Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2434/10.3TMPRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANA PAULA AMORIM
Descritores: FGADM
INCUMPRIMENTO
NULIDADE DE SENTENÇA
NULIDADE PROCESSUAL
Nº do Documento: RP201409292434/10.3TMPRT-A.P1
Data do Acordão: 09/29/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A nulidade da sentença, prevista no art. 615º/1 b) CPC, pressupõe que o juiz não concretize os factos que considera provados e coloca na base da decisão e só a omissão de aplicação do direito aos factos e apenas este vicio pode gerar a nulidade da sentença, por falta de fundamentação legal.
II - O recurso de apelação não constitui o meio processual próprio para conhecer das infracções às regras do processo quando a parte interessada não arguiu a nulidade perante o tribunal onde aquela alegadamente ocorreu, conforme resulta do regime previsto no art. 195º a 199º CPC
III - A prestação a cargo do Fundo de Garantia de Pensão de Alimentos Devidos a Menor, tem a natureza de prestação social, a fixar em função das necessidades do menor.
IV - Em sede de incidente de incumprimento instaurado ao abrigo do art. 189º da OTM, pode a prestação a cargo do Fundo ser fixada em montante superior ao da pensão de alimentos devida pelo obrigado a alimentos, desde que respeite o limite máximo previsto no art. 3º/4 do DL 164/99 de 13/05, na redacção da Lei 64/2012 de 20/12.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Alim-Fundo-2434-10.3TMPRT-A
Trib. Familia e Menores do Porto
Proc. 2434/10.3TMPRT-A
Recorrente: Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social
Recorrido: Ministério Público
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Juiz Desembargador Relator: Ana Paula Amorim
Juízes Desembargadores Adjuntos: Rita Romeira
Manuel Fernandes
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Acordam neste Tribunal da Relação do Porto (5ª secção judicial – 3ª Secção Cível)

I. Relatório
Nos presentes autos de incumprimento da prestação de alimentos, instaurado por apenso ao processo de regulação do exercício das responsabilidades parentais, nos termos do art. 181º, 183º/3 e 189º da Organização Tutelar de Menores, em que figuram como:
- REQUERENTE: Ministério Público, em representação do menor B…, nascido a 29 de Junho de 2009; e
- REQUERIDO: C…, residente na …, nº .., casa ., ….-… Porto
veio o Ministério Público requerer o cumprimento coercivo da prestação de alimentos atribuída ao menor, perante a situação de incumprimento do progenitor.
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Notificado o requerido não apresentou alegações.
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Após vista nos autos ao Digno Ministério Público e em conformidade com a douta promoção diligenciou-se junto do ISS por obter informação sobre a situação profissional e económica do requerido e solicitou-se a elaboração do relatório sócio económico do agregado familiar onde o menor B… se encontra inserido, não só para a verificação do alegado incumprimento - art.° 181.°, n.° 4 da OTM - mas igualmente para o eventual apuramento dos requisitos exigidos pelo Decreto-Lei 164/99, 13/05, art° 4º, n.° 2.
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O Ministério Público deu o seu parecer, concluindo no sentido de se atribuir ao Fundo de Garantia de Alimentos devidos ao Menor o encargo de proceder ao pagamento da pensão de alimentos devidos ao menor pelo pai.
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Proferiu-se sentença com a decisão que se transcreve:
“Pelo exposto, ao abrigo do preceituado no art. 2º da Lei nº 75/98, de 19-11 e nos arts. 3º nº 3 e 4º do Dec.-Lei nº 164/99, de 13-05, decide-se:
- fixar em 100,00€ (cem euros) o montante mensal que o Estado, em substituição do devedor, deve prestar a título de alimentos ao menor, quantias estas que deverão ser entregues à progenitora.
Notifique, nos termos do art.º 4º nº 3 do Dec. - Lei nº 164/99, de 13-05, sendo o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social (na qualidade de gestor do Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores) a fim de diligenciar pelo imediato pagamento das prestações mensais fixadas, nos termos do art. 4º nºs 4 e 5 do mesmo Dec. - Lei.
Notifique, ainda, a progenitora nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 9º nº 4 do citado Dec. Lei nº 164/99”.
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O Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social veio interpor recurso da sentença.
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Nas alegações que apresentou o apelante recorrente formulou as seguintes conclusões:
A. Vem o presente recurso interposto da decisão de 11/03/2014 de fls. (…), que determinou a intervenção do FGADM - em substituição do progenitor devedor – de forma a este assegurar o pagamento da prestação de alimentos.
B. Acontece que do teor do despacho recorrido resulta que o Tribunal a quo, não aplicou a nova redacção da alínea b) do n.º 1 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 164/99, de 13/05 introduzida pela Lei n.º 64/2012, de 20 de Dezembro, donde passou a considerar-se para efeitos de valor de referência a ter em conta para efeitos de apuramento do rendimento per capita do agregado familiar do menor, o indexante dos apoios sociais (IAS), em vez do salário mínimo nacional.
C. Do despacho recorrido resulta expressamente que o Tribunal recorrido, considerou para efeitos de valor de referência a ter em conta para efeitos de apuramento do rendimento per capita do agregado familiar do menor, o salário mínimo nacional.
D. Do despacho recorrido não consta quais os rendimentos que foram considerados e qual foi a forma de ponderação de cada elemento do mesmo [agregado familiar], para efeitos de apuramento da capitação de rendimentos [art.º 1.ª, in fine, da Lei n.º 75/98, de 19/11 e art.º 3.º, n.ºs 1, alínea b), 2, 3 do DL 164/99, de 13/05].
E. O despacho é assim, nulo, por falta de fundamentação legal – face à não aplicação dos critérios legais em vigor à data do despacho – e factual, violando o disposto nos artigos 154.º e 615, n.º 1, alínea b), ambos do CPC.
F. Foi também violado o princípio do contraditório, estatuído nos artigos 3.° e 415.°, n.º 1, do CPC, segundo os quais, enquanto parte, nenhuma questão de direito ou de facto pode ser decidida sem que tenha tido possibilidade de sobre ela se pronunciar, nem admitida ou produzida prova sem que tal ocorra – neste sentido, vd. Acórdão proferido no agravo n.º 20030B/1999.P2. de 26/06/2012.
G. Vem também o presente recurso interposto da decisão proferida pelo Tribunal a quo, na parte em que condenou o FGADM a proceder ao pagamento de prestação de alimentos superior, pelo valor de € 100,00 (cem euros), em substituição do progenitor incumpridor por valor superior ao fixado para este, no valor de € 50,00 (cinquenta euros).
H. Sobre a impossibilidade de ser fixada ao FGADM uma prestação superior a que se encontrava vinculado o progenitor em incumprimento, já se pronunciaram os Tribunais Superiores, referindo-se entre outros, os acórdãos proferidos pelo Tribunal da Relação de Lisboa, de 30/01/2014, Proc. N.º 130/06.5TBCLD-E.L1-6; de 30/01/2014, Proc. N.º 306/06.5TBAGH-A.L1-6; de 19/12/2013, Proc. N.º 122/10.0TBVPV-B.L1-6; de 12/12/2013, Proc. N.º 2214/11.9TMLSB-A.L1-2; de 08/11/2012, Proc. N.º 1529/03; o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 19/02/2013, Proc. N.º 3819/04; o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, de 10/10/2013, Proc. N.º 3609/06.5; de 25/02/2013, Proc. N.º 30/09; e o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora, de 14/11/2013, Proc. N.º 292/07.4
I. Ao contrário do entendimento do Tribunal a quo, a obrigação de prestação de alimentos pelo FGADM é autónoma da prestação alimentícia decorrente do poder paternal e não decorre automaticamente da lei, sendo necessária uma decisão judicial que a imponha, ou seja, até essa decisão não existe qualquer obrigação.
J. O n.º 1 do artigo 3.º da Lei n.º 75/98 não deixa dúvidas que o montante que o tribunal fixa a cargo do Estado é para este prestar "em substituição do devedor".
K. Existe uma "substituição", apenas enquanto houver a obrigação original, por se verificarem os seus pressupostos e ocorrer incumprimento da mesma, o que seria diferente se estivéssemos perante uma obrigação diversa, desligada da originária.
L. A sub-rogação não pode exceder a medida da sub-rogação total, porquanto, se o terceiro paga mais do que ao devedor competia pagar, ele não tem o direito de exigir do devedor o reembolso pelo excesso, e só poderá exigir do credor a restituição do que este recebeu indevidamente - cfr. artigo 593.° do Código Civil – é legítimo concluir-se que, ao estabelecer esta sub-rogação legal, o legislador não podia deixar de ter implícito que a prestação a cargo do Fundo nunca poderia ser superior ao montante máximo da prestação alimentícia a que o menor tinha direito.
M. Não tem qualquer suporte legal fixar-se uma prestação alimentícia a cargo do FGADM superior à fixada ao progenitor, pois a diferença que daí resulta é fixada apenas para o FGADM e é uma obrigação nova.
N. A manter-se a decisão, a obrigação e responsabilidade de prestar alimentos deixará de ser imputável aos progenitores obrigados, passando a ser única e exclusivamente da responsabilidade do FGADM.
O. Existiu, assim, violação do disposto no n.º 1 do artigo 5.º do Decreto-Lei nº 164/99, de 13 de Maio, uma vez que o FGADM não é o obrigado à prestação de alimentos, assumindo apenas a obrigação, como interveniente acidental que se substitui ao progenitor [obrigado judicialmente] incumpridor.
Termina por pedir que se julgue procedente o presente recurso, revogando-se a decisão recorrida, devendo ser substituída por outra que:
a) Declare a nulidade do despacho recorrido porquanto decide sobre o mérito da causa sem se encontrar fundamentado;
b) Declare a violação pelo despacho recorrido do princípio do contraditório, legalmente consagrado; e sem prescindir,
c) Revogar a decisão recorrida, na parte que condena o FGADM em valor superior ao fixado ao progenitor em incumprimento, nos termos e com os devidos efeitos legais.
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O Digno Ministério Público veio responder ao recurso onde, em síntese, formulou as seguintes conclusões:
1 - O Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, IP., manifesta a sua discordância contra a aliás douta decisão proferida no dia 11 de Março de 2014 e constante dos autos a fls. 18 a 20, que fixou em € 100,00 (cem) euros o montante mensal que o Estado deve prestar a título de alimentos ao menor B…, nascido a 29-6-2009 e, portanto, actualmente com 4 anos de idade, a suportar pelo Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores (FGADM) através daquela entidade.
2 - Alega o recorrente, em resumo, que:
A - Sendo os seguintes os pressupostos para que o FGADM seja chamado a assegurar as prestações de alimentos atribuídas a menores residentes no território nacional:
- que o progenitor esteja judicialmente obrigado a alimentos;
- que seja impossível a cobrança das prestações em dívida nos termos do artº 189º da OTM; e,
- que o alimentado não tenha rendimento ilíquido superior ao valor do indexante dos apoios sociais (IAS), nem beneficie de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontre, superiores ao valor do IAS, no caso, fazendo a decisão recorrida apelo ao salário mínimo nacional, resulta de tal decisão que o Tribunal não teve presente as alterações introduzidas aos Diplomas que regulamentam o FGADM, decisão que não se pronunciou, assim, sobre todos os pressupostos legais, que, nos termos da legislação aplicável, têm de se verificar no caso concreto.
B – Foi também violado o princípio do contraditório estatuído nos arts. 3º e 415º, nº1, do C.P.Civil, normativos “segundo os quais, enquanto parte, nenhuma questão de direito ou de facto pode ser decidida sem que tenha tido possibilidade de sobre ela se pronunciar, nem admitida ou produzida prova sem que tal ocorra”.
C - Sendo a prestação paga pelo FGADM uma prestação reembolsável, ficando tal entidade sub-rogada em todos os direitos do menor a quem sejam atribuídas prestações e tendo o direito de exigir do devedor de alimentos a totalidade das prestações pagas, o referido FGADM é apenas um substituto do devedor originário dos alimentos enquanto este não cumpre a obrigação, pelo que a sua prestação não pode exceder a fixada para o mesmo, no valor mensal de € 50,00, sendo que, no excesso, não opera a sub-rogação e portanto o direito ao reembolso e que a decisão sob recurso não tem apoio normativo legal.
3 - Tendo a decisão recorrida sido proferida, aliás sob promoção do MºPº, (cfr. fls. 17, tendo claramente em conta os factos que foram carreados para os autos designadamente os constantes do relatório social do ISS junto aos autos, do qual resulta ter o cálculo da capitação do rendimento do agregado familiar em referência sido efectuado com base no indexante dos apoios sociais e não no salário mínimo nacional, como antes se fazia, a referência ao salário mínimo nacional constante da dita decisão trata-se de um lapso, que não implica qualquer vício e, designadamente, dos invocados – falta de fundamentação e erro na interpretação do direito aplicável;
4 - Tendo o ISS elaborado, não só informação sobre a situação económica do requerido C…, como também relatório socio-económico do agregado familiar onde o menor B… está integrado, tendo em vista o eventual apuramento dos requisitos exigidos pelo Decreto-Lei 164/99, 13/05, art° 4º, n.° 2 e resultando de tal relatório estarem reunidas as condições para ser accionado o FGADM, tal entidade pronunciou-se sobre tal questão, assim não tendo que ser notificada no sentido de, de novo, se pronunciar sobre a mesma.
5- Sendo as duas primeiras questões acima referidas, improcedentes, importa, assim, decidir se a prestação de alimentos a cargo do FGADM fixada em € 100,00 mensais deve ser reduzida para os € 50,00 fixados para o devedor em 28-2-2011.
6 - A Lei nº75/98, de 19/11, o DL n° 164/99, de 13/05, que a regulamentou, o DL nº70/2010, de 16/06 e a Lei nº64/2012, de 20 de Dezembro fazem expressa referência aos requisitos do pagamento de alimentos a menores pelo Estado.
7- O valor da prestação mensal a pagar pelo Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, na qualidade de gestor do Fundo de Garantia de Alimentos é encontrado a partir de critérios estabelecidos na Lei e de forma a satisfazer as necessidades presentes da criança. Trata-se por isso de uma nova prestação social.
8- Concretamente, o Tribunal deve atender:
- ao limite máximo mensal de I IAS (indexante de apoios sociais) por devedor;
- à capacidade económica do agregado familiar do menor,
- ao montante da prestação de alimentos fixada e,
- às necessidades específicas do menor (cfr. artº3°, nº5, do DL nº164/99, de 13 de Maio, alterado pelo DL nº70/2010, de 16 de Junho e pela Lei nº64/2012, de 20 de Dezembro acima citados.
9- o montante da prestação de alimentos fixada (a cargo do devedor), é apenas um dos requisitos a que o Tribunal tem de atender a par da capacidade económica do agregado familiar e das necessidades específicas do menor nos termos do disposto nos artigos 2° da Lei nº75/98, de 19 de Novembro e 3°, nº5 do DL nº164/99, de 13 de Maio.
10- A existência e o conteúdo da prestação de alimentos incumprida pelo primitivo devedor funcionam apenas como um pressuposto justificativo da intervenção subsidiária do Estado para satisfação de uma necessidade actual do menor, tendo ainda um valor orientador na fixação do montante da aludida prestação social.
11- A prestação de alimentos instituída pela Lei nº75/98 é de natureza eminentemente social e como tal não tem sentido fazer depender o seu valor de um eventual reembolso e da medida do mesmo.
12- Basta um Juízo de experiência comum para concluir que a prestação de € 50,00 fixada por decisão homologatória 28 de Fevereiro de 2011, é manifestamente insuficiente tendo em atenção as necessidades crescentes do menor e a situação do respectivo agregado familiar, a receber mensalmente € 502,59 (cf. relatório do ISS acima aludido).
13- Não foram violadas quaisquer disposições legais, não merecendo o recurso apresentado provimento.
Conclui no sentido da decisão recorrida ser confirmada.
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O recurso foi admitido como recurso de apelação.
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Dispensaram-se os vistos legais.
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Cumpre apreciar e decidir.
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II. Fundamentação
1. Delimitação do objecto do recurso
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso – art. 639º do CPC.
As questões a decidir:
- nulidade da sentença, nos termos do art. 615º/1 b) CPC;
- nulidade processual, por violação do princípio do contraditório;
- se fixada judicialmente a pensão de alimentos, a cargo do progenitor, pode esse montante ser alterado para quantia superior quando a prestação de alimentos é devida pelo Fundo de Garantia de Pensão de Alimentos Devidos ao Menor.
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2. Os factos
Com relevância para a apreciação das conclusões de recurso cumpre ter presente os seguintes factos provados no tribunal da primeira instância:
- O requerido, C…, não tem efectuado o pagamento das prestações mensais, relativas a alimentos, para o seu filho menor, B…, fixadas no âmbito dos autos principais, no montante de 50,00 euros/mês.
- Não se mostra possível o recurso aos mecanismos legalmente previstos no artigo 189 da O.T.M., para assegurar o pagamento pelo requerido das quantias em dívida, atento o montante da prestação de rendimento social de inserção, atribuída ao requerido, sob pena de ficar em causa a própria subsistência do mesmo.
- O menor vive com a progenitora e o companheiro desta, sendo os rendimentos mensais do agregado familiar, provenientes da prestação do rendimento social de inserção no montante de 231,60 euros e da prestação de subsídio de doença do companheiro da progenitora, no valor de 270,99 euros.
- O mesmo agregado tem despesas mensais, no montante global de 380,00 euros.
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3. O direito
- Nulidade da sentença -
Nas conclusões de recurso, sob as alíneas A) a E), suscita o apelante a nulidade da sentença, com fundamento no art. 615º/1 b) CPC, por considerar que a mesma carece de fundamentos de facto e de direito.
No despacho que admitiu o recurso, o juiz do tribunal “a quo” não se pronunciou sobre as nulidades da sentença, nos termos do art. 617º/1 CPC.
Atenta a simplicidade das questões suscitadas e face aos elementos que constam dos autos, não se mostra indispensável ordenar a baixa dos autos para a apreciação das nulidades, nos termos do art. 617º/5 CPC, passando-se a conhecer desde já das mesmas.
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A sentença na sua formulação pode conter vícios de essência, vícios de formação, vícios de conteúdo, vícios de forma, vícios de limites[1].
As nulidades da sentença incluem-se nos “ vícios de limites “ considerando que nestas circunstâncias, face ao regime do art. 668º CPC, a sentença não contém tudo o que devia, ou contém mais do que devia[2].
No âmbito do Código de Processo Civil de 1961 ANTUNES VARELA no sentido de delimitar o conceito, face à previsão do então art. 668º CPC, que corresponde ao actual art. 615º CPC, advertia que: “ não se inclui entre as nulidades da sentença o chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, a não conformidade dela com o direito substantivo aplicável, o erro na construção do silogismo judiciário […]e apenas se curou das causas de nulidade da sentença, deixando de lado os casos a que a doutrina tem chamado de inexistência da sentença”[3].
Argumenta o apelante que a sentença é omissa quanto à fundamentação de facto e de direito.
Com efeito, nos termos do art. 615º/1 b) CPC, a sentença é nula, quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.
A nulidade ocorre desde que se verifique a falta absoluta de fundamentação, que pode referir-se só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito.
A irregularidade está directamente relacionada com o dever imposto ao juiz de motivar as suas decisões, conforme resulta do disposto no art. 607º CPC[4].
Contudo, para que haja falta de fundamentação de facto, como causa de nulidade da sentença, torna-se necessário que o juiz não concretize os factos que considera provados e coloca na base da decisão[5].
Por outro lado, só a omissão de aplicação do direito aos factos e apenas este vicio pode gerar a nulidade da sentença, por falta de fundamentação legal.
Na situação concreta, a sentença enuncia os factos provados, ainda que sem adoptar o critério previsto no art. 607º/4 CPC, facto que constitui uma mera irregularidade que não interfere no exame e apreciação da causa, já que como decorre dos termos do recurso, o apelante interpretou de forma adequada os termos da decisão, considerando os factos consignados na sentença e que acima se mostram transcritos.
De igual forma, especificou-se na sentença os fundamentos de direito em que assenta a decisão, com os quais o apelante não concorda. A existir erro na aplicação do direito, porque se considerou um factor que a lei não prevê - o salário mínimo nacional - apenas pela via do recurso da decisão podia o apelante impugnar os seus termos.
Desta forma, a sentença não se mostra ferida de nulidade por falta de fundamentação de facto e de direito.
Improcedem, nesta parte, as conclusões de recurso sob as alíneas A) a E).
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- Nulidade processual, por violação do princípio do contraditório -
Nas conclusões de recurso sob a alínea F) suscita o apelante a violação do princípio do contraditório, porque não foi concedida ao apelante a possibilidade de se pronunciar sobre a intervenção do Fundo em substituição do obrigado a alimentos.
O princípio do contraditório constitui um princípio estruturante do actual sistema processual civil, consagrado no art. 3º/3 do CPC. Decorre deste princípio que o juiz deve ouvir as partes antes de decidir questões de direito ou de facto, salvo caso de manifesta desnecessidade.
A omissão de tal formalidade pode, assim, constituir uma irregularidade ou omissão de acto que a lei prevê.
Qualquer desvio do formalismo processual prescrito na lei, e a que esta faça corresponder – embora não de modo expresso – uma invalidade mais ou menos extensa de aspectos processuais[6] representa uma nulidade processual.
Atento o disposto nos art. 186º e seg. CPC, as nulidades processuais podem consistir na prática de um acto proibido, omissão de um acto prescrito na lei ou realização de um acto imposto ou permitido por lei, mas sem o formalismo requerido.
Porém, como refere ALBERTO DOS REIS há nulidades principais e nulidades secundárias, que presentemente a lei qualifica como “irregularidades”, sendo o seu regime diverso quanto à invocação e quanto aos efeitos[7].
As nulidades principais estão previstas taxativamente nos art. 186º e 193º do CPC e art. 187º e 194º CPC e por sua vez as irregularidades estão incluídas na previsão geral do art. 195º CPC e cujo regime de arguição está sujeito ao disposto no art. 199º CPC.
A omissão do exercício do contraditório em relação ao Fundo, chamado a intervir em substituição do obrigado a alimentos, não consta como uma das nulidades previstas nos art. art. 186º e 193º do CPC e art. 187º e 194º CPC.
Representa, pois, a omissão de um acto ou formalidade que a lei prescreve, que cai na previsão do art. 195º CPC e por isso, configura uma irregularidade que só determina a nulidade do processado subsequente àquela omissão se influir no exame e decisão da causa, estando o seu conhecimento dependente da arguição nos termos previsto no art. 199º CPC.
Tal omissão tinha de ser arguida logo que conhecida, e no prazo previsto no art. 149º CPC, ou seja, no prazo de 10 dias a partir da data em que o apelante foi notificado da sentença.
Não tendo sido atempadamente arguida a eventual irregularidade encontra-se sanada.
Cumpre também referir que na estrutura do incidente não se prevê a prévia audição do Fundo e por isso, não se pode defender que a omissão do contraditório corresponde a uma decisão tácita de dispensar a audição do interveniente Fundo. Desta forma, também entendemos que a omissão do contraditório não está a coberto de um despacho judicial que a sancionou ou confirmou[8] e que legitima a impugnação pela via de recurso.
Acresce que não se enquadra a mesma no conhecimento oficioso do tribunal ad quem, atento o disposto no art. 196º CPC, pelo que não existe fundamento para a sua apreciação em sede de recurso.
O recurso de apelação não constitui o meio processual próprio para conhecer das infracções às regras do processo quando a parte interessada não arguiu a nulidade perante o tribunal onde aquela alegadamente ocorreu, conforme resulta do regime previsto no art. 195º a 199º CPC.
Os recursos são meios para se obter uma reapreciação das questões já submetidas ao primeiro grau, e não para criar decisões sobre matéria nova, não submetida ao exame do tribunal de que se recorre e de acordo com a velha máxima “dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se”[9].
Conclui-se, assim, que precludiu a faculdade de suscitar a nulidade processual e nessa medida improcedem as conclusões de recurso sob a alínea F).
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- Do montante devido a título de prestação de alimentos a cargo do Fundo de Garantia de Pensão de Alimentos Devidos ao Menor -
Nas conclusões de recurso sob as alíneas G) a O) a apelante insurge-se contra a decisão pelo facto de fixar a prestação de alimentos a cargo do Fundo em montante superior à pensão de alimentos, a cargo do progenitor, fixada pelo tribunal em sede de regulação das responsabilidades parentais. Defende, em síntese, que pelo facto do Fundo ficar sub-rogado em todos os direitos do menor a quem sejam atribuídas prestações, as prestações a cargo do Fundo têm como limite máximo a pensão de alimentos a cargo do progenitor fixada na sentença, por ser essa a medida da sua obrigação.
O Digno Ministério Público considera que a sentença não merece censura, porque respeitou o critério legal na fixação das prestações a cargo do Fundo, não estando condicionado o seu montante máximo ao valor da pensão de alimentos a cargo do progenitor faltoso, porque a prestação de alimentos a cargo do Fundo resulta de uma obrigação própria do Estado e a lei não estabelece tal limite.
Na questão a decidir não se questiona que no caso concreto a prestação de alimentos constitui um encargo do Fundo de Garantia dos Alimentos devidos a Menores, mas tão só se tal encargo pode ultrapassar o montante da pensão judicial devida pelo progenitor ao menor.
Na questão a apreciar cumpre ter presente, desde logo, a natureza da prestação de alimentos a cargo do Fundo, que resulta de uma obrigação própria, do Estado, que decorre da lei, constitui uma prestação social e cuja atribuição está dependente da verificação de determinados pressupostos, sendo certo que a lei prevê expressamente o seu limite máximo, que não corresponde ao valor da pensão de alimentos fixado por sentença a cargo do progenitor faltoso. Desta forma, assistindo ao Fundo o direito ao reembolso das prestações pagas ao menor, ficando por isso sub-rogado nos seus direitos, cumpre equacionar se a garantia de reembolso da prestação funciona como limite na prestação a cargo do Fundo.
Entendemos que não, pelos motivos que passamos a expor.
A Lei 75/98 de 19/11, conjugada com o DL 164/99 de 13/05, consagrou a garantia de alimentos devidos a menores, inserindo-se tal medida na política social desenvolvida pelo Estado de reforço da protecção social devida aos menores.
Com efeito, a Constituição da República Portuguesa consagra expressamente o direito das crianças à protecção, como função da sociedade e do Estado, tendo em vista o seu desenvolvimento integral (art. 69º Constituição da Republica Portuguesa).
Como se refere no preâmbulo do DL 164/99 de 13/05: “[d]esta concepção resultam direitos individuais, desde logo o direito a alimentos, pressuposto necessário dos demais e decorrência, ele mesmo, do direito à vida (art. 24º). Este direito traduz-se no acesso a condições de subsistência mínimas, o que, em especial no caso das crianças, não pode deixar de comportar a faculdade de requerer à sociedade e, em última instância, ao próprio Estado as prestações existenciais que proporcionem as condições essenciais ao seu desenvolvimento e a uma vida digna”.
As prestações atribuídas aos menores são fixadas pelo tribunal, como determina o art. 2º/1 da Lei 75/98.
Recai sobre o Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores assegurar o pagamento das prestações de alimentos, cujo pagamento é efectuado pelo Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, I.P. (IGFSS, I. P.) como se prevê no art. 2º do DL 164/99 de 13/05 (na redacção da Lei 64/2012 de 20/12).
A lei estabelece um conjunto de pressupostos para a atribuição da prestação ao menor e define os critérios a atender na determinação do montante da prestação.
Constituem pressupostos para o pagamento das prestações de alimentos através do Fundo, nos temos do art. 1º da Lei 75/98 de 19/11 e art. 3º DL 164/99 de 13/05:
- a existência da obrigação judicial de alimentos a menor;
- residência do menor em território nacional;
- a pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos não satisfizer as quantias em divida pelas formas previstas no art. 189º do DL 314/78 de 27/10;
- o menor não tenha rendimento líquido superior ao salário mínimo nacional, nem beneficie nessa medida de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontra.
Na fixação da prestação, o tribunal deve observar os critérios previstos no art. 2º/2 da Lei 75/98 de 19/11 (na redacção da Lei 66-B/2012 de 31/12) e art. 3º/4 do DL 164/99 de 13/05 (na redacção da Lei 64/2012 de 20/12), considerando para o efeito que as prestações não podem exceder, mensalmente, por cada devedor, o montante de 1 IAS, deve considerar-se a capacidade económica do agregado familiar, o montante da prestação de alimentos fixada e as necessidades especificas do menor.
A lei prevê, ainda, que o tribunal pode e deve realizar diligências que o habilitem a avaliar as necessidades do menor e a situação económica do alimentado e da sua família (art. 3º/3 da Lei 75/98 de 19/11 e art. 4º/1/2 do DL 164/99 de 13/05).
A publicação do DL 70/2010 de 16 de Junho veio alterar os critérios para determinar o montante da prestação a pagar através do Fundo de Garantia de Alimentos Devidos aos Menores.
De acordo com o art. 16º do citado diploma, o art. 3º /3 do DL 164/99 de 13/05, passou a ter a seguinte redacção:
“O conceito de agregado familiar, os rendimentos a considerar e a capitação de rendimentos, referido no número anterior, são calculados nos termos do DL 70/2010 de 16/06.”
Os art. 3º, 4º, 5º do DL 70/2010 de 16/06 definem o que a lei considera:
- rendimentos a considerar;
- agregado familiar; e
- capitação do rendimento do agregado familiar.
De acordo com o art. 3º, nos rendimentos a considerar cumpre ponderar os rendimentos do requerente e do seu agregado familiar, que se reportam ao ano civil anterior ao da data da apresentação do requerimento, desde que os meios de prova se encontrem disponíveis, e, quando tal se não verifique, reportam-se ao ano imediatamente anterior àquele, salvo quando as instituições gestoras das prestações e dos apoios sociais disponham de rendimentos actualizados mais recentes.
Por sua vez no conceito de agregado familiar e de vivência em economia comum cumpre atender ao critério do art. 4º:
“Para além do requerente, integram o respectivo agregado familiar as seguintes pessoas que com ele vivam em economia comum, sem prejuízo do disposto nos números seguintes:
a) Cônjuge ou pessoa em união de facto há mais de dois anos;
b) Parentes e afins maiores, em linha recta e em linha colateral, até ao 3.ºgrau;
c) Parentes e afins menores em linha recta e em linha colateral;
d) Adoptantes, tutores e pessoas a quem o requerente esteja confiado por decisão judicial ou administrativa de entidades ou serviços legalmente competentes para o efeito;
e) Adoptados e tutelados pelo requerente ou qualquer dos elementos do agregado familiar e crianças e jovens confiados por decisão judicial ou administrativa de entidades ou serviços legalmente competentes para o efeito ao requerente ou a qualquer dos elementos do agregado familiar.
2 — Consideram-se em economia comum as pessoas que vivam em comunhão de mesa e habitação e tenham estabelecido entre si uma vivência comum de entreajuda e partilha de recursos, sem prejuízo do disposto no número seguinte.
3 — A condição de vivência em comunhão de mesa e habitação pode ser dispensada por ausência temporária de um ou mais elementos do agregado familiar, por razões laborais, escolares, formação profissional ou por motivos de saúde.
4 — Considera -se equiparada a afinidade, para efeitos do disposto no presente decreto -lei, a relação familiar resultante de situação de união de facto há mais de dois anos.
5 — As crianças e jovens titulares do direito às prestações que estejam em situação de internamento em estabelecimentos de apoio social, públicos ou privados sem fins lucrativos, cujo funcionamento seja financiado pelo Estado ou por outras pessoas colectivas de direito público ou de direito privado e utilidade pública, bem como os internados em centros de acolhimento, centros tutelares educativos ou de detenção, são considerados pessoas isoladas.
6 — A situação pessoal e familiar dos membros do agregado familiar relevante para efeitos do disposto no presente decreto -lei é aquela que se verificar à data em que deva ser efectuada a declaração da respectiva composição. “
No apuramento da capitação dos rendimentos do agregado familiar, conforme determina o art. 5º, a ponderação de cada elemento é efectuada de acordo com a escala de equivalência seguinte:
- requerente 1;
- por cada individuo maior 0,7; e
- por cada individuo menor 0,5.
As alterações introduzidas nos citados diplomas pela Lei 64/2012 de 20/12 e Lei 66-B/2012 de 31/12 não alteraram a estrutura do incidente, mantendo os pressupostos e critérios que a lei originariamente previa, para a atribuição da prestação de alimentos a cargo do Fundo.
As alterações introduzidas visaram apenas ajustar a redacção dos diplomas ao regime previsto na Lei 70/2010 de 16 de Junho e estabeleceram como factor de indexação o valor do indexante de apoios sociais (IAS), em substituição do salário mínimo nacional a que se reportam os art. 2º/1 Lei 75/98 de 19/11 e art. 3º/4 do DL 164/99 de 13/05.
Da análise do regime resulta que o sistema criado de garantia de alimentos devidos a menores visa propiciar uma prestação autónoma de segurança social, uma prestação à forfait de um montante. A intervenção do Estado reveste carácter subsidiário, pois só perante uma situação de incumprimento pode o Fundo intervir em substituição do progenitor faltoso e obrigado ao pagamento da pensão de alimentos, satisfazendo através da prestação social o mesmo fim da pensão de alimentos.
Refere a este respeito REMÉDIO MARQUES que a prestação a atribuir: “por regra equivalente ao que fora fixado judicialmente – mas que pode ser maior ou menor[apenas] não pode exceder, mensalmente, por cada devedor, o montante de quatro unidade de conta de custas[…]”[10].
O montante da prestação de alimentos já fixada judicialmente constitui um dos índices a atender na determinação do montante da pensão a atribuir ao menor e por isso, se justifica que o tribunal possa e deva realizar diligências instrutórias, no sentido de aferir caso a caso e pontualmente das necessidades do menor.
Neste domínio apenas está condicionado pelo limite previsto no art.2º/1 da Lei 75/98 de 19/11 e art. 3º/4 do DL 164/99 de 13/05 (na redacção da Lei 64/2012 de 20/12 e Lei 66-B/2012 de 31/12), que inicialmente correspondia ao montante de quatro unidades de conta e presentemente, face à alteração legislativa, situa-se no valor do indexante de apoios sociais.
Com efeito, visando a prestação garantir os alimentos devidos ao menor, o legislador não pode ignorar que as necessidades do menor se alteram à medida do seu crescimento e desenvolvimento, com o correspondente aumento de encargos e despesas em alimentação, vestuário e educação, sendo certo que a obrigação do Fundo só cessa, quando o progenitor retoma o cumprimento das suas obrigações ou quando assim não ocorre, quando o menor atinge a idade de 18 anos (art. 1º/2 da Lei 75/98 de 19/11, na redacção da Lei 66-B/2012 de 31/12).
Desta forma, como observa REMÉDIO MARQUES: “[…]ao tribunal é lícito e exigível efectuar a reponderação da situação de facto do menor à luz da qual fora anteriormente fixada a pensão de alimentos cujo incumprimento tenha dado origem ao pedido de condenação dirigido contra o Fundo de Garantia, já que esta anterior pensão constitui apenas um dos índices de que o julgador se pode servir ao fixar a prestação do Fundo de Garantia”[11].
Seguindo este mesmo sentido interpretativo, no Ac. Rel. Coimbra 22.10.2013, Proc. 2441/10.6TBPBL-A.C1[12], anota-se: “[o] montante dos alimentos a prestar pelo Fundo não depende da quantia em que o obrigado tenha sido condenado, nem da capacidade que este tenha de prestar alimentos. Esta capacidade, naturalmente, e como em geral sucede com a obrigação de prestar alimentos no âmbito das relações familiares (cf. a disposição geral do n.º 1 do art.º 2004º, do Código Civil), foi tida em conta quando o tribunal os fixou; mas não releva agora a não ser indirectamente, e apenas na medida em que o “montante da prestação de alimentos fixada” (n.º 2 do art.º 2º da Lei n.º 75/98) é um dos elementos a ponderar (é, tão-só, um dos índices de que o julgador se pode servir) para o efeito de definir a extensão da obrigação do Fundo. Isto significa que a intenção de adequação à situação concreta do menor conduz a que a prestação posta a cargo do Fundo possa ser de valor inferior, igual ou superior ao daquela que visa substituir” (sublinhado e itálico no texto original).
Acresce que a lei prevê de forma minuciosa os critérios para fixar o montante da prestação a cargo do Fundo, mas não determina que o valor a arbitrar não possa exceder o montante da pensão de alimentos, quando sendo essa a intenção do legislador assim podia determinar, mas nunca o fez, apesar das sucessivas alterações dos diplomas.
O direito de sub-rogação legal, previsto no art. 5º/1 DL 164/99 de 13/05, explica-se pela natureza da prestação em si, através da qual o Fundo substitui-se ao obrigado e visa garantir a prestação de alimentos que são devidos ao menor. A obrigação do Estado tem uma função de garantia da obrigação familiar de alimentos, mas nasce por efeito da necessidade do menor, sendo a necessidade do menor com os limites previstos na lei que vai ditar o montante devido pelo Fundo.
O principal efeito da sub-rogação é a transmissão do crédito, que pertencia ao credor satisfeito e essa transmissão pode ser total ou parcial, tudo depende da medida do cumprimento da obrigação[13].
Não ignorando as divergências na jurisprudência dos tribunais superiores a respeito desta questão[14], de que dão nota a apelante e apelada nas respectivas alegações, não podemos deixar de acolher o entendimento que defende que a fixação da prestação a cargo do Fundo, pode ser igual, inferior ou superior ao montante da pensão de alimentos fixada judicialmente a cargo do obrigado a alimentos.
A prestação a pagar pelo Fundo de Garantia tem a natureza de prestação social autónoma, que reforça a protecção social devida aos menores por parte do Estado, que se substitui ao devedor, não para pagar as prestações por este devidas, mas para assegurar os alimentos de que o menor precise. E essa função de protecção do Estado só é realizada se a prestação que vem a pagar cumpra aquela finalidade de garantir condições mínimas de subsistência ao menor, se adequada no seu valor para esse efeito, o que, desde logo, pode implicar que deva ser superior ao valor dos alimentos fixados a cargo devedor, por estes serem fixados, desde logo, de acordo com as suas possibilidades.
Como se refere no o Ac. Rel. Porto de 18.06.2007[15]: “[o]ra, a “preocupação do legislador em conceder às crianças carecidas de alimentos o acesso a condições de subsistência mínimas” não se coaduna com a posição de ao menor carente não poder ser paga pelo Fundo de Garantia uma prestação superior ao valor devido pelo obrigado a alimentos por mais insignificante que fosse, de modo que nenhumas condições de subsistência condigna possa proporcionar”.
Nos termos do artigo 6.º/3 da Lei 75/98, “o Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores fica sub-rogado em todos os direitos dos menores a quem sejam atribuídas prestações, com vista à garantia do respectivo reembolso”.
O que é reafirmado no artigo 5.º/1 do DL 164/99 que dispõe “o Fundo fica sub-rogado em todos os direitos do menor a quem sejam atribuídas prestações, com vista à garantia do respectivo reembolso”.
Trata-se de uma sub-rogação legal.
O Fundo fica subrogado na medida do que pagar (a sub-rogação não se verifica em relação a prestações futuras) e dos direitos do beneficiário de alimentos (com a correspondente obrigação do devedor dos mesmos).
O sub-rogado adquire, na medida da satisfação dada ao direito do credor, os poderes que a este competiam (artigo 593º/1 do CC).
A sub-rogação pode ser total ou parcial.
O Fundo de Garantia só pode ficar sub-rogado nos direitos do menor, a quem efectua o pagamento das prestações, contra o devedor dos alimentos e não em relação a outras prestações a cujo pagamento o devedor de alimentos não estava obrigado.
Se a prestação for de valor superior à obrigação do devedor dos alimentos, a sub-rogação teria de ser parcial.
Mais prescreve o citado artigo 5º que:
“3 - Decorrido o prazo para reembolso sem que este tenha sido efectuado, se o devedor não iniciar o pagamento das prestações de alimentos devidos ao menor, o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social pode, desde logo, requerer a execução judicial para reembolso das importâncias pagas, nos termos da lei do processo civil, salvo se se verificar existir manifesta e objectiva impossibilidade de pagamento.
4 - Para efeitos do disposto no número anterior, considera-se que se verifica manifesta e objectiva impossibilidade de pagamento por parte do devedor quando este se encontre numa situação de ausência ou insuficiência de recursos que lhe permitam pagar a prestação de alimentos, nomeadamente por razões de saúde ou por se encontrar desempregado”.
O reembolso pode nunca acontecer por manifesta e objectiva impossibilidade de pagamento por parte do devedor e, de facto, o Fundo de Garantia ter de assumir, pontualmente e por essa razão, a título definitivo, o encargo com as prestações que, por decisão do tribunal, pagou ao menor.
Nessa situação, como naquela em que a prestação devida pelo devedor dos alimentos seja tão exígua que não permita condições mínimas de subsistência, terá o Estado, na concretização dos princípios que presidem aos diplomas legais referidos, e dos objectivos visados com a criação do regime de garantia dos alimentos devidos a menores, assumir a responsabilidade pelo pagamento das prestações necessárias a assegurar ao menor condições mínimas de subsistência condigna, mesmo sem a esperança do reembolso por parte do possível obrigado a alimentos. Só dessa forma fica verdadeiramente protegida a dignidade da criança como pessoa e o direito a uma vida condigna.
Acresce que a autonomia da decisão que fixa a prestação de alimentos a cargo do FGADM relativamente àquela que fixara a obrigação da prestação de alimentos devida pelo progenitor que a incumpriu é salientada e tornada eficaz para vários efeitos.
Constitui jurisprudência uniforme que, por proceder de fundamentos diferentes, a decisão judicial que fixa a prestação de alimentos a cargo do FGADM não pode basear-se e importar, simplesmente, o valor que fora fixado para a obrigação de alimentos imposta ao(s) progenitor(es) do menor, fazendo coincidir tais valores. Pelo contrário, tem de justificar a medida do valor em que fixa essa prestação, quer de facto, quer de direito[16], permitindo a sua própria sindicabilidade.
Por outro lado, também quanto à questão da determinação do momento a partir do qual é devida essa prestação pelo FGADM, constituiu matéria de grande controvérsia na jurisprudência, em termos que culminaram com a prolação de um Acórdão de Uniformização de Jurisprudência, de 7/7/2009. Neste foi determinado que obrigação de prestação de alimentos a menor, assegurada pelo FGADM, em substituição do devedor, só nasce com a decisão que julgue o incidente de incumprimento do devedor originário e a respectiva exigibilidade só ocorre no mês seguinte ao da notificação da decisão do tribunal, não abrangendo quaisquer prestações anteriores.
A actualidade das prestações que satisfaz afere-se pela verificação judicial da existência cumulativa dos pressupostos e requisitos legais, legitimadores da intervenção do Fundo – arts 1º e 3º da Lei nº 75/98 e 2º e 9º do Dec-Lei nº 164/99.
O montante dos alimentos imposto ao Fundo é fixado no incidente de incumprimento e só então se torna líquido e exigível, como direito social do alimentando.
A obrigação do Fundo não existe enquanto não for apurado o incumprimento do originário devedor e demais pressupostos legais, de tal modo que tal obrigação só é criada com a decisão do respectivo incidente.
Neste sentido pronunciaram-se, ainda, os Ac. Rel. Porto 15.10.2013, Proc. 151/12.9TBARC.P1, Ac. Rel. Porto 15.10.2013, Proc. 37/12.7TBCNF.1.P1, Ac. Rel. Lisboa 18.12.2012, Proc. 5270/08.3TBALM-A.L1-7, Ac. Rel. Coimbra 22.10.2013, Proc. 2441/10.6TBPBL-A.C1, todos publicados no endereço electrónico www.dgsi.pt.
Face ao exposto, ponderando a natureza da prestação a cargo do Fundo, como prestação social, com autonomia em relação à pensão de alimentos devidos pelo obrigado a alimentos, por depender das necessidades do menor, refutam-se os argumentos da apelante, para concluir que em sede de incidente de incumprimento instaurado ao abrigo do art. 189º da OTM, pode a prestação a cargo do Fundo ser fixada em montante superior ao da pensão de alimentos, desde que respeite o limite máximo previsto no art. 3º/4 do DL 164/99 de 13/05, na redacção da Lei 64/2012 de 20/12.
Conclui-se, assim, que a sentença não merece censura pelo facto de ter fixado o montante da prestação em valor superior ao da pensão de alimentos a cargo do progenitor faltoso e não impugnando a apelante os critérios que presidiram à sua fixação, nada mais cumpre apreciar, julgando-se improcedentes as conclusões de recurso.
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Nos termos do art. 527º CPC as custas são devidas pelo apelante, que está isento do pagamento de custas, como decorre do disposto no art. 4º/v) do Regulamento das Custas Processuais (na redacção do art. 185º da Lei 66-B/2012 de 31/12) e nessa medida não se fixa a respectiva responsabilidade pelo seu pagamento.
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III. Decisão:
Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação e confirmar o despacho recorrido.
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Sem custas, por delas estar isento o apelante art. 4º/v) do Regulamento das Custas Processuais (na redacção do art. 185º da Lei 66-B/2012 de 31/12).
*
Porto, 29-09-2014
(processei e revi – art. 131º/5 CPC)
Ana Paula Amorim
Rita Romeira
Manuel Domingos Fernandes
__________________
[1] JOÃO DE CASTRO MENDES, Direito Processual Civil, vol. III, Lisboa, Associação Académica da Faculdade de Direito, 1982, pag. 297.
[2] JOÃO DE CASTRO MENDES, Direito Processual Civil, ob. cit., pag. 308.
[3] ANTUNES VARELA, J.M.BEZERRA, SAMPAIO NORA, Manual de Processo Civil, 2ª edição Revista e Actualizada de acordo com o DL 242/85, S/L, Coimbra Editora, Limitada, 1985, pag. 686.
[4] JOSÉ LEBRE DE FREITAS E A. MONTALVÃO MACHADO, RUI PINTO Código de Processo Civil – Anotado, vol II, 2ª edição, pag. 675 e ANSELMO DE CASTRO Direito Processual Civil Declaratório, vol. III, pag. 141.
[5] ANTUNES VARELA J.M.BEZERRA, SAMPAIO NORA, Manual de Processo Civil ob.cit., pag. 688.
[6] MANUEL DE ANDRADE Noções Elementares de Processo Civil, Nova Edição Revista e Actualizada pelo Dr. Herculano Esteves, Reimpressão, Coimbra, Coimbra Editora, Limitada, 1993, pag. 176
[7] ALBERTO DOS REIS Comentário ao Código de Processo Civil, vol. II, Coimbra, Coimbra Editora, pag. 357.
[8] MANUEL DE ANDRADE Noções Elementares de Processo Civil, ob. cit., pág. 183. ALBERTO DOS REIS Código de Processo Civil Anotado, vol. V, Coimbra, Coimbra Editora, 1984, pag. 424. ANTUNES VARELA J.M.BEZERRA, SAMPAIO NORA, Manual de Processo Civil ob.cit., pag. 393.
[9] JOSÉ ALBERTO DOS REIS Comentário ao Código de Processo Civil, Volume II, Coimbra Editora, Coimbra, pag.507.
[10] J.P.REMÉDIO MARQUES Algumas Notas Sobre Alimentos (Devidos a Menores), 2ª Edição Revista, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, pag.234 e ainda, a pag. 237.
[11] J.P.REMÉDIO MARQUES Algumas Notas Sobre Alimentos (Devidos a Menores), ob. cit., pag. 239.
[12] Ac. Rel. Coimbra 22.10.2013, Proc. 2441/10.6TBPBL-A.C1, publicado no endereço electrónico www.dgsi.pt; Ac. STJ 04.06.2009, CJ STJ XVII, II, pag. 104.
[13] Cfr. JOÃO DE MATOS ANTUNES VARELA Das Obrigações em Geral, vol. II, 3ª edição, Coimbra, Almedina, 1980, pag.311-313, 320-321.
[14] Cfr. Ac. Rel. Lisboa 08.11.2012, Proc. 1529/03.4TCLRS-A.L2-6, onde se defende:” o artigo 2º da Lei 75/98, de 19 de Novembro, estabelece são critérios de determinação do montante dos alimentos a suportar pelo FGADM, tendo como limite o valor da obrigação que o progenitor do menor não cumpriu.
6. Em conclusão, estando em causa o incumprimento das responsabilidades parentais na vertente da obrigação de prestação de alimentos e, concluindo-se que estão reunidas as condições para a intervenção do FGADM, não pode, ao abrigo da Lei 75/98, de 19 de Novembro, determinar-se que o valor da prestação a suportar por este seja superior ao que está prévia e judicialmente definido para o obrigado”.
No mesmos sentido interpretativo Ac. Rel. Porto 18 de Fevereiro de 2014, Proc. 2247/05.4TBPRD-A.P1 e Ac. Rel. Lisboa de 13 de Março de 2014, Proc. 848/11.0TBLNH-A.L1-6, ambos disponíveis em www.dgsi.pt
Em sentido diferente, o Ac. Rel. Porto 15.10.2013, Proc. 37/12.7TBCNF.1.P1: “A autonomia da decisão que fixa a prestação de alimentos a cargo do FGADM relativamente àquela que fixara a obrigação da prestação de alimentos devida pelo progenitor que a incumpriu verifica-se para diversos efeitos e bem assim quanto aos pressupostos de cada obrigação, nada havendo, na letra da lei ou nos seus fundamentos, que imponha que a prestação a satisfazer pelo FGADM tenha de coincidir ou tenha por limite o valor da prestação de alimentos que fora fixada àquele devedor”.
Neste sentido podem ainda consultar-se: Ac. Rel. Porto de 11 de Março de 2014, Proc. 112/12.8 TBPRD.P1; Ac. Rel. Porto 13 de Fevereiro de 2014, Proc. 2681/11.0 TBPNF-A.P1; Ac. Rel. Porto 03 de Dezembro de 2013, Proc. 1621/11.1TBPNF-B.P1; Ac. Rel. Lisboa de 25 de Março de 2014, Proc. 7658/06.5 TBCSC-C.L1-7; Ac. Rel. Lisboa 20 de Março de 2014, Proc. 2939/11.9TBTVD.L1-8, todos disponíveis em www.dgsi.pt
[15] Ac. Rel. Porto 18/6/2007, P 0733397, publicado no endereço electrónico: www.dgsi.pt
[16] Cfr., entre outros, Ac. do TRL de 21 de Junho de 2011, Proc. nº 6749/08.2TBCSC-A.L1-7, acessível em www.dgsi.pt