Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
140/14.9YRPRT
Nº Convencional: JTRP000
Relator: CAIMOTO JÁCOME
Descritores: INCOMPETÊNCIA MATERIAL
ACIDENTE EM AUTO-ESTRADA
INOBSERVÂNCIA DAS REGRAS DE MANUTENÇÃO
VIGILÂNCIA E SEGURANÇA
CONCESSIONÁRIA
Nº do Documento: RP20140630140/14.9YRPRT
Data do Acordão: 06/30/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A competência da jurisdição afere-se em função da natureza da relação material em litígio, a qual deve ser configurada em função do alegado pelo autor ria petição inicial.
II - O tribunal comum é incompetente, em razão da matéria, para conhecer de uma acção de indemnização por responsabilidade civil extracontratual emergente de acidente de viação, alegadamente consistente numa colisão com um canídeo, corrido numa auto-estrada e em que a sua concessionária é demandada com fundamento em omissão de cumprimento das regras de manutenção, vigilância e segurança, ainda que também seja demandada a seguradora para quem transferira tal responsabilidade, no âmbito do mesmo contrato de concessão, por pertencer à jurisdição administrativa.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 140/14.9YPRT - APELAÇÃO

Relator: Caimoto Jácome(1479)
Adjuntos: Macedo Domingues()
Oliveira Abreu()

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

1-RELATÓRIO

B…, com os sinais dos autos, deduziu a presente acção declarativa de condenação, com processo sumaríssimo, contra C…, S.A., com sede em Sintra, pedindo a condenação da demandada no pagamento de uma indemnização no montante de € 2.715,07, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até efectivo pagamento.
Alega, em síntese, que, no dia 23/04/2012, pelas 0,30 horas, conduzindo o seu veículo automóvel, de matrícula ..-..-BJ, na A., ao Km 60,7 (…-…), sentido …-…, foi surpreendido por um cão, de cor escura e médio porte, provindo do lado direito, que se atravessou à frente do veículo BJ, embatendo no animal. Do embate e acidente resultaram danos para o autor, da responsabilidade da ré, porquanto a demandada não tomou as precauções necessárias a prevenir o acidente.
Citada a ré, esta contestou, excepcionando, desde logo, a incompetência material do Tribunal Judicial de Amarante.
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Conclusos os autos, foi proferido despacho, no qual se decidiu declarar a incompetência absoluta do Tribunal Judicial de Amarante, em razão da matéria para conhecer do pleito, absolvendo-se a ré da instância.
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Inconformado, o autor apelou da sentença tendo, na sua alegação, concluído:
1 - Quer o Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel quer o Tribunal Judicial de Amarante consideraram-se incompetentes, em razão da matéria, para julgar os presentes autos;
2 - As duas decisões proferidas reconduzem a uma situação de denegação de justiça e atentatória dos direitos dos cidadãos, no caso o Apelante;
3 - Em casos de dúvida ou de fronteira, deve atribuir-se a competência ao tribunal que, perante a natureza da causa petendi, do pedido e das demais circunstâncias do caso, esteja em melhor posição para, presumivelmente, decidir com maior celeridade, eficácia e propriedade;
4 - Dado que estamos perante um litígio entre dois particulares, sendo a ora Apelada C…, S.A. uma pessoa colectiva de direito privado, uma sociedade anónima, e atenta a configuração que o ora Apelante deu à acção, deverá concluir-se pela competência da jurisdição comum para apreciar o litígio.
5 - A reforçar este entendimento invoca-se o disposto nas Bases da Concessão, nas quais se estabelece que a Concessionária responde, nos termos da lei geral, por quaisquer prejuízos causados a terceiros no exercício das actividades que constituem o objecto da Concessão, pela culpa ou pelo risco, não sendo assumido pelo Concedente qualquer tipo de responsabilidade neste âmbito;
6 - Para que se aplicasse o nº 5 do artigo 1° da Lei 67/2007, de 31/12, importaria que a Apelada estivesse no exercício de prerrogativas de poder público ou que fosse regulada por disposições ou princípios de direito administrativo, o que não acontece no presente caso;
Deve, por isso, ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, ser revogada a sentença recorrida, considerando-se o Tribunal Judicial de Amarante competente para julgar a causa ou, caso assim não se entenda, seja o processo enviado oficiosamente para o Tribunal dos Conflitos.

Não houve resposta à alegação.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

2- FUNDAMENTAÇÃO

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - arts. 684º, nº 3, e 685º-A, nº 1 e 3, do C.P.Civil (actualmente arts. 635º, nº 4, e 640º, nºs 1 e 2).

2.1- OS FACTOS E O DIREITO

Os factos a considerar são os referidos no relatório e bem assim, que, pelo DL nº 86/2008, de 28/05 (que aprovou as respetivas bases, de obra pública), foi atribuída a ré a concessão do designado D… (auto-estrada …), para concepção, projecto, construção, exploração e conservação da referida via.
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Nos arts. 211º, nº 1, e 212º, nº 3, da Constituição da República Portuguesa, define-se a competência dos tribunais judiciais e administrativos.
Tem-se entendido, na doutrina e na jurisprudência, que a competência do tribunal se afere, por regra, pelos termos em que a acção foi proposta e pelo pedido do autor (v. g. o Ac. STJ, CJ/STJ, 1997, I, 125). Preferimos, no entanto, na abordagem da competência material do tribunal, o ajuizado no acórdão desta Relação, de 07/11/2000 (CJ, 2000, V, 184), no sentido de que a competência material depende do thema decidendum concatenado com a causa de pedir.
Nos termos do art. 66º, do CPC (actual artº 64º), são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional, designadamente à jurisdição administrativa e fiscal que é exercida pelos tribunais administrativos e fiscais, nos termos do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pelo DL nº Leis nº/s 13/2002, de 19/02, alterada pelas Leis nº/s 4-A/2003, de 19/02 e 107-D/2003, de 31/12, em vigor desde 01/01/2004.
Não cabendo uma causa na competência de outro tribunal será a mesma da competência (residual) do tribunal comum (artº 18º, nº 1, da Lei nº 3/99, de 13/01 (LOFTJ), ainda em vigor (ver artº 26º, nº 1, da Lei nº 52/2008, de 28/08), e Acs. STJ, BMJ, 320º/390 e 364º/591).
Estatui-se no art. 1º, nº 1, do ETAF, que “Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.
No artº 4º do ETAF, estabelece-se o âmbito da jurisdição administrativa e fiscal.
O actual ETAF, contrariamente ao estatuído no anterior, não estão excluídos da jurisdição administrativa os recursos e acções que tenham por objecto questões de direito privado, ainda que qualquer das partes seja pessoa de direito público (artº 4º, nº 1, al. f),). A propósito, refira-se o opinado pelos Profs. Diogo Freitas do Amaral e Mário Aroso de Almeida (Grandes Linhas da Reforma do Contencioso Administrativo, 3ª Ed., págs. 34/35):...“Nas propostas de lei que o Governo apresentou à Assembleia da República, foi assumido o propósito de pôr termo a essas dificuldades” (suscitadas pela delimitação do âmbito da jurisdição administrativa em matéria de responsabilidade civil e de contratos), “consagrando um critério claro e objectivo de delimitação nestes dois domínios. A exemplo do que, como vimos, acabou por suceder em matéria ambiental, o critério em que as propostas se basearam foi o critério objectivo da natureza da entidade demandada: sempre que o litígio envolvesse uma entidade pública, por lhe ser imputável o facto gerador do dano ou por ela ser uma das partes no contrato, esse litígio deveria ser submetido à apreciação dos tribunais administrativos.
Propunha-se, assim, que a jurisdição administrativa passasse a ser competente para a apreciação de todas as questões de responsabilidade civil que envolvessem pessoas colectivas de direito público, independentemente da questão de saber se tais questões se regem por um regime de direito público ou por um regime de direito privado... (...).
Em defesa desta solução, sustentava-se na Exposição de Motivos do ETAF que, se a Constituição faz assentar a definição do âmbito da jurisdição administrativa num critério substantivo, centrado no conceito de “relações jurídicas administrativas e fiscais”, a verdade é que ela “não erige esse critério num dogma”, porquanto “não estabelece uma reserva material absoluta”. Por conseguinte, “a existência de um modelo típico e de um núcleo próprio da jurisdição administrativa e fiscal não é incompatível com uma certa liberdade de conformação do legislador, justificada por razões de ordem prática, pelo menos quando estejam em causa domínios de fronteira, tantas vezes de complexa resolução, entre o direito público e o direito privado” (...) O art. 4º do ETAF só veio a consagrar, no essencial, estas propostas no domínio da responsabilidade civil extracontratual. Já não no que toca aos litígios emergentes de relações contratuais”...
Ensina Freitas do Amaral (Direito Administrativo, vol. III, p. 439) que a relação jurídico administrativa é aquela que confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à Administração perante os particulares ou que atribui direitos ou impõe deveres públicos aos particulares perante a Administração.
Na definição de J.C. Vieira de Andrade (“A Justiça Administrativa” – Lições, 3ª Ed., 2000, págs. 79), as relações jurídicas administrativas são “aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, é uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido”.
Actos de gestão pública são os praticados pela Administração no exercício duma actividade regulada por uma lei que confira poderes de autoridade para o prosseguimento do interesse público, discipline o seu exercício e organize os meios necessários para o efeito.
Para o Prof. A. Varela (RLJ, 124º/59) "actividades de gestão pública são todas aquelas em que se reflecte o poder de soberania próprio da pessoa colectiva pública e em cujo regime jurídico transparece, consequentemente, o nexo de subordinação existente entre os sujeitos da relação, característico do direito público". Acrescenta ainda que "simplesmente, nem todos os actos que integram gestão pública representam o exercício imediato do jus imperii ou reflectem directamente o poder de soberania do próprio Estado e das demais pessoas colectivas. Essencial para que seja considerada de gestão pública é que a actividade do Estado (ou de qualquer outra entidade pública) se destine a realizar um fim típico ou específico dele, com meios ou instrumentos também próprios do agente".
Em princípio, só interessa à justiça administrativa as relações administrativas públicas, as reguladas por normas de direito administrativo, aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, actue na veste de autoridade pública, munido de um poder de imperium, com vista à realização do interesse público legalmente definido (citado Ac. RP, de 07/11/2000).
Por outro lado, será de gestão privada a actividade em que a pessoa colectiva, despida do poder público, se encontra e actua numa posição de paridade com os particulares a que os actos respeitam e, portanto, nas mesmas condições e no mesmo regime em que poderia proceder o particular com submissão às normas de direito privado (BMJ 311º/195).
No entanto, já não releva para a determinação de competência que os actos praticados sejam qualificados como de gestão pública ou de gestão privada, apenas bastando estar-se em presença de uma relação jurídico- administrativa. Como vimos, a relação jurídico-administrativa é aquela em que pelo menos um dos sujeitos é a Administração. A questão (gestão pública/gestão privada) seria relevante caso a acção tivesse sido instaurada antes de 01/01/2004, data da entrada em vigor do novo ETAF, como vimos.
Feitas estas breves considerações de natureza normativa, doutrinal e jurisprudencial, adianta-se, desde logo, o nosso apoio ao decidido, em casos semelhantes, no STJ, no acórdão de 16/10/2012, e nesta Relação, nos acórdãos de 18/04/2013, 14/01/2014 e 21/01/2014, para que remetemos.
A nosso ver, a singela decisão da 1ª instância deve manter-se.
Na verdade, afigura-se-nos que o tribunal comum carece de competência, em razão da matéria, para apreciar o presente litígio.
Tal competência cabe à jurisdição administrativa, por estar em causa a reparação de prejuízos decorrentes da atuação de uma pessoa coletiva de direito privado regulada por disposições e princípios de direito administrativo, sendo-lhe por isso aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e das demais pessoas coletivas de direito público.
Com efeito, o litígio em causa traduz-se numa controvérsia sobre uma relação jurídica administrativa, da qual emerge, entendida esta como "uma relação regulada por normas de direito administrativo, que atribuam poderes de autoridade ou imponham deveres, sujeições ou limitações especiais, todos ou alguns dos intervenientes, por razões de interesse público, que não se colocam o âmbito de relações de natureza jurídico privada".
Como se observa o Exmº Magistrado do Ministério Público, no douto parecer de fls. 355-359, citando, entre várias, a decisão, em situação em tudo próxima à presente, do Tribunal de Conflitos, de 30/05/2013 (Conflito nº 017/13), “as entidades privadas concessionárias que são chamadas a colaborar com a Administração na execução de tarefas administrativas através de um contrato administrativo (que poderá ser de concessão de obras públicas ou de serviço público), têm a sua atividade regulada e sujeita disposições e princípios de direito administrativo.
…) A construção de uma autoestrada, a sua exploração, manutenção, vigilância e segurança, nomeadamente do tráfego, são tarefas próprias da administração do Estado.
A outorga dessas tarefas, por determinado período, a terceiro da esfera privada, a quem e permite obter lucros económicos (através, nomeadamente, das portagens, regulamentadas também pelo Estado), é regulada e fiscalizada ao abrigo de normas jurídicas de natureza administrativa que ficam inscritas no contrato de concessão".
No caso, dado que o autor pretende ser indemnizado pela ré, com base na responsabilidade civil extracontratual, decorrente da alegada omissão do dever de garantir boas condições de segurança para os utentes da autoestrada objeto de concessão, previsto especificamente no respetivo contrato administrativo, essa responsabilidade baseia-se em disposições e princípios de direito administrativo.
Sendo a demandada concessionária de obras públicas, é aplicável o regime específico da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas, nos termos do artº 1 º, nº 5, da Lei nº 67/2007, de 31/12.
Não parece haver dúvida de que a 1.ª ré foi demandada no âmbito desse contrato de concessão, o qual se desenvolve num quadro de índole pública, em substituição da actuação do Estado. Este, mediante aquele contrato, entregou a um privado, a ré, o que faz parte das suas atribuições.
Estamos, assim, perante responsabilidade do Estado transferida para um ente privado, mediante o contrato de concessão da auto-estrada onde terá ocorrido o acidente em causa.
Neste caso, a entidade privada é chamada a colaborar com a Administração para gerir uma coisa pública, através de um contrato administrativo, pelo que as acções e omissões da concessionária não podem deixar de ser integradas e reguladas pelas disposições e princípios do direito administrativo.
Em suma, tendo presente a competência residual dos tribunais judiciais, nos termos dos artºs 211 º, nº 1 da CRP; 18º, nº 1 da LOFTJ e 66º do CPC (actual artº 64º), e atento em particular ao disposto no artº 212º, nº 3 da CRP e nos artºs 1 º, nº 1 e 4º, nº 1, i) do ETAF, impõe-se a atribuição aos tribunais da jurisdição administrativa a competência material para conhecer da acção.
Improcede, assim, o concluído, na alegação do recurso.

3- DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pelo apelante.
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Anexa-se o sumário.

Porto, 30/06/2014
Caimoto Jácome
Macedo Domingues
Oliveira Abreu
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SUMÁRIO (artº 713º, nº 7, do CPC – actual artº 663º, nº 7)
I - A competência da jurisdição afere-se em função da natureza da relação material em litígio, a qual deve ser configurada em função do alegado pelo autor ria petição inicial.
II - O tribunal comum é incompetente, em razão da matéria, para conhecer de uma acção de indemnização por responsabilidade civil extracontratual emergente de acidente de viação, alegadamente consistente numa colisão com um canídeo, corrido numa auto-estrada e em que a sua concessionária é demandada com fundamento em omissão de cumprimento das regras de manutenção, vigilância e segurança, ainda que também seja demandada a seguradora para quem transferira tal responsabilidade, no âmbito do mesmo contrato de concessão, por pertencer à jurisdição administrativa.

Caimoto Jácome