Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0344554
Nº Convencional: JTRP00037106
Relator: AGOSTINHO FREITAS
Descritores: CONCURSO REAL DE INFRACÇÕES
BURLA
FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO
Nº do Documento: RP200407140344554
Data do Acordão: 07/14/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Área Temática: .
Sumário: Há concurso real entre os crimes de falsificação de documento e de burla, mesmo que a falsificação seja um meio de cometer o crime de burla.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam, em audiência, na Secção Criminal (2.ª) do Tribunal da Relação do Porto:

No processo comum n.º ..../99.4TDPRT, da 4.ª Vara Criminal do Círculo do Porto, após julgamento, perante tribunal colectivo, por acórdão de 05-05-2003, deliberaram os juízes, no que ora releva, o seguinte:
a) condenar o arguido B.......... como autor material de um crime de abuso de confiança, p. e p. pelo art.º 205º, n.º 1 e n.º 4, al. b), do C.Penal, na pena de 2 (dois) anos de prisão;
b) condenar o arguido B.......... como autor material de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art.º 256º, n.º 1, al. b), e n.º 3, do C.Penal, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão;
c) condenar o arguido B.......... como autor material de um crime de burla, p. e p. pelo art.º 217º, n.º 1, e 218º, n.º 2, al. a), do C.Penal, na pena de 2 (dois) anos e 9 (nove) meses de prisão;
d) em cúmulo, considerados no seu conjunto os factos e a personalidade do arguido B.........., condenar este na pena única de 4 (quatro) anos de prisão.
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Inconformado, o arguido interpôs recurso, extraindo da correspondente motivação (após convite para resumir as razões do pedido – art.º 412.º, n.º 1, do CPP) as seguintes CONCLUSÕES:
A) Nos presentes autos foi o arguido acusado e condenado, entre outros, por um crime de abuso de confiança p. e p. pelo Art° 205° n° 1 e n° 4 alínea b) do C. Penal, sendo que os factos objecto desta acusação e condenação ocorreram entre Novembro de 1998 e Junho de 1999 e por sentença transitada em julgado, cuja cópia está junta aos autos, proferida no âmbito do processo n° .../99.0 TDPRT da 1ª Vara deste Tribunal, o arguido foi condenado como autor de um crime de abuso de confiança qualificado p. e p. no Art° 205º n° 4, alínea b) do C.P., na pena de dois anos e seis meses de prisão, suspensa a sua execução por três anos.

B) Em ambos os processos é lesada a entidade patronal do arguido, e tendo os factos acorridos no mesmo período temporal, há assim identidade entre este thema probandum da acusação proferida nos presentes autos e o thema decidendum da decisão em confronto, e é quanto basta para que haja de concluir-se pela verificação da excepção de caso julgado.

C) Os factos destes autos inserem-se naturalisticamente na sequência histórico-concreta evidenciada pelos factos pelos quais o arguido foi julgado e condenado, com efeito não obstante a maior amplitude temporal e a mais circunstanciada concretização da conduta que se imputa no âmbito dos presentes autos, quando comparada com a actuação que sustentou a condenação imposta no âmbito do já referido processo, o certo é que se trata do mesmo desígnio criminoso, o qual juntamente por corresponder a um único processo resolutivo , conduz ao reconhecimento da prática de um só crime, sabido como é, que o bem jurídico alegadamente violado não tem natureza pessoal.

D) Daí que se por parte das condutas em que se desenvolve esse único crime, se organizou um processo autónomo, se deduziu acusação e se submeteu o arguido a julgamento, torna-se claro que a partir do momento em que uma sentença transitada em julgado tenha apreciado tais parcelares condutas e por elas o tenha condenado como autor de um crime de abuso de confiança qualificado, não pode o arguido ser julgado e condenado pelas restantes condutas que integram o mesmo crime, sob pena de o estar a ser julgado mais uma vez, efeito vedado pelo Art° 29° n° 5 da C. R. P.

E) Assim mercê da condenação definitiva no âmbito daquele processo proferida pela 1ª- Vara, consumiu-se por força do caso julgado, o poder punitivo do Estado, seguindo-se como consequência a extinção definitiva, por desaparecimento dos respectivos objecto e fundamentos da lide processual penal, pelo que dado a verificação da excepção de caso julgado, deverá declarar-se extinto o procedimento criminal.

F) Foi violado o Art° 29° n° 5 da C. R. P.

G) Acresce que da decisão recorrida apenas consta os factos provados, não constando os factos não provados, pelo que a matéria alegada pelo arguido em sua defesa, que continha factos, deveria integrar na decisão factos provados ou não provados, o que significa que o Tribunal recorrido nem sequer se pronunciou sobre os factos alegados pelo arguido em sua defesa.

H) Foi assim omitido um requisito essencial da decisão tal como obriga o disposto no Art° 374° n° 2 do C.P.P., estando tal decisão ferida de nulidade nos termos do Art° 379° n° 1 alínea a) do C.P.P.

I) O arguido praticou um único crime, na verdade da matéria factual apurada resulta claro que o mesmo deverá ser absolvido da acusação na parte em que lhe fora imputado a prática de um crime previsto e punido pelo Artº 256° n° 1, alínea a) e n°3 do C.P. em concurso real como crime de burla., na verdade dos autos resulta que o arguido preencheu o crime de burla, mas este crime foi cometido com recurso a um acto também jurídico-penalmente relevante: a utilização de cheques cujos nomes do beneficiário foi falsificado, agindo o arguido como fosse o verdadeiro titular dos mesmos.

J) Para o B.......... a decisão de produzir um cheque falso por via da alteração da pessoa á ordem de quem os cheques foram emitidos e a de entregar ao banco para obter do mesmo a quantia inserta nos mesmos, é uma e única. O desiderato do agente é o de obter a quantia titulada pelos cheques.

K) Há uma única resolução criminosa que determina uma equivalente unicidade ao nível do crime cometido, a existência de uma resolução criminosa traduzida numa sucessão de actos cuja proximidade temporal revela a inexistência de uma renovação do respectivo processo de motivação, impede que se conclua que estamos perante um concurso efectivo de crimes, isto é uma pluralidade de infracções.

L) Punir as duas condutas - a de falsificação e a de burla - corresponde à punição dupla do agente pelo mesmo facto o que consubstancia a violação do principio básico consagrado no Art° 29° n°5 da C. R. P. e a esta conclusão não se pode opor a diversidade de bens jurídicos tutelados, é que existe uma relação de consunção entre os dois tipos de crime, e não exige que ambos se destinem a proteger o mesmo bem jurídico.

M) A moldura da pena estabelecida no Art° 217° e 218° do C. P. já incorpora em si a penalização de todo o comportamento burloso qualquer que seja o meio utilizado para a prática daquele tipo de crime, assim a falsificação de documentos é realizada como meio para atingir o crime de burla, os actos de falsificação dos cheques são meros instrumentos de comissão do subsequente crime de burla.

N) O arguido só deverá ser punido pela prática de um crime de burla dada a relação de consunção e ainda pelo facto de ter havido unidade de resoluções criminosas pois o agente falsificou para burlar.

O) Foi violado os Art°s 29° n° 5 da C. R. P. e Art° 30°do C. P.

Atentando-se pois nas equacionadas questões daí fazendo derivar as correctas e legais consequências, fixando-se quando menos um acervo fáctico e de direito, gerador da absolvição do arguido da acusação na parte em que lhe foi imputada a prática de um crime de abuso de confiança e de um crime de falsificação de documento, que se tem como inquestionável e irreversível, alcançarão V. EXa(s), seguramente,
A COSTUMADA JUSTIÇA.
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O recurso foi admitido pelo despacho de fls. 407.
Cumpridas as notificações legais, o Ministério Público apresentou desenvolvida resposta, rebatendo as questões essenciais levantadas pelo recorrente: caso julgado, consumpção de crimes e nulidade da sentença.
Relativamente à excepção de caso julgado, a Ex.ma Procuradora da República, confrontando a factualidade vertida no acórdão ora recorrido [n.os 1, 2, 4, 5, 6, 7, 7.1, 7.2, 7.3, 7.4, 8, 9, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, do processo n.º ..../99.4TDPRT, 4.ª Vara Criminal do Porto] e a factualidade vertida no acórdão invocado pelo recorrente [n.os 3.a), b),c) d), e) do processo n.º ..../99.0TDPRT, 1.ª Vara Criminal do Porto] no qual, por decisão de 15-07-2002, transitada em julgado, foi condenado como autor material de um único crime de abuso de confiança na pena de dois anos e seis meses de prisão, com execução suspensa por três anos (cf. certidão de fls. 818-824), pronunciou-se no sentido de que, havendo embora conexão entre os factos, os mesmos carecem de contemporaneidade, e são fruto de uma diversa resolução criminosa, pelo que estamos perante crimes diferentes.
Quanto à questão da consumpção de crimes — que determinaria que o recorrente fosse absolvido do crime de falsificação de documento por a falsificação dos cheques não ter passado de um mero meio para cometer o crime de burla, não podendo ser condenado pelos dois crimes (falsificação e burla) sob pena de violação do princípio "ne bis in idem" consagrado no art.º 29°, n.° 5, da CRP — a Ex.ma Magistrada convoca o assento n.º 8/2000, de 4/5/2000, no qual foi fixada jurisprudência no sentido de entre os crimes de falsificação e burla, p. e p. pelos art.os 256.°, n.° 1, a), e 217.°, n.° 1, CP/95, se verificar concurso real ou efectivo de crimes.
No que concerne à invocada nulidade do acórdão — por dele não constarem os factos não provados como o exige o art.º 374°, n.° 2 do CPP — a Ex.ma Magistrada refere-se à acta de julgamento de fls. 815-816, onde consta o despacho relativo à confissão do arguido e à dispensa de produção de prova, com excepção da inquirição de uma testemunha, não havendo a enumerar factos não provados, considerando que não se verifica a apontada nulidade.
Assim, conclui que se deve negar total provimento ao recurso, confirmando-se na íntegra o acórdão recorrido. ( fls. 411-419).
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A Assistente C.........., notificada das motivações e conclusões reformuladas pelo arguido B.........., ofereceu elaborada resposta às questões que fundamentam o recurso, concluindo que se deve negar total provimento ao recurso, confirmando-se integralmente o acórdão recorrido (fls. 458-5629).
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Nesta instância, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, abordando de forma exaustiva as questões suscitadas no âmbito do presente recurso, exarou brilhante e proficiente parecer, concluindo que:
a) se impõe o reenvio parcial do processo, relativamente ao crime de abuso de confiança, com vista a averiguar se a factualidade integradora deste tipo legal de crime constitui um único crime, um crime continuado ou um concurso de crimes;
b) por outro lado, improcede o recurso no que toca aos crimes de falsificação e burla (fls. 451-457).
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Cumprida a notificação do art.º 417.º, n.º 2 do CPP, não houve resposta.
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Colhidos os vistos legais e realizada a audiência, cumpre decidir.
Não tendo sido documentadas as declarações prestadas oralmente em audiência, de acordo com o preceituado no artigo 363.º do CPP [Também não foi arguida a irregularidade da inobservância do preceituado no artigo 363.º do CPP, na interpretação defendida de que tal gravação é obrigatória, devendo por isso considerar-se sanada (neste sentido cf. Ac. do STJ de 03-05-2000, in C.J. Acs. STJ, VIII, 2.º, p. 176). Sobre tal questão o S.T.J fixou já a jurisprudência n.º 5/2002, publicada no D.R. I-A Série, de 17 de Julho, nos seguintes termos: «A não documentação das declarações prestadas oralmente na audiência de julgamento, contra o disposto no artigo 363.º do Código de Processo Penal, constitui irregularidade, sujeita ao regime estabelecido no artigo 123.º do mesmo diploma legal, pelo que, uma vez sanada, o tribunal já dela não poderá conhecer.»] (cf. acta de fls. 815), o presente recurso está limitado à matéria de direito, sem prejuízo do conhecimento oficioso de certos vícios ou nulidades, ainda que não invocados ou arguidas pelos sujeitos processuais (art.os 428.º, n.º 2, e 410.º, n.os 2 e 3, o CPP). [E jurisprudência fixada pelo Ac. do STJ n.º 7/95, de 19/10, in DR I Série A, de 28-12-95, e pelo Ac. do STJ n.º 1/94, de 2/12, in DR, I Série A, de 11-2-94]
De acordo com a jurisprudência uniforme e pacífica, o âmbito do recurso é definido pelas conclusões extraídas da respectiva motivação (412.º, n.º 1, 403.º, n.º 1, do CPP).
No caso, as questões suscitadas pelo recorrente, resumidamente, são as de saber:
1) se se verifica a excepção do caso julgado, por os factos em apreço nestes autos, ocorridos entre Novembro de 1998 e Junho de 1999, se inserirem naturalisticamente na sequência histórico-concreta da materialidade já julgada no processo n.° ..../99.0 TDPRT da 1.ª Vara Criminal do Porto, estando assim violado o art.º 29°, n.° 5, Constituição da República Portuguesa [alíneas A) a F)];

2) se se verifica a nulidade, nos termos dos art.º 374°, n.° 2, e 379°, n.° 1, a), CPP, por apenas constarem da decisão recorrida os factos provados, não se pronunciando o tribunal recorrido sobre os factos não provados [alíneas G) e H)];

3) se não se verifica o concurso de crimes de burla e falsificação de documento, por a materialidade consistente na utilização de cheques cujos nomes dos beneficiários foram falsificados, agindo o recorrente como se fosse o verdadeiro titular dos mesmos, apresentando-os ao banco para receber os montantes neles inscritos, integrar uma única decisão, que é a de obter a quantia titulada nos cheques, existindo consumpção entre os dois tipos de crime, uma vez que a moldura estabelecida nos art.os 217° e 218°, CP, já incorpora em si a penalização de todo o comportamento burloso, qualquer que seja o meio utilizado, pelo que a sua condenação pelo concurso dos crimes de falsificação e burla viola os art.os 29°, n.° 5, CRP, e 30°, CP [ alíneas I) a O)];

Vejamos o que consta do acórdão recorrido e releva na perspectiva do objecto do recurso.
Quanto à excepção de caso julgado, o tribunal a quo consignou o seguinte:
«Nos termos do art.º 29.º, n.º 5, da Constituição da República, onde se encontra consagrado o princípio ne bis in idem, ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime.
Assim, sempre que o agente já tenha sido julgado por factos que fazem parte de uma continuação criminosa que foram objecto de um condenação definitiva, estará consumido o direito de acusação relativamente a quaisquer outros factos que pertençam a esse mesmo crime continuado, ainda que os mesmos tivessem permanecido estranhos ao conhecimento do tribunal. O mesmo acontecerá quando a factos subsumíveis a uma mesma e única resolução criminosa que já foi objecto de conhecimento e decisão.
No caso concreto, considerando as certidões juntas e relativas à acusação deduzida no proc. n.º ..../99.0 TRPRT, da 1ª Vara deste Tribunal, e ao acórdão proferido nesses mesmos autos, verificamos que no âmbito desses mesmos autos o arguido foi condenado na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão pela prática, em autoria material, de um crime de abuso de confiança p. e p. pelo art.º 205.º, n.º 4, al. b), do C.Penal.
Os factos que motivaram tal condenação ocorreram todos após o dia 8 de Julho de 1999.
Nos presentes autos os factos narrados na acusação, relativos ao crime de abuso de confiança, ocorreram entre os meses de Novembro de 1998 e Junho de 1999 (ponto 5. da acusação).
Não existe, pois, qualquer confusão em termos temporais entre os factos pelos quais o arguido foi julgado e condenado no âmbito do proc. n.º ..../99.0 TRPRT, da 1ª Vara deste Tribunal, e os factos constantes da acusação proferida nos presentes autos, o que seria necessário para a unificação de todos os factos num só crime continuado.
Por outro lado, a única e inicial resolução criminosa, na qual o arguido fundamenta a existência do alegado caso julgado, apenas diz respeito aos factos objecto dos presentes autos, como se extrai do cotejo das acusações (a proferida nestes autos e a proferida no proc. n.º ..../99.0 TRPRT, da 1ª Vara deste Tribunal), nada nos permitindo concluir que os factos narrados em cada uma das acusações tenham tido por base um só processo deliberativo do arguido.
Não está, pois, verificada a alegada excepção de caso julgado.
Mantêm-se válidos os pressupostos formais da instância, não existindo nulidades, excepções ou questões prévias que cumpra conhecer e que obstem à apreciação do mérito da causa.»
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A fundamentação fáctica do acórdão recorrido é a seguinte:
«Matéria de facto provada.
Da discussão da causa resultaram provados os seguintes factos:
1. O arguido B.........., no período compreendido entre os anos 1997 e 1999, inclusive, exerceu a função de vendedor comissionista, no sector de viaturas automóveis usadas, para a ofendida “C..........”, pessoa colectiva n.º 000, com sede na Rua....., n.º ..., 1º, Salas ...-..., no Porto, tendo cessado essa actividade em 11.08.1999;
2. A referida sociedade dedica-se ao comércio de viaturas automóveis novas, das marcas “X..........” e “Y..........”, por si representadas, e ainda ao comércio de viaturas automóveis usadas, sendo que estas últimas, na sua maioria, são provenientes das retomas que efectua aos compradores de veículos novos das marcas representadas;
3. Por instruções expressas da Administração da sociedade a venda dos veículos usados obedece aos seguintes trâmites:
- os veículos usados são avaliados aquando da retoma e não podem ser vendidos a preço inferior ao da respectiva avaliação, acrescido de uma percentagem pré-estabelecida pelo tempo de imobilização em stock;
- todas as vendas de veículos automóveis usados angariados pelos vendedores, funcionários ou simples comissionistas, são previamente formalizadas através de propostas de compra elaboradas por estes e depois autorizadas pelo respectivo chefe de vendas, ou pelo responsável do departamento comercial;
- só depois de autorizadas são confirmadas junto dos clientes, seguindo-se o processo de entrega da viatura, chaves e documento-garantia (caso exista), livro de revisões, livrete, titulo de registo de propriedade e requerimento-declaração, para efeitos de registo;
- cabe aos vendedores a obrigação de receberam as quantias pagas pelos compradores dos veículos e de as entregar à sociedade, normalmente através do seu depósito em contas bancárias da sociedade C.........., informando os serviços administrativos a que veículo/veículos os cheques ou valores dizem respeito;
- cabe, ainda, aos vendedores o encargo de elaborar a proposta de compra, preenchendo-a e assinando-a, identificando, dessa forma, os respectivos compradores e viaturas vendidas.
4. A sociedade “C..........”, entre o período compreendido entre Novembro de 1998 e Junho de 1999, por necessidades de actualização informática, designadamente do seu software administrativo e contabilístico, viu-se impossibilitada de controlar e conferir toda a sua contabilidade e de efectuar a conciliação entre as vendas efectuadas, os valores que iam sendo depositados pelos vendedores nas contas bancárias e os stocks de veículos existentes, designadamente o de veículos usados;
5. O arguido B.........., pelas funções de vendedor comissionista da sociedade “C..........”, conhecia na perfeição o procedimento de venda dos veículos usados atrás descrito e tinha perfeito conhecimento de que a sociedade se encontrava momentaneamente impossibilitada de controlar as vendas dos veículos usados em virtude da actualização do sistema informático;
6. Aproveitando essa circunstância, o arguido decidiu proceder à venda de veículos automóveis da sociedade “C..........” e de fazer suas as quantias em dinheiro que lhe eram entregues para pagamento dessas viaturas, tudo sem o consentimento e conhecimento desta;
7. Assim, actuando sempre no âmbito dessa única e inicial resolução, o arguido B.........., entre os meses de Novembro de 1998 e Junho de 1999, agindo em nome da sociedade “C..........”, fez as seguintes vendas:
I - vendeu a D.......... as seguintes viaturas:
a) ..-..-BR, “Nissan Patrol”, pelo valor de Esc: 700.000$00;
b) ..-..-IL, “Citroen Berlingo”, pelo valor de Esc: 430.000$00;
c) QR-..-.., “Nissan Pick Up”, pelo preço de Esc: 700.000$00;
d) IU-..-.., “Peugeot 504”, pelo preço de Esc: 400.000$00; e
e) JJ-..-.., “Bedford Pick Up”, pelo preço de Esc: 650.000$00.
Como meio de pagamento das viaturas ..-..-BR e ..-..-IL o arguido recebeu, respectivamente, os cheques nºs 98.... e 15...., do B.P.I., emitidos ao portador.
Por sua vez, a viatura QR-..-.. foi paga através do cheque n.º 980...., emitido, a pedido do arguido, em nome de E...........
II - vendeu a F.......... a viatura de matrícula ..-..-BF, marca e modelo “Toyota Hiace”, pelo preço de Esc: 1.520.000$00, pago através da emissão de um cheque pré-datado, que nunca entregou;
III - vendeu a G.......... a viatura de matrícula ..-..-GJ, “Nissan Primera”, pelo valor de Esc: 1.800.000$00, paga através da entrega simultânea de três cheques com os nºs 37...., 28.... e 181...., os dois primeiros da Caixa Geral de Depósitos e o terceiro do Banco Pinto & Sotto Mayor, no valor, respectivamente, de Esc: 100.000$00, Esc: 670.000$00 e Esc: 1.030.000$00.
Os cheques nºs 37.... e 28.... foram emitidos à ordem da sociedade C.......... e o cheque n.º 181...., que se encontrava emitido à ordem da “H..........”, foi endossado a favor da “C..........”.
IV - Vendeu a I.......... a viatura de matrícula ..-..-EJ, “Fiat Punto, TD, Van”, pelo preço de Esc: 1.100.000$00, paga através de um cheque emitido, inicialmente, à ordem da sociedade “C..........” e posteriormente substituído, a pedido do arguido, por outro emitido ao portador, com o n.º 7582...., da “Nova Rede”.
7.1. O arguido, em dia ou dias não concretamente apurados do mês de Julho de 1999, pelo seu próprio punho, alterou os elementos inscritos nos cheques nºs 37.... e 28.... (referidos em III), rasurando a palavra “C..........”, na qual substituiu a letra “T” pela “Z” e a letra “O” pela “A”, acrescentando as letras “IO”, acrescentando, ainda, à designação “SA” as letras “NTOS”, transformando, desse modo, “C.........." em “W..........”;
7.2. Subsequentemente, apôs a sua assinatura no verso dos cheques e, agindo como se fosse o legítimo titular dos mesmos, depositou-os, o n.º 28.... na sua conta do “Finibanco”, com o n.º 001, agência de Vila das Aves, e o n.º 37.... na sua conta n.º 002, do “Banco Bilbao e Vizcaya”;
7.3. Ao agir da forma descrita o arguido convenceu os funcionários bancários que realizaram as operações de depósito de que era o legítimo portador dos títulos, de que estes se encontravam regularmente preenchidos e de que as ordens de pagamento a seu favor eram válidas, erro esse que predispôs os referidos funcionários a aceitarem os cheques e a realizarem as operações de depósito;
7.4. Agiu, ainda, com a intenção de obter para si próprio, como de facto obteve, um benefício patrimonial ilegítimo de valor equivalente ao inscrito nos cheques, bem sabendo que tal benefício implicava um prejuízo correspondente para o património da sociedade “C..........”, o que efectivamente aconteceu já que as quantias tituladas nos cheques deveriam ter sido depositadas nas contas bancárias desta;
7.5. Tinha, também, perfeito conhecimento de que ao preencher os cheques da forma supra descrita abalava e punha em perigo a credibilidade e fé pública que tais documentos merecem, bem como a segurança e confiança no tráfico jurídico.
8. De modo a dificultar o controlo por parte da “C..........”, o arguido propôs vendas, que foram aceites pela sociedade ofendida, recebeu o valor dessas vendas, que entregou nos serviços administrativos da “C..........”, nuns casos integralmente e noutros casos parcialmente, fazendo, no entanto, imputações erradas, declarando que determinados cheques e valores recebidos dos clientes se destinavam a pagar o preço de outros veículos, cujas vendas tinham ocorrido em data anterior e que foram por si também angariadas;
9. Identificou, ainda, como compradores, nalguns casos, pessoas que não existiam e noutros pessoas diversas dos verdadeiros compradores;
10. Conduta que determinou que a facturação e registos contabilisticos da denunciante ficassem errados;
11. Assim, e embora indicando nas propostas de compra que entregou à sociedade “C..........” nomes de compradores diferentes dos verdadeiros compradores e preços diversos daqueles que efectivamente foram pagos, o arguido:
- vendeu o “Nissan Patrol”, matrícula ..-..-AQ, pelo preço de Esc: 2.100.000$00, à sociedade “J..........”, que, para pagamento dessa quantia, entregou em troca um veículo “Volkswagen Transporter”, avaliado em Esc: 1.600.000$00, e o restante por acerto de contas com o arguido, que possuía uma dívida pessoal para com a compradora;
- vendeu os veículos “Citroen ZX”, matrícula XV-..-.., e “Opel Astra”, matrícula ..-..-CT, ao “M..........”, sito em .........., Miranda do Douro, respectivamente, pelo preço de Esc: 750.000$00 e Esc: 1.000.000$00.
- vendeu a N.......... as seguintes viaturas:
a) ..-..-FU, “Fiat Punto”, pelo valor de Esc: 1.250.000$00, pago através de cheque do B.N.U., datado de 19.01.99, emitido ao portador;
b) ..-..-EJ, “Citroen ZX”, 1.4. Tonic, pelo preço de Esc: 840.000$00, pago através do cheque n.º 8018..., do B.N.U., datado de 07.02.99, emitido ao portador;
c) ..-..-EU, “Renault 19”, Van, pelo preço de Esc: 900.000$00, pago através do cheque n.º 3345...., do B.N.U., datado de 17.06.99, emitido ao portador;
d) ..-..-GX, “Ford Escort Van”, pelo preço de Esc: 1.550.000$00, pago através do cheque n.º 2231..., emitido ao portador.
- vendeu a O.......... as seguintes viaturas:
a) ..-..-EO, “Fiat Punto 75”, pelo preço de Esc: 1.150.000$00, pago em dinheiro;
b) ..-..-HL, “Fiat Punto 55”, pelo preço de Esc: 1.100.000$00;
c) ..-..-CF, “Mitsubischi Pagero”, pelo preço de Esc: 2.775.000$00, pago através de dois cheques da Caixa Agrícola com os nºs 7035... e 3435..., um no valor de Esc: 1.775.000$00 e o outro no valor de Esc: 1.000.000$00, emitidos ao portador.
- vendeu a P.......... as seguintes viaturas:
a) OQ-..-.., “Nissan Vanette”, pelo preço de Esc: 420.000$00;
b) ..-..-II, “Fiat Punto 55”, pelo preço de Esc: 1.120.000$00;
c) ..-..-BS, “Opel Astra”, pelo preço de Esc: 670.000$00;
d) RB-..-.., “Volkswagen Golf”, pelo preço de Esc: 370.000$00;
e) OE-..-.., “UMM Alter”, pelo preço de Esc: 420.000$00;
f) ..-..-AO, “Renault Express”, pelo preço de Esc: 400.000$00;
g) ..-..-CN, “Opel Astra”, pelo preço de Esc: 830.000$00;
h) UG-..-.., “Ford Fiesta”, pelo preço de Esc: 270.000$00;
i) RI-..-.., “Seat Marbella”, pelo preço de Esc: 200.000$00;
j) SX-..-.., “Fiat Uno”, pelo preço de Esc: 120.000$00;
k) ..-..-AL, “Volkswagen Polo”, pelo preço de Esc: 620.000$00.
As referidas viaturas vendidas a P.......... foram pagas através de entregas em numerário e do endosso de cheques sacados por terceiros.
- vendeu à sociedade “Q..........”, a viatura de matrícula ..-..-IL, “Opel Frontera”, pelo valor de Esc: 3.250.000$00, pago através do cheque n.º 0235..., do B.E.S., datado de 26.01.99, emitido à ordem do arguido B..........;
- vendeu a R.......... as seguintes viaturas:
a) ..-..-GC, “Fiat Punto”, pelo preço de 1.340$00;
b) ..-..-AL, “Nissan Sunny 1.4., SLX”, pelo preço de 1.260.000$00;
c) ..-..-DJ, “Ford Fiesta 1.3.”, pelo preço de 1.070.000$00.
Para pagamento da viatura “Ford Fiesta 1.3.” vendida a R.......... foi entregue ao arguido o cheque n.º 0294..., no valor de Esc: 1.070.000$00, desconhecendo-se o modo como foram pagas as outras duas viaturas;
- vendeu à sociedade “S..........”, com sede em Bragança, as seguintes viaturas:
a) ..-..-BI, “Nissan Patrol”, pelo preço de Esc: 1.250.000$00, pago através do cheque n.º 1946..., do Crédito Agrícola, emitido à ordem de um cunhado do arguido, de nome T..........;
b) HX-..-.., “Citroen AX 1.0”, cujo preço e meio de pagamento utilizado na compra não foi possível apurar.
- vendeu a U.......... a viatura de matrícula ..-..-FM, “Ford Fiesta”, pelo preço de Esc: 950.000$00, pago através de um cheque do B.N.U., emitido ao portador.
12. O arguido B.......... vendeu ainda a compradores cuja identidade não foi possível apurar, já que preencheu as propostas de compra com nomes fictícios, as seguintes viaturas:
a) ..-..-FC, “Fiat Punto 55 S”, pelo preço de Esc: 800.000$00;
b) RF-..-.., “Ford Escort”, pelo preço de Esc: 200.000$00;
c) DQ-..-.., “Opel Kadett”, pelo preço de Esc: 250.000$00;
d) SC-..-.., “Renault 19”, pelo preço de Esc: 300.000$00;
e) RQ-..-.., “Toyota Hilux”, pelo preço de Esc: 970.000$00.
13. Todos os veículos vendidos pelo arguido encontravam-se parqueados nas instalações da sociedade “C..........”, sitas na Rua.........., no Porto, e nos seus estabelecimentos de comércio automóvel de Braga e Guimarães;
14. Ao longo de toda a sua actuação, com excepção dos factos referidos nos pontos 7.1. a 7.5. da matéria de facto provada, o arguido solicitou junto dos compradores das viaturas o pagamento em numerário ou em cheques emitidos ao portador, ou emitidos a favor de pessoa diferente da sociedade “C..........”;
15. O arguido só cessou a sua actuação em Julho de 1999, quando a sociedade “C.........”, se apercebeu de inúmeras irregularidades ocorridas nas vendas angariadas pelo arguido e o confrontou com as mesmas;
16. O arguido, que se encontrava funcionalmente obrigado a proceder ao depósito em contas bancárias da sociedade “C.........” das diversas quantias nos pontos 7 a 12 da matéria de facto provada, que lhe foram entregues para pagamento de viaturas automóveis que eram propriedade da dita sociedade e cuja compra angariou e negociou, não procedeu ao seu depósito nem as entregou por qualquer outro meio à sociedade, fazendo-as suas;
17. Agiu da forma descrita, sempre no âmbito de uma única e inicial resolução, com o propósito, concretizado, de fazer suas tais quantias, bem sabendo que estas não lhe pertenciam e que agia sem o conhecimento ou consentimento da sociedade “C..........";
18. Actuou, em todos os momentos, de forma livre, voluntária e consciente, não desconhecendo que as suas condutas eram previstas e punidas por lei;
19. Confessou os factos dados como provados, o que teve relevância, embora não decisiva, para a descoberta da verdade;
20. O arguido frequentou o seminário até completar o 9º ano de escolaridade, quando, então, com 15 anos de idade, transitou para o liceu de Guimarães;
21. Aos 17 anos abandonou os estudos, sem concluir o 11º ano;
22. Aos 17/18 anos iniciou-se laboralmente numa rádio local, enquanto angariador de publicidade;
23. Posteriormente, passou a trabalhar no ramo de comércio de automóveis, juntamente com o pai, que se dedicava à compra e venda de automóveis;
24. Por volta dos 29 anos ingressou na “Ford”, no departamento comercial, onde permaneceu durante dois anos, saindo para trabalhar por conta própria;
25. A mulher é empregada de balcão, tendo o casal um filho menor;
26. O arguido encontra-se a receber o subsídio de desemprego desde Junho de 2002;
27. No meio prisional tem mantido uma postura formalmente de acordo com as normas institucionais;
28. Não desenvolve ainda qualquer actividade, embora tenha efectuado pedido para o efeito;
29. Recebe visitas regulares da mãe, mulher e cunhado, que lhe têm prestado apoio material e afectivo;
30. Por sentença de 6.04.2000 o arguido foi condenado na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, pela prática de um crime de abuso de confiança, e na pena de 100 dias de multa, declarada integralmente perdoada, tendo a pena de prisão ficado suspensa na sua execução pelo período de 2 anos, suspensão esta entretanto revogada; Por acórdão de 15.07.2002 o arguido foi condenado na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão pela prática de um crime de abuso de confiança, p. e p. pelo art.º 205.º, n.º 4, al. b), do C.Penal.
*
Motivação da decisão de facto.
A decisão teve por base seguinte a prova produzida e examinada em audiência, globalmente considerada:
- as declarações do arguido que, espontaneamente e de forma que se revelou sincera, confessou os factos dados como provados;
- o depoimento da testemunha R.........., que esclareceu as compras feitas e os montantes pagos;
- os docs. de fls. 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31, 32, 33, 34, 35, 36, 37, 38, 40, 41, 42, 45 a 50, 84, 85, 89, 118 a 125, 126 a 129, 130, 131, 132, 133, 134 a 136, 137 a 156, 157, 158, 160 a 163, 177, 178, 202, 204, 205 a 207, 208 a 210, 211, 212, 213, 214, 215, 216, 217, 218, 219, 220, 221, 222, 223, 224, 225, 226, 227, 228, 229, 230, 231, 232, 236, 238, 559, 579 a 581, 595 a 599 e 643 a 647.
No que diz respeito à situação pessoal do arguido teve-se por base o relatório social junto.
No que concerne aos antecedentes criminais do arguido teve-se por base as certidões juntas e o C.R.C..»
*
1.ª questão: Da excepção de caso julgado.
Como resulta das conclusões A) a F), e visando a extinção do procedimento criminal relativamente ao crime de abuso de confiança p. e p. pelo art.º 205.º, n.º 1 e n.º 4, al. b) do CP, pelo qual, entre outros, foi condenado nestes autos, o Recorrente alega, essencialmente, que os factos em apreço nestes autos [processo n.º ..../99.4TDPRT da 4.ª Vara Criminal do Porto] ocorridos entre Novembro de 1998 e Junho de 1999, inserem-se naturalisticamente na sequência histórico-concreta da materialidade já julgada no processo n.° ..../99.0 TDPRT da 1.ª Vara Criminal do Porto — onde foi condenado como autor de um crime qualificado de abuso de confiança, p. e p. pelo art.º 205°, n.° 4, al. b), CP, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução - havendo identidade do thema probandum da acusação e thema decidendum da decisão em ambos os processos, em que é lesada a sua (mesma) entidade patronal, reportando-se os factos ao mesmo período temporal, pelo que se verifica a excepção de caso julgado, estando, assim, violado o art.º 29°, n.° 5, CRP.
Vejamos se lhe assiste razão.
O tribunal colectivo, como acima se transcreveu, não considerou verificada a alegada excepção com o fundamento de que os factos se não reportam ao mesmo período temporal - aqui [Proc. n.º ..../99.4TDPRT da 4.ª Vara] estão em causa os factos ocorridos entre Novembro de 1998 e Junho de 1999 (cf. factos n.os 1, 2, 4, 5, 6, 7, 7.1, 7.2, 7.3, 7.4, 8, 9, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, acima transcritos) enquanto no Proc. n.° ..../99.0TRPRT, [A identificação correcta do processo será ..../99.0TDPRT (e não ..../99.0TRPRT) face às certidões de fls. 818 e fls. 839.] da 1.ª Vara, os factos provados ocorreram entre Julho de 1999 e Dezembro do mesmo ano (cf. factos n.os 3.a), b),c) d), e), constantes da certidão de fls. 818-824) - e , por outro lado, a única e inicial resolução criminosa, na qual o arguido fundamenta a existência do alegado caso julgado, apenas diz respeito aos factos objecto dos presentes autos, como se extrai do cotejo das acusações (a proferida nestes autos e a proferida no proc. n.º ..../99.0 TRPRT, da 1ª Vara deste Tribunal ), nada nos permitindo concluir que os factos narrados em cada uma das acusações tenham tido por base um só processo deliberativo do arguido.
“Ora – como muito bem observa o Ex.mo P.G.A. no seu brilhante parecer, que perfilhamos inteiramente – este fundamento não procede totalmente, já que, sendo embora certo que na acusação daqueloutro processo se considerava existir, em forma continuada, um crime de abuso de confiança (portanto, uma pluralidade de crimes com tratamento unitário – art.os 30°, n.° 2, e 79°, CP) – ao contrário do libelo acusatório deste processo (fls. 654 e segs., rectius fls. 661-2) -, a verdade é que na decisão do colectivo, ainda que não muito explicitamente, se considerou existir apenas um crime (simples, embora de realização fraccionada) e, portanto, suportado numa única resolução criminosa – cfr. acusação de fls. 840-43, e acórdão de fls. 819-24, destes autos, tal como se verifica no acórdão agora sub judicibus.”
“Portanto, em ambas as decisões se julgou existir uma única resolução criminosa, embora por força do próprio objecto de cada processo tenha sido conexionada com os factos contidos nas respectivas acusações e correlativa delimitação temporal. E (quase) não poderia de ser assim: considerando-se toda a actividade em duas parcelas distintas, a que corresponderam dois processos, duas acusações, dois julgamentos, separados no tempo, e dois acórdãos, natural é que aqui se decidisse que cada segmento dessa actividade tivesse por base a respectiva resolução criminosa.”
“Quando na acusação certificada a fls. 840 e segs. se relatam os factos em continuação criminosa até Junho de 1999, não seriam elencados os restantes (de Julho a Dezembro de 1999), se deles houvesse conhecimento no mesmo processo? Mas será que à globalidade dos factos subjaz uma única resolução criminosa, tal como foi considerado no acórdão do tribunal colectivo proferido nestes autos, agora objecto de recurso, que contempla apenas os factos ocorridos entre Novembro de 1998 e Junho de 1999?”
“Parece, assim, resultar que a delimitação estabelecida advém tão-somente do facto de terem sido instaurados dois processos em que foi considerada em cada um apenas uma parte da globalidade dos factos, a que se seguiram dois julgamentos – ambos no Tribunal Criminal do Porto (um, na 1.ª Vara; o outro, na 4.ª), quando deveria ter havido apenas uma acusação e um único julgamento, vindo, eventualmente, o arguido recorrente a ser prejudicado apenas por esta razão processual – o que, materialmente, não é admissível.”
“Mas, a ser assim, necessário se torna saber se a mesma resolução criminosa que, conforme as decisões judiciais proferidas, abrangeu a actividade criminosa por um período temporal relativamente dilatado, não cobriu todo o acervo factual delituoso apurado, ou se, por outro lado, havendo uma pluralidade de resoluções elas não integram antes um crime continuado.”
“Daí que quando o tribunal colectivo pondera que a única e inicial resolução criminosa, na qual o arguido fundamenta a existência do alegado caso julgado, apenas diz respeito aos factos objecto dos presentes autos, como se extrai do cotejo das acusações (a proferida nestes autos e a proferida no proc. n. ° ..../99.0TRPRT, da 1.ª Vara deste Tribunal), nada nos permitindo concluir que os factos narrados em cada uma das acusações tenham tido por base um só processo deliberativo do arguido se tenha de reportar à circunstância de estar já realizada a produção de prova em face da qual se não poderia extrair a conclusão de que toda a factualidade constante dos dois processos obedecia a uma única resolução criminosa - o que, de forma alguma, pode surpreender-se na motivação da decisão de facto -, sob pena do argumento traduzir antes uma atitude de renúncia à indagação deste facto, a induzir insuficiência de matéria de facto para a boa decisão da causa, no que toca ao crime de abuso de confiança.”
“A favor da coerência da decisão pode invocar-se o n.° 15 dos factos provados onde se consignou que o arguido só cessou a sua actuação em Julho de 1999, quando a sociedade "C.......... -.... " se apercebeu de inúmeras irregularidades ocorridas nas vendas angariadas pelo arguido e o confrontou com as mesmas.
“Porém, resulta com a maior evidência do acórdão proferido no Proc. n.° ..../99.0TRPRT, da 1.ª Vara, certificado a fls. 818 e segs, que o arguido manteve o mesmo tipo de conduta ainda no período temporal imediato!...”
“Ou seja: apesar de se ter dado como provado que o arguido só cessou a sua actuação em Julho de 1999... verdade é que se encontra provado, com trânsito em julgado, que ainda nesse mês de Julho e até Dezembro (de 1999) manteve uma conduta idêntica, vendendo veículos de propriedade da sua entidade patronal, a C.........., e apropriando-se dos respectivos preços....”
“Certo que se poderá obtemperar que todo este percurso não resulta de uma única resolução criminosa, que a resolução criminosa subjacente aos factos em apreço neste processo se esgotou nos factos de Junho 1999 e que os factos posteriores, cometidos a partir de Julho de 1999 e até Dezembro são resultantes de uma outra resolução.”
“E, nesta medida, pugnando o arguido na sua contestação pela existência de uma única resolução criminosa a presidir à globalidade da(s) sua(s) conduta(s) criminosa(s), dúvidas não restam de que não estamos perante um único crime (de abuso de confiança).”
“Mas isto não resolve o problema, pois, como já dissemos, é preciso saber se tais dois crimes (factos de Novembro de 1998 até Junho de 1999 - um -, e os cometidos a partir de Julho e até Dezembro de 1999 - o outro) integram um crime continuado, que, como resulta já das considerações precedentes, tem um tratamento jurídico específico, diverso do concurso real de crimes.”
“E aqui, pese embora hoje não ser a corrente jurisprudencial mais acolhida – cfr, v.g. , Ac STJ, de 24/09/92 - http://www.dgsi.pt/jstj. - e Ac. desta Relação de 02/04/2003, http://www.dgsi.pt/prt - ainda há decisões em tribunais superiores – cfr. v.g., acórdãos desta Relação, de 3/7/2002, Proc. n.° 0111463, e de 9/6/2003, Proc. n.° 0210970 – que, na esteira de Eduardo Correia (... apreciado qualquer facto do crime continuado, tudo fica de uma vez por todas resolvido; de uma vez por todas se liquida o problema da valoração jurídico-criminal das várias actividades que constituem a continuação criminosa, já que contra a promoção de qualquer novo processo se pode sempre invocar a excepção de caso julgado - Unidade e Pluralidade de Infracções, colecção Teses, Almedina, pgs. 273 - doutrina esta fundada em razões de paz jurídica), opõem a excepção de caso julgado relativamente à parte duma actividade delituosa integrável num crime continuado que não tenha sido englobada no primeiro julgamento (parcelar).
“Daí – continuando a seguir o notável parecer do Ex.mo P.G.A. – a manifesta necessidade de indagar se entre os dois crimes em apreço há continuação criminosa, pois, conforme resulta da decisão sujeita conjugada com a já transitada que apreciou parcelarmente a conduta delituosa do arguido/recorrente, se considerou que uma resolução criminosa abrange a actividade desenvolvida entre Novembro de 1998 e Julho de 1999 (agora sub judice), enquanto uma outra subjaz à actividade acontecida entre Julho de 1999 e Dezembro deste ano, tendo a decisão a estes respeitante já transitado.”
“Aqui chegados, sabido que a simples repetição do mesmo preciso acto ilícito ou a execução duradoura do mesmo não constituem só por si delito continuado – Ac. desta Relação, de 26/9/2001, Proc. n.° 0140260 - http://www.dgsi.pt/jprt.–, parece-nos lapidarmente invocável a doutrina do Ac. STJ de 2/3/2000 - http://www.dgsi.pt/jstj. - a justificar o reenvio parcial do processo: I - As peculiaridades e a delicadeza que envolvem uma ajustada caracterização da figura da continuação criminosa e, com ela, a do próprio instituto do crime continuado enquanto realidade diferenciada (ou a diferenciar) do concurso real, do concurso aparente ou do crime único, aconselham uma especifica e redobrada atenção para que nada interfira no juízo sobre a consistência das componentes subjectivas e objectivas que permitam qualificá-la e identificá-la como tal. II - O que vem de ser encarecido alerta, também, para os perigos susceptíveis de advirem de, com menor precisão, se concluir por condicionalismo integrador de continuação criminosa: se tal conclusão, quando apressada ou, sobretudo, não apoiada em elucidativo suporte factual, já não é fácil de firmar perante o caso que concretamente se julgue, mais aleatória se torna, se se envereda pelos caminhos de decidir que os factos em apreço não só atestam, por si, aquela continuação, como, também, se inserem na linha de uma anteriormente definida por uma outra decisão, em processo diferente e na base de factualidade diversa. III - É factualmente que tem de constatar-se a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou dos vários tipos de crime que atinjam o mesmo bem jurídico. É factualmente que tem de alcançar-se a existência de homogeneidade na forma de execução. É factualmente que tem de verificar-se que um mesmo bem jurídico foi lesado. É factualmente que tem de traduzir-se a persistência de uma situação exterior facilitadora da execução do crime. É, enfim, factualmente que tem de resultar apercebida a pluralidade de resoluções. IV - A não comprova factual destes items configura o vício da insuficiência da matéria de facto provada para a decisão (alínea a) do n. 2 do artigo 410.º, do C.P.Penal) determinativa da anulação do julgamento realizado, logo do reenvio do processo para novo julgamento (artigo 426.º, n.º 1, do C.P.Penal).
“Neste contexto, é ainda da salientar que, apesar de a pena de prisão aplicada no Proc. n.° ..../99.0 TRPRT, da 1.ª Vara, ter sido suspensa na sua execução, a verdade é que carece de ser cumulada com as penas aplicadas nestes autos – art.os 78.° e 79.°, CP – o que revela à saciedade a importância do que vem de salientar-se.”
Deste modo, em total consonância com o expendido pelo Ex.mo P.G.A., entendemos que se impõe o reenvio parcial do processo, relativamente ao crime de abuso de confiança, com vista a averiguar se a factualidade integradora deste tipo legal de crime constitui um único crime, um crime continuado ou um concurso de crimes.
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2.ª questão: Da Nulidade - art.os 374.º, n.º 2 e 379.º, n.º 1, al. a) do CPP.
Por da decisão recorrida apenas constarem factos provados e não constarem os não provados, que deviam integrar os da matéria alegada pelo arguido em sua defesa, invoca o Recorrente a omissão de um requisito essencial da decisão, como exige o art.º 374.º, n.º 2 do CPP, estando o acórdão ferido de nulidade nos termos do art.º 379.°, n.° 1, al. a) do C.P.P.
Entendemos, porém, que não lhe assiste razão, uma vez que, como resulta da acta de fls. 815-816, o arguido/recorrente confessou os factos nos termos do art.º 344.º do CPP, o que levou o Ministério Público a prescindir de toda a prova arrolada na acusação, com excepção da testemunha R.........., tendo sido proferido o seguinte despacho:
"Dado que o arguido confessou todos os factos constantes da acusação, com a excepção da parte relativa aos veículos referidos no ponto 6.7 da acusação, cujos preços especificou e, considerando que tal confissão se reputa sincera, atento ao disposto no art.º 344°, n.° 4 do Cód. Proc. Penal e considerando a posição do Ministério Público, decide-se dispensar as testemunhas arroladas na acusação, com excepção do Sr. R..........".

Ora, como resulta da motivação da decisão de facto acima transcrita, esta baseou-se, além dos documentos aí discriminados, nas declarações do arguido que, espontaneamente e de forma que se revelou sincera, confessou os factos dados como provados e no depoimento da testemunha R.........., que esclareceu as compras feitas e os montantes pagos. Sobre a situação pessoal do arguido teve-se por base o relatório social junto.
Esta fundamentação, a nosso ver, satisfaz as exigências legais previstas no n.º 2 do art.º 374.º do CPP, e, tendo em conta o que acima se ponderou em relação ao crime de abuso de confiança, não vislumbramos (nem o Recorrente indicou) que factos deveriam ser enumerados como provados ou não provados com utilidade para a boa decisão da causa, razão por que não se considera verificada a alegada nulidade do acórdão.
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3.ª questão: Da Consumpção de Crimes.
Visando ser absolvido do crime de falsificação de documento, com o afastamento do concurso real dos crime de falsificação de documento e de burla, argumenta o Recorrente (nas alíneas I) a O) das conclusões) que a materialidade consistente na utilização de cheques cujos nomes dos beneficiários foram falsificados, agindo o recorrente como se fosse o verdadeiro titular dos mesmos, apresentando-os ao banco para receber os montantes neles inscritos, integra uma única decisão, que é a de obter a quantia titulada nos cheques, existindo consumpção entre os dois tipos de crime, uma vez que a moldura estabelecida nos art.os 217° e 218°, CP, já incorpora em si a penalização de todo o comportamento burloso, qualquer que seja o meio utilizado, pelo que a sua condenação pelo concurso dos crimes de falsificação e burla viola os art.os 29°, n.° 5, CRP e 30° do CP.
Mas carece de razão.
Tem sido muito controvertida a questão de saber se o agente que falsifica um documento como meio de concretizar um crime de burla comete, em concurso real de infracções, para além do crime de burla, também um crime de falsificação de documento, ou se comete apenas um crime de burla, consumindo este o de falsificação de documento (consumpção impura), pelo só aquele deverá ser punido.
Tal questão não é nova, visto que na vigência do Código Penal de 1982, foi suscitada e deu origem ao Assento de 19-02-92, publicado no D.R. I-A, de 09-04-1992, no qual se fixou a seguinte jurisprudência: "No caso de a conduta do agente preencher as previsões de falsificação e de burla do artigo 228.º, n.º 1, alínea a), e do artigo 313.º, n.º 1, respectivamente, do Código Penal, verifica-se concurso real ou efectivo de crimes."
Com a entrada em vigor do Código Penal revisto (DL 48/98, de 15/03) não se verifica qualquer alteração substancial da jurisprudência anteriormente fixada, visto que o Assento 8/2000 de 04-01-2000, publicado no D.R. I-A, de 23-05-2000, de forma idêntica, veio fixar a seguinte jurisprudência: «No caso de a conduta do agente preencher as previsões de falsificação e de burla do artigo 256.º, n.º 1, alínea a), e do artigo 217.º , n.º 1, respectivamente, do Código Penal, revisto pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, verifica-se concurso real ou efectivo de crimes.»
No caso vertente - e como se refere no acórdão recorrido - os factos provados permitem concluir que o arguido preencheu com a sua conduta todos os elementos dos tipos de ilícito que lhe foram imputados, ou seja, um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art.º 256.º, n.º 1, al. b), e n.º 3, do CP, e um crime de burla, p. e p. pelos art.os 217.º, n.º 1, e 218.º, n.º 2, al. a), do CP, considerando, quanto a este último, que o valor do prejuízo é consideravelmente elevado.
Dispondo o n.º 1 do art.º 30.º do CP que «o número de crimes determina-se pelo número de crimes efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente» e sendo distintos os bens jurídicos tutelados por cada uma das normas incriminatórias - pois que no tipo legal do crime de burla se protege o património globalmente considerado e no de falsificação de documento se tutela a fé pública e a verdade intrínseca do documento - julgamos estar perante um concurso real de crimes, não se descortinado elementos novos para não aplicar a jurisprudência fixada pelo Assento 8/2000, na sequência do anteriormente fixado sobre a mesma matéria. E, como é sabido, embora a jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça não seja obrigatória para os tribunais judiciais, estes só podem deixar de a acatar se fundamentarem as divergências relativas à jurisprudência fixada (artigo 445°, n° 3, do CPP).
Assim, por inexistir consumpção de crimes, ao contrário do defendido pelo Recorrente, nenhum reparo merece o acórdão recorrido no que respeita à subsunção jurídico-penal da factualidade apurada relativa aos crimes de falsificação e burla.

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Decisão:
Em conformidade com o exposto, acordam os juízes desta Relação no seguinte:
a) anular, parcialmente, o acórdão recorrido, determinando-se o reenvio do processo (art.º 426.º, n.º 1, do CPP) para, em novo julgamento relativamente à factualidade integradora do crime de abuso de confiança, se indagar se entre os dois crimes de abuso de confiança em apreço, há um só crime, um crime continuado ou um concurso de crimes;
b) negar provimento ao recurso relativamente à condenação pelos crimes de falsificação de documento e burla, confirmando, nesta parte, o deliberado no acórdão recorrido, procedendo-se, oportunamente, ao respectivo cúmulo jurídico das penas parcelares.
Pelo decaimento parcial, vai o Recorrente condenado em 3 UC’s de taxa de justiça e nas custas (art.os 513.º, n.º 1 e 514.º do CPP, 87.º, n.º 1, al. b), 89.º e 95.º do CCJ).
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Porto, 14 de Julho de 2004
Agostinho Tavares de Freitas
José João Teixeira Coelho Vieira
Maria da Conceição Simão Gomes
Arlindo Manuel Teixeira Pinto