Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0252692
Nº Convencional: JTRP00035902
Relator: CUNHA BARBOSA
Descritores: DÍVIDA DE CÔNJUGES
PROVEITO COMUM
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: RP200303240252692
Data do Acordão: 03/24/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recorrido: 2 J CIV V N FAMALICÃO
Processo no Tribunal Recorrido: 652/00
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: .
Decisão: .
Área Temática: .
Legislação Nacional: CCOM888 ART15.
CCIV66 ART1691 N1 D.
Sumário: Pretendendo o cônjuge não comerciante e que não beneficie do regime de separação de bens obstar à sua responsabilização pelo pagamento da dívida, contraída pelo outro cônjuge no exercício do comércio, terá de alegar e provar que a dívida assim contraída não o foi em proveito comum do casal.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam neste Tribunal da Relação do Porto:

1. Relatório:
No Tribunal Judicial de ..........., .. Juízo Cível, sob o nº .../.., foram instaurados uns autos de acção declarativa, com processo sumário, por Manuel ............. contra António ........... e esposa, Maria .........., pedindo que estes fossem condenados a pagar-lhe a quantia de Esc.1.037.696$00, acrescida de juros à taxa legal de 12% ao ano, contados desde 1.8.2000 até integral pagamento.
Fundamenta o seu pedido em que:
- no exercício da sua actividade de comerciante de tintas, vernizes, diluentes e outros artigos destinados à pintura automóvel e à pintura da construção civil, forneceu, durante os meses de Janeiro a Abril de 2000, ao R. marido diversas mercadorias do seu comércio e no valor global de Esc.1.024.904$00;
- O R. marido é empresário em nome individual da indústria de pintura de construção civil;
- Os RR. são casados entre si, no regime de comunhão de bens;
- A Ré mulher é doméstica e beneficia da actividade profissional do R. marido, cujos rendimentos revertem em proveito comum do casal.
Conclui pela procedência da acção.
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Citados os RR., apenas a Ré apresentou contestação.
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Na sua contestação, a Ré defendeu-se alegando, em essência e síntese, que desconhece os, pelo A., invocados fornecimentos, sendo que, embora o R. marido exercesse a actividade de pintor por conta própria, não beneficiou dessa actividade, porquanto, desde 30 de Janeiro de 1996, que se davam mal, em virtude de este gastar todo o dinheiro, que ganhava e o que não ganhava, no jogo, tendo sido obrigada a pagar dívidas da actividade do marido com bens próprios.
Conclui pela improcedência da acção quanto a si.
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O A. apresentou resposta, reiterando que, desde a celebração do casamento, ambos os RR. beneficiaram dos proventos auferidos pelo R. marido na actividade profissional por ele desenvolvida.
Conclui como na petição inicial.
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Proferiu-se despacho saneador e organizou-se a base instrutória, o que não foi objecto de qualquer reclamação.
Procedeu-se a julgamento e, proferida que foi a decisão sobre a matéria de facto controvertida, elaborou-se a sentença em que, julgando a acção totalmente procedente, se condenaram os RR.:
“... a pagarem àquele a quantia de Esc.1.024.904$00 (um milhão vinte e quatro mil novecentos e quatro escudos) / € 5.112,20 (cinco mil cento e doze euros e vinte cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa de 12% ao ano, contados desde 01/08/2000 e até efectivo pagamento.
...”.
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Não se conformando com o que, assim, veio de ser decidido, a Ré interpôs recurso de apelação em que, tendo alegado, formulou as seguintes conclusões:
1ª - Entre a Ré apelante e o co-R., ex-marido, António ........., foi decretado o divórcio e dissolvido o vínculo conjugal com efeitos patrimoniais representados a 30 de Junho de 1996 por sentença de 21 de Março de 2002 transitada em julgado, proferida nos autos .../.. do .. Juízo do Tribunal Judicial da ...........;
2ª - No direito que invoca contra a Ré Apelante o A. alega o proveito comum do casal, cumprindo-lhe por via disso o ónus da prova, como resulta claro e inequívoco do douto Saneador e Base Instrutória;
3ª - A formulação de um novo Quesito (o 8º) na versão negativa do teor do Quesito 6º, não só inverte o ónus da prova, relativamente à factualidade alegada e invocada para fundamentar o direito da pretensão que se pretende fazer valer, como não tendo sido produzida qualquer outra prova, implica um conhecimento prévio da resposta a dar ao mesmo;
4ª - Há contradição entre a resposta dada ao quesito 7º e ao Quesito aditado – o 8º;
5ª - A douta sentença violou entre outros o disposto nos arts. 342º e 346º do CC e os arts. 513º, 514º, 515º, 516º e 668º, nº 1 als. c) e d), todos do CPC.
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O A. contra-alegou, pugnando pela manutenção do decidido.
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Por despacho proferido de fls. 140 a 143, já transitado, foi ordenado o desentranhamento do documento – certidão de sentença que decretou o divórcio entre os RR. .
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Colhidos que se mostram os vistos, cumpre decidir.
Assim:
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2. Conhecendo da apelação:
2.1 – Dos factos assentes:
Com relevância para o conhecimento do recurso, mostram-se assentes os seguintes factos:
a) – O Autor é comerciante grossista de tintas, vernizes, diluentes e outros artigos destinados à pintura da construção civil; (1º da B.I.)
b) – O R. marido é empresário em nome individual da indústria de pintura da construção civil; (2º da B.I.)
c) – No âmbito das respectivas actividades, o A. forneceu ao R. marido, durante os meses de Janeiro a Abril do ano de 2000, diversas mercadorias do seu comércio, com o valor global de Esc.1.024.904$00; (3º da B.I.)
d) – As mercadorias adquiridas ao A. deveriam ser-lhe pagas no prazo de 30 dias a contar da data das respectivas facturas; (4º da B.I.)
e) – O R. marido gastava dinheiro que auferia no jogo; (7º da B.I.)
f) – Os RR. contraíram casamento, em 17 de Agosto de 1985, sem convenção antenupcial; (doc. fls. 73 – certidão de casamento)
2.2 – Dos fundamentos do recurso:
De acordo com as conclusões formuladas, as quais delimitam o objecto do recurso – cfr. arts. 684º, nº 3 e 690º do CPC, ter-se-á que, afastada a 1ª conclusão por prejudicada em face do ordenado desentranhamento de documento, são três as questões a resolver no âmbito do presente recurso, tal como seja, saber se: ao A. competia alegar e provar o proveito comum do casal; é admissível a formulação e adição de um quesito novo no decurso da audiência de julgamento; há contradição entre a respostas dadas aos quesitos 7º e 8º.
Antes de mais, como já se deixou referido, a 1ª conclusão mostra-se prejudicada, já que versa sobre questão nova, por não suscitada em tribunal de 1ª instância, sendo, por isso, vedado o seu conhecimento a este tribunal de recurso; na realidade, tem como pressuposto matéria de facto a que se alude tão só em sede de alegações de recurso e se pretendia provada por documento cuja junção, nesta fase e neste tribunal, não foi admitida - cfr. despacho de fls. 140 a 142 -, antes tendo sido ordenado o seu desentranhamento.
Temos, assim, que subsistem tão só as três questões já enunciadas.
Vejamos cada uma delas, começando pela invocada contradição entre as respostas dadas aos quesitos 7º e 8º da base instrutória, por ter a ver com a estabilidade da matéria de facto considerada assente, enquanto que as outras duas questões versam sobre o direito aplicável.
Assim:
a) – Quanto à pretensa contradição entre as respostas dadas aos quesitos 7º e 8º:
À compreensão da questão enunciada importa, desde logo, saber qual a matéria de facto que se pretendia averiguar sob os mencionados quesitos.
Ora, sob o quesito 7º indagava-se sobre se

“ O Réu marido gastava todo o dinheiro que auferia no jogo?”

enquanto que sob o quesito 8º se procurava saber se

“Os rendimentos auferidos pelo R. marido no exercício da sua actividade profissional não revertiam a favor do casal ?”

Tais quesitos mereceram, respectiva e sucessivamente, produzida que foi a prova indicada pelas partes, as seguintes respostas: «Provado apenas que o Réu marido gastava dinheiro que auferia no jogo» e «Não provado».
Da matéria perguntada e das respostas dadas, crê-se que, salvo melhor opinião, a conclusão a extrair será a de que nenhuma contradição existe entre as mencionadas respostas, porquanto a resposta restritiva que foi dada ao quesito 7º não poderá conflituar com a resposta dada ao quesito 8º, na medida em que da resposta negativa que a este último quesito foi dada apenas se poderá extrair a conclusão de que a matéria nele inserida não resultou provada e nada mais.
Assim, sem necessidade de mais delongas, não ocorre a pretendida contradição entre as mencionadas respostas, e, em consequência, inexiste qualquer nulidade de sentença, por violação do disposto no artº 668º, nº 1, al. c) do CPC.
b) – Quanto a saber se ao A. competia alegar e provar o proveito comum do casal:
A Ré/apelante pretende que cumpria ao A./apelado, enquanto credor, alegar e provar que a dívida accionada havia sido contraída pelo R. marido em proveito comum do casal, pelo que o Mmº Juiz do Tribunal de 1ª instância, depois de ter formulado o quesito 6º («Os rendimentos auferidos pelo Réu marido no exercício da sua actividade profissional revertiam a favor do casal ?»), não podia ter formulado o quesito 8º («Os rendimentos auferidos pelo R. marido no exercício da sua actividade não revertiam a favor do casal ?»), sendo que ao fazê-lo inverteu o ónus da prova, violando o disposto nos arts. 342º e 346º do CC.
Crê-se que, salvo melhor opinião, não assiste razão à apelante/Ré.
Antes de mais, note-se que a Ré/apelante não põe minimamente em causa que a dívida accionada resulta de fornecimento, durante os meses de Janeiro a Abril de 2000, de mercadoria diversa feito pelo A./apelado ao R. marido, no exercício das respectivas actividades comercial e industrial, o que, aliás, resulta dos factos assentes mencionados supra e sob o item 2.1 (dos factos assentes) als. a), b) e c).
Ora, no artº 15º do CComercial, com a redacção que lhe foi introduzida pelo artº 3º do Dec. Lei nº 363/77, de 2/9, dispõe-se que
«As dívidas comerciais do cônjuge comerciante presumem-se contraídas no exercício do seu comércio».

enquanto que no artº 1691º, nº 1, al. d) do CCivil, com a redacção introduzida pelo Dec. Lei nº 496/77, de 25/11, se dispõe que
«1. São da responsabilidade de ambos os cônjuges:
a) ...
b) ...
c) ...
d) As dívidas contraídas por qualquer dos cônjuges no exercício do comércio, salvo se se provar que não foram contraídas em proveito comum do casal, ou se vigorar entre os cônjuges o regime de separação de bens;
e)...
...»
De tais preceitos crê-se que outra conclusão se não poderá extrair que não seja a de que, pretendendo o cônjuge não comerciante e que não beneficie do regime de separação de bens, como ocorre no caso concreto, obstar à sua responsabilização pelo pagamento de dívida, contraída pelo outro cônjuge no exercício do comércio, terá de alegar e provar que a dívida assim contraída não o foi em proveito comum do casal, por força do disposto nos arts. 1691º, nº 1, al. d) e 342º, nº 2 do CCivil.
Na realidade, se dúvidas pudessem existir elas seriam de imediato afastadas pelo ensinamento dos Profs. Pires de Lima e Antunes Varela (cfr. Código Civil Anotado, vol. IV, 2ª ed., pág. 336), quando a propósito de tal temática referem expressamente que «...Por força do novo regime, à alegação e prova de que a divida foi contraída em real conexão com a actividade comercial do devedor, feitas pelo credor, pode agora o cônjuge do devedor opor validamente que, não obstante isso, a dívida não foi realmente contraída em proveito comum do casal. ...»; aliás, de forma mais impressiva e directa, ensina o Prof. Vasco da Gama Lobo Xavier (cfr. Direito Comercial, Sumários das Lições ao 3º ano jurídico, Coimbra 1977-1978, págs. 98 e 99), que «... o cônjuge do devedor é que terá de demonstrar ...; ou então demonstrar (como o permite a alínea d), nos termos referidos no nº anterior) que a dívida, apesar de haver surgido no exercício do comércio do devedor – ou de assim se ter de considerar, por virtude da presunção não ilidida do art. 15º -, não foi contraída em proveito comum do casal. ...».
De tudo se haverá de concluir que improcede a conclusão 2ª, na medida em que cumpria à Ré/apelante o ónus de alegação e prova de que a dívida não havia sido contraída em proveito comum do casal, o que, aliás, pretendeu, quando alegou, ainda que não tenha provado, que o R. marido gastava tudo o que ganhava no jogo.
c) – Quanto à admissibilidade de formulação e adição de um quesito novo no decurso da audiência de julgamento:
No decurso da audiência de julgamento, antes que houvesse ocorrido o encerramento da discussão, o Mmº Juiz do tribunal de 1ª instância, servindo-se, para tanto, de matéria alegada pela Ré/apelante, ao abrigo do disposto no artº 650º, nº 2, al. f) do CPC, formulou um novo quesito que foi aditado à base instrutória sob o nº 8, e do seguinte teor «Os rendimentos auferidos pelo R. marido no exercício da sua actividade profissional não revertiam a favor do casal?», não tendo as partes formulado qualquer reclamação, antes indicaram, como prova, ao referido quesito todas as testemunhas já inquiridas.
A Ré/apelante insurge-se, agora, contra o mencionado quesito pretendendo que a sua formulação e adição não era consentida, por redundar em inversão do ónus da prova face ao quesito 6º já existente na base instrutória, como, ainda, implicava um conhecimento prévio da resposta a dar ao mesmo, na medida em que não havia sido produzida qualquer prova sobre ele.
Vejamos.
A formulação e adição do quesito mencionada mostra-se não só tempestiva como processualmente admissível, na medida em que de acordo com o disposto no artº 650º, nº 2, al. f) do CPC, aplicável ao processo sumário por força do disposto no artº 463º, nº 1 do mesmo diploma legal, ao juiz é permitido ampliar a base instrutória da causa até ao encerramento da discussão, desde que o faça, como no caso presente acontece, com base em matéria de facto alegada pelas partes (artº 264º do CPC).
Aliás, tal formulação e adição (ampliação) impunha-se ao juiz, porquanto como já se deixou explicitado supra, sobre a Ré/apelante recaía o ónus de alegar e provar a matéria incluída na ampliação, como seja, a dívida accionada não havia sido contraída no proveito comum do casal; a tal formulação não obsta o facto de, incorrectamente, se mostrar formulado quesito contemplando matéria alegada pelo A./apelado sobre o mesmo ponto e em sentido contrário, já que sobre este não impendia qualquer ónus de alegação e prova da mesma.
Acresce que, contrariamente ao afirmado pela Ré/apelante, não ocorre falta de produção de prova sobre o formulado e aditado quesito, porquanto as partes, como flui da acta de audiência de julgamento de fls. 87 a 91, indicaram ao mesmo as testemunhas já inquiridas, tendo o tribunal deixado de as ouvir de novo com fundamento em que, como resulta do despacho de fls. 91, já se haviam pronunciado sobre a matéria em causa e sendo que tal depoimento havia sido objecto de gravação.
Aliás, a entender-se que ocorria omissão de inquirição, sempre deveria a parte, desde logo e uma vez que se encontrava presente, ter arguido a nulidade correspondente - cfr. arts. 201º e 205º do CPC, ou, então, ter interposto recurso do despacho que dispensou a reinquirição das mencionadas testemunhas, o que não fez e, consequentemente, não pode, agora, fazer por intempestividade manifesta.
Do exposto resulta, assim e de igual forma, a improcedência da 3ª conclusão formulada pela Ré/apelante.
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3. Decisão:
Nos termos supra expostos, acorda-se em:
a) – julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida;
b) – condenar a Ré/apelante nas custas do recurso.
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Porto, 24 de Março de 2003
José da Cunha Barbosa
José Augusto Fernandes do Vale
Rui de Sousa Pinto Ferreira