Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
532/14.3GBILH.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RENATO BARROSO
Descritores: CRIME DE AMEAÇA
ELEMENTOS TÍPICOS
Nº do Documento: RP20160127532/14.3GBILH.P1
Data do Acordão: 01/27/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 982, FLS.149-156)
Área Temática: .
Sumário: I - São elementos objectivos do crime de ameaça: anúncio de um mal futuro que constitua crime e esse anúncio seja adequado a provocar medo ou inquietação ou a prejudicar a liberdade de determinação.
II - Trata-se de um crime de mera actividade mas exige-se que a ameaça seja adequada a provocar o medo, mesmo que o medo não venha acorrer, e traduz-se no receio de que o mal anunciado venha a acontecer.
III - A existência do crime depende da vontade do agente de fazer o mal, e se apesar desse anúncio tal vontade não existe o crime de ameaças.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. 532/14.3GBILH.P1
1ª Secção

ACORDAM OS JUÍZES, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

1. RELATÓRIO

A – Decisão Recorrida

No processo comum singular nº 532/14.3GBILH, da Comarca de Aveiro, Instância Local de Ílhavo, submetida a julgamento, pela pratica de um crime de ameaça, p.p., pelos Artsº 153 nº1 e 155 nsº1 e 2, ambos do C. Penal, a arguida B… foi absolvida.

B – Recurso

Inconformado com o assim decidido, recorreu o M.P., tendo concluído as respectivas motivações da seguinte forma (transcrição) :

1. O mal objecto do crime de ameaça não pode ser iminente, pois que, neste caso, estar-se-á diante de uma tentativa de execução do respectivo acto violento,
2. O mal será de considerar como "futuro", com relevo para a verificação do crime de ameaça, desde que não se trate duma tentativa criminosa, nos termos em que o art.° 22° do Código Penal a descreve, ou seja, enquanto o agente não praticar actos de execução de um crime que decidiu cometer, entendendo-se como actos de execução aqueles que preenchem um elemento constitutivo de um tipo de crime, os actos que sejam idóneos a produzir o resultado típico ou actos que, segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, sejam de natureza a fazer esperar que se lhes sigam os anteriormente enunciados.
3. O crime de ameaças tem subjacente, de forma intrínseca, uma projecção para o futuro da conduta da vítima, no sentido de incutir nesta, não o sentimento de ter de se defender de uma agressão mais ou menos actual, antes a coarctando no seu espaço de liberdade de actuação (o "receio dos dias seguintes", limitador dos seus movimentos.
4. Tendo sido dado como provado que a arguida disse a C… "vou-te apanhar onde estiveres e vou-te matar", tendo-lhe nesse momento batido com a carteira que trazia, forçoso se torna concluir que a mesma proferiu uma expressão que se traduz num mal futuro, pois que não era naquele momento que a mesma pretendia matá-lo mas sim quando o voltasse a encontrar.
Pelo exposto, deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser a sentença recorrida revogada, devendo a arguida ser condenada da prática do crime de ameaça, p. e p. pelas disposições conjugadas dos art.° s 153°, n. ° 1, e 155, n.° 1, al. a), do Código Penal.

C – Resposta ao Recurso

A arguida respondeu ao recurso, pugnando pela sua improcedência, apesar de não ter apresentado conclusões.

D – Tramitação subsequente

Aqui recebidos, foram os autos com vista ao Exmº Procurador-geral Adjunto, que pugnou pelo provimento do recurso.
Observado o disposto no Artº 417 nº2 do CPP, não foi apresentada resposta.
Efectuado o exame preliminar, determinou-se que o recurso fosse julgado em conferência.
Colhidos os vistos legais e tendo o processo ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.

2. FUNDAMENTAÇÃO

A – Objecto do recurso

De acordo com o disposto no Artº 412 do CPP e com a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no D.R. I-A de 28/12/95 (neste sentido, que constitui jurisprudência dominante, podem consultar-se, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de Setembro de 2007, proferido no processo n.º 07P2583, acessível em HYPERLINK "http://www.dgsi.pt/" HYPERLINK "http://www.dgsi.pt/"www.dgsi.pt, que se indica pela exposição da evolução legislativa, doutrinária e jurisprudencial nesta matéria) o objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.
Na verdade e apesar do recorrente delimitar, com as conclusões que retira das suas motivações de recurso, o âmbito do conhecimento do tribunal ad quem, este contudo, como se afirma no citado aresto de fixação de jurisprudência, deve apreciar oficiosamente da eventual existência dos vícios previstos no nº2 do Artº 410 do CPP, mesmo que o recurso se atenha a questões de direito.

As possibilidades de conhecimento oficioso, por parte deste Tribunal da Relação, decorrem, assim, da necessidade de indagação da verificação de algum dos vícios da decisão recorrida, previstos no nº 2 do Artº 410 do CPP, ou de alguma das causas de nulidade dessa decisão, consagradas no nº1 do Artº 379 do mesmo diploma legal.
O objecto do recurso cinge-se assim às conclusões do recorrente, nas quais entende que a factualidade apurada consubstancia o preenchimento do crime de ameaça, razão pela qual solicita a condenação da arguida pelo cometimento deste ilícito.

B – Apreciação

Definida a questão a tratar, importa considerar o que se mostra fixado, em termos factuais, pela instância recorrida.
Aí, foi dado como provado e não provado, o seguinte (transcrição):

I-Fundamentação de facto;
Discutida a causa, provaram-se os seguintes factos com interesse para a decisão da causa:
1-No dia 31.08.2014, por volta das 22H45, a arguida B… encontrava-se no interior da D…, sita na Av…., Ílhavo, quando se apercebeu da presença de C….
2- A arguida e o referido C… mantiveram um relacionamento amoroso há cerca de sete anos, pautado por separações e reconciliações.
3- Na altura referida em 1, C… fazia-se acompanhar por E….
4- Na altura referida em 1. a arguida aproximou-se de C… e de E… e questionou o primeiro sobre os motivos da sua presença naquele locai e de estar na companhia da segunda.
5- C… respondeu à arguida que não tinha nada a ver com isso e pediu-lhe para se afastar.
6- Neste momento, a arguida exaltou-se e disse, dirigindo-se a C…: "cabrão'", '"chulo", "paga o que me deves".
7- A arguida disse também para quem a quisesse ouvir: "este indivíduo deve-me dinheiro" e "chulo".
8- A arguida disse ainda a C… "vou-te apanhar onde estiveres e vou- te matar" tendo-lhe batido com a carteira que trazia.
9- Á arguida disse repetidamente: "este homem é meu" e "tu és meu".
10- Cerca de duas a três semanas antes, a arguida e o C… haviam feito amor na casa do segundo, tendo-se despedido, uma vez que ele ia de férias com uns amigos.
11- Na altura referida em 1. Arguida desconhecia que C… havia regressado de férias, não comunicando um com o outro desde a altura referida em 10.
12- C… sentiu-se profundamente incomodado e envergonhado com o descrito de 4 a 8.
13- C… e E… continuaram e continuam a frequentar o estabelecimento identificado em 1.
14- A arguida foi empregada de pastelaria, encontrando-se desempregada há mais de um ano: recebe subsídio de desemprego no valor mensal de 360€.
15- A arguida paga mensalmente a quantia de 220€ para reembolso do empréstimo à habitação que contraiu há uns anos; a arguida vive com a ajuda das filhas, ambas maiores de idade e empregadas.
16- A arguida tem automóvel, o qual pouco usa para evitar despesas.
17- A arguida não tem antecedentes criminais.
*
Não se provaram quaisquer outros factos com interesse para a decisão a tomar.

Estabelecida a base factual pela sentença em análise, importa apreciar da bondade do peticionado pelo recorrente:

B.1. Preenchimento do crime de ameaças;

Entende o recorrente que a factualidade apurada consubstancia o preenchimento do crime de ameaças, solicitando, por isso, a condenação da arguida pelo cometimento deste ilícito.
A este propósito, escreveu-se na decisão recorrida (transcrição):

III –Fundamentação de direito:
Enquadramento jurídico-penal dos factos imputados à arguida:

1. Vem a arguida B… acusada da prática de um crime de ameaça previsto e punido nos termos dos arts. 153°, n° 1 e 155°, n° 1 e 2 do Código Penal, importando, por conseguinte, analisar tal ilícito,
Estabelece o art. 153°, ri° 1 do Código Penal, que constitui o tipo-de-ilícito fundamental, que '"quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a, liberdade pessoal a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, ê punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias".
Haverá que salientar, antes de mais, que o ilícito penal em causa se insere no Capítulo IV do Titulo I do Código Penal reportado ao tratamento dos delitos contra as pessoas, tipificando condutas que atentam contra a liberdade pessoal do seu sujeito passivo.
O bem jurídico protegido é a liberdade de decisão e acção[1].
Do ponto de vista estrutural, o crime de ameaça consiste num crime de mera actividade e se "a expressão de forma adequada a provocar-lhe mais não é do que um afloramento da doutrina da causalidade adequada, perfilhada na Parte Geral, para definir o nexo causal entre a conduta e o resultado nos crimes materiais", basta para o preenchimento do tipo "que a ameaça seja adequada a provocar medo ou inquietação ou a prejudicar a liberdade de determinação, não sendo necessário que tal resultado efectivamente se verifique"[2].
Relativamente aos elementos de que se compõe o crime de ameaça, "tem entendido a jurisprudência dos tribunais superiores e a doutrina que (...) são elementos constitutivos deste tipo legal de crime o anúncio de que o agente pretende infligir a outrem um mal futuro que constitua crime, que o anúncio seja feito de forma adequada a provocar receio, medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade, e que o agente tenha actuado com dolo"[3],
Segundo Taipa de Carvalho são três as características essenciais do conceito de ameaça: a) um futuro cuja ocorrência dependa da vontade de agente: o mal que tanto pode ser de natureza pessoal como patrimonial, tem de ser futuro e não iminente; b) não pode haver iminência da execução no sentido em que esta expressão é tomada no artº 22°, n° 2, al. c) do Código Penal; e, e) é indispensável que a ocorrência do mal futuro dependa da vontade do agente.
No que toca à iminência do mal, pois que aqui reside o ponto nevrálgico do crime de ameaça e desta decisão, importa esclarecer que o mal objecto da ameaça não pode ser iminente, porquanto, neste caso, estar-se-ia perante uma tentativa de execução do acto violento prometido, do mal referido.
Aliás, o tempo é um dos critérios para delimitar os respectivos âmbitos incriminatórios dos crimes de ameaça e coacção[3].
Finalmente e como ficou aflorado, o crime de ameaça exige a verificação do dolo; "o dolo exige e basta-se com a consciência (representação e conformação) da adequação da ameaça a provocar medo ou intranquilidade no ameaçado"
2. Uma vez que assim vem referido na acusação pública, cumpre ainda efectuar uma breve menção à agravação da punição a que se reporta o art, 155° do Código Penal,
Com efeito, os comportamentos a que se reporta o art. 153°, n° 1 do Código Penal vêm a sua sanção agravada nas circunstâncias previstas naquela disposição legal, a qual dispõe da seguinte forma.
"/- Quando os factos previstos nos artigos 153° e 154° forem realizados:
a) Por meio de ameaça com a prática de crime punível com pena de prisão superior a três anos: ou,
b) Contra pessoa particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez:
c) Contra uma das pessoas referidas na alínea l) do n° 2 do artigo 132 no exercício das suas funções ou por causa delas
d) Por funcionário com grave abuso de autoridade;
o agente ê punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias, no caso do artigo 153°, e com pena de prisão de um a cinco anos, no caso do n° 1 do art 154",
2- As mesmas penas são aplicadas se, por força da ameaça ou da coacção, a vítima ou a pessoa sobre a qual o mal deve recair se suicidar ou tentar suicidar-se".
3. Analisado o ilícito imputado à arguida B…, importa verificar que face à factualidade supra elencada, não é certo poder afirmar-se estarem preenchidos os elementos típicos do mesmo.
Muito pelo contrário.
Com efeito, parecemos que a conduta desta arguida não preenche de todo em todo a previsão normativa do crime de ameaça.
Na verdade, a factualidade apurada em audiência de discussão e julgamento apenas permite afirmar que a arguida ofendeu a honra e consideração do queixoso, assim como a sua integridade física, uma vez que lhe bateu com a carteira e que, dirigindo-se-lhe, proferiu expressões que se consideram injuriosas: cabrão e chulo, são, sem sombra de dúvida, expressões que colocam em causa a honra e dignidade do visado; bater com a carteira no corpo do queixoso também configura um comportamento ilícito, ainda que de fraca repercussão.
Todavia, tal comportamento da arguida, sendo susceptível de preencher os tipos de crime previstos e punidos nos arts. 143°, n° 1 e 181°, n° 1 do Código Penal, não poderá ser sancionado, em virtude, por um lado, a acusação pública ser omissa quanto ao primeiro dos ilícitos e, por outro lado, de não ter sido deduzida acusação particular pelo queixoso quanto aos factos injuriosos, como lhe competia fazer nos termos previstos no art. 188° do Código Penal.
Em relação ao crime de ameaça de que vem acusada a arguida, é nosso entender que o mesmo não se verifica, devendo a expressão "vou-te apanhar onde estiveres e vou-te matar” proferida pela arguida, compreender-se no contexto do encontro inesperado e em certa medida indesejado entre a arguida e o queixoso, o qual se fazia acompanhar por outra mulher, não passando de uma manifestação de profundo despeito por ter sido trocada por essa outra mulher.
Afigura-se-nos que a expressão não concretiza a promessa séria, de um mal futuro que atinja os bens jurídicos contemplados no art. 153° do Código Penal, uma vez que foi proferida num contexto emotivo muito especial, numa altura em que a arguida deparou com aquele que considerava seu namorado, acompanhado por outra mulher, sentindo-se atraiçoada e, até humilhada, pela referida troca.
A nosso ver, a situação tem de ser compreendida como um todo, como uma unidade factual ou um acontecimento unitário, não apresentando a autonomia exigida pelo tipo de ilícito, nos termos estudados, para se destacar como tipo de crime autónomo - a arguida decidiu confrontar o queixoso, desatou a insultá-lo e foi-se exaltando, proferindo aquela expressão.
Acresce que a mais recente jurisprudência defende maioritariamente que expressões como "eu mato-te" ou "eu parto-te a boca toda", proferidas em contexto de acesa discussão e/ou envolvimento físico, não concretizam qualquer ameaça de um mal futuro, e que, sendo censuráveis cio ponto de vista da urbanidade que deve pautar o comportamento dos cidadãos, não merece contudo a tutela do direito penal, que se mantém a ultima ratio do sistema sancionatório do Estado. Ora, não se vê diferença alguma entre "eu mato-te" e "vou-te apanhar onde estiveres e vou-te matar", ainda que o tempo verbal não seja o mesmo, sendo, a nosso ver, expressões equivalentes
Dos inúmeros acórdãos disponíveis nesta matéria, podem referir-se, exemplificativamente os seguintes, todos do Tribunal da Relação do Porto, datando de 17.11.2004, 25.01.2006, 20.12.2006 e 28.11.2007, todos disponíveis na página www.dgsi.pt.
Não se verificando o preenchimento do tipo fundamental previsto no art. 153°, n° 1 do Código Penal, escusado será dizer que tão-pouco se verifica a agravação prevista no art. 155° do Código Penal, em qualquer uma das suas modalidades.
Deste modo, sendo a factualidade supra descrita insusceptível, em nosso entender, de configurar a prática de um crime de ameaça, por não se apresentar suficientemente autonomizada relativamente à demais factualidade, nos termos explanados, ainda que, como vimos, a demais factualidade não possa ser sancionada nos autos por motivos formais, deverá a arguida ser absolvida da acusação de que foi objecto.

De acordo com o Artº 152 do Código Penal, os elementos constitutivos do crime de ameaça são;
- o anúncio feito pelo agente de que pretende infligir a outrem um mal que constitui crime;
- que esse anúncio provoque receio, medo ou inquietação ou prejudique a liberdade de determinação do sujeito passivo;
- que o agente tenha actuado com dolo.
Não basta assim, para o cometimento do mesmo, o simples aviso ou advertência, mas antes, a promessa de se infligir um mal relevante traduzido na ameaça de um crime, sendo irrelevante que o ofendido não tenha sentido medo das palavras em causa, ou não as tenha tomado a sério.
Como se diz no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 08/05/12, relatado pelo Exmº Desembargador António Latas, no Proc. 139/09.7GAABF.E1:
« Dispõe o artigo 153.º, n.º 1 do Código Penal que:
“1.Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão de até um ano ou com pena de multa até 120 dias”.
Dispõe ainda, o actual artigo 155.º, n.º 1, al.a) do Código Penal que quando os factos previstos no artigo 153.º forem realizados por meio de ameaça com a prática de crime punível com pena de prisão superior a três anos, o agente é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias.
Ora, o legislador, autonomizando agora o crime de ameaça agravado, concretizando as circunstâncias dessa agravação, salvo melhor entendimento, não criou um novo tipo de crime mas sim apenas uma agravação da pena, como aliás já constava no n.º 2 do anterior artigo 153.º do Código Penal.
Antes da entrada em vigor da alteração ao Código Penal, operada pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, dispunha o artigo 153.º do Código Penal que:
“1.Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, e forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão de até um ano ou com pena de multa até 120 dias.
2. Se a ameaça for com a prática de crime punível com pena de prisão superior a 3 anos, o agente é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias”.
Por conseguinte, no caso, concreto, nenhuma alteração se verificou, nem quanto aos elementos típicos do crime, nem quanto à pena, sendo a conduta punida de igual forma em ambas as redacções.
O conceito de ameaça subjacente na previsão do tipo legal de crime, o qual visa tutelar o bem jurídico de decisão e de acção, comporta três características essenciais: a)mal; b) futuro; c) dependência da ocorrência desse mal futuro da vontade do agente – neste sentido, Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo 1, pág. 343.
Ameaçar é, pois, prometer ou preanunciar um mal futuro que constitua um crime, ou seja, anunciar a intenção de praticar um dano à vida ou a bens de determinada pessoa.
A acção de ameaçar pode revestir qualquer forma, nomeadamente, pode ser feita por escrito, oralmente ou por gestos, e mesmo directa ou indirectamente.
O mal, que tanto pode ser de natureza pessoal como patrimonial, tem de ser futuro - o mal objecto da ameaça não pode ser iminente, pois que, neste caso, estar-se-á perante uma tentativa de execução do respectivo acto violento, isto é, do respectivo mal.
Deste modo, são elementos objectivos do crime, o anúncio de que o agente pretende infligir a outrem um mal que constitua um crime e que esse anúncio seja de molde a provocar medo ou inquietação ou a prejudicar a liberdade de determinação da vítima – neste sentido, o Acórdão da Relação do Porto de 17 de Julho de 1985, in Colectânea de Jurisprudência, tomo IV, pág. 261.
Necessário se torna, como supra referido, por constituir elemento do tipo que a ameaça seja adequada a provocar no ameaçado medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação.
Temos, assim, um normativo que acolhe uma concepção de ameaça simultaneamente como um crime contra a intranquilidade individual e contra a liberdade.
Com efeito, o preceito em causa consagra duas hipóteses: a ameaça da prática de um crime, através da provocação de medo ou inquietação, e a ameaça da prática de um crime susceptível de prejudicar a liberdade de determinação.
Deste modo, através desta incriminação, visa-se proteger a liberdade pessoal de cada um, punindo-se o perigo que acompanha a ameaça, o alarme e a perturbação social que a mesma provoca e a intranquilidade de ânimo da pessoa visada.
O crime de ameaça, tal como foi configurado na revisão legislativa operada em 1995, não se trata, ao contrário do que sucedia na versão originária do Código Penal, de um crime de resultado, pois que não se exige que o agente provoque efectivamente receio, medo ou inquietação na vítima, bastando agora, que o agente use de meios adequados a provocar tal medo ou inquietação, isto é, que a ameaça seja adequada a provocar medo ou inquietação, mesmo que, em concreto, o não tenha provocado.
“Na actual versão do artigo 153º do Código Penal, o crime de ameaça aí previsto configura-se não como um crime de resultado ou de dano, mas como um crime de mera acção ou de perigo. Deve considerar-se existente sempre que a ameaça com a prática de algum dos crimes referenciados na previsão da norma seja susceptível, segundo a experiência comum, de ser tomada a sério pelo destinatário da mesma, atendendo aos termos da actuação do agente e às circunstâncias do visado, conhecidas daquele, independentemente de o destinatário da ameaça ficar ou não com medo ou inquietação ou prejudicado na sua liberdade de determinação” – neste sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2 de Maio de 2002, no proc. n.º 611/02 – 3.ª; SASTJ, n.º 61, pág.67.
No mesmo sentido, o Acórdão da Relação de Évora de 24 de Abril de 2001, Colectânea de Jurisprudência, Tomo II, pág. 270.
Necessário é, no entanto, que a acção reúna certas características, por forma a que seja adequada, do ponto de vista do agente e objectivamente, tendo em conta a generalidade das pessoas, a provocar medo.
E a adequação da ameaça em vista a determinar ou provocar na pessoa do ameaçado um sentimento de insegurança, intranquilidade ou temor há-de aferir-se em função de um critério objectivo individual.
“Objectivo no sentido de que deve considerar-se adequada a ameaça que, tendo em conta as circunstâncias em que é proferida e a personalidade do agente, é susceptível de intimidar ou intranquilizar qualquer pessoa (critério do “homem comum”); individual, no sentido de que devem relevar as características psíquico-mentais da pessoa ameaçada (relevância das “sub-capacidades” do ameaçado” – neste sentido Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo I, pág. 348.
Assim, desde que a ameaça seja adequada a provocar o medo, mesmo que em concreto o não tenha provocado, verifica-se o crime.
O medo é o temor ou receio de que o mal anunciado ou prometido venha efectivamente a acontecer, e a inquietação é a intranquilidade, desassossego que a ameaça provoca no destinatário.
Por outro lado, há prejuízo na liberdade de determinação quando o ameaçado fica constrangido pela ameaça e, em vez de agir de acordo com a sua livre vontade, actua por forma a não desagradar o ameaçador, ainda que isso lhe custe.
No que respeita aos elementos subjectivos, a verificação do tipo objectivo exige que o agente actue dolosamente, isto é, sabendo e querendo criar no visado o medo de que o crime se realize.»
A citação foi longa, mas exemplar, aderindo-se, na íntegra, a tais ensinamentos, os quais, colocados sobre o caso concreto, implicam que se adira ao decidido pela instância recorrida, no sentido dos factos em causa não traduzirem a prática, pela arguida, do crime de ameaças que lhe era imputado.
Com efeito, a expressão proferida pela arguida " vou-te apanhar onde estiveres e vou-te matar", foi proferida num contexto de profunda emoção, exacerbada pelo facto de ver aquele que considerava seu namorado acompanhado por outra mulher e por perceber que tinha sido trocada por esta, o que a levou a insultar publicamente o ofendido, pretendendo humilha-lo, mas sem que da mesma se retire uma intimação séria, objetiva e real, susceptível de concretizar a ameaça em causa.
Como bem notou a decisão recorrida «…a situação tem de ser compreendida como um todo, como uma unidade factual ou um acontecimento unitário, não apresentando a autonomia exigida pelo tipo de ilícito, nos termos estudados, para se destacar como tipo de crime autónomo - a arguida decidiu confrontar o queixoso, desatou a insultá-lo e foi-se exaltando, proferindo aquela expressão»
De facto, pela factualidade apurada é bem visível esse contexto de profunda exaltação em que a arguida foi gradualmente evoluindo, insultando o queixoso – chamando-lhe cabrão, chulo – dizendo-lhe que ele lhe devia dinheiro, mostrando o seu despeito por este estar acompanhado por outra mulher, referindo-se ao ofendido, repetidamente, como este homem é meu e tu és meu, e batendo-lhe com a carteira.
Ora, como se assinalou em cima, o crime de ameaças é um crime doloso, ou seja, é necessário que o acontecimento do mal futuro dependa da vontade do agente e que este actue sabendo e querendo criar no visado o medo de que o crime se realize.
In casu, não parece ser possível concluir que a arguida tenha actuado dolosamente, no sentido de querer criar no ofendido a inquietação pela sua conduta futura.
Sendo elemento integrante do conceito de ameaça que a concretização futura do mal apareça como dependente da vontade do agente, a mesma, na situação dos autos, não se verifica, na medida em que a arguida não actuou com esse propósito ou intenção, tendo proferido a expressão em causa como corolário dos insultos e da humilhação pública que quis produzir no ofendido, em consequência de ter percebido que este a tinha trocado por outra mulher, mas sem que a expressão em causa se traduza na formulação de um mal futuro, em que a arguida pretendesse matar o queixoso quando o voltasse a encontrar.
A arguida não agiu com dolo de ameaça – como aliás se alcança da factualidade apurada - tendo proferido a expressão em causa no calor de um acesa discussão, onde a dita expressão se enquadra melhor com o cenário de insultos com que brindava o ofendido e menos, com a efectiva concretização de mal futuro, que a arguida não teve a intenção de desenhar.
Nessa medida, bem andou o tribunal a quo ao absolver a arguida pela prática do crime de ameaças que lhe era imputado, assim improcedendo o recurso.

3. DECISÃO

Nestes termos, decide-se negar provimento ao recurso e em consequência, confirmar, na íntegra, a sentença recorrida.
Sem tributação.
xxx
Consigna-se, nos termos e para os efeitos do disposto no Artº 94 nº2 do CPP, que o presente acórdão foi integralmente revisto e elaborado pelo primeiro signatário.
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Porto, 27 de Janeiro de 2016
Renato Barroso
Vítor Morgado
______
[1] "Comentário Conimbricense do Código Penal", direccão de Figueiredo Dias. Coimbra Editora, Tomo I, pág. 342,
[2] " Maia Gonçalves, "Código Penal Português - Anotado e Comentado". Almedina, 16a Edição, ano de 2004. pág, 547,
[3] Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 17,04.2004, disponível na Internet, na página www.dgsi.pt.