não provados
3.2.1
Que a honorabilidade da autora tenha sido ferida e posta em causa pela recusa de pagamento com base em extravio.
4. Fundamentos de direito
4.1 Do dano e do nexo causal entre o facto e o dano
A recorrente insurge-se contra a decisão recorrida por, não obstante ter concluído pela existência de uma conduta ilícita e culposa por parte do recorrido, ter julgado improcedente a ação por não se ter provado o dano real, ou seja, que os cheques só não lhe foram pagos por força da sua devolução (ilícita) feita pelo sacado.
Cumpre apreciar e decidir.
A apreciação do objeto da presente apelação não se pode dissociar do que estatuiu o Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 3/2016[10], nos termos seguintes:
- “A falta de pagamento do cheque, apresentado dentro do prazo previsto no art. 29.º da LUCh, pelo banco sacado, com fundamento em ordem de revogação do sacador, não constitui, por si só, causa adequada a produzir dano ao portador, equivalente ao montante do título, quando a conta sacada não esteja suficientemente provisionada, competindo ao portador do cheque o ónus da prova de todos os pressupostos do art. 483.º do CC, para ter direito de indemnização com aquele fundamento.
Apesar do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 3/2016, ter subjacente um caso de recusa de pagamento de cheques com fundamento na invocação de vício da vontade, a consequência jurídica nele delineada é inteiramente transponível para o caso dos autos, pois em ambos os casos se trata de determinar o perfil que devem assumir o dano e o nexo causal entre o facto e o dano enquanto pressupostos de que também depende a constituição da obrigação de indemnizar com base em facto ilícito, rectius com base em ilegal recusa de pagamento de cheques, qualquer que seja o concreto fundamento invocado.
Na dogmática da responsabilidade civil, o Sr. Professor Antunes Varela[11], define o dano real como “a perda in natura que o lesado sofreu (…), em consequência de certo facto, nos interesses (materiais, espirituais ou morais) que o direito violado ou a norma infringida visam tutelar (…). É a lesão causada no interesse juridicamente tutelado, que reveste as mais das vezes a forma de uma destruição, subtracção ou deterioração de certa coisa, material ou incorpórea”. Já para o Sr. Professor Menezes Cordeiro[12], deve distinguir-se uma noção natural de dano, em que este é a supressão ou diminuição de uma situação favorável, de um conceito jurídico em que o dano é a supressão ou diminuição de uma situação favorável, reconhecida e protegida pelo Direito.
O dano real deve distinguir-se do dano de cálculo que é a expressão monetária do dano real[13].
No caso dos autos, a recorrente funda a sua pretensão indemnizatória contra o recorrido na violação de uma disposição legal destinada a proteger um interesse seu, violação que o nosso Supremo Tribunal de Justiça teve já ocasião de considerar como podendo constituir fonte de obrigação de indemnizar com base em responsabilidade por facto ilícito, no acórdão de uniformização de jurisprudência nº 4/2008, publicado no Diário da República, Iª série, nº 67, de 04 de Abril de 2008[14].
Na hipótese submetida à nossa cognição, a recorrente recebeu da chamada três cheques para pagamento de fornecimentos de tabaco que lhe efetuou.
A entrega dos cheques para satisfação do preço devido pelos fornecimentos de tabaco que a recorrente fez à chamada presume-se iuris tantum uma dação pro solvendo, ex vi artigos 840º, nº 2 e 350º, nº 2, ambos do Código Civil. Por ser assim, a entrega desses títulos de crédito visa facultar ao credor um meio mais expedito de satisfação do seu crédito, não tendo, em qualquer caso, como consequência e em decorrência da simples entrega, qualquer efeito extintivo do crédito, o qual apenas se extingue quando e na medida em que for satisfeito (artigo 840º, nº 1, do Código Civil).
Só assim não seria se acaso aquando da entrega dos cheques tivesse havido uma manifestação expressa no sentido da novação da dívida (artigos 857º e 859º, ambos do Código Civil).
No caso em apreço, o não desempenho da função solutória pelos cheques que foram entregues pela chamada à recorrente, apenas impede que essa facilidade na satisfação do crédito produza os seus efeitos, mas nenhuns reflexos tem sobre a subsistência do crédito que por aquela via se pretendia solver.
O não pagamento dos referidos títulos de crédito não representa qualquer diminuição do ativo da recorrente, mas apenas obsta ao aumento do ativo da recorrente, aumento que sempre poderá ter lugar pela cumprimento coercivo da obrigação insatisfeita. De facto, não obstante a recusa de pagamento daqueles títulos de crédito pelo recorrido, o direito de crédito subjacente da recorrente e que justificou a emissão e entrega de tais títulos mantém-se operante.
É certo que, com a recusa de pagamento por parte do recorrido, se frustrou a expectativa de pagamento que a recorrente tinha com a entrega daqueles títulos. Porém, a frustração dessa expectativa não tem reflexos na subsistência do crédito que se visava satisfazer com a entrega dos títulos, não resultando dessa frustração qualquer variação, para menos, no património da recorrente.
Ainda que no caso em análise, por hipótese, se pudesse configurar um dano real imputável à conduta do recorrido e equivalente ao valor facial dos títulos não pagos e às despesas bancárias ocasionadas pela sua devolução, sempre faltaria o nexo causal entre o facto e o dano. E não por efeito da consideração de uma causa virtual com relevância negativa[15], mesmo que com eficácia cingida à delimitação do dano indemnizável, como sustenta o Sr. Professor Antunes Varela[16], mas antes pela exclusão de todo e qualquer nexo causal, pois que, mesmo que o recorrido tivesse adotado um comportamento lícito[17], isto é, não tivesse recusado o pagamento dos cheques com fundamento no invocado extravio, sem cuidar de verificar da veracidade do motivo invocado, ainda assim, por força da falta de provisionamento da conta sacada, sempre sairia frustrada a expectativa de satisfação do crédito da recorrente pela via cambiária. Neste contexto, sempre se teria que concluir pela irrelevância da conduta ilícita do recorrido para o resultado verificado, pois que mesmo que tivesse agido licitamente, o não pagamento dos títulos sempre se verificaria, o que permite concluir que, afinal, a recusa de pagamento dos cheques é juridicamente irrelevante para o não pagamento ocorrido.
Finalmente, não se nos afigura frutífera a figura da “perda de chance” para dar guarida à pretensão da recorrente, desde logo porque nem sequer foram alegados para tanto os necessários factos que teriam de resultar provados para que se pudesse concluir que a conduta do recorrido se traduziu na frustração de uma “chance” verosímil de satisfação do crédito da recorrente e, pelo contrário, os que resultaram provados – falta de provisão e posterior insolvência da sacadora – apontam no sentido da forte improbabilidade de que os cheques cujo pagamento foi recusado pelo recorrido viriam a cumprir a sua função solutória.
Por tudo quanto precede, conclui-se pela total improcedência do recurso de apelação interposto por B…, Lda. e pela necessária confirmação da sentença proferida em 05 de novembro de 2015.
As custas do recurso são da responsabilidade da recorrente, já que a sua pretensão recursória improcedeu totalmente (artigo 527º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
5. Dispositivo
Pelo exposto, os juízes abaixo-assinados da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar totalmente improcedente o recurso de apelação interposto por B…, Lda. e, em consequência, em confirmar a sentença recorrida proferida em 05 de novembro de 2015, nos segmentos impugnados.
Custas a cargo da recorrente, sendo aplicável a secção B, da tabela I, anexa ao Regulamento das Custas Processuais, à taxa de justiça do recurso.
***
O presente acórdão compõe-se de dezassete páginas e foi elaborado em processador de texto pelo primeiro signatário.

Porto, 18 de abril de 2016
Carlos Gil
Carlos Querido
Alberto Ruço
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[1] Segue-se, em parte, o relatório da sentença recorrida.
[2] A autora identifica deste modo a forma processual usada no formulário Citius, mas no cabeçalho da petição inicial alega que a ação segue a forma sumária.
[3] Notificada em expediente eletrónico elaborado em 09 de novembro de 2015.
[4] Expurgados de meras referências probatórias.
[5] E não “€ 4.000100”, como por lapso ostensivo ficou escrito na decisão recorrida.
[6] E não “€ 30459,52”, como por lapso ostensivo ficou escrito na decisão recorrida.
[7] O produto de uma soma não constitui matéria de facto pois é uma conclusão obtida com base nas regras da aritmética, apenas dependendo de prova as parcelas que hão-de ser somadas.
[8] E não “20111”, como por ostensivo lapso ficou escrito na decisão recorrida.
[9] E não “€ 29,121”, como por lapso ostensivo ficou escrito na decisão recorrida.
[10] Publicado no Diário da República, Iª série, nº 15, de 22 de janeiro de 2016.
[11] In Das Obrigações em geral, Vol. I, 6ª edição, Coimbra Editora 1989, página 568.
[12] In Tratado de Direito Civil VIII, Direito das Obrigações, Almedina 2014, página 511.
[13] Veja-se o já citado Tratado de Direito Civil VIII, Direito das Obrigações, Almedina 2014, página 513, IV e nota 1717.
[14] O dispositivo do acórdão citado é o seguinte: “Uma instituição de crédito sacada que recusa o pagamento de cheque, apresentado dentro do prazo estabelecido no artigo 29.º da LUCH, com fundamento em ordem de revogação do sacador, comete violação do disposto na primeira parte do artigo 32.º do mesmo diploma, respondendo por perdas e danos perante o legítimo portador do cheque, nos termos previstos nos artigos 14.º, segunda parte, do Decreto n.º 13 004 e 483.º, n.º 1 do Código Civil.
[15] A afirmação da recorrente de que os factos conjecturais ou hipotéticos não são suscetíveis de prova é na nossa perspetiva incorreta, pois nos factos incluem-se não só as ocorrências da vida real exterior e passíveis de perceção, mas também as ocorrências da vida interna das pessoas, como sejam as intenções, os conhecimentos, as dores, as alegrias, etc…, as situações virtuais, seja no passado, seja no futuro, como sucede, por exemplo, na determinação da vontade conjetural em caso de redução ou conversão do negócio jurídico e, finalmente, os juízos periciais de facto, isto é, as apreciações de certos factos efetuadas por pessoas dotadas de conhecimentos científicos e com base nesses conhecimentos. Michele Taruffo, in Simplemente la verdad, El juez y la construcción de los hechos, Marcial Pons 2010, páginas 53 a 56 [existe tradução portuguesa desta obra de 2012, encontrando-se a passagem citada nas páginas 59 a 62], reduz os factos aos históricos e aos psicológicos, afirmando que os enunciados de facto que os veiculam são apofânticos, no sentido de que podem ser verdadeiros ou falsos, não aludindo aos denominados factos hipotéticos, nem aos juízos periciais de facto, a que se refere, por exemplo, J.P. Remédio Marques in Acção Declarativa à Luz do Código Revisto, 2ª edição, Coimbra Editora 2009, páginas 524 a 527.
[16] Veja-se Das Obrigações em geral, Vol. I, 6ª edição, Coimbra Editora 1989, páginas 895 a 908.
[17] Sobre a distinção entre a causa virtual e o comportamento alternativo lícito veja-se com muito interesse, Responsabilidade Civil por Violação de Deveres no Tráfego, Almedina 2015, Rui Paulo Coutinho de Mascarenhas Ataíde, páginas 925 a 933.