Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
730/17.8T8PVZ.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MANUEL DOMINGOS FERNANDES
Descritores: ACÇÃO CÍVEL EMERGENTE DE ACIDENTE DE VIAÇÃO
DANO BIOLÓGICO
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
Nº do Documento: RP20210621730/17.8T8PVZ.P1
Data do Acordão: 06/21/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O dano biológico expresso no grau de incapacidade de que o lesado fica a padecer, sendo um dano permanente e interferindo em todos os aspectos da vida do lesado, determina a necessidade de um esforço acrescido para viver e para todas as actividades diárias, levando a uma diminuição da qualidade de vida em geral é igualmente grave independentemente do valor do salário auferido pelo lesado.
II - Daí que quando esse dano não se repercute nos rendimentos auferidos, fazer interferir no cálculo da indemnização o valor do salário de cada um ou o do salário mínimo nacional quando o lesado não exerce ou não tem profissão, pode gerar situações injustas, razão pela qual o ponto de partida para o seu cálculo deve ser o mesmo para todos, em obediência ao princípio da igualdade.
III - Se o lesado, em consequência de um acidente de viação, ficou afectado por um défice funcional permanente de 4 pontos, que á data do acidente tinha 38 anos considera-se justa e equitativa para compensação do dano patrimonial futuro a quantia de 15.000,00€.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 730/17.8T8PVZ.P1-Apelação
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto-Juízo Central Cível da Póvoa de Varzim-J5
Relator: Manuel Fernandes
1º Adjunto Des. Miguel Baldaia
2º Adjunto Des. Jorge Seabra
5ª Secção
Sumário:
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I-RELATÓRIO
B…, residente na Rua …, n.º .., 2.º A, Vila Nova de Famalicão, veio propor a presente acção de processo comum contra C…, S.A., com sede na Avenida …, n.º …, Lisboa, pedindo a sua condenação no pagamento da quantia global de € 235.570,71, acrescida de juros de mora a partir desde a citação, calculados à taxa legal até efectivo pagamento.
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Alega, em síntese, que no dia 22 de Outubro de 2015, conduzia o seu veículo Mercedes matrícula ..-PP-.. encontrava-se parada na Rua …, da União de Freguesias …, por ali se encontrar o sinal Stop, a aguardar a possibilidade de ingressar na faixa de rodagem, quando D…, que conduzia no mesmo sentido o veículo Toyota matrícula ..-..-EH, registado a favor de E…, com seguro na Ré, não parou à aproximação do PP indo embater com a frente na traseira deste.
Em virtude do embate sofreu traumatismo cervical em golpe de chicote, foi removida por ambulância para o Hospital … com cervicalgias e lombalgias, fez radiografias e TAC, foi observada e teve alta com indicação para repouso e medicação; passou a ser assistida pelos serviços médicos da seguradora de acidentes de trabalho; teve tratamento conservador até 8 de Janeiro de 2016, mas a persistência das dores determinou que fizesse uma RMN cervical e lombar que comprovou as cervicalgias e lombalgias; à data do acidente tinha 38 anos, gozava de boa saúde; era e continua a ser engenheira civil, a exercer funções de directora de produção, auferindo o vencimento mensal ilíquido de € 6.597, catorze vezes por ano, desloca-se para diversos locais do País para se reunir com donos de obra, fiscalizações, directores de obra, inspeccionar o seu faseamento e implementar directivas, também trabalhando horas seguidas ao computador; as cervicalgias e lombalgias agravam-se por estar muito tempo ao computador e conduzir de forma continuada e por longos períodos, por implicarem rotação do pescoço, também impedindo o sono; as sequelas de que ficou a padecer afectam a sua capacidade para realizar esforços e actividades desportivas, conferindo-lhe um défice funcional permanente superior a 8%, a implicar esforços acrescidos para o exercício da sua actividade profissional, pretendendo € 130.000 por esse rebate profissional.
Acrescenta que terá de fazer fisioterapia quatro vezes por ano, com séries de 10 a 15 sessões mensais, o que a obrigará a despender tempo e dinheiro, sendo o custo anual de € 800, pretendendo receber € 20.000 a título de danos patrimoniais futuros e, para se deslocar à fisioterapia e às consultas inerentes terá de faltar ao serviço, pelo menos 90 horas, que redunda em perdas salariais de € 3.425 anuais, reclamando € 30.000; temeu pela sua vida, sofreu dores fortíssimas, receia o modo como irão evoluir as patologias, reclamando a compensação de € 45.000; as dores frequentes demandam a toma de analgésicos e anti-inflamatórios, estimando em € 10.000 os danos patrimoniais futuros a esse título; esteve 8 dias com ITA apenas tendo recebido 70% do rendimento global anual bruto, reclamando da Ré € 570,71.
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A Ré contestou contrapondo que a Autora seguia à frente do EH, parou no stop, o que também fez o condutor do segundo, em seguida iniciou a marcha para logo travar de repente devido à passagem de um veículo, tendo o outro condutor seguido atrás e travado, mas sem evitar o embate, que foi leve.
Impugnou os danos, precisando que o embate não era idóneo a provocar a lesão cervical alegada e muito menos as sequelas imputadas, as quais, a existir, teriam de resultar de alterações pré-existentes; refere, ainda, que a Autora optou recebendo a indemnização de acidentes de trabalho de € 3.709,82 pelas IT’s e uma pensão anual de € 3.286,74.
Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador que se pronunciou pela validade e regularidade dos pressupostos processuais.
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Identificado o litígio, foram enunciados os temas da prova, sem reclamação.
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Procedeu-se a julgamento com observância do legal formalismo.
No decurso da audiência final a Ré apresentou articulado superveniente por ter sido apurado que a tomadora do seguro falecera em data anterior ao acidente, defendendo que esse facto tem um efeito impeditivo do direito da Autora.
O articulado foi admitido liminarmente.
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A Autora exerceu o contraditório, invocando o conteúdo da cláusula 20ª da apólice uniforme do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, onde consta que o falecimento do tomador do seguro não faz caducar o contrato, sucedendo os herdeiros nos direitos e obrigações, disposição que também consta das condições gerais da apólice da Ré.
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A final foi proferida decisão que julgou a acção parcialmente procedente por provada e consequentemente condenou a Ré apagar à Autora:
a) a quantia de € 58.518,24 a título de perdas salariais e dano biológico, acrescida de juros à taxa legal de 4%, desde 18 de Maio de 2017, até integral e efectivo cumprimento;
b) o que vier a ser liquidado relativamente à medicação referida nos pontos 33) e 34) da fundamentação de facto;
c)- a quantia de € 15.000, a título de compensação por danos não patrimoniais, acrescida de juros à taxa legal de 4%, desde a presente data, até integral e efectivo cumprimento.
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Não se conformando com o assim decidido veio a Ré F…, SA interpor recurso, concluindo as suas alegações nos seguintes termos:
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Devidamente notificada contra-alegou a Autora concluindo pelo não provimento do recurso.
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II- FUNDAMENTOS
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do C.P.Civil.
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No seguimento desta orientação são as seguintes as questões a decidir:
a)- saber se a decisão padece das nulidades que lhe vêm assacadas;
b)- saber se à matéria de facto deve ser aditado um novo facto;
c)- saber se o montante fixado a título de dano biológico se mostra, ou não excessivo.
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A)- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
É a seguinte a matéria de facto que o tribunal de 1ª instância deu como provada:
1. No dia 22 de Outubro de 2015, pelas 14,05 horas, na Rua …, da União das freguesias …, do concelho de Santo Tirso, onde o piso é ligeiramente descendente, atento o sentido de trânsito da Autora, ocorreu um acidente de viação entre o veículo automóvel por ela conduzido (e da sua propriedade), de marca Mercedes, com a matrícula ..-PP-.. e o veículo automóvel conduzido por D…, de marca Toyota e com a matrícula ..-..-EH [ponto 1º dos factos assentes].
2. O veículo ..-..-EH estava registado, ao tempo, em nome de E…, que tinha, ao abrigo do contrato de seguro titulado pela Apólice nº ….., transferido a responsabilidade pelos danos causados a terceiros para a aqui Ré [ponto 2º dos factos assentes].
3. O local do acidente é uma rua urbana e estava antecedido, em relação ao STOP, por uma passadeira para travessia de peões devidamente sinalizada [ponto 3º dos factos assentes].
4. O condutor do veículo ..-..-EH circulava no mesmo sentido de trânsito da Autora [ponto 4º dos factos assentes].
5. O PP encontrava-se parado com a frente adiante do sinal identificado em 3), aguardando a Autora a possibilidade de ingressar na faixa de rodagem que confluía com aquela onde transitava, devido à aproximação de outros veículos [resposta aos artigos 3º da petição inicial, 5º, 10º da contestação].
6. O PP seguia à frente do EH [resposta ao artigo 5º da contestação].
7. O condutor do EH não parou ao aproximar-se do PP indo embater com a frente do primeiro na traseira do segundo [resposta ao artigo 5º da petição inicial].
8. O condutor do EH circulava a velocidade não concretamente apurada superior a 50 km/h [resposta ao artigo 7º da petição inicial].
9. Em consequência do embate referido em 6) o para-choques e frisos traseiros do PP ficaram danificados, o reforço da traseira amolgado e o lastro partido [resposta ao artigo 8º da contestação].
10. A proprietária do veículo ..-..-EH participou o acidente à Ré, tendo esta comunicado à Autora que, tendo em conta a dinâmica do acidente, o mesmo era imputável ao condutor do veículo da sua segurada, em razão do que deu ordem de reparação e pagou os danos ocorridos no veículo da Autora [ponto 5º dos factos assentes].
11. O descrito acidente ocorreu quando a Autora se dirigia para Santo Tirso, em execução de tarefas que lhe estavam cometidas, no âmbito da relação laboral que tem com a empresa G…, SA. há mais de 10 anos, como trabalhadora efectiva [ponto 6º dos factos assentes]
12. Em consequência do embate, a Autora sofreu traumatismo cervical em “golpe de chicote” [resposta ao artigo 9º da petição inicial].
13. A Autora foi transportada pelos Bombeiros para o Hospital … no Porto onde foi admitida pelas 15h29 [resposta ao artigo 10º da petição inicial].
14. No Hospital a Autora queixava-se de cervicalgias e lombalgias, tendo sido observada por médico ortopedista e submetida a raio-X e TAC [resposta aos artigos 10º, 11º da petição inicial].
15. Teve alta no mesmo dia pelas 19h21 com indicação para repouso e analgesia [resposta ao artigo 12º da petição inicial].
16. Após, passou a ser assistida pela Companhia de Seguros H… para a qual a sua entidade patronal havia transferido a responsabilidade por acidentes de trabalho [resposta aos artigos 12º, 14º da petição inicial].
17. Os serviços clínicos da seguradora referida em 16) prestaram à Autora tratamento conservador até 8 de Janeiro de 2016, data em que foi atingida a consolidação médico-legal das lesões e lhe foi dada alta definitiva [resposta ao artigo 15º da petição inicial].
18. Devido à persistência das dores, em 1 de Abril de 2016 voltou a fazer ressonâncias magnéticas à coluna cervical e lombar que evidenciaram patologia degenerativa, agravada pelo embate, compatível com as queixas de cervicalgia e lombalgia [resposta ao artigo 15º da petição inicial].
19. A Autora nasceu a 15 de Janeiro de 1977 [resposta ao artigo 18º da petição inicial].
20. Apesar da patologia degenerativa na coluna, não experimentava fenómenos dolorosos nem limitações na mobilidade [resposta ao artigo 18º da petição inicial].
21. A Autora é engenheira civil, à data do acidente exercia funções de Directora Comercial na sociedade G…, S.A., auferindo, mensalmente, o vencimento base de € 6.597, catorze vezes por ano [resposta ao artigo 19º da petição inicial].
22. No exercício da sua actividade profissional, desloca-se com frequência a diversos locais do País, de norte a sul, a maior parte das vezes em veículo automóvel, para reuniões como donos de obra, directores de obra e de fiscalização, para inspeccionar o faseamento das construções e implementar directivas [resposta ao artigo 20º da petição inicial].
23. Também tem de ler e responder a emails, fazer análises orçamentais e de gestão de empreitadas, o que implica trabalhar horas seguidas ao computador [resposta ao artigo 21º da petição inicial].
24. Em consequência do acidente e da patologia degenerativa, a Autora passou a padecer cervicalgias e lombalgias, sentindo também parestesias nos membros superiores, com predomínio no direito [resposta ao artigo 22º da petição inicial].
25. As dores a nível da coluna cervical e lombar agravam-se quando a Autora passa muito tempo ao computador e conduz de forma continuada por longos períodos [resposta ao artigo 23º da petição inicial].
26. As dores agravam-se igualmente quando manipula pesos, passa a ferro por períodos prolongados ou faz tarefas domésticas que impliquem esforços físicos ou rotação cervical ou lombar, como limpar vidros, aspirar, limpar o chão [resposta ao artigo 24º da petição inicial].
27. Devido às dores, tem dificuldade em encontrar posição para dormir, despertando cansada, o que a torna irritadiça e menos paciente com os filhos [resposta ao artigo 24º da petição inicial].
28. A Autora praticava desporto, designadamente, fazia aulas de grupo em ginásios aos fins-de-semana e em horário pós-laboral [resposta ao artigo 26º da petição inicial].
29. Devido às sequelas e com vista ao relaxamento muscular e melhoramento da postura, após o acidente limita a actividade desportiva a pilates clínico, que é complementada com massagens localizadas e, por vezes, electroestimulação [resposta ao artigo 27º da petição inicial].
30. A cervicalgia e lombalgia residuais de que a Autora ficou a padecer a título de sequelas correspondem a défice funcional da integridade físico-psíquico de 4 pontos, compatível com o exercício da actividade profissional mas a exigir esforços acrescidos [resposta ao artigo 28º da petição inicial].
31. A Autora sofreu dores de grau 2 numa escala de 1 a 7, no momento do acidente e ao longo do período de recuperação [resposta ao artigo 32º da petição inicial].
32. Tem receio da evolução das patologias, sentindo desgosto e tristeza devido às limitações e ao desconforto de que ficou a padecer após o acidente [resposta ao artigo 32º da petição inicial].
33. As sequelas de que ficou a padecer determinam que tome analgésicos e anti-inflamatórios em SOS nas fases de agudização das dores [resposta ao artigo 34º da petição inicial].
34. A aquisição da medicação referida em 33) implica dispêndio de quantia que não foi possível apurar [resposta ao artigo 34º da petição inicial].
35. No período que mediou a data do acidente e a alta definitiva aludida em 17), correspondente a ITA entre 23 e 30 de Outubro, ITP de 20% entre 31 de Outubro e 20 de Novembro, 19 de Dezembro de 2015 e 8 de Janeiro de 2016 e ITP de 15% entre 21 de Novembro e 18 de Dezembro de 2015, a Companhia de Seguros H… pagou à Autora o montante de € 3.709,82 por referência ao salário referido em 21) e a subsídio de refeição de € 140,80 em onze meses, sendo € 1.238,32 relativo a ITA [resposta ao artigo 36º da petição inicial].
36. No âmbito do processo nº 316/16.4T8VNF que correu termos na Instância Central de Trabalho da Maia, além do montante referido em 35) foi fixada à Autora pensão anual de € 3.286,74, por referência ao salário total anual de € 93.906,80 e a IPP de 5% [resposta aos artigos 16º da petição inicial e 25º da contestação].
27. E… faleceu a 25 de Novembro de 2014 [resposta ao articulado superveniente apresentada pela Ré].
38. Consta da cláusula 20ª das condições gerais da apólice identificada em 2) “salvo convenção em contrário, o falecimento do tomador do seguro não faz caducar o contrato, sucedendo os seus herdeiros nos respectivos direitos e obrigações nos termos da lei [resposta aos artigos 8º e 9º da resposta da Autora ao articulado superveniente].
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Factos não provados:
Não se provou que:
a) o condutor do EH parou atrás da Autora;
b) de seguida a Autora iniciou a marcha e o EH também atrás de si;
c) logo após, à passagem de um veículo, a Autora travou de repente;
d) o condutor do EH também travou, ato imediato;
e) a Autora arrancou sem se assegurar previamente que o podia fazer;
f) as circunstâncias referidas em 27) causam à Autora alterações de humor, comportamentos de rispidez e labilidade emocional;
g) as sequelas referidas em 30) determinam a perda de oportunidades profissionais;
h) a Autora necessitará de fazer fisioterapia quatro vezes por ano, com séries de tratamento de 10 a 15 sessões mensais;
i) terá de despender tempo e dinheiro nesses tratamentos e custear as consultas médicas para a sua prescrição;
j) o custo anual em consultas e tratamentos de fisioterapia é no mínimo de € 800;
k) a Autora temeu pela sua vida;
l) para se deslocar para fazer fisioterapia e para as consultas inerentes, a Autora terá de faltar ao serviço, deixando de prestar anualmente à sua entidade patronal, pelo menos cerca de 90 horas, com prejuízo de perdas salariais de cerca de € 3.425 anuais.
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III. O DIREITO
Como supra se referiu a primeira questão que no recurso vem colocada prende-se com:
a)- saber se a sentença padece das nulidades que lhe vêm assacadas.
Como se evidencia das alegações recursivas e das respectiva conclusões a Ré recorrente entende que a decisão recorrida padece das nulidades estatuídas nas alíneas b) e c) do artigo 615.º, nº 1 do CPCivil.
Nos termos da alínea b) do nº 1 do artigo 615.º a sentença é nula “quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”.
A nulidade da falta de fundamentação de facto e de direito está relacionada com o comando do artigo 607.º, nº 3 que impõe ao juiz o dever de discriminar os factos que considera provados e de indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes.
Como é entendimento pacífico da doutrina, só a falta absoluta de fundamentação, entendida como a total ausência de fundamentos de facto e de direito, gera a nulidade prevista na al. b) do nº 1 do citado artigo 615º.
A fundamentação deficiente, medíocre ou errada afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade.[1]
Ora, para que haja falta de fundamentação, como causa de nulidade da sentença, torna-se necessário que o juiz não concretize os factos que considera provados e os não coloque na base da decisão[2] ou não especifique os fundamentos de direito que justifiquem a decisão, coisa que, manifestamente, no caso em apreço não acontece, pois que, o Sr. Juiz, como o evidência a sentença recorrida, aí descriminou os factos que resultaram provados e não provados e aí indicou, interpretou e aplicou as normas jurídicas correspondentes.
A recorrente pode é não concordar com os fundamentos a esse respeito aí vertido, todavia isso não inquina a decisão de nula.
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Refere depois a recorrente que a decisão é nula porque sofre a mesma de ambiguidade e ininteligibilidade.
De acordo com a alínea c) do nº 1 do citado artigo 615º a sentença é nula “quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível”.
A respeito da obscuridade e ambiguidade da sentença, dizia o Professor Alberto dos Reis[3], que a “(…) sentença é obscura quando contém algum passo cujo sentido seja ininteligível; é ambígua quando alguma passagem se preste a interpretações diferentes”, explicitando que “(…) num caso não se sabe o que o juiz quis dizer; no outro hesita-se entre dois sentidos diferentes e porventura opostos”, mencionando ser “(…) evidente que em última análise, a ambiguidade é uma forma especial de obscuridade” por “(…) se a determinado passo da sentença é susceptível de duas interpretações diversas, não se sabe ao certo, qual o pensamento do juiz”.
Ora, é obscuro o que não é claro, aquilo que não se entende. E é ambíguo o que se preste a interpretações diferentes.
Mas não é qualquer obscuridade ou ambiguidade que é sancionada com a nulidade da sentença pela alínea c) do nº 1 do citado artigo 615.º, mas apenas aquela que faça com que a decisão seja ininteligível. A ambiguidade ou obscuridade que possam ocorrer na sentença só integrarão a nulidade decisória prevista neste normativo se algum desses vícios tornarem a decisão incompreensível, por inacessível ao intelecto, impedindo a compreensão da decisão judicial por fundadas dúvidas ou incertezas.
Isto dito é por demais evidente que não se divisa que a decisão recorrida sofra do apontado vício.
Estriba a recorrente o apontado vício na circunstância de que na decisão se refere que “o montante a fixar não pode destinar-se a ressarcir as consequências para a actividade profissional, nem irá ter em conta perda de oportunidades profissionais” para em simultâneo, dizer que o valor fixado de € 58.000,00 teve em consideração a remuneração anual da autora e o seu tempo de vida activa.
Ora, o que o tribunal recorrido entendeu foi ressarcir o dano biológico, ou seja, não as consequências para a actividade profissional, nem perda de oportunidades profissionais, mas ao mesmo tempo usou, para fixar o referido dano, como um dos elementos a remuneração anual da Autora e o seu tempo de vida activa.
Onde existe a propalada ambiguidade e ininteligibilidade neste segmento decisório?
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Improcedem, desta forma, as conclusões 2ª a 5ª formuladas pela recorrente.
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A segunda questão que no recurso vem colocada consiste em:
b)- saber se deve ser aditada à matéria factual um novo facto.
Alega o recorrente que considerando a certidão judicial do Juízo de Trabalho da Maia junta aos autos em 7/10/2020, por ter sido remetida pelo Tribunal de origem e se encontrar com refª CITIUS n.º 26933694 e bem assim o disposto no art. 611.º n.º 1 do CPCiv, deve o ponto 36 dos factos provados ser alterado para “36. No âmbito do processo nº 316/16.4T8VNF que correu termos na Instância Central de Trabalho da Maia, além do montante referido em 35) foi fixada à Autora pensão anual de € 3.286,74, por referência ao salário total anual de € 93.906,80 e a IPP de 5% [resposta aos artigos 16º da petição inicial e 25º da contestação], situação que após revisão, foi alterada em 4/2/2019 para uma IPP de 6% a que passou a corresponder uma pensão anual e vitalícia de € 4.007,20 a partir de 1/1/2019 ”.
Mas será esta matéria factual juridicamente relevante, qualquer que seja a decisão que sobre a mesma venha a ser proferida à luz das diversas soluções plausíveis das questões de direito a solucionar?
A resposta é, como nos parece evidente, negativa.
Na verdade, não se vê, em termos de subsunção jurídica, qual a relevância do citado facto.
Ora, atento o carácter instrumental da reapreciação da decisão da matéria de facto, no sentido de que a reapreciação pretendida visa sustentar uma certa solução para uma dada questão de direito, a inocuidade da aludida matéria de facto justifica que este tribunal indefira essa pretensão, em homenagem à proibição da prática no processo de actos inúteis (artigo 137º do Código de Processo Civil).
Portanto, a reapreciação da decisão em matéria de facto tem carácter instrumental, é dizer, só faz sentido se visar reverter a favor do recorrente uma certa decisão jurídica alicerçada em determinada realidade factual que lhe é desfavorável.
Se assim não for, essa reapreciação torna-se num acto inútil, num mero exercício cognitivo inconsequente.
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Improcede, assim a conclusão formulada pela Ré recorrente.
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A terceira questão que no recurso vem colocada prende-se com:
c)- saber se o montante fixado a título de dano biológico se mostra, ou não excessivo.
Como se extrai da decisão recorrida aí se entendeu que sendo a Autora portadora de um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica fixável em 4 pontos, valorou tal dano como um dano patrimonial futuro na vertente de dano biológico fixando o seu montante em € 58.000,00.
Desse montante discorda a recorrente por entender ser excessivo, sendo antes de fixar em € 10.000,00.
Quid iuris?
Na decisão recorrida sob este conspecto escreveu-se o seguinte: “Ponderando o rendimento anual de € 92.218, a idade da Autora, nascida a 15 de Janeiro de 1977, a esperança média de vida e a idade activa até aos 70 anos, as taxas de juro das aplicações financeiras e a inflação e recorrendo à equidade, afigura-se que o montante de € 58.000 é adequado para o ressarcimento do dano em causa”.
Ora, quanto ao recurso à equidade para a fixação do citado montante indemnizatório nada temos a censurar à decisão recorrida.
Efectivamente na ausência de uma definição legal, a doutrina portuguesa acentua que o julgamento pela equidade “é sempre o produto de uma decisão humana que visará ordenar determinado problema perante um conjunto articulado de proposições objectivas; distingue-se do puro julgamento jurídico por apresentar menos preocupações sistemáticas e maiores empirismo e intuição”.[4]
Também sobre a equidade escreve o seguinte Dario Martins de Almeida[5]:
Quando se faz apelo a critérios de equidade, pretende-se encontrar somente aquilo que, no caso concreto, pode ser a solução mais justa; a equidade está assim limitada sempre pelos imperativos da justiça real (a justiça ajustada às circunstâncias), em oposição à justiça meramente formal. Por isso se entende que a equidade é sempre uma forma de justiça. A equidade é a resposta àquelas perguntas em que está em causa o que é justo ou o que é mais justo. (...) A equidade não equivale ao arbítrio; é mesmo a sua negação. A equidade é uma justiça de proporção, de adequação às circunstâncias, de equilíbrio. (...) Em síntese, a proporção, a adaptação às circunstâncias, a objectividade, a razoabilidade e a certeza objectiva são as linhas de força da equidade quando opera, com os ditames da lei, na análise e compreensão e solução do caso concreto.
Julgar segundo a equidade significa assim que o juiz não está sujeito à estrita observância do direito aplicável, devendo antes orientar-se por critérios de justiça concreta, procurando a solução mais justa face às características da situação em análise.
Daí que as tabelas financeiras não sejam vinculativas, servindo tão só como critério geral de orientação para a determinação equitativa do dano (cfr. artigo 566.º, nº 3 do Cód. Civil).
Sem embargo da utilização de critérios pautados por um maior grau de objectividade, a solução baseada na equidade postula uma razoável ponderação dos elementos estruturais que emergem do quadro fáctico, sendo que o uso paralelo da aritmética apenas pode servir como factor adjuvante e auxiliar do percurso decisório.[6]
Regressando ao caso dos autos entendemos que, com vista à fixação do “quantum” indemnizatório, são de destacar os seguintes aspectos:
- a idade da Autora à data do acidente-38 anos;
-a esperança média de vida (e não o número de anos até à idade previsível da reforma, uma vez que as necessidades básicas não cessam no momento da reforma, antes se prolongam até à morte)[7], a qual se coloca para o autor em aproximadamente mais 39 anos.[8]
E será de atender ao valor salarial auferido pela Autora recorrida, como se sopesou na decisão recorrida?
A resposta afigura-se-nos negativa.
A compensação a atribuir, pelo dano biológico, quando não interfere com a capacidade de ganho do lesado como é o caso, não tem de ter uma relação directa com os seus rendimentos ou com a sua actividade profissional, antes se posicionando como um dano permanente e interferindo em todos os aspectos da vida do lesado, seja no lazer, nas actividades domésticas diárias e também podendo ser o caso, no exercício da actividade profissional.
Nesta medida, tendo um âmbito alargado, consideramos que a sua referência para efeitos de cálculo da indemnização não tem de ser o salário auferido pelo lesado, nem tão pouco o salário mínimo nacional, conforme tem vindo a ser entendido muitas vezes, quando o lesado não exerce actividade profissional.
O dano biológico expresso no grau de incapacidade de que o lesado fica a padecer, e quando não interfere na capacidade de ganho, determinando a necessidade de um esforço acrescido para viver e para todas as actividades diárias, levando a uma diminuição da qualidade de vida em geral, é igualmente grave para quem exerce um profissão remunerada com € 5.000,00 ou com € 500,00 sendo a dimensão do direito à saúde que está em causa e que é, tal como o direito à vida, igual para qualquer ser humano.
Fazer interferir o valor do salário de cada um ou o do salário mínimo nacional quando o lesado não exerce ou não tem profissão, pode até, a nosso ver gerar situações injustas. Considera-se que estando em causa o mesmo tipo de dano, o ponto de partida para o cálculo da indemnização pelo dano biológico deve ser o mesmo para todos, em obediência ao princípio da igualdade.
Isto dito importa ainda, para se atingir a solução que, neste caso, se haja de considerar como a mais equitativa, apelar à jurisprudência que se vem pronunciando sobre situações com alguma similitude.
Constata-se assim o seguinte:
- Com uma incapacidade avaliável em 3 pontos, a um lesado com a idade de 40 anos foi fixada a indemnização por dano biológico em 8.000,00 €;
- Com uma incapacidade de 4 pontos, a uma lesada de 73 anos foi fixada a indemnização por dano biológico em 2.500,00 €;
- Com uma incapacidade de 4 pontos, a uma lesada de 78 anos foi fixada a indemnização respectiva em 8.000,00€;
- Com uma incapacidade de 5 pontos, a um lesado de 36 anos fixou-se indemnização aproximada a 12.000,00 €;
- Com uma incapacidade de 5 pontos, a um lesado de 39 anos, também motorista, foi fixada a indemnização de 12.500,00 €;
- Com uma incapacidade de 6 pontos, a uma lesada de 46 anos, que auferia rendimento mensal médio bruto de aproximadamente 7.500,00 €, foi fixada a indemnização pelo dano biológico em 55.000,00 €;
- Com uma incapacidade de 6 pontos, a um lesado de 44 anos, que auferia rendimento mensal global de 3.100,00 €, foi fixada a indemnização pelo dano biológico em 25.000,00 €;
- Com uma incapacidade de 8 pontos, a um lesado de 42 anos foi arbitrada a indemnização de 12.000,00 €;
- Com uma incapacidade de 8 pontos, num lesado de 49 anos foi fixada a indemnização de 20.000,00 €
- Com uma incapacidade de 7 pontos, num lesado de 39 anos foi fixada a indemnização de 15.000,00 €.[9]
Ora, tendo em atenção a factualidade que acima se referiu, bem como os valores que tem sido jurisprudencialmente fixados em casos que mostram alguma semelhança com o presente, entendemos que o valor fixado pela 1ª instância (58.000,00€) se mostra, efectivamente, excessivo, devendo o referido valor ser fixado em € 15.000,00 (quinze mil euros).
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Procedem, assim, em parte as conclusões 6ª a 15ª formuladas pela recorrente e, com elas, o respectivo recurso.
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IV-DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação parcialmente procedente por provada e consequentemente revogam a decisão recorrida na parte em que fixou o montante de € 58.000,00 (cinquenta e oito mil euros) a título de dano biológico, fixando tal montante em 15.000,00 (quinze mil euros).
No mais mantém-se a decisão recorrida.
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Custas da apelação por apelante e apelada na proporção do respectivo decaimento (artigo 527.º, nº 1 do C.P.Civil).
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Porto, 21 de Junho de 2021.
Manuel Domingos Fernandes
Miguel Baldaia de Morais
Jorge Seabra
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[1] Neste sentido, ver Alberto dos Reis, CPC Anotado, V, 140 e Antunes Varela, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 1984, pág. 669.
[2] Cfr. Antunes Varela, obra citada pág. 670.
[3] In “Código de Processo Civil Anotado”, Volume V, pág. 151.
[4] Cfr. Menezes Cordeiro, “O Direito”, 122º/272”.
[5] In “Manual de Acidentes de Viação, 1987, Almedina, págs. 107/110.
[6] Cfr. Ac. Rel. Porto de 5.5.2014, proc. 779/11.4TBPNF.P1, disponível in www.dgsi.pt.
[7] No sentido de que mantendo-se o dano fisiológico para além da vida activa se deverá apelar, para determinar o montante indemnizatório, não ao limite desta, mas sim à esperança média de vida, cfr. Acórdãos do STJ de 21.10.2010, p. 1331/2002.P1.S1 e de 19.4.2012, p. 3046/09.0TBFIG, ambos disponíveis in www.dgsi.pt.
[8] No Ac. do STJ de 19.4.2012, p. 3046/09.0TBFIG.S1, apela-se a uma esperança média de vida nos homens de 78 anos. No site “Pordata”, relativamente ao ano de 2007 e para os cidadãos portugueses do sexo masculino então com 65 anos de idade, alude-se a uma esperança média de via de mais 16,4 anos.
[9] Cfr., entre muitos outros, respectivamente, Acs. Rel. Porto de 20.3.2012, p. 571/10.3TBLSD.P1, 17.9.2013, proc. 7977/11.9TBMAI.P1, 7.4.2016, proc. 171/14.9 TVPRT.P1, de 1.7.2013, p. 2870/11.8 TJVNF.P1 de 17.6.2014, proc. 11756/09.5TBVNG.P1, de 24.2.2015, proc. 435/10.0TVPRT.P1, de 9.12.2014, proc. 1494/12.7TBSTS.P1, 10.12.2013, p. 2236/11.0TBVCD.P1, de 9.12.2014, p. 149/12.7 TBSTS.P1, disponíveis in www.dgsi.pt, e da Rel. Guimarães de 27.2.2012, p. 2861/07.3TABRG.G1, e de 22.3.2011, p. 90/06.2TBPTL, da Relação de Lisboa de 24/10/2019 processo nº 3570/17.0T8LSB.L1-2disponíveis www.dgsi.pt.