Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1439/13.7TBFLG-D.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RODRIGUES PIRES
Descritores: INSOLVÊNCIA
INSOLVÊNCIA DE PESSOA SINGULAR
ADMISSIBILIDADE DE APRESENTAÇÃO DE PLANO DE INSOLVÊNCIA
Nº do Documento: RP201509151439/13.7tbflg-D.P1
Data do Acordão: 09/15/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Nos processos de insolvência de pessoas singulares, face ao preceituado no art. 250º do C.I.R.E., não é admissível a apresentação de plano de insolvência.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 1439/13.7 TBFLG-D.P1
Comarca de Porto Este – Amarante – Inst. Central – Secção Comércio – J1
Apelação (em separado)
Recorrentes: B… e C…
Recorrido: Ministério Público
Relator: Eduardo Rodrigues Pires
Adjuntos: Desembargadores Márcia Portela e Maria de Jesus Pereira

Acordam na secção cível do Tribunal da Relação do Porto:
RELATÓRIO
No âmbito dos presentes autos foi declarada, em 20.2.2014, a insolvência de B… e C….
Foi depois apresentado plano de insolvência.
Por despacho judicial de 3.3.2015 ordenou-se a notificação de todos os demais intervenientes processuais para, querendo, se pronunciarem e/ou requererem o que tiverem por conveniente quanto a tal plano.
A Digna Magistrada do Min. Público pronunciou-se nos seguintes termos:
“Efectivamente, dispõe o art. 250º do CIRE que aos processos de insolvência abrangidos pelo Capítulo II não são aplicáveis as disposições dos títulos IX e X.
O presente processo de insolvência respeita a devedores pessoas singulares que não exploraram qualquer empresa nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.
É-lhes, pois, aplicável o Capítulo II e, consequentemente, o disposto no art. 250º do CIRE.
Assim, a apresentação de um plano de insolvência é legalmente inadmissível.
Neste sentido pronunciaram-se, de resto, os Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 10.02.2015 e 07.09.2010, no âmbito dos processos 81/14.0 TBTBU e 570/10.5 TBMGR, respectivamente, disponíveis em www.dgsi.pt.
Assim, o plano deverá ser rejeitado.”
Depois, com data de 7.5.2015, a Mmª Juíza “a quo” proferiu o seguinte despacho:
“Conforme resulta dos autos apensos, mediante declaração assinada pelos próprios insolventes (cfr. fls. 5 e 6 do apenso A), os insolventes além de pessoas singulares, não exploraram qualquer empresa nos três anos anteriores à data de início do processo de insolvência.
Não obstante o sentido de voto manifestado pelos credores em sede de Assembleia de Apreciação do Relatório, no sentido da aprovação dos insolventes apresentarem um plano de insolvência, o certo é que tal não é permitido pelo art. 250º do CIRE.
Do normativo vindo de indicar resulta que no caso de pessoas singulares a lei prevê a figura do plano de pagamentos e já não o plano de insolvência.
Assim, e em face de todo o exposto indefiro a apresentação do plano de insolvência aduzido aos autos pelos devedores com fundamento na sua inadmissibilidade legal.
Notifique, sendo ainda o Sr.(a) Administrador(a) de Insolvência para complementar o seu relatório face à decisão supra.”
Inconformados com o decidido, os insolventes B… e C… interpuseram recurso que foi admitido como apelação, com subida imediata, em separado e efeito meramente devolutivo.
Finalizaram as suas alegações com as seguintes conclusões:
1. Não se conformam os insolventes/recorrentes com o despacho que indeferiu a apresentação do plano de insolvência.
2. Entendem os recorrentes que não basta, à não aplicabilidade do regime do plano de insolvência, a pessoas singulares, que os mesmos não tenham tido, nos últimos três anos que precederam a apresentação à insolvência, a qualidade de não empresários.
3. Haverá ainda que ponderar, à sua não admissibilidade, a sujeição, por parte daqueles, ao regime de insolvência de não empresários e titulares de pequenas empresas, previsto no artigo 250º e seguintes do CIRE, com consequente aprovação e homologação de plano de pagamentos, dado ser este um regime mais favorável e mais adequado à protecção do devedor.
4. Por isso, não tendo tal plano de pagamentos sido aprovado e homologado, não deve excluir-se aos devedores/recorrentes a possibilidade de sujeitar-se ao regime do plano de insolvência – ainda que menos protector dos interesses daqueles – que não os sujeite à liquidação universal e colectiva do seu património.
5. Pois, se com o plano de insolvência procura dar-se uma solução diferente da pura e simples liquidação universal e colectiva ao qual os devedores/recorrentes pretendem sujeitar-se e sobre o qual a maioria dos credores (pelo menos 80,09%) pretende pronunciar-se, deverá admitir-se a apresentação, discussão e votação de tal plano.
6. Com efeito, é inequívoco, nos autos, que os devedores não pretendem a liquidação universal e colectiva do seu património e, por outro lado, manifesto que a maioria dos credores está convicta de que, um tal modelo alternativo (o “plano de pagamentos”), é preferível, mais justo, adequado, proporcional e satisfatório quer dos interesses dos credores, quer dos devedores.
7. Aliás, seria demasiadamente penoso, se não oneroso, para os devedores/recorrentes sujeitá-los à liquidação universal e colectiva do seu património, quando todo o desenvolvimento processual foi no sentido de sujeição a um “plano de pagamentos” aos credores, que apenas não veio “aprovado” e “homologado”, por um “percalço” processual.
8. Importa, portanto, a nosso ver – salvo o devido respeito por melhor e fundada opinião -, ponderar a conjugação dos interesses do devedor e a satisfação dos interesses dos credores (finalidade única e última do processo de insolvência).
9. Deve dar-se primazia ao princípio da liberdade e da autonomia da vontade das partes, ainda que em prejuízo de outros princípios.
10. Ao decidir indeferir a apresentação do plano de insolvência por parte dos devedores/recorrentes, violaram-se, a nosso ver os princípios gerais e orientadores da recuperação financeira dos devedores, no âmbito da insolvência, em benefício do disposto no artigo 250º do CIRE.
11. Pelo que, se impõe uma interpretação extensiva e/ou actualista desta norma, à luz das alterações introduzidas ao CIRE pela Lei 16/2012, que veio clarificar e priorizar o princípio do pagamento em detrimento da insolvência.
O Min. Público apresentou contra-alegações, nas quais se pronunciou pela confirmação do decidido.
Cumpre então apreciar e decidir.
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FUNDAMENTAÇÃO
O âmbito do recurso, sempre ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – cfr. arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do Novo Cód. do Proc. Civil.
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A questão a decidir é a seguinte:
Apurar se no presente caso, em que foram declaradas insolventes pessoas singulares que não exploraram qualquer empresa no período de três anos anterior à data de início do processo de insolvência, é admissível a apresentação de plano de insolvência.
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Os elementos factuais e processuais relevantes para o conhecimento do presente recurso são aqueles que constam do precedente relatório, para o qual se remete.
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Passemos à apreciação jurídica.
O título XII do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (C.I.R.E.), que abrange os arts. 235º a 266º, tem a epígrafe “Disposições específicas da insolvência de pessoas singulares” e desdobra-se em dois capítulos:
- Capítulo I – “Exoneração do passivo restante” (arts. 235º a 248º);
- Capítulo II – “Insolvência de não empresários e titulares de pequenas empresas” (arts. 249º a 266º).
Por seu turno, o capítulo II comporta três secções:
- Secção I – “Disposições Gerais” (arts. 249º e 250º);
- Secção II – “Plano de pagamento aos credores” (arts. 251º a 263º);
- Secção III – “Insolvência de ambos os cônjuges” (arts. 264º a 266º).
O art. 250º, com a epígrafe “Inadmissibilidade de plano de insolvência e de administração pelo devedor”, estatui o seguinte:
«Aos processos de insolvência abrangidos pelo presente capítulo não são aplicáveis as disposições dos títulos IX e X
Isto é, não é aplicável neste processo o regime do plano de insolvência (arts. 192º a 222º - Título IX), nem o regime da administração pelo devedor (arts. 223º a 229º - Título X).
Sucede que os “processos de insolvência abrangidos pelo presente capítulo” são os que vêm mencionados no art. 249º, onde se preceitua o seguinte:
«1. O disposto neste capítulo é aplicável se o devedor for uma pessoa singular e, em alternativa:
a) Não tiver sido titular da exploração de qualquer empresa nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência;
b) À data do processo:
i) Não tiver dívidas laborais;
ii) O número dos seus credores não for superior a 20;
iii) O seu passivo global não exceder €300.000.
2. Apresentando-se marido e mulher à insolvência, ou sendo o processo instaurado contra ambos, nos termos do artigo 264º, os requisitos previstos no número anterior devem verificar-se relativamente a cada um dos cônjuges
Na alínea a) do nº 1 prevê-se a aplicabilidade do regime em causa a pessoas singulares não empresários, sendo que no caso de os devedores serem marido e mulher tal requisito deve verificar-se em relação a cada um deles, conforme decorre do seu nº 2.
Por outro lado, na alínea b) do nº 1 prevê-se a aplicabilidade do regime em causa a titulares de pequenas empresas. A noção de pequena empresa depende do preenchimento dos requisitos constantes das suas subalíneas, requisitos que são de verificação simultânea[1] e que, se os devedores forem marido e mulher, e ambos empresários, se têm de verificar relativamente a cada um deles.
Deste modo, tal como se escreve no Acórdão da Relação do Porto de 21.3.2011 (proc. nº 306/09.3 TBMBR.P1, disponível in www.dgsi.pt.), o regime previsto no capítulo II do título XII do CIRE aplica-se a:
a) – devedores que sejam pessoas singulares e que não tenham sido empresários (titulares de exploração de qualquer empresa) nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.
Neste caso, basta aquela qualidade das pessoas para ser aplicável o regime em causa – portanto, e ao contrário do que se estabelece para os pequenos empresários na alínea b) do nº1, tal regime é aplicável a tais pessoas mesmo que o número dos seus credores seja superior a 20 ou o seu passivo global exceda 300.000,00€ [ pois para além de o preceito dizer respeito a duas categorias diferentes de pessoas (não empresários por um lado e titulares de pequenas empresas por outro), na linha do que expressamente se refere sob a epígrafe do capítulo em causa, é o que decorre da expressão “em alternativa” utilizada no corpo do seu número 1].
b) – devedores que sejam pessoas singulares e, sendo empresários, à data do início do processo reúnam simultaneamente os seguintes requisitos:
- não tenham dívidas a trabalhadores por sua conta;
- o número dos seus credores não seja superior a 20;
- o seu passivo global não exceda 300.000,00€.
Conforme já acima se referiu, estatui-se no art. 250º do CIRE que aos processos de insolvência abrangidos por este capítulo II do título II não são aplicáveis as disposições dos títulos IX e X, donde decorre, aliás, em consonância com a sua epígrafe, a inadmissibilidade de plano de insolvência, previsto no título IX.
A razão de ser desta exclusão reside no facto de, para os devedores aqui em causa, a lei prever uma figura sucedânea: o plano de pagamentos, a que se reportam os arts. 251º a 263º do C.I.R.E.[2]
Acontece que na situação “sub judice” o processo de insolvência diz respeito a devedores que, para além de serem pessoas singulares, não exploraram qualquer empresa nos três anos anteriores ao início deste processo.
Por conseguinte, face ao que decorre das disposições conjugadas dos arts. 249º e 250º do C.I.R.E., não é, neste caso, legalmente admissível a apresentação de plano de insolvência.
Porém, apesar do que se mostra estatuído no art. 250º, existe doutrina que defende que as regras previstas nos títulos IX e X do C.I.R.E. poderão ser aplicadas aos devedores pessoas singulares não empresários ou titulares de pequenas empresas, no caso de não ser aprovado plano de pagamentos, sendo esse o sentido do art. 262º[3] [cfr. José Alberto Vieira, “Insolvência de não empresários e titulares de pequenas empresas”, in “Estudos em memória do Professor Doutor José Dias Marques”, Almedina, 2007, pág. 256], ou se os devedores em causa não recorrerem ao plano de pagamentos, optando pelo modelo comum do processo de insolvência [cfr. Carvalho Fernandes e João Labareda, “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, 2ª ed., pág. 927; Ana Prata, Jorge Morais Carvalho e Rui Simões, “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas”, 2013, pág. 685].
Estes últimos autores, criticando decisões jurisprudenciais contrárias a esta posição, escrevem que as mesmas “não têm em conta a razão de ser da existência de um capítulo especial relativo à insolvência de não empresários e titulares de pequenas empresas, que visa a proteção do devedor, aumentando as suas possibilidades de atuação no âmbito do processo e não a sua restrição. Este entendimento encontra maior apoio na sequência da Lei n.º 16/2012, que veio conceder, pelo menos nominalmente, clara prioridade à recuperação da empresa em detrimento da insolvência. Neste sentido, não releva qual o mecanismo utilizado, devendo aceitar-se a aprovação de um plano de recuperação, nos termos gerais, nos casos em que não exista plano de pagamento aos credores.”
Ora, os recorrentes, nas suas alegações, procuram apoio nesta posição doutrinária de modo a sustentarem a admissibilidade “in casu” do plano de insolvência.
A nosso ver sem razão.
Com efeito, tal como se afirma no Acórdão da Relação de Lisboa de 23.4.2015 (proc. 3142/12.6 YXLSB-F.L1-2, disponível in www.dgsi.pt.) “tal tese contraria aquele que parece ser o sentido claro do texto legal, deparando assim com o obstáculo anteposto pela parte final do nº 3 do art. 9º do Cód. Civil (na fixação do sentido e alcance da lei o intérprete presumirá que o legislador “soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”), retirando, aliás, sentido útil a tal texto.”
Por isso, as decisões jurisprudenciais vem-se mostrando unânimes no sentido de que nas insolvências dos devedores que reúnam as características previstas no art. 249º do C.I.R.E. não é admissível a apresentação de plano de insolvência [cfr. Ac. Rel. Porto de 21.3.2011, proc. 306/09.3 TBMBR.P1; Ac. Rel. Lisboa de 23.4.2015, proc. 3142/12.6 YXLSB-F.L1-2; Ac. Rel. Coimbra de 28.4.2010, proc. 523/09.6 TBAGD-C.C1; Ac. Rel. Coimbra de 7.9.2010, proc. 570/10.5 TBMGR-A.C1; Ac. Rel. Coimbra de 10.2.2015, proc. 81/14.0 TBTBU-D.C1; Ac. Rel. Guimarães de 8.1.2013, proc. 3094/11.0 TBGMR-H.G1, todos disponíveis in www.dgsi.pt.]
Posição que é também defendida na doutrina por Isabel Alexandre [in “O processo de insolvência: pressupostos processuais, tramitação, medidas cautelares e impugnação da sentença”, in Themis, 2005, edição especial, “Novo direito da insolvência”, pág. 61], que escreve: “Nem em todos os processos de insolvência é admissível a existência de um plano de insolvência: concretamente, nos processos de insolvência de não empresários e titulares de pequenas empresas (artigo 250º do CIRE).”[4]
Deste modo, em consonância com aquele que tem vindo a ser o entendimento da nossa jurisprudência, há que concluir em termos semelhantes aos da decisão recorrida, onde se considerou que, apesar do sentido de voto – favorável - manifestado pelos credores em sede de Assembleia de Apreciação do Relatório, não é admissível, neste caso, a apresentação de plano de insolvência por força do disposto no art. 250º do C.I.R.E.
Impõe-se, pois, confirmar a decisão recorrida, que se limitou a aplicar esta disposição legal, da qual decorre a inadmissibilidade legal do plano de insolvência nas situações de insolvência de pessoas singulares, não se vislumbrando que tal decisão possa significar qualquer violação do princípio da recuperação financeira do devedor.
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Sumário (da responsabilidade do relator – art. 663º, nº 7 do Cód. do Proc. Civil):
- Nos processos de insolvência de pessoas singulares, face ao preceituado no art. 250º do C.I.R.E., não é admissível a apresentação de plano de insolvência.
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DECISÃO
Nos termos expostos, acordam os juízes que constituem este tribunal em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pelos insolventes B… e C…, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pelos recorrentes, sem prejuízo de apoio judiciário.

Porto, 15.9.2015
Rodrigues Pires
Márcia Portela
Maria de Jesus Pereira
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[1] Cfr. Carvalho Fernandes e João Labareda, “CIRE Anotado”, 2ª ed., pág. 925.
[2] Cfr. Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit., pág. 927.
[3] É a seguinte a redacção deste preceito: «Se o plano de pagamentos não obtiver aprovação, ou a sentença de homologação for revogada em via de recurso, são logo retomados os termos do processo de insolvência através da prolação de sentença de declaração de insolvência nos termos dos artigos 36º ou 39º, consoante o caso
[4] Ainda na doutrina em idêntico sentido cfr. Menezes Leitão, “Direito da Insolvência”, 3ª ed., págs. 337/8, Alexandre de Soveral Martins, “Um curso de direito de insolvência”, 2015, págs. 14, 15, 399, 400, 564 e 565 (nota 8) e E. Santos Júnior, “O plano de insolvência, algumas notas”, in “Estudos em memória do Professor Doutor José Dias Marques”, Almedina, 2007, págs. 126/7.