Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
8854/07.3TBVNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA CECÍLIA AGANTE
Descritores: INCIDENTE DE HABILITAÇÃO
SUB-ROGAÇÃO NOS DIREITOS DO CREDOR
INTERESSE DIRECTO NA SATISFAÇÃO DO CRÉDITO
Nº do Documento: RP201802218854/07.3TBVNG.P1
Data do Acordão: 02/21/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 813, FLS 117-121)
Área Temática: .
Sumário: I - O termo sucessão, a que alude o artigo 54º/1 do CPC, abrange todos os modos de transmissão das obrigações, mortis causa ou inter vivos, pelo que inclui a sub-rogação legal.
II - Fica sub-rogado nos direitos do credor o terceiro que tiver garantido a obrigação ou quando tiver interesse direto na satisfação do crédito.
III - Tem interesse direto na satisfação do crédito o adquirente do imóvel penhorado que, para evitar a sua venda judicial, paga a quantia exequenda e demais encargos.
IV - Medida em que tem legitimidade ativa para, com base na sub-rogação, deduzir o incidente de habilitação com vista ao prosseguimento dos termos da execução e pagamento dos valores devidos pelo executado.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 8854/07.3TBVNG-B
Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo de Execução do Porto - Juiz 7

Acórdão

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório
Na presente execução, sendo exequentes B... e C... e executado D..., E..., residente na Rua ..., .., .... – ..., ..., Vila Nova de Gaia, veio requerer a sua habilitação, por sub-rogação legal, alegando que adquiriu o imóvel penhorado nesta execução por escritura pública lavrada em 24 de novembro de 2006, fazendo, desde então, uso do mesmo e pagando os respetivos impostos, uma vez que este se encontra registado em seu nome junto da Autoridade Tributária e Aduaneira. Mais alegou que, após ter conhecimento da pendência da execução, verificou que o cheque visado, por si emitido a favor dos exequentes, não havia sido levado à compensação. Como o valor do cheque visado é debitado imediatamente na conta do seu titular, independentemente de vir a ser pago ou não, ficou convencido que tudo havia decorrido normalmente durante estes quase dez anos. Sendo alheio aos contornos que geraram esta situação e tendo procedido ao pagamento da dívida exequenda e demais encargos com o processo, por estar iminente a realização da venda judicial do imóvel, tinha interesse próprio e legítimo em satisfazer o crédito dos exequentes, de forma a evitar que a venda se concretizasse. Ao satisfazer esse crédito, ficou legalmente sub-rogado nos direitos dos exequentes e colocado na titularidade do direito de crédito que pertencia ao credor primitivo. Sucede que parte do valor pago, no montante de €27.012,65 (vinte e sete mil, doze euros, sessenta e cinco cêntimos) corresponde àquilo que era por si devido aos exequentes, pelo que pretende a sub-rogação pelo excedente, no valor de €13.879,66 (treze mil, setenta e nove euros, sessenta e seis cêntimos) e respetivos juros vincendos até integral pagamento por parte do executado. Requereu que por força da sub-rogação legal, uma vez verificado o efetivo pagamento da dívida exequenda, juros, bem como das despesas e honorários com a Agente de Execução nomeada nos autos, seja declarado habilitado no lugar dos exequentes pelo montante de €13.879,66 (treze mil, oitocentos e setenta e nove euros e sessenta e seis cêntimos) e respetivos juros vincendos à taxa legal.

Foi proferida decisão de indeferimento liminar da requerida habilitação de cessionário com base na inexistência de título de aquisição ou de cessão.

Inconformado, o requerente da habilitação recorreu, assim concluindo a sua alegação:
«1- Entende o Recorrente que, ao contrário do decidido na Douta Sentença, deve ser admitido o incidente de habilitação por si deduzido, porquanto demonstrou ter um interesse próprio na satisfação do credito exequendo.
II- Na verdade, sendo proprietário do imóvel penhorado, e perante a iminência da venda e da perda do seu direito de propriedade, o Recorrente viu-se obrigado a proceder ao pagamento do crédito exequendo.
III- Tendo, por isso, ficado, legalmente sub-rogado no direito dos Exequentes, nos termos do artigo 592.º do Código Civil.
IV- A sub-rogação legal é, in casu, uma sucessão no direito dos Exequentes, nos termos previstos no artigo 54.° do CPC.
V- E tendo a sub-rogação legal ocorrido na pendência do processo executivo pode o recorrente deduzir, como fez, o incidente da habilitação, nos termos do disposto nos artigos 351.º a 356.º do CPC
VI- Ao indeferir liminarmente a habilitação do Recorrente para prosseguir a execução como Exequente violou a Douta Sentença os artigos 54.º e 351.º a 356.º do CPC e 592.º do CC.
Termos em que, considerando procedente o presente recurso, revogando a Douta Sentença, admitindo a habilitação do Recorrente e ordenando o prosseguimento do incidente, farão V EXAS Justiça».

Não consta dos autos a resposta à alegação do recorrente.

II. Objeto recursivo
Ante as conclusões alegatórias, que delimitam a temática recursiva [artigos 635º/4 e 639º/1 do Código de Processo Civil (CPC)], trata-se de decidir se, no caso, se verificam os requisitos da pretendida habilitação, o que passa por saber se estamos perante um caso de sub-rogação legal.

III. Fundamentação de facto
1. Por escritura pública de 24/11/2006, D... e esposa declararam vender a E... e este declarou comprar-lhes, pelo preço de 75.000,00 euros, o prédio urbano sito na Rua ..., ... a ..., em ..., concelho de Vila Nova de Gaia, inscrito na respetiva matriz sob o artigo 1144º e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n. º 5165, inscrito a favor dos vendedores pela inscrição G-1, onerado com hipoteca (doc. pedido ao processo principal por este Tribunal da Relação).
2. Em 23/11/2006, E... emitiu a favor de C..., beneficiário da hipoteca, cheque visado no valor de 27,012,65 euros, o qual não foi levantado.
3. Em 30/05/2016, apresentada nota discriminativa de honorários e despesas do Agente de Execução pelo valor de 40.791,81 euros, foi a mesma paga em 28/07/2016 (fls. 5 e 5 vº).
4. O requerente alega ter procedido ao pagamento referido em 3.
5. Deduzindo incidente de habilitação, foi proferida a seguinte decisão: ««De acordo com o disposto no art. 356 º do C. Proc. Civil a habilitação do adquirente ou do cessionário da coisa ou direito em litígio, para com ele seguir a causa, far-se-á nos seguintes termos:
a) Lavrado no processo o termo de cessão ou junto ao requerimento de habilitação o título da aquisição ou da cessão (…).
Uma vez que não foi junto aos autos termo de cessão resta apurar se foi junto o título de aquisição ou da cessão.
Afigura-se- nos que não.
Com efeito, a transmissão da coisa pode fazer-se judicial ou extrajudicialmente, no primeiro caso por termo lavrado no processo e no segundo por documento autêntico ou particular, que deve respeitar as exigências de forma do direito material (artº 577º e 578º do C.Civil).
O requerente não alega a transmissão mas apenas a sub-rogação. Aliás o mesmo chega a alegar inclusive que a quantia exequenda já foi liquidada, pretendendo que por força da sub-rogação os autos prosseguissem para pagamento da quantia que indica, pretensão que salvo melhor opinião o mesmo tem que deduzir em acção declarativa autónoma, pois pressuposto da instauração da habilitação é a pendência da execução.
Por conseguinte, concluindo-se pela inexistência de título de aquisição ou de cessão indefere-se liminarmente a habilitação de cessionário deduzida pelo requerente

IV. Fundamentação de direito
Na ação executiva, a legitimidade é definida pelo próprio título, devendo a execução ser promovida pela pessoa que nele figura como credor e ser instaurada contra a pessoa no título tenha a posição de devedor (artigo 53º/1 do CPC). Já se o título for ao portador, a execução deve ser promovida pelo seu portador (artigo 53º/2 do CPC). Todavia, se tiver havido sucessão no direito ou na obrigação, deve a execução correr entre os sucessores das pessoas que, no título, figuram como credor ou devedor da obrigação exequenda. E é no próprio requerimento para a execução que o exequente deve deduzir os factos constitutivos da sucessão (artigo 54º/2 do CPC). Se a sucessão ocorrer antes da propositura da ação executiva é dispensado o incidente de habilitação, embora o exequente tenha de provar, liminarmente, os correspetivos factos constitutivos. No caso de a sucessão ocorrer na pendência do processo executivo ou se o facto constitutivo da sucessão, embora anterior à propositura da ação, só vier a ser conhecido em momento posterior, é o incidente de habilitação o meio adequado para a fazer valer (artigos 351º/356º do CPC). Nessa situação é também o requerimento executivo o local próprio para o exequente deduzir os factos constitutivos da sucessão.
Discutiu-se se os incidentes de instância tinham cabimento no âmbito do processo executivo, mas é consolidadamente aceita a dedução do incidente de habilitação de adquirente em ação executiva, como, aliás, resulta expressamente da previsão do artigo 356º/1 do CPC[1].
O incidente de habilitação do adquirente do imóvel penhorado transporta a modificação subjetiva da instância, a significar que traz à lide terceiros, alguém que ainda não é parte no processo ou a quem originariamente não respeitava a coisa ou o direito em litígio. Com efeito, o termo sucessão a que alude o predito artigo 54º/1 do CPC é usado em sentido lato e abrange todos os modos de transmissão das obrigações, tanto mortis causa como inter vivos, como sejam a cessão e a sub-rogação[2]. E, neste caso, se a transmissão do crédito ocorrer na pendência da ação executiva ou se o facto constitutivo da sucessão, embora anterior à propositura da ação, só vier a ser conhecido em momento posterior, é o incidente de habilitação o meio processual adequado para fazer intervir na execução os sucessores das pessoas que, no título executivo, figuram como credores.
A situação factual delineada revela a pendência de uma execução contra D..., no decurso da qual E... requereu o incidente de habilitação por ter procedido ao pagamento da quantia exequenda e despesas da execução com vista a obstar à venda do imóvel penhorado, que havia adquirido ao executado em 24/11/2006.
Ignoramos a concreta data da instauração da execução, mas sabemos que a mesma foi interposta no ano de 2007, ou seja, em data posterior à transmissão ao requerente do direito de propriedade sobre o imóvel que veio a ser penhorado a favor dos exequentes. E, por isso, para atalhar à venda do imóvel, alega o requerente que procedeu ao pagamento da quantia exequenda e demais encargos e pretende, por via da sub-rogação legal, alcançar a realização coativa do valor que deveria ter sido suportado pelo executado.
A sub-rogação pode definir-se como a substituição do credor, na titularidade do direito a uma prestação fungível, pelo terceiro que cumpre em lugar do devedor ou faculta a este os meios necessários ao cumprimento. A sub-rogação é, pois, uma forma de transmissão das obrigações, que coloca o sub-rogado na titularidade do mesmo direito de crédito conquanto limitado pelos termos do cumprimento que pertencia ao credor primitivo. Vale por dizer que se verifica a sub-rogação quando um terceiro, que cumpre uma dívida alheia ou que para tal empresta dinheiro ou outra coisa fungível, adquire os direitos do credor originário em relação ao respetivo devedor[3].
Admitem-se duas espécies de sub-rogação: a convencional ou voluntária, que resulta de um acordo entre o terceiro que pagou e o credor primitivo ou entre o terceiro e o devedor, e a sub-rogação legal. Esta, a que importa à situação em apreço, ocorre quando o solvens tenha garantido antes o cumprimento, porque hipotecou, empenhou ou deu como caução bem de sua pertença, bem como nos casos em que o solvens tem interesse direto na satisfação do crédito. E «[D]entro da rubrica geral do cumprimento efetuado no interesse próprio do terceiro cabem, não só os casos em que este visa evitar a perda ou limitação de um direito que lhe pertence, mas também aquele em que o ‘solvens’ apenas pretende acautelar a consistência económica do seu direito»[4]. Estes os ditames impostos pelo artigo 592º do Código Civil que, sob a epígrafe, da sub-rogação legal, estatui que o terceiro que cumpre a obrigação só fica sub-rogado nos direitos do credor quando tiver garantido o cumprimento ou quando, por outra causa, estiver diretamente interessado na satisfação do crédito.
Assim materializado este meio de transmissão de créditos logo concluímos que o requerente pretende, através do incidente de habilita, substituir o credor originário, porque pagou, e, em lugar dele, para poder prosseguir com os termos da execução e obter a realização coativa da prestação que lhe é devida pelo executado. Com o cumprimento da obrigação o requerente alcançou o fim especial do cumprimento, que é o de evitar a execução da garantia e fê-lo no seu próprio interesse, para obstar a que o imóvel penhorado, que adquiriu ao executado, fosse vendido na execução[5]. Na verdade, a sub-rogação tem como efeito que o sub-rogado adquire, na medida da satisfação dada ao direito do credor, os poderes que a este competiam (artigo 593º/1 do Código Civil).
Antevendo a perda do seu direito de propriedade sobre o imóvel, que adquiriu ao executado, pela venda a operar neste processo executivo, tinha o requerente interesse próprio em satisfazer o crédito dos exequentes, para evitar que a venda se concretizasse. Logo, ao dar satisfação ao crédito exequendo e despesas da execução, o requerente ficou legalmente sub-rogado no direito dos exequentes e, assim, colocado na titularidade desse direito através da sub-rogação legal[6].
Aliás, dentre as situações que cabem na previsão normativa, a doutrina particulariza aquelas em que o terceiro visa evitar a perda ou limitação dum direito que lhe pertence e aquelas em que o solvens apenas pretende acautelar a consistência económica do seu direito. E um dos exemplos citados é precisamente o do adquirente da coisa empenhada ou hipotecada, que cumpre pelo devedor, na mera intenção de prevenir a venda e adjudicação do penhor ou a execução do crédito hipotecário[7].
Estão, pois, reunidas condições para o prosseguimento dos legais termos do incidente de habilitação do requerente, o que transporta a revogação da decisão recorrida.

V. Dispositivo
Em face do exposto, na procedência do recurso, acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto em revogar a decisão recorrida e, em consequência, admitem liminarmente o incidente de habilitação do recorrente e determinam o prosseguimento dos seus legais termos.
Sem custas.
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Porto, 21 de fevereiro de 2018.
Maria Cecília Agante
José Carvalho
Rodrigues Pires
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[1] Salvador da Costa, Os Incidentes da Instância, Almedina, 3.ª ed., pág. 258; J. P. Remédio Marques, Curso de Processo Executivo à Face do Código Revisto, Almedina, 2000, pág. 111; in www.dsgi.pt: Acs. RP de 29/04/2014, processo 92/12.0TBGDM-A.P1; RG de 21/05/2013, processo 1626/11.2TBFAF-A.G1.
[2] Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, I, pág. 92; Eurico Lopes Cardoso, Manual da Ação Executiva, Almedina, 3ª ed., 2ª reimp., pág. 99; Anselmo de Castro, A Ação Executiva Singular, Comum e Especial, Coimbra Editora, 2ª ed., pág. 80; J. P. Remédio Marques, ibidem, pág. 111.
[3] Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, Coimbra Editora, 4.ª ed., pág. 560.
[4] João de Matos Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Volume II, Almedina, 4.ªed., págs. 332/333.
[5] In www.dgsi.pt: Ac. RG de 22/02/2017, processo 18/13.3TBVLP-E.G1.S1.
[6] In www.dgsi.pt: Acs. RP de 14/09/2006, processo 0634170; 15/11/2007, processo 0735275; RC de 09/10/2007, processo 73/2000.C1.
[7] Antunes Varela, ibidem, pág. 333.