Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1036-A/2002.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ALBERTO RUÇO
Descritores: HIPOTECA VOLUNTÁRIA
SOCIEDADE COMERCIAL
DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA
NULIDADE
INTERESSE JUSTIFICADO
ÓNUS DA PROVA
NULIDADE DE SENTENÇA
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
Nº do Documento: RP201409151036-A/2002.P1
Data do Acordão: 09/15/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Se ao preparar a elaboração da sentença o juiz se aperceber que a solução do caso passa por uma construção jurídica que as partes não debateram até ao momento, nem podiam contar com ela, o juiz, ao abrigo do disposto no n.º 3, do artigo 3.º do Código de Processo Civil, deve interromper a elaboração da sentença e proferir um despacho a alertar para essa construção jurídica convidando as partes a pronunciarem-se, querendo, sobre ela e só mais tarde, noutro momento processual, elaborará a sentença.
II – Porém se o juiz proferir a sentença sem antes notificar as partes nos termos referidos, tal omissão não gera a nulidade da sentença posteriormente proferida (artigo 615.º do Código de Processo Civil).
III – O ónus da prova quanto ao «justificado interesse» próprio da sociedade garante em relação à garantia prestada, mencionado no n.º 3 do artigo 6.º do Código das Sociedades Comerciais, recai sobre o credor beneficiário da garantia.
IV – O credor beneficiário da garantia cumpre com tal ónus se provar que o dinheiro que mutuou à sociedade devedora foi também utilizado, em parte, para pagar dívidas da sociedade que prestou a garantia, ainda que não prove o montante exacto.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Tribunal da Relação do Porto – 5.ª secção.
Recurso de Apelação.
Processo n.º 1036-A/2002 do Tribunal Judicial da Comarca de Santa Maria da Feira – 3.º Juízo Cível.
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Juiz relator – Alberto Augusto Vicente Ruço.
1.º Juiz-adjunto……Joaquim Manuel de Almeida Correia Pinto.
2.º Juiz-adjunto…….Ana Paula Pereira de Amorim.
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Sumário:
I – Se ao preparar a elaboração da sentença o juiz se aperceber que a solução do caso passa por uma construção jurídica que as partes não debateram até ao momento, nem podiam contar com ela, o juiz, ao abrigo do disposto no n.º 3, do artigo 3.º do Código de Processo Civil, deve interromper a elaboração da sentença e proferir um despacho a alertar para essa construção jurídica convidando as partes a pronunciarem-se, querendo, sobre ela e só mais tarde, noutro momento processual, elaborará a sentença.
II – Porém se o juiz proferir a sentença sem antes notificar as partes nos termos referidos, tal omissão não gera a nulidade da sentença posteriormente proferida (artigo 615.º do Código de Processo Civil).
III – O ónus da prova quanto ao «justificado interesse» próprio da sociedade garante em relação à garantia prestada, mencionado no n.º 3 do artigo 6.º do Código das Sociedades Comerciais, recai sobre o credor beneficiário da garantia.
IV – O credor beneficiário da garantia cumpre com tal ónus se provar que o dinheiro que mutuou à sociedade devedora foi também utilizado, em parte, para pagar dívidas da sociedade que prestou a garantia, ainda que não prove o montante exacto.
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Recorrente…………………B…, Lda., com sede em …, …, ….-… Lourosa.
Recorrido...…………………C…, S. A., com sede em …, …-…, ….-… Porto.
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I. Relatório.
a) O Banco exequente, ora recorrido, instaurou execução contra a Recorrente B…, Lda., e ainda contra a sociedade D…, Lda., E… e F…, sendo estes dois últimos os únicos sócios e gerentes de ambas as sociedades mencionadas.
O Banco pretende com a execução obter o pagamento de uma dívida contraída pela sociedade D…, perante si, em 30 de Dezembro de 1997, através de contrato de mútuo, no montante de 40.000.000$00, tendo a sociedade recorrente B… constituído, na escritura pública relativa ao aludido mútuo, uma hipoteca a favor do Banco para garantir o pagamento da dívida então contraída pela sociedade D….
Os embargos deduzidos pela recorrente B… fundaram-se, entre outras razões já não pertinentes em sede de recurso, no facto da hipoteca constituída a favor do Banco ser nula, no entendimento dos embargantes, por força do disposto no n.º 3, do artigo 6.º, do Código das Sociedades Comerciais, disposição onde se dispõe que se considera «…contrária ao fim da sociedade a prestação de garantias reais ou pessoais a dívidas de outras entidades, salvo se existir justificado interesse próprio da sociedade garante ou se se tratar de sociedade em relação de domínio ou de grupo».
A sentença não acolheu este entendimento e julgou os embargos improcedentes.
b) É desta decisão que a embargante recorre, tendo, no final das alegações, formulado as seguintes conclusões:
«a) […].
b) O artigo 5.º do Código das Sociedades Comerciais prescreve o seguinte: “As sociedades gozam de personalidade jurídica e existem como tal a partir da data do registo definitivo do contrato pelo qual se constituem, sem prejuízo do disposto quanto à constituição de sociedades por fusão, cisão ou transformação de outras”.
c) Nessa medida, conforme doutamente refere a sentença recorrida, e nessa parte acompanhamos na plenitude, “Uma sociedade comercial é um ente autónomo, dotado de personalidade própria, que na aparência das coisas não se confunde com os seus membros nem com outros entes congéneres”;
d) O artigo 2.º do Código das Sociedades Comerciais estatui o seguinte: “Os casos que a presente lei não preveja são regulados segundo a norma desta lei aplicável aos casos análogos e, na sua falta, segundo as normas do Código Civil sobre o contrato de sociedade no que não seja contrário nem aos princípios gerais da presente lei nem aos princípios informadores do tipo adoptada”;
e) Apesar da necessidade do recurso ao instituto da Desconsideração da Personalidade Jurídica, em concretos casos, a verdade é que, tal figura terá imperiosamente que ter um carácter subsidiário, só devendo ser invocado na falta de qualquer outro fundamento legal;
f) Ora, na douta decisão recorrida afastou-se claramente a regra legal prevista no artigo 5.º do Código das Sociedades Comerciais, segundo a qual uma Sociedade comercial é um ente autónomo dotado de personalidade jurídica, ao considerar-se que a sociedade recorrente e a sociedade D…, Lda. são uma só entidade; g) Sucede que a embargada C…, S.A., não aludiu de forma directa ou indirecta à figura da Desconsideração da Personalidade Jurídica, por exemplo, alegando que o prédio objecto da garantia hipotecária prestada pela recorrente foi inscrito a seu favor por algum modo ou objectivo fraudulento, para de seguida ser dado de hipoteca à recorrida e, mais tarde, poder ser invocada alguma razão objectiva de invalidade do negócio;
h) A verdade é que, o prédio dado de hipoteca sempre foi da sociedade recorrente;
i) Nestes termos, com o devido respeito, que muito é, não vislumbramos uma utilização abusiva da personalidade jurídica da recorrente para dar de hipoteca à recorrida o prédio em crise nos presentes autos;
j) Estamos em crer, por isso, que o princípio a autonomia da personalidade jurídica das sociedades comerciais inscrito no artigo 5.º do Código das Sociedades Comerciais só poderia ser afastado, por via do instituto da desconsideração da personalidade jurídica, no caso de concreta utilização ilícita daquela personalidade colectiva e que, no caso aqui em crise, não sucedeu;
k) Nestes termos, não tendo sido invocados fundamentos que autorizem concluir pelo aproveitamento abusivo da personalidade jurídica, não é possível a sua desconsideração pura e simples, só porque os sócios das sociedades são os mesmo e o objecto social se confunde;
I) Portanto, a sempre douta decisão recorrida não poderia ter afastado da aplicação o n.º 3 do artigo 6.º pela via do Instituto da Desconsideração da Personalidade Jurídica e, assim, decidindo como decidiu violou aquele preceito como também o artigo 5.º do Código das Sociedades Comerciais;
m) Acresce que, douta sentença em crise é nula por violação do Princípio do Contraditório;
n) O Digníssimo Tribunal a quo ao invocar a Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica para fundamentar a douta sentença recorrida decidiu de forma inesperada;
o) Ora, como já disse, em momento algum a sociedade recorrida alegou a utilização ilícita e/ou abusiva da personalidade jurídica da recorrente, com o intuito de a prejudicar, por via de conduta contrária a normas ou princípios gerais;
p) Ainda que a embargada/recorrida tivesse alegado a utilização ilícita e/ou abusiva da personalidade jurídica da recorrente, com o intuito de a prejudicar, o que não se concede e se coloca por mera hipótese de raciocínio, a fundamentação jurídica da sempre douta sentença recorrida ao interpretar o pedido formulado pela recorrida/embargante – Devem os presentes autos ser julgados não provados e improcedentes com as necessários consequências legais - como um pedido de Desconsideração da Personalidade Jurídica, Sem que aos recorrentes fosse dada oportunidade de exercerem o contraditório nessa questão jurídica, colheu-os de surpresa;
q) Embora o Tribunal a quo não esteja vinculado à qualificação jurídica levada aos autos pelas partes, para decidir como decidiu, sempre deveria ter dado cumprimento ao artigo 3.º do Código de Processo Civil, o que não sucedeu;
r) A douta decisão recorrida, ao lançar mão do instituto da Desconsideração da Personalidade Jurídica para concluir que a recorrente e a sociedade D…, Lda., são uma só entidade, contem em si mesma, um juízo de abuso daquela personalidade;
s) Tal abuso nunca foi discutido nos presentes autos;
t) E ainda que, por mera hipótese de raciocínio, os patrimónios se confundam, os sócios sejam os mesmos e o objecto social semelhante tal não é, por si, só uma actuação ilegal e/ou abusiva e são inúmeras as sociedades na esfera jurídica portuguesa nessas condições, isto é, os mesmos sócios com património e objecto social confundíveis;
u) Em suma, o Digníssimo Tribunal recorrido decidiu sem que tenha sido alegado o abuso da personalidade jurídica por prática de comportamento abusivo e/ou ilícito daquele personalidade, estribou-se num pedido não efectuado pela recorrida e nem sequer deu à recorrente, em consonância com o Princípio do Contraditório, a possibilidade de se pronunciar quanto a essa decisão;
v) Nestes termos, a sempre douta sentença é nula violação do Princípio do Contraditório configurando uma decisão surpresa, o que desde já se invoca para os devidos efeitos.
w) Além do mais, não concorda a recorrente que tenha tido algum interesse ou conveniência com a prestação da garantia hipotecária ou que sobre ela impendesse ónus da prova sobre aquele dito interesse ou conveniência;
x) O fim das sociedades comerciais é o lucro, e é esse, o sentido inscrito no preceito “fim” do n.º 1 do artigo 6.º do Código das Sociedades comerciais:
Y) Infere o Digníssimo Tribunal a quo do facto dado como provado de que «aquando da solicitação do empréstimo referiam que o mesmo, pelo menos em parte, destinava-se ao pagamento das dívidas da “B…” que tal era do interesse da sociedade;
z) Com o devido respeito, não pode concluir-se daquele facto provado que a prestação da garantia hipotecária tenha sido de interesse da Sociedade “B…”;
aa) Levados mais uma vez ao princípio da autonomia da personalidade jurídica das sociedades previsto no artigo 5.º do Código das Sociedades Comerciais, os sócios e a sociedade são pessoas juridicamente distintas;
bb) Uma coisa é a personalidade jurídica dos sócios outra é a personalidade Jurídica da sociedade;
cc) E nem sempre os interesses extra-sociais dos sócios se coadunam com o interesse da sociedade;
dd) O interesse societário não pode aferir-se pela declaração dos sócios tendo que ser analisado casuisticamente e sempre do ponto de vista da sociedade como ente individual dotado de personalidade jurídica;
ee) Nos presentes autos não fica sequer provado em que veste se colocavam E… e mulher quando terão referido que os empréstimos pelo menos em parte se destinavam ao pagamento das dívidas da “B…”;
ff) Fizeram-no na qualidade de sócios gerentes da D… ou da B…?;
gg) A questão não é despicienda, já que, o que é de interesse duma Sociedade pode não ser necessariamente do interesse da outra;
hh) Por outro lado, salvo melhor opinião, e ao contrário do que entende a douta decisão recorrida, a quem impendia a prova de que a recorrente tinha justificado interesse na prestação da garantia;
ii) E a recorrida não o fez;
jj) Ora, o que a douta sentença recorrida deu como provado, com interesse para esta específica problemática, foi que E… e mulher referiram que o empréstimo se destinava em parte ao pagamento das dívidas da recorrente e que o dito empréstimo foi utilizado no pagamento de dívidas da recorrente, Cfr. ponto 8 e 9 da fundamentação de facto;
kk) Mas, qual o valor que foi utilizado por via do empréstimo para o alegado pagamento?
Terá sido de €500,00 (quinhentos euros), €1000,00 (mil euros)?
ll) É do interesse da recorrente dar de hipoteca um prédio de valor superior às suas dívidas?
mm) A resposta só pode ser negativa.
nn) Nestes termos, ainda que por mera hipótese de raciocínio a recorrente tenha dado de hipoteca um prédio para garantia dum empréstimo a outra sociedade de que veio a beneficiar, tal contraria o fim societário quando o prédio é de valor superior ao montante das suas dividas.
oo) Pelo que, decidindo como decidiu, o douto acórdão recorrido violou o artigo 2.º, 5.º, n.º 1 e 3.º do artigo 6.º todos do Código das Sociedades Comerciais, o artigo 3.º do Código de Processo Civil que insere em si o Princípio do Contraditório, e as regras do ónus da prova constantes dos artigos 342.º e seguintes do Código Civil.
Termos em que se deve conceder provimento ao presente recurso; devendo a douta sentença do tribunal a quo ser revogada, e, consequentemente, serem os embargos de executados julgados procedentes, com o que…».
c) O Banco não contra-alegou.
II. Objecto do recurso.
A primeira questão colocada no recurso é de natureza processual e respeita à nulidade da sentença, por alegada violação do princípio do contraditório estabelecido no n.º 3, do artigo 3.º, do Código de Processo Civil, onde se determina que «O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem», nulidade que resultará, segundo a recorrente, do facto da decisão se ter fundamentado no instituto da desconsideração da personalidade jurídica para concluir que a recorrente B… e a sociedade D…, são uma só entidade,
A respeito desta matéria, caso se conclua pela existência da nulidade, coloca-se ainda a questão de saber qual a consequência da nulidade, ou seja, se se anula a sentença e se remetem os autos à 1.ª instância para a Recorrente se pronunciar sobre a matéria em questão ou se se considera que a Recorrente já se pronunciou em sede de alegações de recurso sobre o tema, tendo já exercido o contraditório, cumprindo ao tribunal da Relação, neste caso, ao abrigo do disposto no n.º 1, do artigo 665.º do Código de Processo Civil [1], conhecer do mérito do recurso apesar de ter reconhecido a existência da nulidade
Em segundo lugar, caso a decisão da questão anterior não condicione negativamente o conhecimento da questão a seguir referida (e da posterior a esta), coloca-se a questão de saber se no caso pode ser afastada da aplicação o n.º 3 do artigo 6.º do Código das Sociedades Comerciais pela via do instituto da desconsideração da personalidade jurídica.
Por fim, coloca-se a questão de saber se a garantia hipotecária prestada pela Recorrente B… está ferida de nulidade por infracção ao disposto no n.º 3 do art. 6.º do Código das Sociedades Comerciais, analisando-se aqui a questão de saber a quem compete o ónus da prova relativamente à demonstração de um «justificado interesse próprio da sociedade garante» em relação à garantia prestada.
III. Fundamentação.
a) Matéria de facto provada.
1) No dia 30 de Dezembro de 1997, no 6.º Cartório Notarial do Porto, foi lavrada uma escritura pública de mútuo com hipoteca, nela figurando como primeiro outorgante o Dr. G… em representação do C…, S.A. e como segundos outorgantes, E… e mulher F…, os quais nela intervieram por si e na qualidade de únicos sócios-gerentes da sociedade D…, Lda., bem como de únicos sócios-gerentes da sociedade B…, Lda. (cfr. doc. de fls. 8 e seguintes dos autos principais). [alínea A) dos Factos Assentes]
2) Na escritura referida em 1) consta a seguinte declaração efectuada pelo C…, S.A., através do seu representante: «que, em nome do seu representado C…, S.A., concede à D…, Lda., um empréstimo no montante de quarenta milhões de escudos, pelo prazo de um ano, renovável, ao juro anual, inicial, de 10%, acrescido de 4% em caso de mora, sendo as despesas fixadas em 4% do valor do empréstimo, e nas condições gerais resultantes de um documento elaborado de harmonia com o nº 2 do art. 64º do Código do Notariado, que apresentam e fica a fazer parte da escritura.» [alínea B) dos Factos Assentes].
3) Na escritura referida em 1), E… e mulher F… declararam, em representação da D…, Lda., «que, para a sua representada D…, Lda., aceitam o mútuo e as condições gerais referidas». [alínea C) dos Factos Assentes].
4) Na escritura referida em 1), E… e mulher F… declararam ainda e em representação de B…, Lda. «que, em nome da sua representada B…, Lda., e para garantia de todas as responsabilidades assumidas ou a assumir perante o referido Banco pela sociedade D…, Lda., por crédito concedido e/ou garantias prestadas, até ao montante de vinte milhões de escudos, ao juro anual, inicial, de 10%, acrescido de 4% em caso de mora, e de despesas de 4% do valor do capital garantido, constituem a favor do Banco representado do primeiro, hipoteca voluntária sobre a fracção “G” correspondente ao rés-do-chão, destinada a comércio, do prédio sito na …, …, Lourosa, Santa Maria da Feira, descrita na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 468, afecto ao regime de propriedade horizontal pela inscrição F-1, com registo de aquisição G-2, inscrito na matriz sob o artigo 2.745». [alínea D) dos Factos Assentes].
5) Na escritura referida em 1), E… e mulher, F… declararam igualmente «que em seu próprio nome, e para garantia de todas as responsabilidades assumidas ou a assumir perante o referido Banco pela sociedade D…, Lda., por crédito concedido e/ou garantias prestadas, até ao montante de vinte milhões de escudos, ao juro anual, inicial, de 10%, acrescido de 4% em caso de mora, e de despesas de 4% do valor do capital garantido, constituem a favor do Banco representado do primeiro, hipoteca voluntária sobre o prédio urbano, composto de casa de rés-do-chão e primeiro andar para habitação, sito no l…, …, Santa Maria da Feira, descrito na Conservatória do Registo Predial de Santa Maria da Feira sob o nº 700, com registo de aquisição G-2, inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo 1.087». [alínea E) dos Factos Assentes].
6) A Embargante B…, Lda. tem por objecto a construção, compra e venda de imóveis, talho e supermercado (cfr. doc. de fls. 76 e sgs.) [alínea F) dos Factos Assentes].
7) Os Embargantes E… e mulher F… são os únicos sócios da Embargante B…, Lda., cabendo a sua gerência a ambos (cfr. doc. de fls. 76 e sgs.). [alínea G) dos Factos Assentes].
8) Quando em Julho de 1997 os Embargantes E… e mulher F… solicitaram ao Banco Embargado o empréstimo descrito em 1), referiram que o mesmo, pelo menos em parte, destinava-se ao pagamento de dívidas da B…, Lda., (resposta ao quesito 3º).
9) O empréstimo descrito em 1) foi utilizado pelos Embargantes E… e F… no pagamento de dívidas do estabelecimento de supermercado e talho que exploravam, enquanto sócios-gerentes da firma B…, Limitada, e a actividade de tal estabelecimento prosseguiu, desde data não concretamente apurada, sob a firma D…, Lda. (resposta aos quesitos 1º, 2º e 4º).
10) Os Embargantes E… e mulher F… apresentaram-se a negociar o financiamento dos autos como representantes indistintos de D…, Lda. e B…, Lda. (resposta ao quesito 5º).
11) A D…, Lda., desde data não concretamente apurada, passou a explorar o estabelecimento antes explorado pela B…, Lda., sito nas mesmas instalações, com os mesmos funcionários e a mesma caixa registadora (resposta aos quesitos 6º a 8º).
b) Apreciação das questões objecto do recurso.
1 – Como se referiu, a primeira questão colocada no recurso é de natureza processual e respeita à invocada nulidade da sentença, por alegada violação do princípio do contraditório estabelecido no n.º 3, do artigo 3.º, do Código de Processo Civil.
Antes de prosseguir, cumpre referir que não estamos perante uma nulidade de sentença.
Com efeito, as nulidades, afectem a sentença ou qualquer outro acto, respeitam à relação processual, à inobservância de formalidades prescritas para a prática dos actos.
Por conseguinte, no caso da violação do princípio do contraditório, a formalidade omitida consistiria na prolação de um despacho destinado a cumprir o contraditório, o qual é prévio em relação à sentença.
Vejamos melhor.
Se ao elaborar a sentença o juiz se aperceber que a solução do caso passa por uma construção jurídica que as partes não agitaram até ao momento, nem podiam contar com ela, o juiz deverá interromper a elaboração da sentença e proferir um despacho a alertar as partes para essa construção jurídica e convidá-las a pronunciarem-se, querendo, sobre ela.
Só mais tarde, noutro momento processual, será elaborada a sentença.
Desta forma, verifica-se que a nulidade invocada respeita à falta de prolação de um despacho prévio à sentença e não quanto a uma formalidade inerente à própria sentença, que, por omissão produziria a sua nulidade.
A letra do no n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil, onde se enumeram as nulidades de sentença corrobora este entendimento ou dizer que «1- É nula a sentença quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido».
A nulidade agora tratada não consta deste elenco.
Como sustentou Alberto dos Reis, «Não pode deixar de considerar-se taxativa a menção feita no artigo 668.º. (…) Desde que o artigo não insere as palavras «entre outras» ou «além de outras» ou palavras semelhantes que imprimam à enumeração carácter exemplificativo, tem de entender-se que a sentença de tribunal singular só é nula quando se verifique algum dos casos previstos no artigo» [2].
O conhecimento desta nulidade, embora ela seja prévia à sentença, só se tornou efectivo para a parte interessada com a notificação da sentença, pelo que a reacção da parte só poderia ser uma destas, sendo certo que só uma delas é a processualmente adequada:
(1) Ou a parte arguia a nulidade no prazo de 10 dias a contar da notificação da sentença, pois só neste momento teve conhecimento dela;
(2) Ou recorria da sentença.
No primeiro caso (1), se a parte arguisse a nulidade perante o tribunal onde foi cometida, este tribunal conheceria da nulidade.
No segundo caso (2) se a parte recorresse apenas da sentença, como o recurso se dirigia à sentença, embora invocando a nulidade anterior como fundamento, mas não se dirigia ao acto de omissão do despacho que devia ter ordenado o cumprimento do contraditório, então o prazo de 10 dias para a sanação da nulidade continuava a correr (desde que havia tomado conhecimento da sua existência) e completava-se sem a nulidade ter sido arguida, o que implicava a sanação da nulidade, estando esta sanada na data em que o recurso foi interposto.
Isto mostra que o caminho a seguir era o da arguição da nulidade, sem prejuízo do recurso da sentença, mas por outras razões.
Cabe aqui a regra «dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se».
Com efeito, como sustentou Alberto dos Reis, «A arguição da nulidade só é admissível quando a infracção processual não está ao abrigo de qualquer despacho judicial; se há um despacho a ordenar ou autorizar a prática ou a omissão do acto ou da formalidade, o meio próprio para reagir contra a ilegalidade que tenha sido cometida, não é a arguição ou reclamação por nulidade, é a impugnação do respectivo despacho pela interposição do recurso competente.
Eis o que a jurisprudência consagrou nos postulados: dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se.
É fácil justificar esta construção. Desde que um despacho tenha mandado praticar determinado acto, por exemplo, se porventura a lei não admite a prática dêsse acto é fora de dúvida que a infracção cometida foi efeito do despacho; por outras palavras, estamos em presença dum despacho ilegal, dum despacho que ofendeu a lei de processo. Portanto a reacção contra a ilegalidade traduz-se num ataque ao despacho que a autorizou ou ordenou; ora o meio idóneo para atacar ou impugnar despachos ilegais é a interposição do respectivo recurso (art. 667.º).
Se, em vez de se recorrer do despacho, se reclamasse contra a nulidade, ir-se-ia pedir ao juiz que alterasse ou revogasse o seu próprio despacho, o que é contrário ao princípio de que, proferida a decisão, fica esgotado o poder jurisdicional de quem decidiu (art. 666.º)» [3].
Este procedimento mostra a sua adequação ao sistema do Código de Processo Civil, se se considerar o efeito que teria a arguição da nulidade em sede de recurso no caso da sua procedência.
Neste caso, se o Tribunal da Relação anulasse a sentença para ser proferido despacho a convidar as partes para exercerem o contraditório, o processo teria de ser remetido novamente à 1.ª instância.
Ora, este era o efeito conseguido precisamente com a arguição da nulidade, com a vantagem de se poupar o recurso (pelo menos com o actual fundamento).
Resumindo: salvo os casos em que a nulidade processual é gerada por um despacho do juiz, ainda que de forma implícita [4], a forma processual de reacção contra uma nulidade é a reclamação no prazo de 10 dias, sob pena da nulidade ficar sanada.
No caso dos autos, a nulidade resultante da omissão de despacho a convidar as partes para exercerem o contraditório devia ter sido arguida no prazo de 10 dias a contar do seu conhecimento, sob pena de ficar sanada, o que, no caso, aconteceu.
Improcede, pois, pelo exposto, este fundamento do recurso.
2 – Vejamos agora as questões relativas ao mérito da causa, começando com a questão de saber se a sentença afastou a aplicação da norma constante do n.º 3 do artigo 6.º do Código das Sociedades Comerciais pela via do instituto da desconsideração da personalidade jurídica da sociedade Recorrente.
A Recorrente sustenta na al. i) das suas conclusões que não ocorreu uma utilização abusiva da personalidade jurídica da Recorrente ao dar de hipoteca, a favor da Recorrida, o prédio em questão, pelo que a utilização do instituto da desconsideração da personalidade jurídica é indevida.
Não assiste razão à recorrente.
Lendo os fundamentos da decisão, não se afigura possível concluir, como faz a recorrente, no sentido da sentença ter julgado os embargos improcedentes por se ter baseado no instituto da desconsideração da personalidade jurídica da recorrente.
Antes de prosseguir cumpre situar, em termos gerais, a questão no campo jurídico.
Nas palavras de Menezes Cordeiro, «A personalidade colectiva permite imputar condutas humanas a entes abstractos» e, por via disso, «Ela permite exonerar de responsabilidade os agentes visíveis das pessoas colectivas. Tais agentes, desde que observem determinadas regras de funcionamento interno, não são incomodados pelo que façam: os danos são imputados à própria pessoa colectiva. Além disso, a responsabilidade patrimonial – e portanto: a adstrição dum património ao pagamento de dívidas – das pessoas colectivas limita-se, em princípio, ao próprio património delas. Trata-se de mais uma gama de vantagens potenciadas pela personalidade colectiva.
Mas tudo isto terá limites. Bem se compreende que não seja possível, ao abrigo da personalidade colectiva, provocar sem consequências danos ilícitos. Tão-pouco é pensável, sempre ao abrigo dessa personalidade, contrair dívidas em pura perda dos credores. Em certas circunstâncias, a Ciência do Direito permite o “levantamento da personalidade” de modo a surpreender os verdadeiros responsáveis por certos efeitos. Esse “levantamento” é particularmente requerido perante sociedades que controlem outras sociedades» [5].
Continuando com o mesmo autor, este indica-nos os principais grupos de casos susceptíveis de cair sob a alçada do instituto:
«-situações de violação não-aparente de norma jurídicas: a pretexto da personalidade colectiva, são descuradas normas de contabilidade, de separação de patrimónios ou de clareza nas alienações;
-situações de violação de normas indeterminadas ou de princípios: as pessoas que têm a seu cargo a administração de pessoas colectivas agem sem a diligência legalmente requerida para tais funções;
-situações de violação de direitos alheios ou de normas destinadas a proteger interesses alheios, sob invocação da existência duma pessoa colectiva;
-situações de emulação nas quais, sem razões justificativas, alguém usa uma pessoa colectiva para causar prejuízos a terceiros;
-situações de violação da confiança ou de atentado às valorações subjacentes, através duma pessoa colectiva;
-situações em que pessoas colectivas são usadas fora dos objectivos que levaram as normas constituintes respectivas a estabelecê-las;
-situações em que jogos de pessoas colectivas são montados ou actuados para além dos princípios básicos do sistema» [6].
É em situações enquadráveis nestes tipos que o instituto tem aplicação, permitindo juridicamente afastar o «escudo» da personalidade colectiva e alcançar os responsáveis pelas situações concretas ofensivas dos valores que sustentam o sistema jurídico, que de outra forma seriam inalcançáveis.
Como se ponderou no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09 de Maio de 2002 [7] a desconsideração da personalidade jurídica traduz-se no desrespeito pelo princípio da separação entre ela e os sócios e origina a responsabilidade directa e ilimitada dos sócios e dos membros sociais com base no abuso de direito.
Vejamos agora o caso dos autos.
O prédio dado em hipoteca pela Recorrente a favor da empresa D… é um prédio que pertence à própria Recorrente, pelo que nada de ilícito aqui ocorre em relação a terceiros; se algum acto ilícito ocorreu teve como vítima a própria Recorrente.
Sendo assim, o levantamento ou desconsideração da personalidade colectiva da Ré recorrente apenas interessaria se se destinasse a responsabilizar pessoalmente os seus gerentes, mas não a própria sociedade.
Afigura-se, por isso, que no caso dos autos, embora na sentença se tenha discorrido acerca do instituto do levantamento da personalidade colectiva, tal discurso serviu, se bem se interpreta a sentença, apenas para fazer sobressair a relevância da simbiose entre os interesses e actividades de ambas as empresas e os interesses e actividades dos seus gerentes, os mesmos em ambas as empresas, no sentido de considerar que a decisão do banco emprestar dinheiro a uma das empresas se baseou no facto de saber que ao conceder o empréstimo a uma das empresas estava a concedê-lo à actividade desenvolvida pelos dois gerentes de ambas as empresas, aliás únicos gerentes e sócios e, além disso, casados entre si.
Concluindo: improcede este fundamento do recurso por se considerar que a sentença não afastou a aplicação da norma constante do n.º 3 do artigo 6.º do Código das Sociedades Comerciais pela via do instituto da desconsideração da personalidade jurídica da sociedade Recorrente.
Passando à questão seguinte.
3 – Coloca-se agora a questão de saber se a garantia hipotecária prestada pela Recorrente B… está ferida de nulidade por infracção ao disposto no n.º 3 do art. 6.º do Código das Sociedades Comerciais.
Será esta a questão maior que o recurso coloca.
O n.º 3 do art. 6.º do Código das Sociedades Comerciais tem a seguinte redacção:
«Considera-se contrária ao fim da sociedade a prestação de garantias reais ou pessoais a dívidas de outras entidades, salvo se existir justificado interesse próprio da sociedade garante ou se se tratar de sociedade em relação de domínio ou de grupo».
Começando pela questão do ónus da prova, cumpre referir que a forma como esta norma se encontra redigida indica que o ónus de provar o «justificado interesse próprio da sociedade garante» em relação à garantia prestada, recai sobre o beneficiário da garantia [8].
Com efeito, a norma indica uma regra [9] que é esta:
Considera-se contrária ao fim da sociedade a prestação de garantias reais ou pessoais a dívidas de outras entidades.
E, depois, enuncia uma excepção:
Salvo se existir justificado interesse próprio da sociedade garante ou se se tratar de sociedade em relação de domínio ou de grupo.
Por conseguinte, a prova da excepção recai sobre a parte que beneficia dela, ou seja, da sociedade que goza da garantia.
Cumpre, pois, verificar se o Banco recorrido provou que o empréstimo feito beneficiou a Recorrente.
A resposta é afirmativa.
Com efeito, provou-se que «Os Embargantes E… e mulher F… apresentaram-se a negociar o financiamento dos autos como representantes indistintos de D…, Lda. E B…, Lda.» (resposta ao quesito 5º) e quando «…solicitaram ao Banco Embargado o empréstimo descrito em 1), referiram que o mesmo, pelo menos em parte, destinava-se ao pagamento de dívidas da B…, Lda.» (resposta ao quesito 3º), sendo certo que «O empréstimo … foi utilizado pelos Embargantes E… e F… no pagamento de dívidas do estabelecimento de supermercado e talho que exploravam, enquanto sócios-gerentes da firma B…, Limitada, e a actividade de tal estabelecimento prosseguiu, desde data não concretamente apurada, sob a firma D…, Lda.» (resposta aos quesitos 1º, 2º e 4º).
Verifica-se, por conseguinte, que a embargante B… beneficiou do empréstimo concedido pelo Banco à empresa D…, pelo que se conclui que existiu um interesse económico próprio da sociedade Embargante e por isso se justifica a prestação da garantia a favor do banco embargante.
Dir-se-á, como argumenta a Recorrente, que não se sabe em que medida a Recorrente beneficiou do empréstimo e tanto pode ter beneficiado de €500,00 como de outra quantia.
Corresponde à realidade esta afirmação da Recorrente.
Porém, voltamos a deparar-nos aqui com a mesma questão atrás referida a respeito do ónus da prova.
Ao credor beneficiário da garantia incumbe provar que «existiu justificado interesse próprio da sociedade garante», mas já não tem de provar a medida ou a expressão quantitativa exacta desse interesse.
E compreende-se que não tenha de fazer tal prova porque o credor não está em condições de a produzir, pois respeita a matérias que se encontram no seio da actividade privada da empresa às quais não tem, em regra, acesso.
Por isso, apenas tem de provar a regra, isto é, que a empresa que concedeu a garantia tinha um interesse justificado em a aprestar.
Ora, pode concluir-se, sem esforço argumentativo, que no caso existiu uma situação vantajosa para a Recorrente, que consistiu na extinção de dívidas através do pagamento delas efectuado pela outra sociedade, num quadro factual em que os únicos sócios e gerentes de ambas as sociedades são duas pessoas casadas uma com a outra.
Com efeito, a sociedade devedora passou a libertar-se de uma dívida que lhe poderia ser hostil, requerendo, por exemplo, o respectivo credor a insolvência ou instaurando uma execução com subsequente penhora de bens da devedora.
Por conseguinte, a obtenção desta situação vantajosa por parte da Embargante justifica, para efeitos do n.º 3 do artigo 6.º do Código das Sociedades Comerciais, a decisão da Embargante constituir a favor do credor (Exequente) uma hipoteca com a finalidade de assim contribuir para a obtenção do empréstimo concedido pelo Exequente a favor da sua futura credora, a empresa D….
Concluir-se, por conseguinte, que este interesse justificado existe no caso dos autos, mesmo não estando determinada a sua expressão monetária, por se ter provado que o empréstimo pedido e concedido à empresa D… pelo banco Exequente se destinou e serviu também para pagar dívidas da embargante B….
Se porventura este interesse justificado foi meramente aparente, então incumbia à devedora provar isso, sendo certo que lhe teria sido fácil, em regra, fazê-lo.
Acresce, no caso concreto, outra circunstância que só por si poderia levar à inversão do ónus da prova se se entendesse que tal ónus recaía sobre o Banco exequente, à qual a sentença se refere nestes termos:
«…podiam eventualmente os Embargantes ter conseguido essa prova demonstrando na altura própria que o dinheiro recebido nesse financiamento em nada serviu para a «B…», prova essa naturalmente associada a esclarecimentos bancários, mas verdade é que os Embargantes opuseram-se aos mesmos - Cfr. fls. 265, 266 e 267).
Ou seja, na audiência de 04 de Outubro de 2012, o Exmo. mandatário do Banco requereu o seguinte:
«Considerando os depoimentos que foram prestados na presente audiência e considerando que se revela de especial importância conhecer o destino final resultante do depósito do cheque que se encontra junto aos presentes autos como documento 4 da contestação, vem requerer a VªExc.ª que seja oficiado à H…, a fim de prestar aos autos os esclarecimentos constantes dos pontos 1 a 3 do requerimento apresentado a fls. 155.».
Este requerimento foi deferido pelo tribunal, tendo sido proferido o seguinte despacho:
«Acolhendo-se como pertinentes as razões invocadas pelo Embargado, oficie à H…, S.A., nos termos requeridos a fls. 155, pontos I. 1 a 3, remetendo a título de esclarecimento cópia do cheque aludido e constante dos autos a fls. 49 e 50. Em acto prévio à expedição deste ofício deverá porém ser junta a devida autorização por parte dos visados para a prestação pela H…, S.A. das informações bancárias em questão.
E nessa perspectiva confere-se à Embargante B…, Lda., e bem assim aos Embargantes E… e F… e à executada “D…, Lda.” o prazo de 10 dias para a junção daquela autorização».
Tal autorização foi negada na audiência de 27 de Novembro de 2012, nestes termos:
«Face à inércia dos Embargantes B…, Lda., E… e F… quanto ao despacho proferido a fls. 266, confere-se ao Ilustre Mandatário dos mesmos aqui presente a oportunidade de, sobre a matéria, dizer o que se lhe oferecer.
Dada a palavra ao Ilustre Mandatário dos Embargantes, pelo mesmo foi dito:
Os embargantes não concedem a autorização do levantamento do sigilo bancário relativamente às contas de que são titulares na H…, S.A. ou em quaisquer outras entidades bancárias».
Verifica-se, pois, que no caso concreto, não foi possível ao Banco fazer prova do destino dado ao dinheiro, o que poderia levar o tribunal a declarar a inversão do ónus da prova, nos termos do n.º 2 do artigo 344.º do Código Civil.
Cumpre, pelo exposto, julgar o recurso improcedente, mantendo-se a sentença recorrida.
IV. Decisão.
Considerando o exposto, julga-se o recurso improcedente e mantém-se a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente.
*
Porto, 15 de Setembro de 2014.
Alberto Ruço
Correia Pinto
Ana Paula Amorim.
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[1] Esta norma tem esta redacção: «Ainda que declare nula a decisão que põe termo ao processo, o tribunal de recurso deve conhecer do objeto da apelação».
[2] Código de processo Civil Anotado, Vol. V (reimpressão). Coimbra Editora, 1984, pág. 137.
[3] Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. 2.º. Coimbra Editora, 1945, pág. 507-508. Ver também Anselmo de Castro: «A reacção contra a ilegalidade volver-se-á então contra o próprio despacho do juiz; ora, o meio idóneo para atacar ou impugnar despachos ilegais é a interposição do respectivo recurso (art.º 677.º, n.º 1), por força do princípio legal de que, proferida a decisão, fica esgotado o poder jurisdicional (art. 666.º)» - Direito processual Civil Declaratório, Vol. III. Coimbra: Livraria Almedina, 1982, pág. 134.
Também Manuel de Andrade: «Mas se a nulidade está coberta por uma decisão judicial (despacho), que ordenou, autorizou ou sancionou o respectivo acto ou omissão em tal caso o meio próprio para a arguir não é a simples reclamação, mas o recurso competente, a deduzir (interpor) e tramitar como qualquer outro do mesmo tipo. É a doutrina tradicional condensada na máxima: dos despachos recorre-se; contra as nulidades reclama-se» - Noções Elementares de Processo Civil (Nova edição revista e actualizada). Coimbra Editora, 1979, pág. 193.
Ver ainda Antunes Varela, L. Miguel Bezerra e Sampaio Nora. Manual de Processo Civil, 2.ª edição revista e actualizada. Coimbra Editora, 1985, pág. 393.
[4] Ainda segundo Alberto dos Reis «… além do julgamento expresso, há o julgamento implícito, hoje consagrado pelo § único do artigo 660.º; a decisão não vale somente pela vontade declarada que nela se contém, vale também pelos pressupostos tacitamente resolvidos. Quando o juiz recebe um papel, deve presumir-se que antes de o receber, se certificou de que se verificavam todos os requisitos exigidos por lei para o recebimento» - Comentário…, Vol. 2.º, pág. 510.
[5] O Levantamento da Personalidade Colectiva. Coimbra: Almedina, 2000, pág. 9 e 10, respectivamente. Sobre o tema ver também Catarina Serra, «Afastamento da personalidade jurídica», em especial fls. 113 a 120 relativamente ao enquadramento dogmático da figura; Armando Manuel Triunfante/Luís Lemos Triunfante, «Desconsideração da Personalidade Jurídica; e Suarez Robledano, «Utilizacíon Abusiva de las Personas Jurídicas», na Revista Julgar, n.º 9 (Setembro/Dezembro de 2009), pág. 111-130, 131-146 e 191-202, respectivamente.
[6] Ob. cit., pág. 147-148.
[7] Colectânea de Jurisprudência (S.T.J.). Ano X, Tomo II, pág. 53.
[8] Neste sentido ver António Pereira de Almeida quando diz que «Tudo ponderado, parece assistir razão àqueles que defendem que o ónus da prova do “justificado interesse próprio” da sociedade garante compete ao terceiro que se quer prevalecer da garantia, o qual deverá ter tomado todas as precauções, no momento da prática do acto, para se salvaguardar de eventuais impugnações» - Sociedades Comerciais, 6.ª edição. Coimbra Editora, 2011, pág. 41 (e doutrina e jurisprudência indicadas no mesmo sentido na nota 61, pág. 42).
No sentido de que o ónus da prova incumbe à sociedade que prestou a garantia, ver acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de Setembro de 2000; acórdão do TRL de 13 de Novembro de 2003 e acórdão do TRE de 5 de Fevereiro de 2004, publicados em Sociedade Comerciais (Jurisprudência 1997-2008), Edição da Colectânea de Jurisprudência, 2009, pág. 48-52, 52-55, 58-59, respectivamente.
[9] Sobre o jogo entre regra e excepção vertido nas normas legais e a distribuição do ónus da prova, Antunes Varela referiu o seguinte: «Assim é que no concernente à distinção entre as normas constitutivas e as normas impeditivas, se entende que ela corresponde, no fundo, à relação entre regra e a excepção.
“Em todos os casos restantes, afirma Rosenberg, a relação entre norma constitutiva e norma impeditiva do direito (ou efeito jurídico pretendido) se deixa reconduzir à relação entre regra e excepção (Regel end Ansnahme)”.
E é, na verdade, com essa relação substancial entre regra e excepção que cumpre jogar, na distribuição do ónus da prova entre as partes, para encontrar a disciplina adequada às várias excepções que elas podem opor sucessivamente uma à outra» - Revista de Legislação e Jurisprudência. Ano 117, pág. 31.