Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
20227/18.8YIPRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA
Descritores: DISPENSA DO DEVER DE SIGILO
DEVER DE COOPERAÇÃO
DESCOBERTA DA VERDADE
ESCRITA COMERCIAL
Nº do Documento: RP2020121620227/18.8YIPRT-A.P1
Data do Acordão: 12/16/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: INCIDENTE DE DISPENSA DO DEVER DE SIGILO
Decisão: INDEFERIDO
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O incidente da dispensa do dever de sigilo só tem lugar quando a recusa de colaboração com o tribunal tem por fundamento a violação do sigilo profissional ou de funcionários públicos, ou do segredo de Estado, não quando essa recusa tem outro fundamento.
II - O titular da informação tem o direito à reserva, privacidade ou segredo da informação que lhe respeita; o terceiro que teve acesso a essa informação tem o dever de guardar sigilo sobre essa informação.
III - O dever de sigilo não deve ser dispensado para obtenção da entrega de documentos da contabilidade de uma sociedade quando os factos que se pretendem apurar através desses documentos podem ser apurados por outro meio de prova com maior valia probatória e cuja produção permitirá conservar sob reserva a informação contida nos documentos, v.g. a realização de prova pericial de exame à contabilidade realizada por técnicos de contas ou contabilistas.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Incidente de dispensa do dever de sigilo
ECLI:PT:TRP:2020:20227.18.8YIPRT.A.P1
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Sumário:
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Acordam os Juízes da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:
I. Relatório:
b…, Lda., pessoa colectiva e contribuinte fiscal n.º ………, com sede em …, Felgueiras, instaurou procedimento de injunção contra C…, S.A., pessoa colectiva e contribuinte fiscal n.º ………, com sede no Porto, para obter desta o pagamento de capital de €94.949,96, acrescido juros de mora €892,97.
Alegou para o efeito que no exercício da sua actividade profissional vendeu à requerida 36.569,41 kg de kiwis da campanha de 2017, ao preço unitário de €3,68, apurado em conformidade com os valores de mercado, uma vez que a requerida não apresentou contas sobre a campanha daquele ano. Em 29-12-2017, a requerente emitiu a factura n.º 2017/3, no valor de €134.575,43, com vencimento imediato, ao qual foi deduzido a quantia de €45.000,00, o que perfaz a quantia de €89.575,43, a que acresce IVA à taxa reduzida de 6%, no total de €94.949,96.
A requerida deduziu oposição, alegando que na colheita de 2017 apenas foram vendidos 71% das frutas fornecidas pelos consumidores, tendo os restantes 29% sido destruídos, pelo que, conforme acordado entre as partes, dos 36.569,40 Kg. entregues pela requerente apenas são devidos 71%, isto é, 25.964,27 Kg., por conta de cujo preço a requerente já pagou o valor de €45.000,00. O preço que a requerida indica aos produtores para a aquisição dos kiwis já inclui os custos de embalamento da fruta, mas no presente caso o embalamento foi executado por uma sociedade que pertence aos mesmos sócios da requerente e à qual a requerida pagou directamente o embalamento no valor de €36.569,40, o qual deve ser descontado ao montante a pagar. A requerente apenas forneceu kiwis da categoria Premium, cujo preço unitário é de €3,81/kg., pelo que o preço global da colheita é de €98.923,87. Assim, apenas está em dívida o valor de €17.354,47, a que acrescerá o IVA à taxa de 6%. Em reconvenção, pede a condenação da requerente a pagar à requerida o valor €36.569,40 relativo ao custo do embalamento.
Notificada pelo tribunal a apresentar o seu requerimento inicial através de articulado, a requerente apresentou articulado, terminando-o com o requerimento dos meios de prova, onde requereu o seguinte:
«B – Prova Documental:
1. Requer, ao abrigo do disposto no artigo 429º do CPC, seja a Ré notificada para juntar aos autos, os extractos contabilísticos, nomeadamente das conta-correntes, comprovativos dos preços finais de compra assim como de venda por kg, relativamente aos anos de 2015 e 2016;
2. Requer, ao abrigo do disposto no artigo 429º do CPC, seja a empresa D… sociedade anónima, pessoa colectiva de direito francês com o n.º ……….., com sede em .., …, …… … – France, da qual a Ré é uma subsidiária em Portugal, notificada para juntar aos autos, os extractos contabilísticos, nomeadamente das conta-correntes, comprovativos dos preços finais de compra assim como de venda por kg, relativamente aos anos de 2015 e 2016
Mediante despacho proferido na audiência prévia foi ordenado o seguinte: «Notifique a Ré e a sociedade D…, para, em 15 dias, procederem à junção dos documentos requeridos, conforme arts. 429.º a 432.º do Código de Processo Civil».
A sociedade D…, com sede em França, não foi notificada.
A ré, notificada, veio escusar-se da junção dos documentos com o argumento de que estes estão sujeitos a sigilo, nos termos dos artigos 42.º e 43.º do Código Comercial e 64.º da Lei Geral Tributária, para além de que a autora não identifica minimamente, em concreto, os documentos cuja junção pretende, nem os factos que com tais documentos quer provar, nem alega que não tem à sua disposição qualquer outro meio de provar os seus intentos.
A autora respondeu, defendendo a junção dos documentos.
O tribunal declarou que perante o impasse criado teria de ser suscitado o incidente do levantamento do sigilo invocado.
Veio então a autora suscitar o incidente de levantamento do sigilo que termina formulando o pedido de que seja «a Ré obrigada a apresentar a documentação contabilística requerida, quer em sua posse, quer na posse da sociedade D…, de quem é subsidiária em Portugal»
Para o efeito, alegou o seguinte:
«[…] 5- A Autora é uma produtora de Kiwis com contrato de exclusividade na venda da variedade Kiwi Arguta com a D… (que por sua vez cedeu os direitos de comercialização em Portugal à D…).
6- […] a Autora apenas pode vender o seu produto em Portugal à Ré D….
7- É a Ré, […] que pode comprar e vender a totalidade da colheita da Autora.
8- […] a Autora tem vindo a reclamar […] que a Ré demonstre o verdadeiro preço por Kg de Kiwi vendido e quem foi o seu comprador.
9- Tal demonstração só poderá ser feita apenas com a documentação em poder daquela (facturação).
10- Esta informação é crucial pois dela depende o apuramento do valor final a pagar ao produtor pela fruta entregue.
11- […] a Ré faz depender do preço final a pagar aos produtores, o preço de mercado a que conseguiu vender os kiwis comercializados.
[…] 13- […] a Ré ao longo dos anos não demonstra aos produtores como chega aos resultados apresentados.
14- Tratando-se de uma relação comercial equiparada a um clube de produtores, seria no mínimo expectável que essa informação fosse prestada.
15- Tanto mais que a Ré vende quase 100% da fruta que compra aos produtores nacionais à sociedade D…, de quem é subsidiária.
16- Ora se a Ré vende a fruta à sociedade de que é subsidiária, não estamos perante o cálculo de preço de marcado.
17- Pois o único cliente da Ré é uma sociedade de quem esta está dependente.
18- Encontrando-se a Autora e a Ré juntas na mesma organização produtiva e de distribuição, em virtude dos contratos celebrados, a partilha da informação contabilística e conta corrente devem ser de consulta obrigatória por todos os intervenientes e não sujeita a sigilo.
19- Uma vez que a Ré se recusa a fornecer tal informação, para a Autora é fundamental a consulta da informação contabilística da Ré para que se possa aferir a quem é que esta vendeu a totalidade da fruta entre 2015 e 2016 e a que preço.
20- Relativamente à D… é fundamental perceber a quantidade e a que preço por Kg esta comprou os kiwis à Ré, e a que preço os vendeu no mercado internacional e que quantidade nos anos 2015 e 2016.
21- Só assim a Ré pode demonstrar como atinge o valor a pagar por quilo em cada campanha.
22- Ora se não apresenta dados concretos, a dúvida subsiste.
22- Sendo certo que em comparação com o mesmo produto vendido no mercado livre, o preço pago pela Ré é sempre inferior.
23- A Autora sabe que esta variedade de kiwi é vendida no mercado livre a um preço superior ao pago pela Ré, conforme faturas já juntas.
24- A Ré em conjunto com a sociedade D…, detém o controlo da produção e venda deste tipo de Kiwi relativamente aos produtores nacionais aderentes por força dos acordos comerciais celebrados.
25- Existindo o monopólio da compra e comercialização deste tipo de kiwi e se o preço final a pagar ao produtor está dependente do valor de mercado apurado pela Ré,
26- A informação a quem é que esta vendeu, que quantidade vendeu, e a que preço, deveria ser informação mínima e essencial a fornecer aos produtores.
27- O cálculo do valor final a pagar por cada Kg de Kiwi pela Ré à Autora tem por base o preço de mercado.
28- A Ré não fornece qualquer tipo de informação relativamente à forma como calcula o valor de mercado apresentado à autora nos anos de 2015 e 2016.
29- A Ré apenas impõe um valor final, sempre mais baixo do que a fruta vendida em mercado livre.
30- Apenas com a junção da documentação contabilística em posse da Ré e da Sociedade D… se pode aferir o verdadeiro valor de mercado do Kg de Kiwi, em 2015 e 2016
Recebidos os autos nesta Relação e verificando-se que os autos foram mandados subir sem previamente se ouvir a parte contrária sobre a matéria do incidente e que a sociedade terceira francesa nem sequer fora notificada para juntar os documentos, determinou-se a baixa dos autos à 1.ª instância para a necessária regularização da instância.
Na 1.ª instância foi notificada a Ré para responder, querendo, ao incidente e, a sociedade francesa D… para juntar a documentação requerida pela autora.
A ré pronunciou-se por fim sobre a matéria do incidente retomando as razões que havia alegado para recusar a junção dos documentos e defendendo a improcedência do incidente também quando à sociedade de direito francês D….
Esta veio, entretanto, fazer sua a posição assumida nos autos pela ré quanto à junção dos documentos pretendidos pela autora e juntar outros documentos que entendeu poderem satisfazer o objectivo da autora.
Remetidos de novo os autos a esta Relação foi proferido pelo Relator despacho com o seguinte conteúdo: «Com todo o devido respeito, que é muito, as diligências de prova requeridas pela autora e relativamente às quais o incidente de levantamento do sigilo profissional foi suscitado, respeitam a duas sociedades comerciais distintas. Uma é a sociedade ré, sociedade de direito português, com sede em Portugal, parte na acção e, como tal sujeita à jurisdição dos tribunais portugueses. Esta recusou a junção dos documentos pretendidos e não juntou outros. A outra é uma sociedade terceira que para além de não ser parte na acção é uma sociedade de direito francês, com sede naquele Estado-Membro, a qual por isso mesmo não está sujeita à jurisdição dos tribunais nacionais. Esta sociedade não juntou os documentos pretendidos, mas juntou documentos alternativos que dizem servir a mesma finalidade. A pertinência destes documentos tem de ser aferida em 1.ª instância antes de ser suscitado qualquer incidente de levantamento do sigilo, o que não foi feito. […] Como assim, determino que os autos baixem de novo à 1.ª instância a fim de ser completada a apreciação da colaboração prestada pela sociedade francesa e/ou se o incidente de levantamento de sigilo profissional é o não suscitado em relação a ela».
Em 1.ª instância foi ordenada a notificação da autora para esclarecer «se perante a junção do documento pela sociedade francesa mantém interesse no prosseguimento do presente incidente e, se relativamente a essa sociedade francesa é suscitado o mesmo tipo de incidente pois que o pedido formulado neste apenso apenas está dirigido relativamente à Ré».
A autora respondeu ipsis verbi o seguinte: « …vem informar V. Exa. que, uma vez que a sociedade francesa não juntou a documentação pretendida, mantém o interesse no prosseguimento do presente incidente devendo ser suscitado o mesmo tipo de incidente relativamente a esta sociedade».
A seguir pela Mma. Juíza foi proferido o seguinte despacho: «O presente incidente de levantamento de sigilo está apenas dirigido contra a Ré nos autos principais – C…, SA, que se recusou a proceder à junção de documentação contabilística que a Autora entende ser essencial à demonstração dos fundamentos da pretensão ali formulada, designadamente do preço final de compra e de venda por kg dos kiwis relativamente aos anos de 2015 e 2016, prova essa que, por se ter entendido ser importante para a decisão da causa, em função do objecto do litígio, foi ordenada a sua junção. Essa mesma Ré já exerceu o contraditório e, a Autora veio esclarecer que o documento entretanto junto por uma sociedade francesa não supre a omissão da documentação contabilística da Ré, que não foi junta. Assim sendo, deverá o presente apenso ser devolvido ao Tribunal da Relação por já se mostrarem cumpridas, salvo melhor entendimento, as diligências superiormente determinadas. […] Se a Ré pretende suscitar o mesmo tipo de incidente relativamente à sociedade francesa- sociedade terceira, que não é parte nos autos principais, terá de instaurar novo procedimento, autónomo deste …».
Regressados os autos e após os vistos legais, cumpre decidir.
II. Questões a decidir:
As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida se os motivos pelos quais a ré se recusou a juntar os documentos requisitados pelo tribunal correspondem à invocação de um dever de sigilo e essa recusa motiva a dedução do incidente da natureza do deduzido; na afirmativa, se o dever de sigilo deve ser dispensado.
III. Os factos:
Os factos que relevam para a decisão a proferir são os que constam do relatório que antecede.
IV. O mérito do recurso:
I) Questão prévia: o objecto do incidente:
Conforme foi mencionado pelo Relator nos despachos que proferiu com vista à definição e regularização da instância aberta e remetida a destempo, importava concretizar o objecto do incidente para definir o que a Relação era chamada a decidir.
A ré é uma sociedade de direito português. Todavia, a autora pretende a junção de documentos da ré e de documentos de uma sociedade de direito francês que não é parte na acção. Como é evidente, tratando-se de pessoas colectivas com personalidade jurídica e judiciária própria, cada uma delas tinha de ser tratada de forma autónoma e distinta.
A ré não pode juntar ou ser obrigada a juntar documentos que não lhe dizem respeito, que não integram a respectiva contabilidade. Apenas a sociedade de direito francês pode juntar ou ser obrigada a juntar os documentos da sua própria contabilidade, sendo certo que para o efeito terão de ser tidas em conta as disposições da legislação europeia em vigor sobre a competência e a produção de meios de prova em matéria civil e comercial.
O incidente foi suscitado pela autora que formulou através dele a seguinte pretensão: ser «a Ré obrigada a apresentar a documentação contabilística requerida, quer em sua posse, quer na posse da sociedade D…, de quem é subsidiária em Portugal».
Entende agora a 1.ª instância que «o presente incidente de levantamento de sigilo está apenas dirigido contra a Ré».
A autora, por sua vez, manifestou que apesar dos documentos que a sociedade de direito francês juntou, mantém o interesse no prosseguimento do presente incidente devendo ser suscitado o mesmo tipo de incidente relativamente a esta sociedade, o que parece querer dizer que o incidente que deduziu deve continuar apenas contra a ré, ou seja, necessariamente, com vista à junção por esta dos documentos da respectiva contabilidade e não, conforme havia sido, inicialmente pretendido também dos documentos da contabilidade da sociedade de direito francês.
Nesse contexto e para não eternizar a polémica, vamos considerar que é esse o objecto do incidente e será apenas esse objecto que será apreciado, ficando totalmente à margem dos autos o tratamento a dar aos documentos que a autora pretende da contabilidade da sociedade de direito francês.
ii) A dispensa do sigilo invocado pela no tocante aos documentos da respectiva contabilidade:
O acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos constitui um direito fundamental constitucionalmente protegido que implica a obtenção em prazo razoável de uma decisão judicial que aprecie a pretensão regularmente deduzida em juízo.
Nessa medida pressupõe também, para o efeito, que através do tribunal se possa obter a colaboração daqueles que podem dar o seu contributo para a descoberta da verdade, sem o que, em certos casos, se não passaria da simples enunciação teórica dos direitos de cada um sem concretização efectiva, designadamente por ausência de prova.
No domínio do processo civil o artigo 417.º do respectivo Código consagra um dever de cooperação para a descoberta da verdade, impondo a «todas as pessoas, sejam ou não partes na causa», «o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade», «facultando o que for requisitado e praticando os actos que forem determinados.» Esta é a regra: partes ou não devem colaborar com o tribunal para que este possa administrar a justiça.
O n.º 3 da norma institui no entanto que a recusa de colaboração com o tribunal é legítima se a colaboração pretendida importar: a) violação da integridade física ou moral das pessoas; b) intromissão na vida privada ou familiar, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações; c) violação do sigilo profissional ou de funcionários públicos, ou do segredo de Estado, sem prejuízo do disposto no n.º 4.
Só nestas situações aquela recusa pode ser considerada legítima e, como tal, dispensada a colaboração.
O regime de conhecimento desses fundamentos de recusa não é igual em qualquer das situações.
Sendo certo que em qualquer dos casos cabe ao tribunal que ordenou a colaboração, decidir sobre os motivos apresentados para recusar a colaboração e se a recusa é legítima, só quando a recusa é fundamentada na violação do sigilo profissional ou de funcionários públicos, ou do segredo de Estado é que tem lugar a abertura do incidente da dispensa do dever de sigilo invocado (n.º 4 da norma) no caso de o tribunal entender que a colaboração é necessária e o requerente pretender que o dever de sigilo seja levantado para que a colaboração ocorra. O incidente de dispensa não visa ultrapassar a recusa de colaboração apoiada em qualquer dos fundamentos possíveis de a legitimar; ele apenas tem por objecto a apreciação do levantamento do dever de sigilo ou segredo.
Assim, excepto nos casos em que para se justificar a recusa de colaboração se invoca a violação deste sigilo ou segredo, situação em que a forma de impor a colaboração é a dedução do incidente de levantamento do dever de sigilo, a Relação só será chamada a apreciar se a colaboração deve ser concretizada através de recurso da decisão da primeira instância que houver apreciado os fundamentos da recusa apresentada (recurso da requerente da colaboração se o tribunal tiver aceite os fundamentos apresentados para a recusa e dado sem efeito o pedido de colaboração, recurso da pessoa a quem é pedida a colaboração se o tribunal não tiver aceite a justificação da sua recusa e determinado a prestação da colaboração).
A possibilidade de dispensa do dever de sigilo no domínio de um processo civil encontra-se prevista no n.º 4 do artigo 519º do Código de Processo Civil, segundo o qual, deduzida escusa com fundamento no dever de sigilo, pode ser determinada a dispensa desse dever aplicando-se para o efeito, com as necessárias adaptações, o disposto no processo penal.
Dispõe, por sua vez, o artigo 135.º do Código de Processo Penal que o tribunal superior pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos.
Valem, portanto, aqui as regras de ponderação de direitos e interesses consagradas nos artigos 31.º e seguintes do Código Penal – haja “sensível superioridade do interesse a salvaguardar relativamente ao interesse sacrificado”, seja “razoável impor ao lesado o sacrifício do seu interesse em atenção à natureza ou ao valor do interesse ameaçado”, seja necessário “satisfizer dever ou ordem de valor igual ou superior ao do dever ou ordem que sacrificar”, a violação decorra do “cumprimento de um dever imposto por ordem legítima da autoridade” – e no artigo 335.º do Código Civil – observando o “necessário para que todos produzam igualmente o seu efeito, sem maior detrimento para qualquer” deles – e os princípios constitucionais do direito à tutela jurisdicional efectiva (artigo 20.º, n.os 1, 4 e 5 da Constituição da República Portuguesa), da proibição do excesso e da proporcionalidade (artigo 18.º do mesmo diploma).
O artigo 26.º da Constituição da Republica Portuguesa dispõe que: «1. A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação. 2. A lei estabelecerá garantias efectivas contra a obtenção e utilização abusivas, ou contrárias à dignidade humana, de informações relativas às pessoas e famílias. […]»
Segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição Anotada, 3.ª edição revista, Coimbra Editora, 1993, pág. 181, o direito à intimidade da vida privada e familiar inclui «dois direitos menores: a) o direito a impedir o acesso de estranhos a informações sobre a vida privada e familiar; e b) o direito a que ninguém divulgue as informações que tenha sobre a vida privada e familiar de outrem
Segundo Rui Medeiros e António Cortês, in Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2010, pág. 620, «a tutela constitucional de uma reserva de intimidade da vida privada e familiar confere a faculdade de conservar na esfera não pública e reservada dos cidadãos todos os dados pessoais quer pertençam à sua vida privada e familiar, dispondo o respectivo titular o direito de impedir o acesso, emprego e revelação desses dados, em moldes que não tenham sido previamente autorizados
Segundo Paulo Mota Pinto, in A Protecção da Vida Privada e a Constituição, Boletim da Faculdade de Direito, Universidade de Coimbra, vol. LXXVI, pp. 153 e segs., «em princípio, o direito à reserva da intimidade da vida privada incluirá [...] também um dever de respeitar o segredo, isto é, a proibição de acções com o objectivo de tomar conhecimento ou de obter informações sobre a vida privada de outrem, que devem ser consideradas intrusivas».
Reconhecendo que este direito não é absoluto em todos os casos e relativamente a todos os domínios, o mesmo autor, in O Direito à Reserva sobre a Intimidade da Vida Privada, Boletim da Faculdade de Direito, Universidade de Coimbra, LXIX, págs. 508 e 509, afirma que «podemos verificar que a “infra-estrutura” teleológica do problema da tutela da privacy é caracterizada por uma fundamental contraposição: de um lado, o interesse do indivíduo na sua privacidade, isto é, em subtrair-se à atenção dos outros, em impedir o acesso a si próprio ou em obstar à tomada de conhecimento ou à divulgação de informação pessoal (interesses estes que, resumindo, poderíamos dizer serem os interesses em evitar a intromissão dos outros na esfera privada e em impedir a revelação da informação pertencente a essa esfera), de outro lado, fundamentalmente o interesse em conhecer e em divulgar a informação conhecida, além do mais raro em ter acesso ou controlar os movimentos do indivíduo - interesses que ganharão maior peso se forem também interesses públicos
O artigo 18.º da Constituição estabelece que «1. Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas. 2. A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos. 3. As leis restritivas de direitos, liberdades e garantias têm de revestir carácter geral e abstracto e não podem ter efeito retroactivo, nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais
Gomes Canotilho, in Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 5.ª ed., pág. 448, ensina que a autorização de restrição expressa de um direito fundamental «tem como objectivo obrigar o legislador a procurar sempre nas normas constitucionais o fundamento concreto para o exercício da sua competência de restrição de direitos, liberdades e garantias», de modo a criar segurança jurídica nos cidadãos, que poderão contar com a inexistência de medidas restritivas de direitos fora dos casos expressamente considerados pelas normas constitucionais como sujeitos a reserva de lei restritiva.
Desse modo, a intervenção normativa abstracta do legislador ordinário que importe a restrição de direitos fundamentais só pode ocorrer nos termos autorizados pela norma constitucional e nos casos nela previstos. Nalgumas situações a própria Constituição delimita a restrição (cf. artigo 34.º, n.º 4, em relação ao direito à inviolabilidade das comunicações). Noutros casos, ao remeter para «os termos da lei» (v.g. artigo 18.º, n.º 2) a Constituição atribui uma competência genérica de regulação que pode ser interpretada como incluindo poderes de restrição. Nestas situações é a lei que cria a restrição admitida pela Constituição, tendo, no entanto, de sujeitar-se aos requisitos de legitimidade impostos pelo princípio da proporcionalidade, como decorre do artigo 18.º, n.º 2, segunda parte (cf., por exemplo, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 403/2015).
Ensina J. C. Viera de Andrade, in Os Direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Almedina, 2.ª edição, pág. 312 e seguintes que a «solução dos conflitos e colisões entre direitos, liberdades e garantias ou entre direitos e valores comunitários não pode, porém, ser resolvida através de uma preferência abstracta, com o mero recurso à ideia de uma ordem hierárquica dos valores constitucionais”, não devendo erigir-se o principio da harmonização ou da concordância prática enquanto critério ou solução dos conflitos ou pelo menos “ser aceite ou entendido como um regulador automático”. Na metodologia para a resolução de conflitos entre direitos deve “atender-se, desde logo, ao âmbito e graduação do conteúdo dos preceitos constitucionais em conflito, para avaliar em que medida e com que peso cada um dos direitos está presente na situação de conflito – trata-se de uma avaliação fundamentalmente jurídica, para saber se estão em causa aspectos nucleares de ambos os direitos ou, de um ou de ambos, aspectos de maior ou menor intensidade valorativa em função da respectiva protecção constitucional. Deve ter-se em consideração, obviamente, a natureza do caso, apreciando o tipo, o conteúdo, a forma e as demais circunstâncias objectivas do facto conflitual, isto é, os aspectos relevantes da situação concreta em que se tem de tomar uma decisão jurídica – em vista da finalidade e a função dessa mesma decisão. Deve ainda ter-se em atenção, porque estão em jogo bens pessoais, a condição e o comportamento das pessoas envolvidas, que podem ditar soluções específicas, sobretudo quando o conflito respeite a conflitos entre direitos sobre bens e liberdades
Refere Menezes Cordeiro, in Manual de Direito Bancário, Almedina 2008, pág. 273, embora tendo em mente de modo específico o sigilo bancário, que não é o que está em causa nos autos, mas que é transponível para outros domínios de sigilo, parece dever entender-se que nas relações privadas o levantamento do sigilo, «só pode ocorrer em conjunturas muito particulares, impondo-se uma concreta ponderação de interesses, nunca devendo a quebra do sigilo, ir além do necessário».
Isso mesmo foi afirmado no Acórdão Tribunal da Relação do Porto de 19.09.2006, in www.dgsi.pt, nos seguintes termos: «Há (…) neste tipo de situações cíveis, de analisar-se, caso a caso, se a quebra do sigilo é mais importante do que a manutenção do dever de sigilo, cuja protecção constitucional encontra a sua raiz no “direito à identidade pessoal, à imagem, à reserva da identidade da vida privada e familiar” e “às garantias efectivas contra a obtenção e utilização abusivas (...) de informações relativas às pessoas e famílias”, a que se refere o art. 26.º da Constituição da República Portuguesa no capítulo dos direitos, liberdades e garantias.» – no mesmo sentido o Acórdão do mesmo Tribunal de 12.09.2011, www.dgsi.pt –.
Nessa linha, anota Lopes do Rego in Código de Processo Civil Anotado, pág. 363, que «cumpre ao Tribunal actuar segundo critérios prudenciais, realizando uma cautelosa e aprofundada ponderação dos delicados e relevantes interesses em conflito: por um lado, o interesse na realização da justiça e a tutela do direito à produção da prova pela parte onerada; por outro lado, o interesse tutelado com o estabelecimento do dever de “ sigilo, “ maxime “o interesse da contraparte na reserva da vida privada, a tutela da relação de confiança que a levou a confiar dados pessoais ao vinculado pelo sigilo e a própria dignidade do exercício da profissão. (…) Daqui decorre que a dispensa do invocado sigilo dependerá sempre de um juízo concreto, fundado na específica natureza da acção e na relevância e intensidade dos interesses da parte que pretende obter prova através daquela dispensa …».
Isto dito em teoria, centremos agora a atenção no caso concreto.
A autora requereu que a ré junte aos autos «os extractos contabilísticos, nomeadamente das conta-correntes, comprovativos dos preços finais de compra assim como de venda por kg, relativamente aos anos de 2015 e 2016».
A Mma. Juíza deferiu esse requerimento, sinal de que entendeu que «os factos que a parte pretende provar [têm] interesse para a decisão da causa» (artigo 429.º, n.º 2, do Código de Processo Civil).
Notificada para o efeito, a ré escusou-se a juntar os documentos com os seguintes fundamentos: a) os documentos estão sujeitos a sigilo, nos termos dos artigos 42.º e 43.º do Código Comercial e do artigo 64.º da Lei Geral Tributária; b) o pedido não respeita os pressupostos da aplicação do artigo 429.º do Código de Processo Civil por não identificar minimamente, em concreto, os documentos cuja junção se pretende e não especificar os factos que com tais documentos quer provar.
As razões mencionadas sob a alínea b) dizem respeito ao conteúdo do despacho que ordenou a junção e aos requisitos para essa junção ser ordenada, nada tendo a ver com a questão da dispensa do sigilo que é, em exclusivo, o objecto do presente incidente e aquilo que esta Relação deverá (poderá) decidir, razão pela qual não nos cabe pronunciarmo-nos sobre as mesmas.
No que concerne sigilo propriamente dito, a ré invoca o disposto nos artigos 42.º e 43.º do Código Comercial e do artigo 64.º da Lei Geral Tributária. Afigura-se-nos que não tem razão, sobretudo quando invoca essas normas para sustentar um dever de sigilo que confunde com o direito à privacidade ou reserva dos dados da sua vida.
O dever de sigilo e o direito à reserva ou privacidade de determinadas informações ou documentos de uma pessoa singular ou colectiva são diferentes dimensões da tutela do mesmo bem jurídico, mas não podem ser confundidas.
O dever de sigilo é um ónus que recai sobre quem tem acesso a informação ou documentação de outrem que está sujeita a um direito, titulado por este, de reserva ou privacidade. A imposição do dever de sigilo visa impedir que a informação ou os documentos possam ser divulgados para fora do núcleo de conhecimento em que se encontram. É o caso do dever de sigilo bancário, do dever de sigilo de padre ou do dever de sigilo profissional, do médico ou do advogado por exemplo.
O dever de sigilo onera a pessoa que teve acesso à informação ou documentos de uma terceira pessoa no âmbito da sua relação com essa pessoa (a relação médico-paciente, cliente-advogado, cliente-banco) e consiste num instrumento de concretização do direito de reserva ou privacidade que a lei atribui à pessoa a que a respeita a informação ou os documentos em função da natureza ou conteúdo daquela ou destes.
O dever de sigilo pressupõe portanto que haja um direito de reserva, segredo ou privacidade do titular da informação sobre o conteúdo da mesma. Mas este direito pode existir sem que lhe esteja associado qualquer dever de sigilo bastando para o efeito que a informação esteja somente em poder do respectivo titular, sem ter chegado ao conhecimento de terceiro cujo estatuto profissional o obrigue a guardar sigilo sobre as informações a que teve acesso.
Para tutela da informação que lhe respeita, o titular da informação não se prevalece de qualquer dever de sigilo porque ele pode sempre fazer a divulgação pública que entender da informação, ele invoca sim o direito à reserva ou privacidade da mesma. Quem pode invocar (e deve invocar por se tratar de uma obrigação legal cuja violação o pode fazer incorrer em responsabilidade) o dever de sigilo sobre essa informação é o terceiro que tenha tido acesso a essa informação e que esteja vinculado profissionalmente a guardar segredo da mesma (dever de sigilo).
É assim fácil de ver que para se recusar a juntar aos autos documentos da respectiva contabilidade a ré não pode invocar o artigo 64.º da Lei Geral Tributária que consagra de facto um dever de sigilo, de confidencialidade nas palavras da norma.
Segundo esta norma, os dirigentes, funcionários e agentes da administração tributária estão obrigados a guardar sigilo sobre os dados recolhidos sobre a situação tributária dos contribuintes e os elementos de natureza pessoal que obtenham no procedimento, nomeadamente os decorrentes do sigilo profissional ou qualquer outro dever de segredo legalmente regulado.
Resulta expressamente da norma que o que se estabelece é o dever dos dirigentes, funcionários e agentes da administração tributária de não divulgarem determinadas informações alheias obtidas no exercício das suas funções. No caso a junção dos documentos não foi solicitada a qualquer dessas pessoas, pelo que nunca poderá estar em causa a violação do dever de sigilo por parte destes!
A razão que a ré pode invocar para recusar a junção dos documentos não é pois esse dever de sigilo, mas sim a existência de um qualquer direito à reserva, segredo ou privacidade da informação constante desses documentos, a qual não resulta da referida norma, resultará sim de qualquer outra norma de direito que consagre um direito subjectivo com esse conteúdo.
O fundamento material da recusa terá pois de ser o disposto nos artigos 42.º e 43.º do Código Comercial uma vez que nos encontramos perante um pedido de junção de documentos da escrituração mercantil da sociedade ré, a qual, como sabemos, é elaborada em virtude de exigências legais que definem os termos em que essa contabilidade deve ser organizada e conservada.
Sendo assim, neste caso o fundamento da recusa não é a situação prevista na alínea c) do n.º 3 do artigo 417.º do Código de Processo Civil, ou seja, não é, manifestamente, um caso de recusa por fundamento em «violação do sigilo profissional ou de funcionários públicos, ou do segredo de Estado» que pudesse motivar a abertura do correspondente incidente de dispensa.
Por isso, estabelecendo o n.º 4 da norma que o incidente de dispensa do dever de sigilo previsto tem lugar quando a recusa de funda na situação na alínea c) do n.º 3 do artigo 417.º do Código de Processo Civil, no caso o incidente não podia sequer ter sido deduzido e, tendo-o sido, deve ser indeferido liminarmente.
Caberá sim ao tribunal de 1.ª instância decidir se o regime dos artigos 42.º e 43.º do Código Comercial obsta ou à apresentação dos documentos em juízo e decidir em conformidade, cabendo da sua decisão recurso para o Tribunal da Relação.
Refira-se que caso fosse apropriado julgar o incidente o mesmo teria de ser indeferido por várias razões.
Conforme se começou por justificar a dispensa do dever de sigilo (não é o caso, repete-se), citando Lopes do Rego, dependerá sempre de um juízo concreto, fundado na específica natureza da acção e na relevância e intensidade dos interesses da parte que pretende obter prova através daquela dispensa.
O pedido deduzido em juízo pela autora respeita ao pagamento do preço pelo qual vendeu à ré e esta lhe comprou 36.569,41 kg «kiwis da campanha de 2017». Alega a autora que a ré «não apresentou contas sobre a campanha daquele ano» (não alega a razão, designadamente de origem contratual, pela qual a ré estaria obrigada a tal coisa!), «nem deu a conhecer as condições de mercado de venda dos kiwis», (também não explica por que devia a ré comunicar-lhe as condições em que fazia depois a revenda dos kiwis), razão pela qual «indagou … o preço de mercado … praticado naquele ano de 2017, junto de empresas que forneceram o mesmo produto e qualidade» e determinou ela o preço.
Se é assim, pura e simplesmente não se vislumbra que interesse pode ter para a autora e para os fins da acção aceder aos «extractos contabilísticos, nomeadamente das conta-correntes, comprovativos dos preços finais de compra assim como de venda por kg, relativamente aos anos de 2015 e 2016».
Não se alcança, com efeito, que haja nos autos qualquer justificação para que na campanha de 2017 seja relevantes não os preços dessa campanha, mas os preços dos anos de 2015 e 2016, o que interpretamos como preços das campanhas de 2015 e 2016.
Neste contexto, os documentos em causa não parecem pois ter qualquer interesse relevante para a apreciação concreta da pretensão tal como esta foi formulada pela autora, pelo que não se justifica a devassa da concreta escrituração mercantil da ré cuja junção é pretendida.
Por outro lado, se o que se pretende é apurar a quantidade de kiwis adquiridos à autora na campanha de 2017 que a ré logrou revender e a que preços o fez (no pressuposto de que entre a autora e a ré estava acordado que a fixação do preço da venda seria feito à posteriori segundo um critério relacionado com isso) a verdade é que a junção dos documentos não se justifica por razões relativas ao valor probatório do meio de prova por documentos.
Com efeito, a mera análise dos documentos, que poderão ser muitos e carecerão de ser devidamente interpretados, acabará por ser insuficiente para o tribunal julgar os factos atinentes àqueles aspectos. O meio de prova que se justifica (e que o tribunal pode ordenar oficiosamente) é a realização de uma prova pericial de exame à escrita da ré para os peritos apurarem, através da análise da respectiva contabilidade, aqueles factos ou os outros que sejam afinal de contas os que interessam para alcançar o objectivo da determinação do preço.
Sendo realizada por peritos com conhecimentos de contabilidade (técnicos de contas, revisores oficiais de contas ou economistas) a prova pericial permitirá apurar os factos em questão porque os peritos saberão que documentos analisar, o que procurar neles e que conclusões contabilísticas deles poderão ser retiradas.
Com a vantagem de que por essa via, precisamente porque os peritos ficarão vinculados ao dever de sigilo profissional em relação ao que apurarem na análise dos documentos, no processo apenas serão tornados públicos os factos indispensáveis para o julgamento da acção e a cujo apuramento a ré não poderá escusar-se se contratualmente tiver acordado um critério de determinação do preço que dependa dessa documentação (caso em que, por força das regras da boa fé, não poderá impedir o acesso à mesma … em termos estritamente suficientes e que salvaguardem a reserva da demais informação que consta dos documentos a analisar, ou seja, através da peritagem).
Também por esse motivo, portanto, a junção dos documentos não assume no caso uma relevância probatória para o cabal exercício do direito de acção da autora (objectivo susceptível de ser obtido de outra forma, mais eficaz e mais protectora do conjunto de direitos em questão) que justificasse a devassa da escrituração mercantil da ré e a derrogação do direito desta à reserva dessa documentação.
V. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o incidente de dispensa do dever de sigilo improcedente, indeferindo-o.
Custas do incidente pela requerente.
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Porto, 16 de Dezembro de 2020.
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Aristides Rodrigues de Almeida
Francisca Mota Vieira
Paulo Dias da Silva
[a presente peça processual foi produzida com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas certificadas]