Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
573/17.9T8VFR-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JUDITE PIRES
Descritores: RESPONSABILIDADES PARENTAIS
INCUMPRIMENTO DA PRESTAÇÃO DE ALIMENTOS
FUNDO DE GARANTIA DOS ALIMENTOS DEVIDOS A MENORES
PRESTAÇÃO FIXA E VARIÁVEL
FIXAÇÃO
CRITÉRIOS
EQUIDADE
Nº do Documento: RP20190124573/17.9T8VFR-B.P1
Data do Acordão: 01/24/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: ACÇÃO DE HOMOLOGAÇÃO DE ALTERAÇÃO DAS RESPONSABILIDADES PARENTAIS
Decisão: INCIDENTE DE INCUMPRIMENTO DAS RESPONSABILIDADES PARENTAIS
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º161, FLS.157-160)
Área Temática: .
Sumário: I - Em conformidade com a jurisprudência uniformizada pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 5/2015, de 19 de Março de 2015, a prestação a suportar pelo Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores não pode ser fixada em montante superior ao da prestação de alimentos a que está vinculado o devedor originário.
II - Estando o devedor originário obrigado a uma prestação de alimentos de valor fixo, e também a uma prestação de montante variável – designadamente, comparticipação nas despesas médicas, medicamentosas e escolares -, nada obsta que a prestação substitutiva a cargo do FGADM compreenda também aquela prestação variável, cuja quantificação deverá ser determinada com recurso a critérios de equidade que pondere os elementos trazidos ou recolhidos nos autos.
III - Essa possibilidade, porém, dependerá da existência de incumprimento, alegado e reconhecido nos autos, do devedor originário relativamente também àquela prestação de valor variável.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 573/17.9T8VFR-B.P1
Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro
Juízo de Família e Menores de Santa Maria da Feira – J. 2

Relatora: Judite Pires
1ºAdjunto: Des. Aristides de Almeida
2ª Adjunta: Des. Inês Moura
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
I. RELATÓRIO
Por B…, progenitora da criança C…, foi deduzido incidente de incumprimento das responsabilidades parentais contra o progenitor desta, D….
Tendo sido julgado verificado o incumprimento pelo progenitor relativamente às prestações alimentícias devidas filha C…, veio a progenitora requerer e o Ministério Público promover se declare que se verificam todos os requisitos para que o Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores suporte a prestação substitutiva, prevista no artigo 1.º da Lei n.º 75/98, de 19/11 e no artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 164/99, de 13/5, em relação à criança.
Após junção de diversos elementos, mostrando-se igualmente junto relatório social, foi proferida sentença que:
- Julgou “inviável lançar mão dos meios de tornar efectiva a prestação de alimentos previstos no art.º 48.º do RGPTC”;
e
- Fixou “a prestação alimentícia substitutiva mensal, a pagar pelo Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores no montante de €90,00 (noventa euros), a favor da C… [...].
2. Não se conformando com o decidido, interpôs a requerente recurso para esta Relação, admitido como de apelação, findando as suas alegações com as seguintes conclusões:
1. O Requerido foi condenado a entregar à mãe da menor a quantia mensal de €90,00 a título de alimentos devidos à filha, actualizável anualmente no montante de dois euros, bem como metade das despesas médicas, medicamentos e escolares;
2. Na definição do valor a ser pago pelo Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores, não foi tido em consideração o amplo conceito jurídico de alimentos;
3. A prestação de alimentos, conforme determinada na sentença dos autos principais, engloba uma prestação fixa e uma variável;
4. As despesas de índole variável não foram relevadas na determinação da prestação substitutiva a ser entregue pelo Fundo;
5. A menor, C…, não poderá nem deverá ser prejudicada no montante a receber do Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores, atendendo às capacidades económicas do agregado, ao montante da prestação de alimentos fixada e às suas necessidades específicas;
6. A não fixação da uma prestação onde sejam consideradas as prestações fixas e variáveis viola os direitos da criança e desrespeita os seus superiores interesses;
7. Deve ser fixado o montante a pagar pelo Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores no montante de €110,00, observando um juízo de prognose e de equidade face às necessidades de uma criança da sua idade 

Termos em que, e nos melhores de direito, e sempre com o mui douto suprimento de Vossas Excelências, deve ser dado provimento ao recurso, fixando-se a prestação alimentícia substitutiva mensal a pagar pelo Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores à menor C…, no valor mensal de cento e dez euros, actualizável anualmente, com início em Janeiro de 2019, de acordo com o índice de inflação que vier a ser fixado para o ano de 2018 a divulgar pelo Instituto Nacional de Estatística, representando a parte da prestação fixa e uma parte variável [...].
O Ministério Público respondeu ao recurso interposto, pugnando pela manutenção do decidido.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar.
II. OBJECTO DO RECURSO
A. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pela recorrente e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, importando destacar, todavia, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito.
B. Considerando, deste modo, a delimitação que decorre das conclusões formuladas pelo recorrente, no caso dos autos cumprirá apreciar se devia ter sido fixada em €110,00 a pensão de alimentos a suportar pelo Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores.
III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Em primeira instância foram considerados provados os seguintes factos com relevância:
A) A C… nasceu em 27 de Junho de 2008, sendo filha de B… e de D…;
B) No âmbito do processo principal, por sentença proferida em 20 de Março de 2017, transitada em julgado, foi homologado o acordo celebrado entre os progenitores, quanto à residência e exercício das responsabilidades parentais relativamente à C…, nos termos do qual a criança ficou confiada à guarda e cuidados da mãe, com esta ficando a residir;
C) Nesse processo, em 20 de Março de 2017, foi, ainda, fixado pelo Tribunal um regime provisório quanto a alimentos, nos termos do qual o pai ficou obrigado a pagar, a esse título, a quantia mensal de €200,00 a favor da filha;
D) Ainda no âmbito do processo principal, por sentença proferida em 26 de Fevereiro de 2018, transitada em julgado, foi homologado o acordo celebrado entre os progenitores quanto a alimentos, segundo o qual o pai ficou obrigado a pagar a quantia mensal de €90,00 a título de alimentos devidos à filha, actualizável anualmente no montante de dois euros, bem como metade das despesas médicas, medicamentos e escolares;
E) Por decisão proferida no presente apenso em 11 de Junho de 2018, foi julgado verificado o incumprimento pelo progenitor relativamente as pensões alimentícias devidas à filha C… desde Junho de 2017;
F) O progenitor não trabalha por conta de outrem, nem recebe qualquer pensão ou subsídio, inexistindo forma de viabilizar o cumprimento coercivo das pensões;
G) A C… reside com a mãe, em Portugal;
H) O agregado familiar, composto pela progenitora e pela C…, possui apenas os seguintes rendimentos: - €310,14, correspondentes a 1/12 de rendimentos de trabalho por conta de outrem auferidos pela progenitora no ano de 2017, no valor total de €3.721,78;
I) O rendimento per capita do agregado ascende, assim, a €206,76;
J) A C… não tem rendimento ilíquido superior ao valor do indexante dos apoios sociais (IAS);
K) A C… não beneficia de rendimentos líquidos de outrem a cuja guarda se encontra superiores ao valor do IAS.
IV. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.
Resulta nos autos demonstrado que no âmbito do processo principal, por sentença proferida em 26 de Fevereiro de 2018, transitada em julgado, foi homologado o acordo celebrado entre os progenitores quanto a alimentos, segundo o qual o pai ficou obrigado a pagar a quantia mensal de €90,00 a título de alimentos devidos à filha, actualizável anualmente no montante de dois euros, bem como metade das despesas médicas, medicamentos e escolares – alínea D) dos factos provados.
Também se mostra comprovado que por decisão proferida no presente apenso em 11 de Junho de 2018, foi julgado verificado o incumprimento pelo progenitor relativamente as pensões alimentícias devidas à filha C… desde Junho de 2017 – alínea E) dos factos provados.
Em decorrência de tal factualidade, a sentença recorrida veio a fixar “a prestação alimentícia substitutiva mensal, a pagar pelo Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores no montante de €90,00 (noventa euros), a favor da C…”.
Discorda a Recorrente do valor fixado, sustentando que o conceito jurídico de alimentos é mais amplo do que os simples bens alimentares, e achando-se o progenitor incumpridor obrigado, além da pensão de alimentos no montante fixo de €90,00, a também suportar metade das despesas médicas, medicamentosas e escolares, deveria a decisão, ao fixar o valor a suportar pelo FGADM, ter tido em consideração esse valor variável, a que, num juízo de prognose e de equidade, deve corresponder valor mensal não inferior a €20,00, pelo que a prestação substitutiva devia ter sido fixada em €110,00 e não em €90,00, montante que não excede o valor do IAS.
A Lei n.º 75/98, de 19 de Novembro, alterada pela Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro e pela Lei n.º 24/2017, de 24 de Maio, determinou a constituição do Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores destinado a assegurar o pagamento das prestações fixadas nos termos da mesma lei (artigo 6.º, n.ºs 1 e 2).
De acordo com o artigo 1.º, n.º 1, do referido diploma legal “quando a pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos a menor residente em território nacional não satisfizer as quantias em dívida pelas formas previstas no artigo 189.º do Decreto-Lei n.º 314/78, de 27 de outubro, e o alimentado não tenha rendimento ilíquido superior ao valor do indexante dos apoios sociais (IAS) nem beneficie nessa medida de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontre, o Estado assegura as prestações previstas na presente lei até ao início do efetivo cumprimento da obrigação”.
Como instrumento regulamentador do aludido diploma, o Decreto-Lei n.º 164/99, de 13 de Maio[1], veio reafirmar aquela competência do FGADM, sob a gestão do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, I.P., para, na falta do pagamento das prestações por alimentos devidas a menores por parte das pessoas judicialmente obrigadas a prestá-los, assegurar tal pagamento (artigos 2.º, n.ºs 1 e 2 e 3.º, n.º 1, al. a)).
No caso em apreço não está em causa o critério de determinação da situação de carência enquanto pressuposto de intervenção social do FGADM, mas tão somente a possibilidade das prestações sociais a cargo deste poderem ser de valor distinto do valor da prestação de alimentos a que o progenitor se achava obrigado, mais concretamente, se a prestação a suportar pelo referido FGADM, em substituição daquele, pode ser de montante superior ao da prestação de valor fixo a que aquele se achava vinculado.
É sobejamente conhecida a querela doutrinária e jurisprudencial que, a propósito de tal questão, se desenvolveu no ordenamento jurídico português, havendo quem sustentasse que o valor da prestação a suportar pelo FGADM jamais poderia ultrapassar o valor da prestação de alimentos a que estava vinculado o devedor originário, defendendo outros, ao invés, a possibilidade de a prestação a suportar pelo FGADM ser superior à prestação de alimentos fixada a cargo do devedor originário.
O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 5/2015, de 19 de Março de 2015[2], embora de forma não consensual, veio equacionar aquela indefinição ao uniformizar assim a jurisprudência sobre tal questão: Nos termos do disposto no artigo 2.° da Lei n.º 75/98, de 19 de Novembro, e no artigo 3.° n.º 3 do Decreto-Lei nº 164/99, de 13 de Maio, a prestação a suportar pelo Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores não pode ser fixada em montante superior ao da prestação de alimentos a que está vinculado o devedor originário”.
Os acórdãos uniformizadores de jurisprudência têm a virtualidade de por cobro a controvérsias geradas pela forma antagónica como as instâncias, até serem proferidos, apreciavam e decidiam questões concretas sobre as quais eram chamadas a pronunciar-se. Pela sua natureza, constituem jurisprudência qualificada, da qual apenas é de consentir divergência quando se desenvolva um argumento novo e de relevante valor, nele não ponderado, seja no seu texto, seja nos votos de vencido, susceptível de desequilibrar os termos da discussão jurídica contra a solução anteriormente perfilhada.
A desconsideração do referido acórdão uniformizador, permitindo que o FGADM suportasse uma prestação de valor superior à que estava obrigado o devedor originário, frustraria o escopo da figura da uniformização, na proteção dos valores da segurança jurídica e da igualdade de tratamento.
No caso aqui em debate, o devedor originário estava, porém, obrigado, para além do pagamento de uma prestação mensal fixa, a uma prestação incerta e de conteúdo variável, na medida em que tinha de suportar metade das despesas médicas, medicamentosas e escolares relativas à sua filha C….
Nestas circunstâncias, aceita-se que a prestação a cargo do FGADM pudesse ser fixada em valor superior à prestação fixa a que estava obrigado o devedor originário (€90.00), de forma a poder também contemplar a prestação variável, sem que essa possibilidade afronte o decidido no mencionado Acórdão Uniformizador de Jurisprudência. Neste caso, a prestação a suportar pelo FGADM compreenderia não apenas a prestação fixa a que estava obrigado o progenitor, mas também a prestação variável referente à sua comparticipação nas despesas médicas, medicamentosa e escolares a que também estava obrigado, devendo a quantificação da mesma efectuar-se com recurso a critérios de equidade[3], valorando os elementos probatórios para tanto trazidos aos autos ou neles recolhidos.
Dada, todavia, a natureza de intervenção do FGADM – em substituição do obrigado à prestação de alimentos -, este apenas pode responder quando haja incumprimento do devedor originário e na medida desse incumprimento.
Sucede que no requerimento em que deduz o incidente do incumprimento a progenitora da C… apenas alega ter o progenitor incumprido a obrigação de natureza fixa, não tendo procedido ao pagamento de valores mensais fixados a título de alimentos, em parte alguma nele invocando o incumprimento em relação às despesas a que também se achava obrigado e a sentença relativa a tal incidente apenas, em conformidade com o alegado, reconhece o incumprimento em relação àquelas prestações, condenando o progenitor ao pagamento dos correspondentes valores em dívida.
Desta forma, não estando reconhecido qualquer incumprimento em relação às despesas a que o devedor originário estava obrigado, qualquer valor das mesmas jamais poderia ser imputado à prestação substitutiva a cargo do FGADM.
Com efeito, onerar o FGADM com uma prestação de valor superior a €90,00, quando a progenitora apenas invoca incumprimento em relação a tal prestação fixa e a decisão que julga verificado o incumprimento do progenitor da C… apenas o reconhece em relação a tal prestação, equivaleria, na prática, impor àquele Fundo prestação de valor superior ao fixado ao devedor originário – sempre no pressuposto de que é o incumprimento deste que justifica e determina a intervenção daquele -, solução que o mencionado Acórdão Uniformização claramente quis arredar.
Improcede, consequentemente, o recurso, com confirmação do decidido.
*
Síntese conclusiva:
............................................................................
............................................................................
...........................................................................
*
Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação, na improcedência da apelação, em confirmar a decisão recorrida
Custas - pela apelante.
*
O presente acórdão foi processado por meios informáticos e revisto pela primeira signatária.
*
Porto, 24 de Janeiro de 2019
Judite Pires
Aristides Rodrigues de Almeida
Inês Moura
______
[1] Com a redação introduzida pelo Decreto-Lei n.º 70/2010, de 16 de Junho e, posteriormente, pela Lei n.º 64/2012, de 20 de Dezembro.
[2] Publicado no DR, 1ª série, n.º 85, pág. 2223.
[3] Neste sentido, cfr. acórdão da Relação de Évora de 11.01.2018, processo n.º 508/13.8TBABT-A.E1, www.dgsi.pt.