Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
505/22.2T8ALB.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FILIPE CAROÇO
Descritores: PROCEDIMENTO ESPECIAL DE DESPEJO
DIFERIMENTO DA DESOCUPAÇÃO DO IMÓVEL
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: RP20221027505/22.2T8ALB.P1
Data do Acordão: 10/27/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - No incidente de diferimento da desocupação de imóvel arrendado para habitação, a sua procedência depende da prova de determinados pressupostos legais previstos no art.º 15º-N do NRAU, que não se podem ter por verificados se o requerente --- onerado com o respetivo ónus da prova --- não demonstrou os factos necessários ao seu preenchimento.
II - A presunção a que se refere o nº 2, al. a) daquele normativo é ilidível mediante prova em contrário.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 505/22.2T8ALB.P1 – 3ª Secção (apelação)
Comarca de Aveiro – Juízo de Competência Genérica de Albergaria-a-Velha – J1

Relator: Filipe Caroço
Adjuntos: Desemb. Judite Pires
Desemb. Aristides Rodrigues de Almeida

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I.
Na sequência de procedimento de despejo junto do Balcão Nacional de Arrendamento, com fundamento em resolução do contrato por falta de pagamento de rendas por período superior a três meses, que o locador AA instaurou contra BB e CC, requereram estes o diferimento da desocupação do imóvel arrendado pelo prazo de cinco meses, alegando essencialmente que este constitui a sua casa de morada da família que inclui também duas filhas da Requerente mulher, ainda estudantes e a seu cargo, que atravessam dificuldades económicas, sendo que, no período compreendido entre março de 2000 e fevereiro de 2022, as despesas do agregado eram apenas suportadas pelo rendimento do BB, no valor mensal de € 419,00, proveniente do Fundo de Desemprego, por então se encontrar na situação de desempregado. Atualmente, desde fevereiro de 2022, que trabalha como cantoneiro num programa de Emprego-Inserção, mediante a remuneração mensal de € 566,19, o mesmo sucedendo com a Requerente CC, no âmbito do mesmo programa e com a mesma remuneração, desde junho de 2022, sendo que, até então, nunca exercera qualquer atividade remunerada.
Reconhecem o vencimento e a falta de pagamento das rendas ao locador relativas aos meses de junho de 2021 em diante, sendo sua intenção obter um acordo com o mesmo quanto a essa matéria.
Fizeram culminar o seu requerimento com o seguinte pedido:
«Nos termos expostos, requer a V. Exa., a concessão do diferimento da desocupação do imóvel arrendado, pelo prazo de 5 (cinco) meses, com base nos fundamentos supra descritos, designadamente que, a resolução operada pelo senhorio se deve à falta de pagamento de rendas, nos termos do n.º 3 do artigo 1083º do Código Civil, bem como que tal falta de pagamento resulta da carência de meios dos requerentes, a qual se presume relativamente a todos aqueles que beneficiam do Rendimento Social de Inserção, com resulta da alínea a) do n.º 2 do artigo 15º-N do NRAU.»
No dia 28.7.2022, o AA contestou o incidente, alegando, em suma, que os Requerentes se colocam intencionalmente numa situação de incumprimento, tendo optado por uma habitação cuja renda não é compatível com as suas possibilidades económicas.
Mais defendeu que não foram alegados factos essenciais para a procedência do pedido, nomeadamente a inexistência de outra habitação para onde possam ir viver.
Manifestou ainda o seu inconformismo com a conduta dos Requerentes, alegando que nada pagaram – tendo a dívida atingido já cerca de € 6.000,00 e juros de mora --- apesar de ter decorrido mais de um ano desde a data da notificação da resolução do contrato de arrendamento e se encontrarem a receber uma quantia mensal de € 1.132,38 desde junho de 2022.
Impugnou grande parte da matéria alegada no pedido de diferimento, designadamente despesas e recebimento do rendimento proveniente do Fundo de Desemprego.
Concluiu que, em todo o caso, nunca se lhes poderia diferir a desocupação do imóvel por prazo superior a um mês, devendo o ser mesmo indeferido, por falta de fundamento.
Produzida prova, o tribunal proferiu sentença que culminou com o seguinte dispositivo, ipsis verbis:
«Por tudo o exposto, decidimos julgar improcedente o incidente suscitado por BB e CC e, consequentemente, indeferimos o pedido de diferimento da desocupação do imóvel arrendado para habitação.
Custas pelos requerentes, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário de que beneficiam – n.ºs 1 e 2 do art. 527.º do Código de Processo Civil.
(…)»
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Inconformados, os Requerentes apelaram da sentença, fazendo culminar as suas alegações com as seguintes CONCLUSÕES:
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Defenderam, assim, a revogação da sentença e a prolação de acórdão que defira a desocupação do imóvel por prazo inferior a cinco meses, por razões sociais imperiosas dos Requerentes.

O recorrido declarou prescindir do prazo de contra-alegações.
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Foram colhidos os vistos legais.
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II.
O objeto do recurso está delimitado pelas conclusões da apelação dos Requerentes, acima transcritas, sendo que se apreciam apenas as questões invocadas e relacionadas com o conteúdo dos atos recorridos e não matéria nova, exceção feita para o que for do conhecimento oficioso (art.ºs 608º, nº 2, 635º e 639º do Código de Processo Civil).
Somo chamados a decidir se:
1. Ocorre erro de julgamento na decisão proferida em matéria de facto;
2. Há fundamento para diferimento da desocupação do imóvel e, na afirmativa, qual seja o respetivo período de tempo.
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III.
A instância recorrida deu como provada a seguinte factualidade[1]:
1) Por Contrato de Arrendamento para Fins Habitacionais, de duração limitada, celebrado em 10 de Fevereiro de 2020, entre o Senhorio AA e o Inquilino BB, foi dado de arrendamento a fração autónoma designada pela letra “G” sita na Avenida ..., ..., ..., Freguesia ..., concelho de Albergaria-a-Velha, inscrita na matriz sob o n.º ....
2) Tal arrendamento foi feito pelo prazo de um ano, com início em 15 de Fevereiro de 2020 e seu termo no dia 14 de Fevereiro de 2021, considerando-se prorrogado por iguais e sucessivos períodos de tempo, se não for denunciado, por qualquer das partes, nos termos e no prazo legal.
3) Foi fixada a renda mensal, a vigorar nos primeiros doze meses subsequentes à celebração, no montante de € 400,00 (quatrocentos euros),
4) Com vencimento até ao dia oito do mês imediatamente anterior àquele a que disser respeito, mediante transferência bancária para a conta do Banco 1..., de que o senhorio é titular, cujo IBAN foi indicado no contrato de arrendamento.
5) O imóvel arrendado constitui a casa de morada de família dos requerentes, que habitam com o seu agregado familiar composto por quatro pessoas, designadamente os requerentes BB e CC, e as filhas da requerente mulher, DD e EE, respetivamente, nascidas em .../.../2003 e .../.../2004.
6) O requerente BB foi internado na UCIC a 13/2/2021 com quadro de miopericardite aguda, tendo sido aconselhado evitar esforços e exercício físico nos seis meses subsequentes.
7) O requerente BB no âmbito da Medida Contrato Emprego-Inserção +, em 23.02.2022 celebrou um Contrato de Emprego-Inserção + com a Junta de Freguesia ..., para desempenhar as funções de cantoneiro de limpeza, onde aufere a quantia de €: 566,19 [quinhentos e sessenta e seis euros e dezanove cêntimos].
8) A requerente CC, no início do mês de junho (ano 2022), também celebrou um Contrato de Emprego-Inserção + com a Junta de Freguesia ..., para desempenhar as funções de cantoneira de limpeza, onde aufere a quantia de €: 566,19 [quinhentos e sessenta e seis euros e dezanove cêntimos].
9) As filhas da requerente no ano letivo de 2021/2022 eram estudantes.
10) A filha DD frequentava o Curso ... e EE frequentava o 12.º ano do Curso ....
11) Os requerentes não liquidam a renda referente ao contrato de arrendamento desde junho de 2021.
12) Em 14/9/2021 o requerente BB foi notificado da resolução do contrato de arrendamento pelo senhorio, com fundamento em mora no pagamento da renda superior a três meses, mediante notificação judicial avulsa efetuada por sr. Agente de Execução, tendo declarado no ato que “vai agir judicialmente contra o senhorio”.
13) Em 16/11/2021 a requerente CC foi notificada da resolução do contrato de arrendamento pelo senhorio, com fundamento em mora no pagamento da renda superior a três meses, mediante notificação judicial avulsa efetuada por sr. Agente de Execução, tendo declarado no ato que “quer entregar o imóvel, mas não está a ser fácil encontrar imóveis disponíveis e os que aparecem são com rendas muito altas.
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Consignou-se ali a seguinte matéria como não provada e relevante[2]:
a) Os requeridos não têm alternativa de habitação.
b) No período compreendido entre março de 2020 até fevereiro de 2022, apenas o rendimento proveniente do fundo de desemprego do requerente BB no montante de €: 419,00 (quatrocentos e dezanove euros) mensais suportaram com todas as despesas do agregado familiar.
c) Em fevereiro de 2020 a entidade patronal (K... – empresa de trabalho temporário) não renovou o contrato de trabalho, ficando o requerente BB desempregado, situação que se manteve até ao presente ano (21.02.2022).
d) Sendo que a esposa e aqui requerente CC nunca exerceu qualquer atividade remunerada, como tal não auferia qualquer rendimento.
e) À data do contrato referido em 1), nenhum dos restantes elementos do agregado familiar auferia quaisquer rendimentos.
f) As filhas dos requerentes ainda se encontram a cargo dos requerentes.
g) O requerente marido tem um encargo mensal de €: 49,44 (quarenta e nove euros e quarenta e quatro cêntimos) para pagamento de assistência jurídica no referente ao processo de alimentos que corre termos no Tribunal da Suíça do filho menor de 8 (oito) anos que reside com a mãe naquele país.
h) Os requerentes alcançaram acordo de pagamento da dívida com a E... e a N....
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O mérito do recurso
1. Erro de julgamento na decisão proferida em matéria de facto
Os apelantes deram suficiente cumprimento aos pressupostos legais da impugnação da decisão, ao abrigo do art.º 640º, nº 1, al.s a), b) e c) e nº 2, al. a), do Código de Processo Civil.
Pretendem que a matéria das al.s a) e f) dos factos dados como não provados passe a ser considerada provada, com base nos documentos nºs 7 e 8 juntos com o requerimento inicial e nos depoimentos testemunhais de FF e GG, tendo transcrito, na motivação das alegações, algumas passagens dessas prestações.
São eles (acima já transcritos):
a) Os requeridos não têm alternativa de habitação.
(…)
f) As filhas dos requerentes ainda se encontram a cargo dos requerentes.

Pretendem ainda os apelantes que sejam dados como provados dois factos relativamente aos quais o tribunal não fez referência no acervo da matéria dada como não provada, quais sejam:
1. No período compreendido entre março de 2020 e fevereiro de 2022 os Requerentes auferiram prestações sociais, sempre de montantes inferiores ao salário mínimo nacional.
2. À Requerente CC foi atribuído o estatuto de vítima de violência doméstica em momento anterior ao início do presente processo.
Para prova destes novos pontos aduzem os depoimentos da testemunha FF e os documentos nºs 4, 5 e 6 juntos com o requerimento inicial.
Foi ouvida toda a prova oralmente produzida, com vista à melhor compreensão e adequado conhecimento do caso.
A ideia geral que fica é a de que o agregado familiar dos Requerentes, composto por eles e pelas duas filhas da Requerente, estudantes, foi residir para a ..., Albergaria-a-Velha, no âmbito de uma medida de apoio à vítima de violência doméstica (a CC).
A testemunha FF, assistente social ao serviço de uma associação para o desenvolvimento cultural da ..., processava o atendimento do acompanhamento social e, nessa atividade, conheceu de perto os Requerentes, fazendo o seu atendimento, evidenciando um conhecimento muito expressivo da maior parte dos apoios de que, ao longo do tempo beneficiaram, entre fevereiro de 2020, quando foram viver para aquela freguesia, e fevereiro de 2022, quando deixaram de contactar a depoente.
Tornou-se evidente, ao longo do seu depoimento que a testemunha estava munida de elementos muito precisos relativos aos contactos que estabeleceu com os Requerentes ao longo do tempo, da colaboração que lhes prestou na obtenção de apoios sociais, designadamente junto da Câmara Municipal e da Segurança Social, entidade com a qual aquela associação tinha um protocolo para o desenvolvimento da subsidiação. Recolhia dos Requerentes dados relativos à sua situação social e profissional, fosse com base nas suas declarações, fosse também pela recolha de documentos, teve uma ação preponderante e ativa quer na elaboração de requerimentos, quer na vigilância e acompanhamento da situação familiar, referindo-se aos vários tipos de apoio e respetivos valores ao longo dos cerca de dois anos de contactos e colaboração, entre eles, apoio à renda concedido pela Câmara Municipal, subsídios de desemprego, pensão de alimentos, abonos de família, apoio extraordinário a trabalhadores na pandemia Covid-19, programa alimentar, apoio social escolar, rendimento social de inserção, e apoio medicamentoso ocasional, alguns deles não simultâneos.
A referida assistente social deu conta de que, com os apoios de que, em cada momento, o agregado familiar beneficiou, seria possível efetuar o pagamento de cada valor de renda mensal, contanto que o casal fizesse uma gestão criteriosa e responsável das despesas familiares.
A testemunha GG é nora do Requerido e, no seu depoimento, não se debruçou sobre a matéria dos apoios sociais, mas sim do desinteresse dos Requerentes em pagar a renda devida ao seu sogro e da falta de qualquer pagamento, ainda que parcial, desde junho de 2021.
Pela forma explicada e justificada com que depuseram, aquelas testemunhas são merecedoras de credibilidade quanto à generalidade das realidades a que se referiram.
Vejamos, concretamente, os pontos da matéria impugnada.
Quanto às al.s a) e f):
De facto, não foi provado que os recorrentes não têm alternativa de habitação. Ainda que o mercado de arrendamento possa acusar alguma limitação de habitações disponíveis, elas existem no mercado, quiçá habitações mais económicas ainda que menor qualidade ou dimensão possam ter. O que se notou foi que os Requeridos se acomodaram à sua situação de vida, não procurando trabalho, não se preocupando em procurar nova habitação nem e pagar a renda.
A matéria da al. a) não merece qualquer alteração.
A matéria da al. f) deve ser dada como provada, como resulta dos documentos nºs 7 e 8 juntos com o requerimento inicial do incidente (certidões de matrícula das duas filhas da Requerente), que, aliás, foi, de algum modo, confirmado pela testemunha FF que, apesar de não conhecer bem as meninas, tem a perceção das suas idades, de que são estudantes, não obstante uma delas ter trabalhado, a título precário e ocasional, numa pastelaria durante uma das suas férias. É do seu conhecimento que ambas residem com os Requerentes.
A matéria da al. f) tranita para o acervo de factos provados:
14) As filhas da Requerente CC ainda se encontram a cargo dos Requerentes.

Os factos novos
1. No período compreendido entre março de 2020 e fevereiro de 2022 os Requerentes auferiram prestações sociais, sempre de montantes inferiores ao salário mínimo nacional.
Esta matéria não foi objeto de prova documental, o que releva, da parte dos Requerentes, algum desinteresse na sua demostração. Mas, mais do que isso, não foi alegada nos termos que (só) agora os Requerentes pretendem que sejam tidos como provados.
A Sr.ª Assistente social chegou a quantificar alguns dos apoios que de que os Requerentes beneficiavam em 2020, tendo atingido, segundo as nossas contas, o valor mensal, em 2020, de € 1.196,95, mas sem garantia de que estejam contabilizados todos os apoios/subsídios à família, designadamente o valor dos bens recebidos no âmbito do programa alimentar e do apoio social escolar das filhas (p. ex., passes sociais, alimentação nas escolas).
Esta matéria não pode ser dada como provada.

2. À Requerente CC foi atribuído o estatuto de vítima de violência doméstica em momento anterior ao início do presente processo.
Este ponto corresponde à realidade afirmada no depoimento desinteressado da Sr.ª Assistente social. Ela foi residir par a ... com as filhas ao abrigo do programa de apoio às vítimas de violência doméstica. Tal facto não foi contrariado por qualquer outro meio de prova. Por se tratar de um facto instrumental, dá-se agora como provado, apesar de não alegado, ao abrigo do art.º 5º, nº 2, al. a) do Código de Processo Civil):
2. À Requerente CC foi atribuído o estatuto de vítima de violência doméstica em momento anterior ao início do presente processo.
Procede parcialmente esta primeira questão da apelação.
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2. Há fundamento para diferimento da desocupação do imóvel?
À semelhança do que acontece na ação executiva também para a entrega de coisa certa relativamente ao imóvel arrendado para habitação (art.ºs 864º em 865º do Código de Processo Civil) e com idênticos fundamentos, na ação especial de despejo, dentro do prazo de oposição, “o arrendatário pode requerer ao juiz do tribunal judicial da situação do locado o diferimento da desocupação, por razões sociais imperiosas (…)” (art.º 15º-N, nº 1, do NRAU[3], introduzido pelo art.º 5º da Lei nº 31/2012, de 14 de agosto, com a Retificação nº 59-A/2012, de 12 de outubro).
O juiz decide o incidente de acordo com o seu prudente arbítrio, devendo ter em consideração “as exigências da boa-fé, a circunstância de o arrendatário não dispor imediatamente de outra habitação, o número de pessoas que habitam com o arrendatário, a sua idade, o seu estado de saúde e, em geral, a situação económica e social das pessoas envolvidas” (nº 2 daquela disposição legal).
Em todo o caso, o diferimento da desocupação não pode ter lugar se não se verificar algum dos seguintes fundamentos:
a) Que, tratando-se de resolução por não pagamento de rendas, a falta do mesmo se deve a carência de meios do arrendatário, o que se presume relativamente ao beneficiário de subsídio de desemprego, de valor igual ou inferior à retribuição mínima mensal garantida, ou de rendimento social de inserção;
b) Que o arrendatário tem deficiência com grau comprovado de incapacidade igual ou superior a 60 /prct..
Assim, o deferimento da desocupação do imóvel, no caso de resolução por não pagamento de rendas, não pode ser decretado sem que se demonstre um nexo causal entre aquela falta de pagamento da contrapartida do direito à ocupação do imóvel com base no contrato (a renda) e uma situação de carência de meios do arrendatário para efetuar esse pagamento. Essa falta de meios presume-se no caso do arrendatário ser beneficiário do subsídio de desemprego de valor igual ou inferior à retribuição mínima mensal garantida, ou de rendimento social de inserção.
Porém, aquela presunção é ilidível, mediante prova em contrário (art.º 350º, nº 2, do Código Civil). Pode acontecer, de facto, por várias razões, que um inquilino beneficiário de subsídio de desemprego inferior à RMMG ou de RSI tenha condições económicas para suportar o valor da renda, seja, desde logo, por tal subsidiação ter sido obtida de forma fraudulenta, com ocultação de outros rendimentos ou bens patrimoniais, o agregado familiar dispor de outros rendimentos relevantes ou ter uma despesa muito reduzida, seja por se tratar de um valor de renda de tal modo baixo que se torne suportável mesmo por quem beneficie daqueles apoios sociais. Indispensável é que a falta de pagamento da renda se deva a carência de meios do arrendatário, seja essa situação presumida ou comprovada.
No essencial, a decisão recorrida considerou que não se verificam os pressupostos legais, previsto no art.º 15º-N do NRAU, sobre os quais assenta o direito ao diferimento da desocupação do prédio arrendado destinado à habitação.
No diferimento de desocupação em causa, há que conciliar o direito ao despejo do senhorio com direitos de personalidade fundamentais do inquilino, como são os direitos ao sossego e ao repouso, à reserva da intimidade da vida pessoal, familiar e doméstica no domicílio, para o que releva o direito fundamental à habitação. Deve o tribunal ajuizar no seu prudente arbítrio, balanceando os interesses em conflito, de inquilino e senhorio, discorrendo sobre os elementos de facto concretos, balizando-os pelos critérios normativos naquele nº 2 do art.º 15º-N.
O ónus da alegação e da prova do fundamento do diferimento é dos Requerentes, pois que a eles assiste o direito (art.º 342º, nº 1, do Código Civil e art.º 5º, nº 1, do Código de Processo Civil).
Como é sabido, o nosso sistema jurídico-processual reparte o ónus da prova entre autor e réu pelo modo como este princípio geral está consignado no art.º 342º do Código Civil: A quem invoca um direito em juízo incumbe fazer a prova dos factos, positivos ou negativos, constitutivos do direito alegado ("actore non probante reus absolvitur"); à parte contrária compete provar os factos impeditivos, modificativos ou extintivos desse direito ("reus excipiendo fit actor").
Segundo Vaz Serra[4], “a prova deve caber àquele que carece dessa prova para que o seu direito seja reconhecido. É que o juiz não pode aplicar uma norma jurídica, se não se fizer a prova dos requisitos constitutivos da hipótese de facto (Tabestand) pressuposta por essa norma para sua aplicação; e, portanto, o ónus da alegação e da prova pertence à parte a cujo direito, para se efetivar, deve aplicar-se a norma, donde deriva que cada uma das partes tem esse encargo relativamente aos factos de que depende a aplicação das normas que lhe são favoráveis. Por conseguinte, se a lei contém uma regra e uma exceção, a parte, cujo direito se apoia na regra, deve provar os factos integradores da hipótese nela prevista, e não já os integradores da hipótese prevista na exceção. Este critério faz com que o encargo da prova caiba precisamente à parte que se encontra em melhor situação para a produzir, e, assim, constitui um estímulo para que a prova seja produzida pela parte que mais perfeitamente pode auxiliar a descoberta da verdade: mostra a experiência, que, em regra, quem tem a seu favor certo facto se acautela com meios de prova dele”.
É de factos concretos que tratamos; são eles que refletem a realidade demonstrável. É sobre os factos que verte o Direito; é com aqueles que este se realiza em cada caso concreto.
Como se refere no acórdão da Relação de Lisboa de 8.5.2018[5], “estão em causa critérios com forte componente de discricionariedade, suportados por motivos de oportunidade e conveniência, em que o Tribunal se baseia para decidir, de forma homóloga à jurisdição voluntária.
E terão de ser demonstrados a boa-fé, aqui psicológica, que não, apenas jurídica, do arrendatário (…).
(…) importa relevante e decisivamente aferir o quadro sócio-económico do Requerido/recorrente à data em que se coloca a questão do diferimento da desocupação do locado, isto na medida em que o arrendatário só pode invocar “razões sociais imperiosas” existentes nessa data. Neste sentido cf. o acórdão do T. Rel. do Porto de 13.07.2000, no proc. nº 0030558, com sumário disponível em www.dgsi.pt/jtrp., nomeadamente, a circunstância de não dispor imediatamente de outra habitação, o número de pessoas que com ele habitam, a sua idade, o seu estado de saúde e, em geral, a situação económica e social das pessoas envolvidas (cf. 1ª parte do nº 2 deste art. 15º-N do NRAU)”.
Quando os recorrentes deduziram o pedido de diferimento da desocupação do imóvel, em finais de junho de 2022, já se encontravam ambos a trabalhar, o BB desde 23.2.2022, e a CC desde o início de junho do mesmo ano, no âmbito da Medida Contrato Emprego-Inserção + com a Junta de Freguesia ... para desempenharem as funções de cantoneiros de limpeza, mediante a remuneração mensal individual de € 566,19, com o rendimento total do trabalho de € 1.032,38. Não está provado e tudo indica que, pelo menos, desde que iniciaram aquela prestação de trabalho não beneficiaram mais de subsídio de desemprego ou RSI.
As duas filhas da CC são estudantes e estão a cargo dos Requerentes, integrando o mesmo agregado familiar. No entanto, desconhecemos o valor das suas despesas, e a situação de doença descrita no ponto 6 dos factos provados refere-se apenas à prevenção de esforços físicos pelo recorrente até agosto de 2021, não relevando em matéria de mudança de residência.
Não está provado que os Requerentes não encontram imediatamente no mercado do arrendamento outra casa para habitar, porventura até por um valor de renda mais reduzido, nomeadamente conforme a qualidade, dimensão e localização da casa/fração autónoma. É de realçar que os recorrentes não pagam a renda desde junho de 2021. Nem depois de terem iniciado a prestação de trabalho (cada um a seu tempo) efetuaram o pagamento das rendas, mesmo por qualquer valor parcial, omissão que revela bem a sua má fé no cumprimento daquela que é a sua principal obrigação contratual (art.ºs 762º e 1038º, al. a), do Código Civil), conformando-se uma acumulação de rendas vencidas na ordem de vários milhares de euros. E também não provaram que, desde aquela falta de pagamento até à atualidade, alguma vez tivessem procurado uma outra casa para habitarem, mesmo depois da resolução do contrato de arrendamento, assim violando persistentemente o direito do Requerido ao rendimento que lhe assistia por força daquele negócio, e aproveitando-se, oportunisticamente, para habitarem no espaço locado sem qualquer pagamento enquanto tal fosse possível.
No essencial, não está demonstrado que os Requerentes estivessem dependentes de subsídio de desemprego de valor igual ou inferior à RMMG ou de RSI, tal como não provaram o nexo causal entre uma situação de carência económica e a falta de pagamento das rendas. Um comportamento de boa fé impunha que os recorrentes tivessem pagado, ao menos parcialmente, as rendas em dívida e tivessem diligenciado por, de alguma forma, acautelarem e respeitarem o interesse do senhorio.
Os factos provados não preenchem os pressupostos de que o art.º 15º-N, nºs 1 e 2, do NRAU, faz depender o diferimento da desocupação da casa de habitação dos Requerentes, pelo que não pode deixar de ser indeferida a sua pretensão.
A apelação não procede.
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SUMÁRIO (art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil):
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IV.
Pelo exposto, acorda-se nesta Relação em julgar improcedente a apelação e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida.
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Custas da apelação pelos recorrentes (art.º 527º, nº 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficiam.
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Porto, 27 de outubro de 2022
Filipe Caroço
Judite Pires
Aristides Rodrigues de Almeida
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[1] Por transcrição.
[2] Por transcrição.
[3] Novo Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pela Lei nº 6/2007, de 27 de fevereiro, sucessivamente alterada, tendo sido a sua última versão (a 11ª alteração) aprovada pela Lei nº 2/2020, de 31 de março.
[4] Provas, Direito Probatório Material, BMJ 110/121.
[5] Proc. 320/17.5T8LSA.C1, in www.dgsi.pt, citando outro acórdão da mesma Relação de 17.3.2016.