Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1268/20.1T8MTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PAULA LEAL DE CARVALHO
Descritores: LAT
NATUREZA IMPERATIVA
DIREITOS INDISPONÍVEIS
Nº do Documento: RP202304171268/20.1T8MTS.P1
Data do Acordão: 04/17/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO PARCIALMENTE PROCEDENTE; REVOGADA A DECISÃO.
Indicações Eventuais: 4. ª SECÇÃO SOCIAL
Área Temática: .
Sumário: O regime constante da Lei 98/2009 tem natureza imperativa, sendo os direitos dela decorrentes para o sinistrado indisponíveis e nulos os acordos que contrariem tal regime e, por consequência, sendo nulo o acordo por via do qual a Seguradora assuma responsabilidade inferior àquela que lhe incumbiria por via da transferência da responsabilidade nos termos do contrato de seguro que haja sido celebrado, nulidade essa que é de conhecimento oficioso.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Procº nº 1268/20.1T8MTS.P1

Relator: Paula Leal de Carvalho (Reg. nº 1323)
Adjuntos: Des. Rui Penha
Des. Jerónimo Freitas



Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto:


I. Relatório

AA, patrocinado pelo Digno Magistrado do Ministério Público, intentou a presente ação declarativa de condenação, com processo especial de acidente de trabalho, contra A..., S.A., e B..., Lda, pretendendo a condenação destas, na medida da retribuição transferida e não transferida, a pagar-lhe o capital de remição de uma pensão anual e vitalícia de €475,01, as diferenças relativas às indemnizações devidas pelas incapacidades temporárias e ainda as despesas de transporte da responsabilidade da seguradora.
Alegou que sendo trabalhador da 2ª Ré desde 8 de Janeiro de 2018, foi desde essa data destacado para a Bélgica, onde exerceu as funções contratadas de trolha de 1ª, auferindo além da retribuição mínima mensal garantida em Portugal de €580,00 em 2018 e de €600,00 em 2019, remunerações que a 2ª Ré fez constar dos recibos de vencimento como ajudas de custo, num total que nos 12 meses anteriores ao acidente ascenderam a €12.694,00, quantia que globalmente considerada é inferior à retribuição devida de acordo com a legislação belga de €15,68, acrescida de subsídio de Natal, e que perfaz uma retribuição mensal ilíquida de €2.717,87, com base na qual reclama o pagamento das supra referidas prestações.
Mais alega que no dia 28 de Novembro de 2019, na obra, na Bélgica, sofreu um acidente de trabalho em consequência do qual sofreu lesões que foram causa de incapacidade temporária para o trabalho e cujas sequelas lhe determinam uma incapacidade permanente parcial de 1,9206% desde 27/02/2020, dia seguinte ao da alta.
Alega ainda que a responsabilidade da Ré entidade empregadora se encontrava transferida para a Ré seguradora por contrato de seguro pela retribuição anual de €21.094,80 (€600,00 x 14 + €12.694,80), que a ré seguradora lhe pagou €3.021,24 a título de indemnização pelos períodos de incapacidade temporária e que despendeu €20,00 em transportes nas deslocações obrigatórias.

A Ré seguradora contestou, aceitando tudo o alegado e peticionado pelo autor, tal como já havia feito na tentativa de conciliação.

A Ré empregadora contestou aceitando tudo o alegado pelo autor menos o que respeita à transferência parcial da responsabilidade para a seguradora, entendendo que a sua responsabilidade por acidentes de trabalho se encontrava integralmente transferida para a seguradora, pois na data da celebração do contrato transmitiu à seguradora que pretendia celebrar um contrato de modo a garantir uma proteção integral dos seus trabalhadores perante eventuais sinistros, pese embora conste do contrato que a referida responsabilidade se encontra transferida parcialmente e pela retribuição anual fixa de €600,00 x 14, tendo sido contra a sua vontade e sem qualquer verdadeira negociação redigido pela Ré seguradora um contrato que não plasma o que foi efetivamente pretendido pela Ré, pelo que se do contrato resulta a omissão total da transferência tal ficou a dever-se exclusivamente a um comportamento doloso pela seguradora e a violação do princípio da boa-fé contratual.

A seguradora respondeu á contestação da empregadora, impugnando o alegado quanto à sua atuação dolosa, pois sempre assumiu a transferência do salário pelo valor constante das folhas de férias remetidas pela ré.

Por despacho de 26/05/2022, o tribunal a quo considerando que os autos contêm já todos os elementos necessários à decisão da causa, determinou a notificação das partes para se pronunciarem ao abrigo do art. 3º, nº 3 do Código de Processo Civil, tendo as rés reiterado o alegado nos seus articulados e o sinistrado alegado nada ter a opor a que seja proferida de imediato decisão de mérito, reiterando o alegado na petição inicial.

Foi proferido despacho saneador/sentença que decidiu nos seguintes termos:
“Por todo o exposto julgo a acção procedente e em consequência decido:
- Condenar as rés a pagar ao autor, com efeitos a partir de 27/02/2020 o capital de remição no valor de €7.977,32 (sete mil novecentos e setenta e sete euros e trinta e dois cêntimos), calculado com base numa pensão de €475,01 (quatrocentos e setenta e cinco eros e um cêntimo), sendo €4.762,78 (quatro mil setecentos e sessenta e dois euros e setenta e oito cêntimos) com base numa pensão de €283,60 (duzentos e oitenta e três euros e sessenta cêntimos) da responsabilidade da seguradora e €3.214,54 (três mil duzentos e catorze euros e cinquenta e quatro cêntimos), com base numa pensão de €191,41 (cento e noventa e um euros e quarenta e um cêntimos) da responsabilidade da entidade empregadora, acrescido de juros de mora, à taxa legal, desde aquela data até integral pagamento;
- Condenar a ré seguradora a pagar ao autor a quantia de €20,00 (vinte euros) a título de despesas de transporte, acrescidos de juros de mora desde a tentativa de conciliação até integral pagamento;
- Condenar a ré seguradora a pagar ao autor a quantia de €5,13 (cinco euros e treze cêntimos) a título de diferenças nas indemnizações pelos períodos de incapacidades temporárias, acrescida de juros de mora desde o vencimento até integral pagamento;
- Condenar a ré entidade empregadora a pagar ao autor a quantia de €2.042,04 (dois mil e quarenta e dois euros e quatro cêntimos) a título de diferenças nas indemnizações pelos períodos de incapacidades temporárias, acrescida de juros de mora desde o vencimento até integral pagamento.
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Custas pela seguradora e pela entidade empregadora na proporção das respectivas responsabilidades – art. 527º do Código de Processo Civil.
*
Fixo à causa o valor de €10.044,49 (dez mil e quarenta e quatro euros e quarenta e nove cêntimos).”

Inconformada, a Ré empregadora recorreu, tendo formulado as seguintes conclusões:
“1.) Resulta do despacho colocado em crise que o tribunal a quo, tendo considerado que os autos continham todos os elementos necessários para aferir do mérito da causa, por despacho saneador - sentença, condenou as Rés no pagamento ao sinistrado do capital de remissão no valor de 7.977,32 EUR., sendo da responsabilidade no pagamento de 4.762,78 EUR. pela Ré seguradora e do valor de 3.214,54 EUR. pela Ré entidade patronal e ainda condenou a Ré entidade patronal no pagamento da quantia de 2.042,04 EUR. a título de diferenças nas indemnização pelos períodos de incapacidades temporárias, bem como os juros vencidos e vincendos sobre as respetivas quantias.
2.) Para tanto, considerou o tribunal a quo que a transferência da responsabilidade da Ré entidade patronal para a Ré seguradora, só se encontrava transferida para uma retribuição anual de 21.094,80 EUR., pese embora a recorrente tenha colocado em causa a validade das cláusulas constantes do próprio contrato de seguro de onde resultam uma limitação quantitativa à responsabilidade da seguradora.
3.) Assim, considerou o tribunal a quo irrelevante tal defesa e tais alegações, no sentido de que o contrato de seguro celebrado foi efetivamente o pretendido pelas partes, portanto, daí extraindo conclusões de facto, sem que tenha sido produzida a prova requerida, contudo, a recorrente não concorda nem aceita tal decisão.
Senão vejamos:
4.) A Ré entidade patronal, aqui recorrente, invocou na sua Contestação que celebrou com a Ré seguradora um contrato de seguro de prémio variável, conforme resulta provado documentalmente dos autos, por forma a garantir uma transferência total da responsabilidade sobre todas as quantias auferidas pelos seus trabalhadores.
5.) Portanto, ao celebrar tal contrato, a Ré entidade patronal pretendeu transferir totalmente a sua responsabilidade na Ré seguradora, independentemente do tipo e da natureza das prestações auferidas pelos trabalhadores. Como tal, considera a recorrente que a Ré seguradora, contra a vontade do tomador do seguro, determinou unilateralmente o conteúdo do contrato, limitando a sua responsabilidade para uma retribuição anual de 21.094,80 EUR. anuais.
6.) Portanto, mesmo que o trabalhador em questão não fosse um trabalhador destacado no estrangeiro e com as consequências jurídicas previstas, sempre resultam das folhas de férias do sinistrado constantes dos autos, uma retribuição média de 26.478,73 EUR. e não uma retribuição de 21.094,80 EUR.
7.) Portanto, se está em causa um contrato de seguro de prémio variável, sempre seria a Ré seguradora responsável por uma retribuição nunca inferior a 26.478,73 EUR. anuais, uma vez que resulta provado documentalmente nos autos que a Ré entidade patronal cumpriu o ónus de comunicar as folhas de férias de onde resultam tais valores.
8.) Ainda assim, é do entendimento da aqui recorrente que a Ré seguradora deverá ser totalmente responsável por todas as quantias devidas ao sinistrado, uma vez que, conforme alegado em sede de Contestação, a recorrente já celebrou outros e vários contratos de seguro de trabalho com a Ré seguradora e, portanto, esta muito bem conhecia a realidade laboral da Ré entidade patronal, nomeadamente o destacamento dos seus trabalhadores. Factos esses que pretendia demonstrar com a produção da prova que requereu, concretamente a prova por declarações de parte dos sócios gerentes e de prova testemunhal.
9.) Portanto, a ora recorrente ao apresentar tal argumento de defesa é porque pretendia fazer prova de tais factos em sua defesa. Assim, ao decidir como decidiu, o tribunal a quo limitou claramente o direito de defesa da recorrente, em clara violação do artigo 3.º, n.º 3 do Código de Processo Civil.
10.) Portanto, a decisão sobre o mérito nesta fase processual e perante as alegações de defesa da Ré entidade patronal na sua Contestação, leva a concluir que a falta da realização da audiência de discussão e julgamento, com a competente produção da prova pessoal oferecida, influiu na decisão da causa, e em desfavor da aqui recorrente.
11.) Portanto, considera a recorrente que ocorreu uma omissão de uma formalidade essencial prescrita na lei processual, suscetível de constituir fundamento para a anulação da decisão proferida e que aqui se sindica.
12.) Assim, conclui-se que, a decisão proferida pelo tribunal a quo, no despacho aqui em crise, violou de forma clara o n.º 3 do art.º 3 e n.º 2 do art.º 662, todos do Código de Processo Civil. tendo feito uma aplicação indevida daqueles preceitos legais violando a ratio a eles subjacente.
13.) Devendo, por isso, o despacho recorrido ser revogado, devendo ser substituído por outro que ordene a produção da prova requerida, seguindo os autos os seus termos subsequentes ou, caso assim não se entenda, que, pelo menos, determine atribuição da responsabilidade da Ré seguradora para uma retribuição nunca inferior a 26.478,73 EUR. anuais.
Nestes termos e nos melhores de direito, por ser ilegal, deverá ser revogado o douto despacho posto em crise, substituindo-se por outro que ordene a produção da prova oferecida, seguindo os autos os seus termos subsequentes, ou, caso assim não se entenda, que, pelo menos, determine a atribuição da responsabilidade da Ré seguradora para uma retribuição nunca inferior a 26.478,73 EUR. anuais.

A Ré Seguradora, bem como o sinistrado, contra-alegaram pugnando pela confirmação da sentença recorrida [não formularam conclusões].

Não foi emitido parecer dado o A. ser patrocinado pelo Ministério Público.

Colheram-se os vistos legais.
***.

II. Objeto do recurso

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente, não sendo lícito ao tribunal ad quem conhecer de matérias nelas não incluídas, salvo porém as matérias que sejam de conhecimento oficioso, (arts. 635, nº 4, e 639º, nº 1, do CPC aprovado pela Lei 41/2013, de 26.06, aplicável ex vi do art. 1º, nº 2, al. a), do CPT aprovado pelo DL 295/2009, de 13.10, alterado, designadamente, pela Lei 107/2019).
Assim, são as seguintes as questões a apreciar:
- Se o processo deve prosseguir para julgamento para apurar se, com a celebração do contrato de seguro na modalidade de prémio variável, a Ré empregadora pretendeu garantir “uma transferência total da responsabilidade sobre todas as quantias auferidas pelos seus trabalhadores” e não apenas sobre a retribuição base, tendo em conta a alegação da Recorrente, e necessidade de prova, de que esta “já celebrou outros e vários contratos de seguro de trabalho com a Ré seguradora e, portanto, esta muito bem conhecia a realidade laboral da Ré entidade patronal, nomeadamente o destacamento dos seus trabalhadores. Factos esses que pretendia demonstrar com a produção da prova que requereu, concretamente a prova por declarações de parte dos sócios gerentes e de prova testemunhal.”
- Se a responsabilidade da Ré Empregadora se encontra transferida para a Ré Seguradora pela retribuição anual de €26.478,73, e não de €21.094,80, conforme resulta das folhas de férias do sinistrado constantes dos autos e comunicadas à Ré Seguradora.
***

III. Fundamentação de Facto

Na sentença recorrida foi dado como provada a seguinte factualidade:
“Com relevo para a decisão da causa e atento o acordo das partes quer na tentativa de conciliação, quer nos articulados mostram-se provados os seguintes factos:
1) A ré “B...” tem por objeto social a construção civil.
2) Em 8 de janeiro de 2018, a ré “B...” admitiu o autor para, mediante remuneração e durante quarenta horas semanais, exercer sob as suas ordens, direção e fiscalização as funções correspondentes à categoria profissional de trolha de 1ª, altura em que a ré destacou o autor para a Bélgica para exercer as referidas funções.
3) Durante o período de novembro de 2018 até outubro de 2019, como contrapartida pelo exercício da aludida atividade na Bélgica, a ré pagou ao autor, para além da remuneração mínima mensal garantida (€580,00 no ano de 2018 e €600,00 no ano de 2019), as seguintes remunerações, que fez constar nos respetivos recibos de vencimento como “ajudas de custo”:
- €1.225,70 no mês de novembro de 2018;
- €254,67 no mês de dezembro de 2018;
- €877,00 no mês de janeiro de 2019;
- €1.210,91 no mês de fevereiro de 2019;
- €1.287,00 no mês de março de 2019;
- €583,35 no mês de abril de 2019;
- €1.627,00 no mês de maio de 2019;
- €1.327,00 no mês de junho de 2019;
- €499,45 no mês de julho de 2019;
- €849,45 no mês de agosto de 2019;
- €1.226,27 no mês de setembro de 2019;
- €1.727,00 no mês de outubro de 2019, num total de 12 694,80.
4) Em Novembro de 2019 a remuneração de um trabalhador com a categoria profissional de trolha de 1ª na Bélgica era de €15,68/hora, acrescida de subsídio de Natal, o que perfaz a retribuição mensal ilíquida de €2.717,87 (€15,68 x 40 horas x 52 semanas: 12 meses) e a retribuição anual ilíquida de €35.332,31 (€2.717,87 x 13 meses).
5) No dia 28 de novembro de 2019, cerca das 15:30 horas, numa obra sita na Bélgica, onde se encontrava a exercer as referidas funções de trolha de 1ª sob as ordens, direção e fiscalização da ré “B...”, o autor, quando procedia à limpeza de um taipal metálico, foi atingido por ele no pé direito, tendo sofrido, como consequência direta e necessária, traumatismo com fratura do ângulo antero-inferior interno do cuboide.
6) Tal lesão determinou setenta e um (71) dias de incapacidade temporária absoluta (ITA) para o trabalho, contados desde 29 de novembro de 2019 até 7 de fevereiro de 2020, e dezanove (19) dias de incapacidade temporária parcial de vinte por cento (20%) para o trabalho, contados desde 8 a 26 de fevereiro de 2020.
7) Dia em que se consolidou clinicamente com tarsalgias residuais, sequela que lhe determinou incapacidade permanente parcial (IPP) para o trabalho de 1,9206%, em virtude de já padecer de 4,96% de IPP por acidente de trabalho anterior pelo qual foi reparado (processo nº 2375/16.0T(MTS).
8) Na altura do sinistro, a ré “B...” tinha transferida a sua responsabilidade infortunística laboral sobre o autor para a ré seguradora através do contrato de seguro titulado pela apólice n.º ..., na modalidade de folha de férias, pela retribuição anual ilíquida de €21.094,80 (€600,00 x 14 + €12.694,80 x 1).
9) A ré seguradora pagou ao autor €3.021,24 de indemnização por incapacidades temporárias.
10) O sinistrado gastou a quantia de €20,00 em despesas com transportes em deslocações obrigatórias.”
*
Porque documentalmente provado, adita-se à matéria de facto provada o nº 11, por forma a consignar o que consta da tentativa de conciliação que teve lugar na fase conciliatória do processo:
11. Da tentava de conciliação que teve lugar na fase conciliatória do processo, levada a cabo aos 14.01.2022, consta o seguinte:
Presentes:
BB, (…)esposa do sinistrado- AA, (…), que exibiu procuração com poderes especiais passada a seu favor.
Entidade Responsável: A..., S.A., NIF - ..., (…), legalmente representada pelo Sr. Dr. CC, com procuração arquivada nesta secretaria.
Entidade Patronal: “B..., Lda, Endereço: (…), representada pelo seu sócio e gerente DD, (…)
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De seguida, pelo Magistrado do Ministério Público foi apresentada a seguinte:

Proposta de Acordo

I - Descrição do acidente:
No dia 28-11-2019, pelas 15:30 horas, numa obra sita na Bélgica, onde se encontrava a exercer as funções de trolha de primeira sob as ordens, direção e fiscalização de «B..., Lda» , com sede em ..., no horário das 7 às 17 horas, ao limpar um taipal, o mesmo caiu-lhe sobre o pé direito, sofrendo lesões e sequelas constantes na perícia médica de fls. 115 a 117, cujo teor que aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos legais, que se consolidaram clinicamente em 26-02-2020 e que determinaram os períodos de incapacidades temporárias indicados naquela perícia (71 dias de ITA e 19 dias de ITP a 20%) e a I.P.P. de 1,9206% por o sinistrado ser já portador da I.P.P. de 3,97% - autos 2375/16.0T8MTS- fls. 75 e segts.
II - retribuição do sinistrado
Atenta informação de fls. 149, na altura do sinistro, a retribuição anual ilíquida de €35.332,31 (€15,68 x 40 horas x 52 semanas: 12 meses = €2.717,87 x 13 meses), encontrando-se transferida para a seguradora a retribuição anual ilíquida de €21.094,80 (€600,00 x 14 meses + €12.694,80 x 1).
III - prestações
Em face do exposto, são devidas ao sinistrado as seguintes prestações:
a) €475,01 de pensão anual e vitalícia, com início em 27-02-2020, cabendo à seguradora €€283,60 e à entidade empregadora €€191,41, obrigatoriamente remível, correspondendo, por isso, à indemnização em capital de remição no montante de €7.977,32 (€475,01 x 16,794. 31 anos de idade), cabendo à seguradora €4.762,78 e à entidade empregadora €3.214,54;
b) €5,13 (€3.026,37 - €3.021,24) de diferenças nas indemnizações pagas pela seguradora e a pagar por esta;
c) €2.042,04 de indemnizações por Incapacidades temporárias a pagar pela empregadora;
d) €20,00 de despesas com transportes em deslocações obrigatórias, a pagar pela seguradora;
e) juros de mora vencidos e vincendos à taxa de 4% ao ano desde a data de vencimento de cada uma das prestações até integral pagamento, sendo sobre o capital de remição devidos desde o dia 27-02-2020, sobre as despesas com os transportes desde o dia de hoje e sobre as indemnizações por incapacidades temporárias a partir do primeiro dia do mês seguinte aquele a que dizem respeito (art. 72.º, n.º 3 da LAT).
IV- Sinistrado
Dada a palavra à representante do sinistrado, por ela foi dito que:
Aceita a descrição do acidente, as lesões e sequelas descritas na perícia médica, cujo teor aqui dá por reproduzido para todos os legais efeitos, os períodos de incapacidades temporárias, a data da alta, a retribuição anual ilíquida de €35.332,31 e a I.P.P.de 1,9209%.
Mais declarou que a seguradora pagou ao sinistrado €3.201,24 de indemnização por incapacidades temporárias.
Indica ao seguinte IBAN: ....
V- Seguradora
Dada a palavra ao representante da seguradora, por ele foi dito que:
Aceita a descrição do acidente, as lesões e sequelas descritas na perícia médica, cujo teor aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos legais, o nexo de causalidade entre tais lesões e o acidente, os períodos de incapacidades temporárias, a data da alta, o pagamento das despesas com transportes, o pagamento da diferença nas indemnizações, a transferência da responsabilidade infortunística pela retribuição anual ilíquida de €21.094,80 e a I.P.P. de 1,9206%.
Por isso, aceita conciliar-se nos termos supra propostos e, consequentemente, aceita o pagamento das prestações supra referidas (capital de remição, despesas com transportes e respetivos juros de mora).
V- entidade empregadora
Dada a palavra ao representante da seguradora, por ele foi dito que:
Aceita a descrição do acidente, as lesões e sequelas descritas na perícia médica, cujo teor aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos legais, o nexo de causalidade entre tais lesões e o acidente, os períodos de incapacidades temporárias, a data da alta e a I.P.P. de 1,9206%.
Não aceita a retribuição anual ilíquida de €35.332,31.
No entanto, aceita a retribuição anual ilíquida de €21.04,80, a qual se encontra integralmente transferida para a seguradora.
Por isso, não aceita conciliar-se nos termos supra propostos”. [sublinhado nosso]
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IV. Fundamentação de Direito

1. Da 1ª questão
- Se o processo deve prosseguir para julgamento para apurar se, com a celebração do contrato de seguro na modalidade de prémio variável, a Ré empregadora pretendeu garantir “uma transferência total da responsabilidade sobre todas as quantias auferidas pelos seus trabalhadores” e não apenas sobre a retribuição base

Defende a Recorrente que o processo deve prosseguir para julgamento por, em síntese, ser necessário apurar se, com a celebração do contrato de seguro na modalidade de prémio variável, a Ré empregadora pretendeu garantir “uma transferência total da responsabilidade sobre todas as quantias auferidas pelos seus trabalhadores”, tendo em conta a alegação da Recorrente, e necessidade de prova, de que esta “já celebrou outros e vários contratos de seguro de trabalho com a Ré seguradora e, portanto, esta muito bem conhecia a realidade laboral da Ré entidade patronal, nomeadamente o destacamento dos seus trabalhadores. Factos esses que pretendia demonstrar com a produção da prova que requereu, concretamente a prova por declarações de parte dos sócios gerentes e de prova testemunhal.”

1.1. Na sentença recorrida referiu-se o seguinte:
“Considerando as posições assumidas pelas partes importa que o tribunal se pronuncie sobre o valor da retribuição relevante para efeito do cálculo das prestações a que o sinistrado tem direito e sobre a transferência da responsabilidade da entidade empregadora para a seguradora e logo, sobre a medida da responsabilidade de cada uma das rés na reparação das consequências do acidente.
(…)
Considerando, pois, que o A. sofreu, no exercício da sua actividade, acidente de que resultou lesão corporal e que lhe determinou incapacidade parcial permanente para o trabalho, conclui-se que o mesmo foi vítima de um acidente de trabalho, que lhe confere o direito a reparação (arts. 3º, 7º, 8º, nº 1, 23º, 39º, 47º, 48º, nº 3, al. c) e 75º da Lei 98/2009 de 04/09).
Com vista a determinar as prestações devidas importa antes de mais que o tribunal se pronuncie quanto à retribuição relevante para o cálculo de tais prestações.
Dispõe o art. 71º da Lei 98/2009 que “1 – A indemnização por incapacidade temporária e a pensão por morte e por incapacidade permanente, absoluta ou parcial, são calculadas com base na retribuição anual ilíquida normalmente devida ao sinistrado à data do acidente. 2 – Entende-se por retribuição mensal todas as prestações recebidas com carácter de regularidade que não se destinem a compensar o sinistrado por custos aleatórios. 3 – Entende-se por retribuição anual o produto de 2 vezes a retribuição mensal acrescida dos subsídios de Natal e de férias e outras prestações anuais a que o sinistrado tenha direito com carácter de regularidade. 4 - Se a retribuição correspondente ao dia do acidente for diferente da retribuição normal, esta é calculada pela média dos dias de trabalho e a respectiva retribuição auferida pelo sinistrado no período de um ano anterior ao acidente. (…). 11 - Em nenhum caso a retribuição pode ser inferior à que resulte da lei ou de instrumento de regulamentação colectiva de trabalho.”
Ora, da matéria de facto provada resulta que à data do acidente a ré empregadora pagava ao autor a título de retribuição base valor correspondente a retribuição mínima mensal garantida, acrescida de remunerações mensais de valor variável discriminadas nos recibos de vencimento como “ajudas de custo”, pelo que, em princípio, a retribuição relevante para o cálculo das prestações devidas deverá ser calculada nos termos do nº 4 da citada disposição legal, o que nenhuma das rés contesta.
Nessa medida a retribuição anual do sinistrado era à data do acidente de €21.094,80 (€600,00 x 14 a título de retribuição base + €12.694,80).
Tal retribuição encontrava-se integralmente transferida para a ré seguradora por contrato de seguro na modalidade de prémio variável, como a ré seguradora sempre aceitou ao longo de todo o processo.
Não se percebe, pois, a alegação da ré empregadora de que o contrato de seguro foi celebrado em termos contrários ao solicitado, com violação do princípio da boa fé contratual, pois tinha solicitado a celebração de um contrato que transferisse a sua responsabilidade integralmente e, apesar disso, a seguradora redigiu, sem prévia negociação, um contrato em que apenas consta como transferida a retribuição anual fixa de € 600,00 x 14.
Salvo o devido respeito, a ré empregadora não percebeu o alcance da divergência entre o valor da retribuição reclamada pelo sinistrado e a retribuição efectivamente transferida para a seguradora, tendo contestado, (talvez influenciada pelo litígio a que respeitou o processo nº 1451/20.0T8PNF, no qual, contudo, a discordância das partes não era a mesma em discussão nos autos, já que ali a seguradora não aceitava a transferência da responsabilidade relativamente às ajudas de custo em virtude de o sinistrado apenas as ter recebido durante dois meses) como se a seguradora não aceitasse a transferência da responsabilidade relativamente às quantias pagas sob o designação de “ajudas de custo”, o que não corresponde à situação retratada nos autos e, do ponto de vista do tribunal, prejudica a apreciação da questão da má-fé da seguradora na celebração do contrato e a análise da questão no âmbito do regime das cláusulas contratuais gerais, pois, no caso, não existe qualquer limitação da responsabilidade da seguradora apenas à retribuição base, seja do ponto de vista do contrato celebrado, seja do ponto de vista da posição pela mesma assumida no processo, nem existe qualquer divergência entre o contrato pretendido e o contrato celebrado, pois, o contrato foi celebrado exactamente como pretendido pela entidade empregadora, isto é cobrindo todas as quantias efectivamente pagas ao sinistrado como retribuição relevante para efeitos de reparação em caso de acidente de trabalho, de acordo com o valor efectivamente mensalmente comunicado pela empregadora à seguradora.
A questão que se coloca resulta do facto de o sinistrado, à data do acidente estar destacado na Bélgica. E sobre tal questão a ré empregadora não se pronunciou, não decorrendo de parte alguma do alegado que a mesma solicitou à seguradora a celebração de um contrato de seguro que cobrisse a retribuição mínima devida ao sinistrado pelo facto de estar destacado na Bélgica, tanto assim que nunca tal retribuição foi comunicada à seguradora nas folhas de férias, cuja elaboração é da exclusiva responsabilidade da tomadora do seguro.
Ora, do referido destacamento resultam efeitos nomeadamente no que à retribuição respeita que, face ao disposto pelo art. 71º, nº 11 da Lei 98/2009 não podemos ignorar.
De facto, tal como se pode ler no sumário do Ac. RP de22/05/2019, acessível em www.dgsi.pt “II - Do artigo 3.º da Diretiva 96/71/CE resulta uma clara intenção de salvaguardar, sem prejuízo de regime mais favorável, o direito de o trabalhador destacado ser remunerado com respeito pelo valor salarial mínimo que estiver estabelecido por lei no país em que desenvolve a sua atividade, não podendo, pois, aquele receber menos que o equivalente ao salário mínimo praticado nesse país. III - A interpretação por parte do intérprete da lei nacional deve ser feita à luz do texto e da finalidade da diretiva, de tal forma que seja alcançado o resultado por esta pretendido, excluindo ainda, por força do princípio da primazia do Direito Comunitário, a aplicação das normas internas contrárias ao disposto naquela. IV - Por aplicação de tais critérios, prestando o sinistrado a sua atividade noutro Estado, no que à remuneração mínima garantida diz respeito, importará verificar se naquele essa se encontra legalmente estabelecida e nesse caso qual é o seu valor, em comparação com o que se encontra estabelecida em Portugal, sendo que, caso se conclua que aquela é superior a esta, a escolha das partes pela lei portuguesa não pode afastar a aplicação daquela lei. V - Deste modo, estando o trabalhador deslocado na Alemanha quando sofreu o acidente de trabalho, sendo a remuneração mínima aí estabelecida superior quer à estabelecida em Portugal quer à que era efetivamente paga, àquela se impõe atender para efeitos de cálculo das indemnizações/pensões dividas ao sinistrado.”
O mesmo entendimento foi perfilhado no Ac. RG de 22/10/2020 e no Ac. RG de 19/11/2020, ambos acessíveis em www.dgsi.pt e se impõe no caso dos autos, tendo ainda em atenção o que resulta do Reg. 593/2008/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho de 17/06/2008 e o art. 3º da Directiva 2014/67 (EU) de 15/05/2014 (Directiva Execução/Destacamento).
De facto, ficou provado que na Bélgica, onde o sinistrado se encontrava destacado, a remuneração de um trabalhador com a categoria profissional de trolha de 1ª na Bélgica era de €15,68/hora, acrescida de subsídio de Natal, o que perfaz a retribuição mensal ilíquida de €2.717,87 (€15,68 x 40 horas x 52 semanas : 12 meses) e a retribuição anual ilíquida de €35.332,31 (€2.717,87 x 13 meses), superior, portanto, a retribuição anual efectivamente paga pela ré empregadora ao autor, que ascendia a €21 094,80.
Por isso, será com base naquela e não nesta retribuição anual que as prestações devidas ao autor em virtude do acidente de que foi vítima serão calculadas e por isso, não por actuação dolosa da seguradora ou por violação do regime das cláusulas contratuais gerais nos termos que foram invocados pela empregadora, é que a retribuição relevante não se mostra integralmente transferida para a ré seguradora, devendo a empregadora responder pela diferença relativa às indemnizações por incapacidade temporária e pensões devidas, nos termos do disposto pelo art. 79º, nº 2 da Lei 98/2009.
Assim, atendendo à remuneração anual relevante de €35.332,31, à idade do sinistrado e ao coeficiente de desvalorização de que se encontra afectado, o mesmo tem direito ao capital de remição de uma pensão anual e vitalícia correspondente a 70% da redução sofrida na capacidade geral de ganho, nos termos do art. 48º, nº 3, al. c), 75º, nº 1, 76º e 79º, nº 1, 4 e 5 da citada Lei 98/2009, ou seja, em concreto, ao capital de remição no valor de €7.977,32, calculado com base numa pensão de €475,01, sendo €4.762,78 com base numa pensão de €283,60 da responsabilidade da seguradora e €3.214,54, com base numa pensão de €191,41 da responsabilidade da entidade empregadora, com efeitos a partir de 27/02/2020, dia seguinte ao da alta definitiva, acrescido de juros à taxa legal desde aquela data até integral pagamento.
O autor tem também direito a haver o valor das indemnizações relativas aos períodos de incapacidades temporárias absoluta e parcial que decorreram desde o acidente até à data da alta e que, considerando o valor da remuneração e o disposto pelo art. 47º, nº 1, al. a), 48º, nº 1 e 3, als. d) e e), 50, nº 1 e 71º da Lei 98/2009 de 4/09, ascendia ao valor total de €5.068,41, sendo €3.026,37 da responsabilidade da seguradora e €2.042,04 da responsabilidade da entidade empregadora. Tendo a seguradora já pago a quantia de €3.021,24, resta por saldar, da responsabilidade desta, a quantia de €5,13, bem como a totalidade da quantia devida pela entidade empregadora, acrescidas de juros de mora, à taxa legal desde o vencimento (art. 72º, nº 3 da referida Lei 98/2009) até integral pagamento.
(…)”.

1.2. Na petição inicial o A. alegou que:

Durante o período de novembro de 2018 até outubro de 2019, como contrapartida
pelo exercício da aludida atividade na Bélgica, a ré pagou ao autor, para além da remuneração mínima mensal garantida (€580,00 no ano de 2018 e €600,00 no ano de 2019), as seguintes remunerações, que fez constar nos respetivos recibos de vencimento como “ajudas de custo”:
- €1.275,70 no mês de novembro de 2018;
- €254,67 no mês de dezembro de 2018;
- €877,00 no mês de janeiro de 2019;
- €1.210,91 no mês de fevereiro de 2019;
- €1.287,00 no mês de março de 2019;
- €583,35 no mês de abril de 2019;
- €1.627,00 no mês de maio de 2019;
- €1.327,00 no mês de junho de 2019;
- €499,45 no mês de julho de 2019;
- €849,45 no mês de agosto de 2019;
- €1.226,27 no mês de setembro de 2019;
- €1.727,00 no mês de outubro de 2019 – docs. de fls. 42 a 53.

Porém, de acordo com a legislação belga, a ré deveria ter pago ao autor, atenta a sua categoria profissional de trolha de 1ª, a retribuição horária de 15,68€, acrescida de subsídio de natal – doc. de fls. 149,

o que perfaz a retribuição mensal ilíquida de €2.717,87 (€15,68 x 40 horas x 52 semanas: 12 meses),
10º
e a retribuição anual ilíquida de €35.332,31 (€2.717,87 x 13 meses)”
E, bem assim, que “16º. Na altura do sinistro, a ré “B...” tinha transferida a sua responsabilidade infortunística laboral sobre o autor para a ré seguradora através do contrato de seguro titulado pela apólice n.º ..., na modalidade de folha de férias, pela retribuição anual ilíquida de €21.094,80 (€600,00 x 14 + €12.694,80 x 1).”
Na contestação da Ré Seguradora, esta alegou que “.Aceita a Ré como vencimento para si transferido a remuneração anual de €21.094,80 (€ 600,00 x 14 meses + €12.694,80 x 1). 4.º Com efeito, o contrato de seguro em apreço, foi celebrado na modalidade de prémio variável, ou seja, estão abrangidos por esse contrato os trabalhadores e remunerações auferidas, que estiverem mencionados nas folhas de férias enviadas mensalmente para a seguradora, até ao 15º dia do mês subsequente àquele a que se reporta. 5.º A determinação da retribuição segura, ou seja o valor com base no qual são calculadas as responsabilidades cobertas pela apólice de seguro, é sempre da responsabilidade da entidade empregadora (tomador do seguro). 6.º Analisadas as folhas de férias dos meses de Novembro/2018 a Outubro/2019 (já juntas aos autos pela seguradora), verifica-se que, em relação ao Autor, o somatório dos valores pagos, a título de ajudas de custo, perfaz o montante de € 12.694,80, como o próprio autor refere no artº 16º da petição inicial. 7.º Face aos valores declarados, a Ré seguradora não aceita a transferência de quaisquer outros valores, para além do salário de €600,00 e as ajudas de custo, no montante de €12.694,80.”
Por sua vez a Ré Empregadora, na sua contestação, alegou que[1]: “1. A ré entidade patronal aceita como verdadeiros os factos vertidos nos artigosa 7º, 11º a 17º, 21º a 23º da douta Petição Inicial. (…). 4.Tal responsabilidade encontrava-se transferida através da celebração de um contrato de seguro na modalidade de prémio variável, documento que já consta dos autos e que aqui dá por integralmente reproduzido. 5. Na verdade, a Ré empregadora “transmitiu à Ré Seguradora que pretendia celebrar um contrato de seguro de acidentes de trabalho na modalidade de folha de férias dos trabalhadores, incluindo o A. de modo a garantir uma proteção integral dos seus trabalhadores perante eventuais riscos. 6. Contudo, e pese embora, conste do contrato de seguro que a referida responsabilidade se encontra transferida parcialmente e para uma retribuição anual fixa de 600,00€×14, na verdade, a Ré B... Lda. sempre teve na sua convicção ter contratado com a Ré Seguradora a transferência total da responsabilidade e para o valor da totalidade do salário do Autor. 7. Pois, aquando da sua celebração, a Ré empregadora transmitiu claramente à Ré seguradora que pretendia uma transferência total da responsabilidade por acidentes de trabalho dos seus trabalhadores, 8. onde, além da retribuição base, se incluísse as ajudas de custo, subsídios, prémios e outros abonos auferidos pelos trabalhadores, mormente pelo o Autor. 9. Conforme, aliás, se encontra plasmado nas folhas de férias do Autor e que foram pontualmente entregues pela Ré Entidade patronal à Ré Seguradora - documentos que já se encontram nos autos e que aqui se dão integralmente por reproduzidos. 10. Nas referidas folhas de férias, foi declarado pela Ré empregadora a retribuição integral do Autor à Ré seguradora e não apenas o valor de 600,00€, correspondente à retribuição base. (…). 12. Porém, e contra a vontade negocial da Ré B... Lda., a Ré Seguradora redigiu um contrato de seguro que não plasma, de todo, o que foi efetivamente pretendido pela aqui Ré, verificando-se, portanto, uma clara violação do Princípio da boa-fé contratual, que expressamente se invoca para todos os efeitos legais. 13. Pois o mesmo foi elaborado integralmente pela Ré seguradora sem que as cláusulas que o integram fossem sujeitas a uma verdadeira negociação e à verdadeira vontade das partes. 14. Na verdade, a Ré seguradora fez crer à Ré empregadora, após solicitação nesse sentido conforme já se referiu, que o contrato de seguro celebrado implicaria uma transferência total da responsabilidade, ou seja, a incidir sobre todos os quantitativos auferidos pelos seus funcionários. 15. E a Ré seguradora assim concordou e sempre assim foi transmitido pela Ré seguradora aos sócios gerentes da Ré empregadora, nunca tendo aquela declarado nada em contrário e nunca mencionado uma transferência apenas parcial da responsabilidade e apenas pelo valor de 600,00€. 16. Portanto, sempre a Ré empregadora atuou na convicção de que a sua responsabilidade por acidentes de trabalho em relação aos seus trabalhadores encontrava-se transferida para a totalidade do salário dos mesmos. 17. Porém, e na verdade, o que aconteceu é que a Ré seguradora deu às referidas cláusulas um conteúdo completamente alheio à vontade e ao conhecimento da Ré empregadora e pretende agora aplicar ao referido contrato uma cobertura que não foi negociada e que não corresponde ao tipo contratual - prémio variável. (…) 19. Portanto, se do referido contrato resulta a omissão da transferência total da responsabilidade, tal ficou a dever-se exclusivamente a um comportamento doloso por parte da Ré Seguradora, pois muito bem sabia que a aqui Ré pretendia desonerar-se e assegurar todos os direitos dos seus trabalhadores, transferindo a total responsabilidade sobre aquela e sobre todas as quantias auferidas. (…) 21. Na verdade, em data que agora a aqui Ré não consegue exatamente precisar, os seus sócios gerentes - EE e DD - dirigiram-se à agência da Ré seguradora, sita na ..., ..., com a intenção de celebrar um seguro de acidentes de trabalho para segurar o risco da atividade profissional de todos os seus funcionários. 22. Sendo que se dirigiram diretamente ao Sr. FF, funcionário naquele balcão da Ré seguradora, uma vez que já ali haviam celebrado outros contratos de seguro e sempre por intermédio do referido funcionário, pois sabiam que é quem está encarregado, naquela agência bancária, de celebrar os contratos de seguro, incluindo os do ramo vida. 23. Tendo inclusivamente aqueles já celebrado outros contratos de seguro de trabalho para outras empresas das quais fazem parte, sendo que sempre celebraram os seguros de trabalho com a Ré seguradora mediante a mesma vontade e que sempre foi transmitida. 24. Na verdade, quando reuniram com o referido funcionário, os sócios gerentes da Ré entidade patronal transmitiram-lhe de forma clara e concisa que pretendiam, como os demais contratos que já ali haviam celebrado, um seguro de trabalho que segurasse, além da remuneração base, todos os quantitativos efetivamente auferidos pelos trabalhadores e baseados nas folhas de férias que iriam ser periodicamente remetidos à seguradora. 25. Sendo que a Ré entidade patronal sempre cumpriu com os seus deveres contratuais e sempre remeteu essas folhas de férias, à Ré seguradora, e dentro dos prazos estabelecidos pelo contrato de seguro, conforme já se referiu. 26. Confrontado com a vontade contratual dos sócios gerentes da Ré B..., o funcionário da Ré seguradora não colocou qualquer objeção ou impedimento à contratação no sentido pretendido pelos mesmos. 27. Perante isto, o mencionado funcionário limitou-se a transmitir aos sócios da aqui Ré os montantes de prémio que a sociedade comercial teria que assumir para beneficiar daquele tipo de contrato, 28. aceitando celebrar, naquelas condições expostas e que correspondiam às necessidades da empresa, o contrato de seguro em nome e representação da Ré seguradora. 29. Nada mais tendo sido dito, lido e muito menos explicado aos sócios gerentes da Ré entidade patronal por aquele funcionário. 30. Tendo os mesmos ficado indubitavelmente convencidos de que, quando precisassem de recorrer ao contrato de seguro aqui em crise, os seus trabalhadores seriam integralmente indemnizados, por eventuais danos recorrentes do exercício da sua profissão, considerando-se e levando-se em conta para cálculos indemnizatórios, todos os montantes efetivamente auferidos pelos mesmos. 31. É pertinente referir que, tendo por base o mesmo contrato de seguro celebrado entre as Rés, em questão nos presentes autos, mas referente a outro trabalhador da Ré B..., Lda., debruçou-se o Juízo do Trabalho de Penafiel no processo n.º 1451/20.0T8PNF, cuja sentença e posterior acórdão da Relação do Porto se junta, e que não poderá deixar de ser considerado por este tribunal (…). 36. Assim, as cláusulas do contrato de seguro onde consta que a responsabilidade da Ré empregadora se encontra parcialmente transferida e para uma retribuição no valor de apenas 600,00€, para a Ré Seguradora, deverão ser consideradas excluídas do contrato de seguro celebrado entre as Rés. 37. Assim, perante o comportamento ilícito da Ré Seguradora, não terá esta menos que cobrir o sinistro na sua totalidade, concluindo-se que, estando a responsabilidade integralmente transferida para a Ré seguradora, deve esta responder pelo pagamento de todas as quantias que são devidas ao sinistrado.

1.3. Dispõe o art. 131º, nº 1, do CPT que “1. Findos os articulados, o juiz profere, no para de 15 dias, despacho saneador destinado a: a) (…); b) Conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma exceção perentória; c) Considerar assentes os factos sobre que tenha havido acordo na tentativa de conciliação e nos articulados; (…).
A decisão de mérito em sede de despacho saneador apenas poderá ter lugar quando não exista matéria de facto controvertida que se possa mostrar relevante à decisão do mérito da causa pois que, existindo, deverá ser realizada a audiência de discussão e julgamento com vista à produção de prova.
Ora, no caso, tendo presente o que agora é alegado pela Recorrente a propósito da questão em apreço, mas sem prejuízo do que se dirá a propósito da 2ª questão, não existe matéria de facto controvertida que se mostre relevante, mormente a invocada pela Recorrente, sendo que, como decorre do relato que se fez quanto à posição das partes, a posição da Ré Empregadora na contestação assenta num equívoco seu como se salienta na decisão recorrida.
Com efeito, o que o A. alegou na petição é que auferia a retribuição anual de €21.094,80 (€600,00 x 14 + €12.694,80 x 1), a qual se encontrava transferida para a Ré Seguradora. Porém, de acordo com a legislação belga (aplicável uma vez que prestava a sua atividade na Bélgica) a Ré dever-lhe-ia ter pago, atenta a sua categoria profissional de trolha de 1ª, a retribuição horária de 15,68€, acrescida de subsídio de natal, o que perfaz a retribuição mensal ilíquida de €2.717,87 (€15,68 x 40 horas x 52 semanas : 12 meses), a que corresponde a anual de €35.332,31 (€2.717,87 x 13 meses), sendo esta a retribuição com base na qual deve a reparação infortunística ser calculada.
A Ré Seguradora, por sua vez, aceita ter celebrado com a Ré empregadora contrato de seguro de acidente de trabalho na modalidade de prémio variável e que a responsabilidade estava para si transferida com base na mencionada retribuição anual de €21.094,80 (€600,00 x 14 + €12.694,80 x 1) ou seja, com base não apenas na retribuição base, mas também nas demais prestações variáveis auferidas mensalmente pelo sinistrado.
E a Ré Empregadora aceitou, quer na tentativa de conciliação, quer na contestação, que a retribuição anual do A. era a mencionada de €21.094,80.
Estaria pois (mas sem prejuízo do que se dirá a propósito da 2ª questão) assente, quer com base no acordo das partes na tentativa de conciliação, quer nos articulados, que a retribuição anual do A. era a de €21.094,80 (€600,00 x 14 + €12.694,80 x 1) e que a Ré empregadora havia transferido a sua responsabilidade pelos danos emergentes por acidente de trabalho de que fosse vítima o A. por contrato de seguro na modalidade de prémio variável com base nessa retribuição anual, composta pela parte fixa e pela parte variável, de €21.094,80 anuais (e dizemos “estaria”, no condicional, tendo em conta o que se dirá a propósito da 2ª questão, o que não se prende, todavia, com a questão ora em apreço).
Ora, o que a Ré Empregadora veio alegar na contestação é que: a Ré Seguradora apenas teria aceite a responsabilidade com base, tão-só, na retribuição base/parte certa da retribuição, de €600,00; aquando da celebração do contrato de seguro, a Ré empregadora pretendeu fazê-lo na modalidade de prémio variável abrangendo não apenas a remuneração de base, mas também a variável composta pelos quantitativos efetivamente auferidos pelo A., o que seria, pelas razões que invoca, do conhecimento da Ré Seguradora; e, assim, o contrato de seguro abrange, também, essa parte variável.
Esta era a tese da Ré Empregadora na contestação e era para prova dessa factualidade – transferência da responsabilidade, também, quanto às demais prestações que, para além da remuneração de base, pagou ao A. – que a ação prosseguiria para julgamento.
Acontece que, como decorre quer da tentativa de conciliação, quer da sua contestação, a Ré Seguradora aceitou que a responsabilidade se encontrava para si transferida com base não apenas na remuneração de base (€600,00), mas também com base nas demais prestações variáveis alegadas pelo A. e que a Ré empregadora aceitou, no montante anual de €12.694,80, a parte variável, e, tudo, no montante anual de €21.094,80.
Ou seja, a Ré empregadora partiu, na contestação, de um equívoco ou pressuposto errado, qual seja o de que a Ré Seguradora teria aceite a transferência da responsabilidade com base, apenas, na remuneração de base, e não já com base, também, na totalidade da retribuição que o A. alegou que a Ré empregadora lhe pagava e que esta (empregadora) aceitou que lhe pagava (€21.094,80). Ora, a Ré Seguradora aceitou a transferência da responsabilidade com na base na totalidade da retribuição que a Ré Empregadora reconheceu pagar ao A. (€21.094,80). Ou seja, a matéria que foi alegada encontrar-se-ia assente por acordo das partes, pelo que, com o fundamento agora em apreço (mas sem prejuízo do que se dirá quanto à 2ª questão), nada mais haveria a apurar que carecesse de produção de prova, mormente o que a Recorrente invocou relativamente à celebração do contrato de seguro abranger não apenas a parte certa da remuneração (remuneração de base), mas também a parte variável.
O que acontece é que o A. entendeu, assim como a sentença, que, por a retribuição mínima em vigor na Bélgica, de 2.717,87 (€15,68 x 40 horas x 52 semanas: 12 meses), ser superior à auferida por aquele, é com base nesta que a reparação devida deve ser calculada.
Ora, em lado algum, designadamente na tentativa de conciliação e/ou na contestação, a Ré Empregadora alegou que essa - de €2.717,87 (€15,68 x 40 horas x 52 semanas: 12 meses) – fosse a retribuição mensal que pagou ao A. e que tivesse transferido para a Ré Seguradora a sua responsabilidade com base nessa retribuição. Aliás, ao não aceitar tal retribuição, como não aceitou na tentativa de conciliação, tal significa que não a pagava ao A. e que a não transferiu para a Ré Seguradora. A continuidade dos autos para julgamento, com esse fundamento, mostrar-se-ia irrelevante, pois que já se encontra assente que a Recorrente não transferiu a sua responsabilidade com base nessa retribuição mensal de €2.717,87/ €35.332,31 anuais, que ela própria não aceita.
Assim sendo, improcedem nesta parte as conclusões do recurso, mas sem prejuízo do que se dirá na questão seguinte.

2. Da 2ª questão
Se a responsabilidade da Ré Empregadora se encontra transferida para a Ré Seguradora pela retribuição anual de €26.478,73

Diz a Recorrente que, de todo o modo, a sua responsabilidade se encontra transferida para a Ré Seguradora com base na retribuição anual de €26,478,73 e não de €21.094,80, conforme resulta das folhas de remunerações relativas ao sinistrado constantes dos autos e por si comunicadas à Ré Seguradora.
Da tentativa de conciliação que teve lugar na fase conciliatória do processo decorre que:
- o Exmº Magistrado do Ministério Público, na proposta de acordo que efetuou, referiu que a responsabilidade da Ré Empregadora de encontrava transferida para a seguradora com base na retribuição anual ilíquida de €21.094,80 (€600,00 x 14 meses + €12.694,80 x 1);
- A Ré Seguradora declarou que a responsabilidade da Ré Empregadora se encontrava para si transferida com base na retribuição anual de €21.094,80;
- A Ré Empregadora declarou que “aceita a retribuição anual ilíquida de €21.04,80, a qual se encontra integralmente transferida para a seguradora.
Ou seja, estão, aí, todas as partes, incluindo pois a Ré Empregadora, de acordo que a retribuição anual transferida para a Ré Seguradora era a de €21.04,80.
Na petição inicial o A. alegou ter auferido as retribuições mencionadas no art. 7º e, no art. 16º, que a responsabilidade da Ré Empregadora se encontrava transferida para a Ré Seguradora com base na retribuição anual ilíquida de €21.094,80 (€600,00 x 14 + €12.694,80 x 1), o que foi expressamente aceite pela Ré Empregadora na sua contestação conforme decorre do art. 1º da mesma.
Por sua vez, a Ré Seguradora, na sua contestação, aceitou que a responsabilidade se encontrava para si transferida com base na retribuição anual de €21.094,80 (€ 600,00 x 14 meses + €12.694,80 x 1).
Ou seja, é certo, estiveram todas as partes, na tentativa de conciliação e nos articulados, de acordo em que a responsabilidade da Ré Empregadora se encontrava transferida para a Ré Seguradora com base na retribuição anual de €21.094,80 (€600,00 x 14 meses + €12.694,80 x 1).
E é certo, também, que dispõe o art. 131º, nº 1, al. c) que “1. Findos os articulados, o juiz profere, no prazo de 15 dias, despacho saneador destinado a: (…); c) Considerar assentes os factos sobre que tenha havido acordo na tentativa de conciliação e nos articulados”, assim como o é que, apenas agora, em sede de recurso, é que a Recorrente/Ré empregadora, vem alegar que, nos termos das folhas de férias remetidas à Ré Seguradora, a sua responsabilidade se encontrava transferida para esta com base na retribuição anual de €26,478,73 quando, se assim era, o deveria ter alegado na tentativa de conciliação e na contestação, o que não fez.
E poder-se-ia, eventualmente e também, dizer que a invocação, apenas em sede de recurso, da transferência da responsabilidade com base na retribuição anual de €26,478,73, consubstanciaria questão nova, não alegada pela Ré Empregadora na tentativa de conciliação, nem na contestação, de que a decisão recorrida não conheceu e de que esta Relação não poderia agora conhecer, sendo que os recursos não visam, nem podem, conhecer de questões novas, não atempadamente suscitadas.
Não obstante, e pelo que se dirá, assim não o entendemos.
Com efeito, os direitos decorrentes da reparação devida por acidente de trabalho têm natureza indisponível, sendo nula a convenção contrária aos direitos ou garantias conferidos pela Lei 98/2009 ou com eles incompatível, assim como são nulos os atos ou contratos que visem a renúncia aos direitos conferidos em tal Lei (cfr. art. 12º, nºs 1 e 2, da mesma), mais dispondo o seu art. 78º que os créditos provenientes do direito à reparação estabelecida em tal diploma são inalienáveis, impenhoráveis e irrenunciáveis e gozam das garantias consignadas no Código do Trabalho.
Ou seja, o regime constante da Lei 98/2009 tem natureza imperativa, sendo os direitos dela decorrentes para o sinistrado indisponíveis e nulos os acordos que contrariem tal regime.
Nos termos do art. 79º da citada Lei o empregador é obrigado a transferir a responsabilidade pela reparação prevista na lei para entidade seguradora, dispondo os nºs 4 e 5 do mesmo que “4 - Quando a retribuição declarada para efeito do prémio de seguro for inferior à real, a seguradora só é responsável em relação àquela retribuição, que não pode ser inferior à retribuição mínima mensal garantida. 5 - No caso previsto no número anterior, o empregador responde pela diferença relativa às indemnizações por incapacidade temporária e pensões devidas, bem como pelas despesas efectuadas com a hospitalização e assistência clínica, na respectiva proporção”.
Face à indisponibilidade dos direitos emergentes de acidente de trabalho, bem como à nulidade dos acordos que contrariem quer tais direitos, quer o regime da Lei 98/2009, não é legalmente admissível, sendo nulo, acordo por via do qual a empregadora assuma responsabilidade inferior aos direitos que decorrem da Lei para o trabalhador, designadamente em que assuma, substituindo-se à Seguradora, responsabilidade superior àquela que seria por ela devida pelo facto de a mesma se encontrar transferida para Seguradora com quem haja celebrado contrato de seguro de acidente de trabalho relativamente a trabalhador sinistrado; ou, dito de outro modo, é nulo o acordo por via do qual a Seguradora assuma responsabilidade inferior àquela que lhe incumbiria por via da transferência da responsabilidade nos termos do contrato de seguro que haja sido celebrado.
E a nulidade, ainda que não invocada, é de conhecimento oficioso pelo Tribunal (art. 286º do Cód. Civil).
E é de referir ainda o seguinte:
O reconhecimento da Ré Empregadora na tentativa de conciliação e na sua contestação de que a responsabilidade estaria transferida com base na retribuição €21.094,80 (€ 600,00 x 14 meses + €12.694,80 x 1) consubstanciaria confissão judicial espontânea (arts. 352º, 355º, nºs 1 e 2, e 356º, nº 1, do Cód. Civil) de facto pela Ré empregadora, sendo que, nos termos da lei substantiva, a confissão judicial pode ser declarada nula ou anulada, nos termos gerais (art. 359º do Cód. Civil).
O efeito probatório pleno da confissão judicial pode, pois, ser afastado por via da declaração da sua nulidade ou anulabilidade. A anulabilidade deverá ter lugar em ação própria para o efeito a qual, como decorre do art. 464º do CPC, não impede o prosseguimento da causa em que a confissão se fez, sendo que o (eventual) erro consubstancia vício da vontade determinante, não da nulidade da declaração confessória, mas sim da sua anulabilidade.
Porém, a nulidade, sendo, como é, de conhecimento oficioso – art. 286º do Cód. Civil – pode ser conhecida no âmbito da ação em que foi proferida a declaração confessória – cfr. José Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2º, 4ª Edição, Almedina, pág. 303, em anotação ao art. 464º, ao referir que “[s]endo a confissão nula, nada obsta a que, até ao trânsito em julgado da sentença e sem prejuízo do disposto no art. 613-1, a nulidade se faça valer diretamente no próprio processo em que tenha sido produzida ou invocada ou a que, se for manifesta, o juiz oficiosamente a declare (art. 286 CC), fazendo-se valer assim uma exceção probatória (…)[2]”.
Por fim, e como é sabido, o contrato de seguro pode ser celebrado na modalidade de prémio variável, em que a responsabilidade do empregador é transferida para a seguradora com base na retribuição declarada por aquele nas folhas de remunerações que a esta envia mensalmente.

Revertendo ao caso em apreço, com a participação do acidente de trabalho a Ré Seguradora juntou aos autos as folhas de remunerações que lhe foram enviadas pela Ré Empregadora relativas aos meses de novembro de 2018 a outubro de 2019 (bem como a de outubro de 2019) e das quais constam, relativamente ao A., o pagamento mensal, sob a designação de “venc” e “outros”, de prestações no montante global superior ao de €21.094,80 referido nos articulados bem como na tentativa de conciliação, montante global esse muito próximo do agora alegado pela Recorrente, de €26.478,73, sendo a componente designada de “outros” de montante superior ao de €12.694,80 a que as partes se reportaram na tentativa de conciliação e nos articulados (se bem contabilizámos, essas “outras” prestações ascenderam a €18.263,40).
Ora, assim sendo, pode-se efetivamente suscitar, e oficiosamente (para além de que foi suscitada pela Recorrente no recurso) ainda, a questão de a responsabilidade da Ré empregadora poder, eventualmente, estar transferida para a Ré Seguradora por montante superior ao que por esta, e pela Ré empregadora, foi declarado na tentativa de conciliação, bem como alegado pelo A. na petição inicial e aceite pelas Rés nas respetivas contestações.
Diga-se ainda que não é indiferente para o sinistrado ter a reparação devida por acidente de trabalho garantida pela Seguradora por via da celebração de contrato de seguro de acidentes de trabalho em vez de a ter pelo empregador, conferindo aquela maior segurança do que esta (por essa mesma razão tendo sido instituído o regime de transferência obrigatória da responsabilidade do empregador para entidade seguradora – art. 79º, nº 1, da Lei 98/2009[3]), para além de que, em caso de eventual impossibilidade de cumprimento pelo empregador que determinasse a responsabilidade do FAT, poderia este, eventualmente, acabar por ser responsabilizado/onerado pela garantia do pagamento de prestações (nos termos previstos na lei – Lei 142/99, de 30.04[4]) que, por via do contrato de seguro, seriam da responsabilidade da Seguradora, sem esquecer que o regime garantístico conferido pelo FAT assenta em normas que tutelam um interesse de ordem pública.
Ora, tratando-se, como se trata e se disse, de matéria subtraída à disponibilidade das partes e podendo o acordo das partes manifestado na tentativa de conciliação e nos articulados mostrar-se ferido de nulidade e tendo em conta, ainda, que a decisão recorrida foi proferida no despacho saneador, cabia à 1ª instância, ainda que oficiosamente, esclarecer cabalmente tal questão, designadamente, notificando as partes, em conformidade e nos termos do art. 27º, nº 2, al. b), do CPT, para esclarecerem devidamente tal questão/discrepância, o que se impõe, agora, que seja determinado.
Assim sendo, e em consequência, impõe-se revogar a decisão recorrida, determinando-se à 1ª instância o devido esclarecimento de tal questão, com a subsequente tramitação processual a que haja lugar e oportuna prolação de sentença em conformidade.
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V. Decisão

Em face do exposto, acorda-se em conceder parcial provimento ao recurso, revogando-se a decisão recorrida e determinando-se à 1ª instância, ainda que oficiosamente, em conformidade com o referido e tendo em conta as folhas de remunerações juntas aos autos pela Ré Seguradora na fase conciliatória do processo, o esclarecimento cabal da questão relativa à medida da transferência da responsabilidade da Ré Empregadora para a Ré Seguradora pela reparação dos danos emergentes do acidente de trabalho em apreço nos autos, designadamente notificando as partes, em conformidade com o referido e nos termos do art. 27º, nº 2, al. b), do CPT, para os necessários esclarecimentos, com a subsequente tramitação processual a que haja lugar e oportuna prolação de sentença em conformidade.

Custas pela parte vencida a final.


Porto, 17.04.2023
Paula Leal de Carvalho
Rui Penha
Jerónimo Freitas
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[1] Faz-se uma mais exaustiva transcrição da contestação para melhor compreensão da questão e, como se dirá, do que equívoco da Ré Empregadora, ora Recorrente.
[2] Realce a negrito constante do original.
[3] Solução também adotada na legislação infortunística pretérita.
[4] Alterado pelos DL 382-A/99, de 22, 9, 185/2007, de 10.05 e 18/2016, de 13.04.