Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1070/16.5T8AVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RITA ROMEIRA
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
DESCARATERIZAÇÃO
PROVA
PRESUNÇÕES JUDICIAIS
CULPA GRAVE
SINISTRADO
CULPA EXCLUSIVA
ÓNUS DA PROVA
NEXO DE CAUSALIDADE
ALCOOLÉMIA
Nº do Documento: RP201801241070/16.5T8AVR.P1
Data do Acordão: 01/24/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÕES EM PROCESSO COMUM E ESPECIAL (2013)
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 4ªSECÇÃO (SOCIAL), (LIVRO DE REGISTOS N.º268, FLS.318-330)
Área Temática: .
Sumário: I - Não se provando que, o teor de alcoolemia (1,89g/l) que o sinistrado apresentava, aquando do acidente sofrido, contribuiu para a sua queda, após sujeição a prova, não é legítimo extrair que o acidente não teria ocorrido se não fosse o estado alcoolizado em que se encontrava o sinistrado e, desse modo, concluir pela descaracterização daquele.
II - A prova por presunções judiciais, que os artºs 349 e 351 do CC permitem, tem como limites o respeito pela factualidade provada e a respectiva correspondência a deduções lógicas e racionalmente fundamentadas naquela.
III - A falta de prova do facto não pode ser colmatada ou suprida por presunção judicial, pois que, se um facto concreto é submetido a discussão probatória e o julgador o não dá como provado, seria contraditório tê-lo como demonstrado com base em simples presunção.
IV - As presunções, apenas, são admissíveis para integração ou complemento da factualidade apurada nas respostas do tribunal à matéria controvertida e não já para contrariar ou modificar a matéria de facto ou mesmo suprir a falta de prova, já que estas não servem para substituir a prova dos factos com que a parte está onerada.
V - Para que se conclua pela descaracterização de acidente de trabalho e subsequente não reparação do mesmo, além da prova da negligência grosseira do sinistrado, exige-se também, cumulativamente, que se prove a culpa exclusiva deste na sua verificação.
VI - Ainda que se prove que o sinistrado apresentava uma taxa de álcool no sangue de 1,89g/l, na altura do acidente, que lhe diminui a atenção, concentração, capacidade de reacção, equilíbrio e reflexos, não se provando que aquele teor de alcoolemia contribuiu para a queda que sofreu, apenas, aqueles factos provados não permitem estabelecer o nexo de causalidade entre o estado de embriaguez e aquela.
VII - O facto de o mesmo estar alcoolizado não é susceptível de, só por si, descaracterizar o acidente de trabalho e conduzir à sua não reparação.
VIII - Assim, não estando provada a causa da queda que provocou a morte ao sinistrado, nem a culpa exclusiva deste na ocorrência do acidente, não se pode concluir que tenha sido aquele estado de alcoolizado do mesmo que esteve na origem do acidente.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc.Nº 1070/16.5T8AVR.P1
Origem: Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, Aveiro - Juízo do Trabalho - Juiz 1
Recorrente: B… - Companhia de Seguros, S.A.
Recorridas: C… e D…
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto
I – RELATÓRIO
A A. C…, por si e em representação da sua filha menor, D…, veio instaurar acção declarativa com processo especial, emergente de acidente de trabalho de que foi vítima mortal, E…, respectivamente, marido e pai das AA. contra B… – Companhia de Seguros, S.A., na qual pede a fixação de pensão provisória, nos termos do art. 122º do Código de Processo de Trabalho, e a condenação da R. a pagar-lhes:
À viúva C…:
a) A pensão anual e vitalícia de €2.226,00, devida desde 12 de Março de 2016, dia seguinte à morte;
b) €1.737,50, a título de reparação por despesas que suportou com o funeral do sinistrado;
c) €5.533,68, a título de subsídio por morte;
d) Juros de mora vencidos e vincendos, sobre as quantias reclamadas, calculados à taxa de 4%.
e) €1.353,27, a título de despesas hospitalares.
À filha D…:
a) A pensão anual e temporária de €1.484,00, desde 12 de Março de 2016, até perfazer 18, 22 ou 25 anos;
b) €71,15, referentes ao período entre a data do acidente e a data do falecimento;
c) Juros de mora vencidos e vincendos, sobre as quantias reclamadas, calculados à taxa de 4%.
Fundamentam o pedido alegando, em síntese, que o sinistrado trabalhava para a Sociedade “F…, Unipessoal, Ld.ª”, exercendo as funções de empregado de mesa, num restaurante sito na Avenida … n.º …., em …, mediante a retribuição anual ilíquida de €7.420,00.
No dia 6 de Março de 2016, o sinistrado, após iniciar o turno das 19:00 às 23:00 horas, começou a sentir-se indisposto e comunicou ao gerente da empregadora que ia para casa – o que este aceitou.
Ao deslocar-se para casa, no percurso que habitualmente fazia, conduzindo o motociclo matrícula .. – LP - .., na sua mão de trânsito, o sinistrado caiu inesperadamente ao solo, juntamente com o motociclo, sem ter havido da sua parte qualquer acção que tivesse provocado a sua queda.
Por causa dessa queda, o sinistrado sofreu lesões que lhe causaram a morte.
Mais, alegam que o Centro Hospitalar G…, E.P.E. apresentou 2 facturas devidas pela assistência ao sinistrado, desde o dia do acidente até ao dia do seu falecimento, que totalizam o montante de €1.353,27.
Alegam, ainda, que à data em que ocorreu o acidente, a entidade empregadora tinha a responsabilidade emergente de acidentes de trabalho transferida para a R., que é por isso responsável pela reparação.
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Citada a R. contestou, defendendo que as AA. não alegam as razões da queda do sinistrado, não se podendo por isso concluir pela existência de um evento naturalístico inesperado causador da sua morte.
Mais, alega que o acidente deve ser considerado descaracterizado, porque aquando da sua ocorrência, o sinistrado conduzia o motociclo com uma taxa de alcoolémia de 1,89 g/l no sangue, o que lhe alterou o estado de espírito e a disposição, diminuindo-lhe drasticamente os sentidos, atenção, concentração, capacidade de reacção, equilíbrio e reflexos necessários à condução do veículo.
Tendo o estado de influência do álcool em que se encontrava sido causa directa e necessária da produção do acidente, que ocorreu por culpa única e exclusiva do sinistrado, que de livre e espontânea vontade, se colocou numa situação de privação acidental do uso da razão.
Refere, que o subsídio por morte, a ser devido, é-o a ambas as AA., e não só à A. C… e quanto às despesas de funeral, que incumbe a elas o ónus da prova de que as suportaram efectivamente.
Invoca que se encontra incorrectamente calculada a indemnização pelo período de ITA sofrido, que a ser devida, é-o igualmente à A. C…, na qualidade de herdeira do sinistrado e desconhecer se as AA. procederam ao pagamento das facturas hospitalares juntas aos autos.
Por último, defende não ser responsável pelo pagamento da pensão provisória.
Conclui que, provando-se a ocorrência de acidente de viação e a privação acidental do uso da razão do sinistrado por causa que lhe é imputável, deve o acidente de trabalho ser descaracterizado ou, caso assim não se entenda, deve a acção ser julgada em conformidade com a prova que venha a ser produzida, com a sua consequente absolvição do pedido.
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Nos termos que constam a fls. 109 e ss., em 09.03.2017, foi proferido despacho saneador tabelar, fixaram-se os factos assentes e a base instrutória.
Através do requerimento junto a fls. 124, em 23.03.2017, a A., D…, veio informar no processo que perfez 18 anos de idade, no dia 01.01.2017, ratificar todo o processado e constituir mandatário.
Em 07.04.2107, nos termos do despacho de fls. 145 e ss., foi fixada pensão provisória às AA., a cargo do Fundo de Acidentes de Trabalho (FAT) e diligenciou-se pelo prosseguimento dos autos para julgamento.
Os autos prosseguiram para julgamento e realizada a audiência, nos termos que constam das actas de fls. 176 e ss., respondeu-se à matéria de facto constante da base instrutória.
Por fim, em 03.07.2017, foi proferida sentença que terminou com a seguinte decisão:
Em face de todo o exposto e na parcial procedência da acção, decide-se:
I. Condenar a R. B… – Companhia de Seguros, S.A. a pagar:
A) À A. C…, viúva do sinistrado:
a) O capital de remição da pensão anual e vitalícia de €2.226,00 (dois mil, duzentos e vinte e seis euros), desde 12 de Março de 2016 – com dedução porém das quantias que recebeu do FAT, a título de pensão provisória.
b) €2.766,84 (dois mil, setecentos e sessenta e seis euros e oitenta e quatro cêntimos), a título de subsídio por morte.
c) €30,50 (trinta euros e cinquenta cêntimos), correspondentes à sua quota-parte na indemnização pelo período de incapacidade temporária absoluta para o trabalho sofrido pelo sinistrado, desde a data do acidente, até à do falecimento.
d) €1.737,50 (mil setecentos e trinta e sete euros e cinquenta cêntimos), a título de reembolso por despesas suportadas com o funeral do sinistrado.
e) Juros de mora à taxa legal (actualmente de 4%) sobre as referidas prestações, até integral pagamento, contados desde 12 de Março de 2016, no que se refere às aludidas supra nas alíneas a) e c) e desde a citação da R. para contestar, no que se refere às referidas nas alíneas b) e d).
B) À A. D…, filha do sinistrado:
a) A pensão anual de €1.484,00 (mil quatrocentos e oitenta e quatro euros), enquanto se encontrar em alguma das situações previstas no art. 60º n.º 1 da Lei n.º 98/2009, de 04/09, pensão essa actualizada para €1.491,42 (mil quatrocentos e noventa e um euros e quarenta e dois cêntimos), a partir de 01/01/2017 – com dedução porém das quantias que recebeu do FAT, a título de pensão provisória.
b) €2.766,84 (dois mil, setecentos e sessenta e seis euros e oitenta e quatro cêntimos), a título de subsídio por morte.
c) €30,50 (trinta euros e cinquenta cêntimos), correspondentes à sua quota-parte na indemnização pelo período de incapacidade temporária absoluta para o trabalho sofrido pelo sinistrado, desde a data do acidente, até à do falecimento.
d) Juros de mora à taxa legal (actualmente de 4%) sobre as referidas prestações, até integral pagamento, contados desde 12 de Março de 2016, no que se refere às aludidas supra nas alíneas a) e c) e desde a citação da R. para contestar, no que se refere à referida na alínea b).
II. No mais, absolver a R. do pedido formulado pelas AA..
III. Condenar a R. a reembolsar o FAT das importâncias que este pagou às AA., a título de pensão provisória.
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Custas a cargo das AA. e da R., na proporção dos respectivos decaimentos (art.º 527º n.ºs 1 e 2 do Cód. de Processo Civil), sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficiam as AA..
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Valor da acção: €67.063,93 – art. 120º do Cód. de Processo de Trabalho.”.
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Inconformada com esta decisão a Ré/seguradora interpôs recurso, cujas alegações juntas a fls. 205 e ss. terminou com as seguintes CONCLUSÕES:
I. A sentença recorrida não pode manter-se, uma vez que efectuou uma incorrecta apreciação da prova produzida em Audiência de Julgamento, bem como do direito aplicável;
II. As questões essenciais e cuja ponderação se requer são as seguintes:
a. O cumprimento do ónus da prova por parte das Autoras, relativamente ao acidente de que foi vítima o trabalhador e que qualificam como de trabalho;
b. Em caso afirmativo, saber se o acidente em causa deverá ser descaracterizado tendo por referência a matéria provada nos pontos 25, 26 e 27.
III. Nos termos do n.° 1 do artigo 8.° da Lei n.° 98/2009, de 4 de Setembro, “é acidente de trabalho aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza directa ou indirectamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou morte”;
IV. A caracterização de um acidente como de trabalho pressupõe a verificação de três elementos ou requisitos:
a. Elemento espacial - em regra, a local do trabalho;
b. Elemento temporal - em regra, correspondente ao tempo de trabalho; e
c. Elemento causal - nexo de causa e efeito entre o evento e a lesão, perturbação funcional ou doença, por um lado, e entre estas situações e a redução da capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte.
V. É noção sedimentada e usada pela doutrina e jurisprudência temáticas a de que “acidente” constituiu todo o facto naturalístico, de causa súbita, violenta, estranha e exterior à vontade da vitima.
VI. Não podemos esquecer que a alegação e prova de factos que se mostrem subsumíveis à noção legal de “acidente de trabalho” impõem cumulativamente a verificação concreta dos três indicados pressupostos;
VII. A Autora não só não alegou, como não demonstrou nos autos qual a razão dessa queda;
VIII. Não se vislumbra, por essa razão, da matéria dada como provada, nenhum evento naturalístico, inesperado e de ordem exterior ao próprio sinistrado que tenha causado no mesmo lesões corporais;
IX. Muito pelo contrário, dos autos resulta que, aquando do acidente, o sinistrado conduzia o motociclo com uma taxa de alcoolémia de 1,89 g/l”, taxa essa que lhe ‘diminuiu a atenção, concentração, capacidade de reacção, equilíbrio e reflexos”;
X. Da matéria dada como provada, não se pode concluir pela existência de qualquer evento naturalístico, inesperado e de ordem exterior ao próprio sinistrado”; Muito pelo contrário, a taxa de álcool com o que o mesmo tripulava o velocípede, após a ingestão voluntária de bebidas alcoólicas, terá determinado, com grande probabilidade a queda;
XI. Da matéria alegada e provada, não se pode concluir pela existência de qualquer evento, e, não se tendo provado a existência do evento, não se pode falar de nexo entre o mesmo (evento) e a lesão;
XII. O acidente” em apreço nos autos não pode considerar-se como acidente de trabalho (in itinere), devendo, por essa razão, a sentença ora colocada em crise ser revogada e substituída por outra que absolva a Recorrente do pedido.
Sem prejuízo,
XIII. Por brevidade e economia processual, remete-se para o disposto no n.° 1 do artigo 14.° da Lei n.° 98/2009, de 4 de Setembro;
XIV. O trabalhador sinistrado ao conduzir o motociclo com uma taxa de álcool no sangue de 1,89 g/l violou, desde logo, sem causa justificativa, as mais elementares regras estradais, uma vez que tal teor de álcool no sangue é superior ao legalmente permitido (artigo 81.° do Código da Estrada), e constitui crime punível com prisão até 1 ano, nos termos do disposto no artigo 292.° do Código Penal;
XV. Da matéria dada como provada resulta que o trabalhador, numa manifesta atitude de incúria, entendeu conduzir o motociclo após ter ingerido bebidas alcoólicas, bem sabendo que tal comportamento era - e é - legalmente proibido;
XVI. À data do sinistro o trabalhador não se encontrava no pleno gozo das suas capacidades, antes pelo contrário, as suas capacidades estavam gravemente diminuídas em função do consumo do álcool;
XVII. Tendo em consideração a taxa de álcool apresentada, é manifesto que o trabalhador sinistrado sabia que tinha ingerido bebidas alcoólicas em quantidades que tornava, senão impossível, pelo menos muito perigoso - para si e para os outros - o exercício da condução;
XVIII. Tendo por referência a matéria dada como provada, era possível concluir pela descaracterização do acidente em apreço;
XIX. As exigências de prova constantes da sentença determinaram traduzem-se numa prova impossível e uma condenação certa, quando, na realidade, abunda a matéria suficiente para promover a descaracterização;
XX. Partindo da matéria em causa, era possível ao Meritíssimo Juiz a quo, nos termos do artigo 351.° do Código Civil estabelecer presunções judiciais, ou seja, poderia ter retirado ilações, tendo por fundamento matéria de facto - julgada provada, notória ou de conhecimento oficioso;
XXI. É lícita a utilização da presunção judicial para concluir da verificação dum facto desconhecido (presumido), mas tal pressupõe a existência de facto(s) conhecido(s), servindo-se o julgador, para esse fim, de regras da experiência da vida, segundo o padrão do “homem médio”;
XXII. As presunções judiciais representam processos mentais do julgador, numa dedução decorrente de factos conhecidos e são afinal o produto das regras de experiência: o juiz, valendo-se de certo facto e de regras de experiência conclui que aquele denuncia a existência doutro facto. Ao procurar formar a sua convicção acerca dos factos relevantes para a decisão, pode utilizar o juiz a experiência da vida, da qual resulta que um facto é consequência de outro” (A. Lopes Cardoso, in Revista dos Tribunais, 86.0112). Sem a utilização dessas presunções seria impossível, em muitos casos concretos, fazer justiça, na sua asserção de efectivação da verdade material;
XXIII. Tendo por referência a prova produzida, e fazendo-se valer da sua experiência de vida, poderia o Meritíssimo Juiz ter concluído que o acidente em apreço nos autos se ficou a dever à taxa de álcool no sangue apresentada pelo trabalhador sinistrado, e, dessa forma, concluir pela descaracterização do acidente tendo por referência quer a alínea a), quer a alínea b) do identificado preceito;
Acresce que,
XXIV. O Autor, voluntariamente e sem causa justificativa, ingeriu bebidas alcoólicas que tornavam “muito perigoso, para si e para os outros, o exercício da condução”;
XXV. Entende a Recorrente que, para se verificar a previsão da referida alínea c), não tem de resultar provado o nexo de causalidade entre a ingestão de bebidas alcoólicas e o acidente, bastando, tão-somente, a demonstração da privação da razão por parte do sinistrado;
XXVI. A sentença proferida pelo Tribunal a quo deve ser revogada, por errada interpretação do disposto no artigo 14.° da Lei n.° 98/2009, de 4 de Setembro, e substituída por outra que absolva a Recorrente do pedido.
Termos em que o recurso deve merecer provimento.
Assim se fará, como sempre, inteira e sã JUSTIÇA!
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As AA. responderam às alegações da ré, nos termos que constam a fls. 228 e ss. concluindo, sem formulação de conclusões, que o recurso não deve colher provimento.
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Nos termos que constam do despacho de fls. 239, o Mº Juiz “a quo” admitiu a apelação, com efeito suspensivo, após a prestação de caução oferecida pela ré e ordenou a sua subida a esta Relação.

A Ex.ma Procuradora Geral Adjunta teve vista nos autos, nos termos do art. 87º nº3, do CPT, tendo emitido parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso.
Nenhuma das partes, após, notificação para o efeito apresentou resposta a este parecer.
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Dado cumprimento ao disposto no art. 657º, nº 2 do CPC, há que apreciar e decidir.
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O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações da recorrente, cfr. art.s 635º, nº 4 e 639º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, aplicável “ex vi” do art. 87º, nº 1, do Código de Processo do Trabalho, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado.
Assim as questões a apreciar e decidir consistem em saber:
- se as AA. cumpriram o ónus da prova relativamente à existência de um acidente qualificável como acidente de trabalho;
- se, se mostrar cumprido esse ónus se deve o acidente ser descaracterizado atenta a factualidade constante dos pontos 25, 26 e 27 dos factos provados.
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II - FUNDAMENTAÇÃO
A) DE FACTO
A 1ª instância deu por provados os seguintes factos:
1. A A. C… casou a 24 de Julho de 1994 com E… (sinistrado) – cfr. certidão de assento de casamento de fls. 17.
2. A A. D… é filha da A. C… e do sinistrado, tendo nascido em 01/01/1999 – cfr. certidão de assento de nascimento de fls. 20.
3. O sinistrado foi admitido ao serviço da sociedade “F…, Unipessoal, Ld.ª”, mediante contrato escrito, por tempo indeterminado, para mediante retribuição e sob as suas ordens, direcção e fiscalização, exercer as funções de empregado de mesa, no restaurante sito na Avenida …, n.º …., em ….
4. O sinistrado trabalhava em dois turnos diários, o primeiro das 12 horas às 15 horas e o segundo das 19 horas às 23 horas.
5. Mediante a retribuição mensal ilíquida de €530,00, recebida 14 vezes no ano, perfazendo a retribuição anual ilíquida de €7.420,00.
6. No dia 6 de Março de 2016, cerca das 20.00 horas, na Rua …, em …, o sinistrado sofreu um acidente de viação, quando se deslocava do seu local de trabalho (sito na Avenida … n.º …., em …, Ovar), para a sua residência, sita Rua …, nº …, em …, Ovar.
7. Na ocasião, o sinistrado conduzia um motociclo, marca “Aprillia”, modelo “…”, com a matrícula .. – LP - .., de sua propriedade.
8. E seguia no sentido norte-sul, ou seja, Avenida …/Rua …, pela hemi-faixa direita da faixa de rodagem.
9. Ao acercar-se do local onde veio a ocorrer o acidente, o sinistrado caiu no chão, juntamente com o motociclo, ficando ambos imobilizados junto à berma direita, atento o sentido de marcha em que seguia.
10. Em consequência dessa queda, o sinistrado sofreu lesões traumáticas crânio-meningo-encefálicas complicadas por broncopneumonia, que lhe causaram a morte, ocorrida em 11 de Março de 2016 – cfr. certidão de assento de óbito de fls. 9.
11. Momentos antes do acidente, o sinistrado, que se encontrava no desempenho das suas funções no restaurante da sua entidade empregadora, pediu ao gerente da R. para ir embora para casa, o que este autorizou.
12. O acidente ocorreu no trajecto normalmente utilizado pelo sinistrado para regressar do trabalho a casa.
13. E dentro do período de tempo habitualmente gasto para o efeito.
14. Desde o seu local de trabalho até ao local do acidente, o sinistrado tinha percorrido cerca de 670 metros.
15. Não ficaram no piso rastos de travagem do motociclo, nem marcas de deslizamento do sinistrado.
16. O motociclo ficou imobilizado na faixa de rodagem onde circulava.
17. Já era noite, à hora do acidente.
18. O local do sinistro configura uma recta, com boa visibilidade, numa extensão superior a 50 metros.
19. Recta essa composta por duas hemi-faixas de rodagem, separadas entre si por linha longitudinal descontinua, destinadas ao trânsito nos dois sentidos.
20. O piso é asfaltado e, na ocasião do acidente, encontrava-se em bom estado de conservação e seco.
21. No local do acidente, a estrada tem a largura de 4,70 metros, sendo circundada dos dois lados por terreno a pinhal com eucaliptos, pinheiros, acácias e outros arbustos.
22. Não existiam passeios, sendo as bermas compostas por vegetação, apresentando-se a berma do lado direito (atento o sentido de marcha do sinistrado) com erva alta, arbustos e árvores de pequeno porte.
23. Existiam duas lombas redutoras de velocidade, antes e depois de uma passadeira de passagem para peões situada cerca de 180 metros antes do local onde o motociclo se veio a imobilizar (tendo em conta o sentido de marcha do sinistrado).
24. No local do acidente, não existiam habitações, nem iluminação pública.
25. Aquando do acidente, o sinistrado conduzia o motociclo com uma taxa de alcoolemia no sangue de 1,89 g/l.
26. A taxa de alcoolémia de que o sinistrado era portador diminui-lhe a atenção, concentração, capacidade de reacção, equilíbrio e reflexos.
27. O sinistrado sabia que tinha ingerido bebidas alcoólicas em quantidades que lhe diminuíam as capacidades e tornavam mais perigoso – para si e para os outros – o exercício da condução.
28. O sinistrado utilizava capacete de protecção, na altura do acidente.
29. Após o acidente, o dito capacete encontrava-se riscado de um dos lados.
30. O sinistrado era uma pessoa diligente e cuidadosa na condução do motociclo.
31. À data em que ocorreu o acidente, a entidade empregadora do sinistrado tinha a responsabilidade emergente de acidentes de trabalho transferida para a R., através de contrato de seguro de acidentes de trabalho titulado pela Apólice n.º ……..
32. O sinistrado esteve em situação de incapacidade temporária absoluta para o trabalho, desde o dia do acidente, até ao da sua morte.
33. A A. C… suportou despesas com o funeral do sinistrado, no valor de €1.737,50.
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B) O DIREITO
Para uma melhor compreensão da nossa decisão, previamente, a debruçar-nos sobre a primeira questão colocada no recurso, analisemos alguns conceitos, nomeadamente, para apurar quando um “acidente” deve ser qualificado como acidente de trabalho, nos termos definidos na Lei 98/2009, de 04.09, (também designada adiante por LAT e a que pertencerão os artigos a seguir referidos sem outra indicação de origem) que consagra o regime legal de reparação de acidentes de trabalho aplicável ao caso, atenta a data, 06.03.2016, em que ocorreu o sinistro em discussão.
Vejamos.
Sobre a definição normativa de acidente de trabalho dispõe o art. 8°, n° 1, da LAT sob a epígrafe “Conceito” que, “É acidente de trabalho aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza directa ou indirectamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte.”.
No art. 9º enumeram-se diversas situações que são consideradas, também, acidente de trabalho, ali epigrafadas de “Extensão do conceito” definido no anterior artigo.
No que ao caso interessa, dispõe: “1. Considera-se também acidente de trabalho o ocorrido:
a) No trajecto de ida para o local de trabalho ou de regresso deste, nos termos referidos no número seguinte;
(…).
2. A alínea a) do número anterior compreende o acidente de trabalho que se verifique nos trajectos normalmente utilizados e durante o período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador:
(…);
b) Entre a sua residência habitual ou ocasional e as instalações que constituem o seu local de trabalho;
(…).”.
Como vem sendo defendido, em regra, o acidente de trabalho será “um acontecimento não intencionalmente provocado (ao menos pela vítima), de carácter anormal e inesperado, gerador de consequências danosas no corpo ou na saúde, imputável ao trabalho, no exercício de uma actividade profissional, ou por causa dela, de que é vítima um trabalhador”, (cfr. Carlos Alegre in Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, Almedina, 2ª Ed., 2001, pág. 35) ou, dito de outro modo, “o acidente de trabalho pressupõe que seja súbito (vejam-se Maria Adelaide Domingos, Viriato Reis e Diogo Ravara in Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, Introdução, Centro de Estudos Judiciários, Julho de 2013, pág. 27, os quais caracterizam este requisito como de “duração curta e limitada”, “repentino”, “instantâneo”, “imediato”, mas sem que tal tenha que ser entendido em termos absolutos.) o seu aparecimento, assenta numa ideia de imprevisibilidade quanto à sua verificação e deriva de factores exteriores”, distinguindo-se da doença profissional por esta ser, via de regra, “de produção lenta e progressiva surgindo de modo imperceptível”, (cfr. refere Pedro Romano Martinez in Direito do Trabalho, Almedina, 2015, pág.s 829/830).
A nível jurisprudencial, sobre a noção de acidente de trabalho, lê-se no (Ac. STJ de 13.01.2010, proferido no processo 1466/03.2 TTPRT.S1 disponível em www.dgsi.pt) que, (…) “reconduz-se a um acontecimento súbito, de verificação inesperada e origem externa, que provoca directa ou indirectamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença”.
Conclui-se, assim, do exposto que, a caracterização de um acidente de trabalho está dependente da verificação cumulativa de três elementos: a) elemento espacial (local de trabalho); b) elemento temporal (tempo de trabalho); c) elemento causal (nexo de causalidade entre o evento e a lesão).
Em suma, são várias as condições para que se verifique a obrigação de reparação dos danos resultantes de um acidente de trabalho: evento, local e tempo de trabalho, dano e nexo de imputação entre o facto e o dano.
E quando falamos do nexo de causalidade referimo-nos ao duplo nexo causal, cuja demonstração é exigida na reparação dos danos emergentes dos acidentes de trabalho, “entre o acidente e o dano físico ou psíquico (a lesão, a perturbação funcional, a doença ou a morte) e entre este e o dano laboral (a redução ou a exclusão da capacidade de trabalho ou de ganho do trabalhador)” (cfr. Ac. STJ, de 16-09-2015, Proc. nº 112/09.5TBVP.L2.S1 in www.dgsi.pt).
No caso, tendo em atenção os dispositivos enunciados e a factualidade assente (que a recorrente não impugna), o Mº Juiz “a quo”, (pese embora, a ré/seguradora invocar que as AA. não alegam as razões da queda do sinistrado, não se podendo por isso concluir pela existência de um evento naturalístico inesperado causador da sua morte) considerou: “O acidente sofrido pelo sinistrado em 6 de Março de 2016, pelas 20.00 horas, na Rua …, em …, quando tripulava o seu motociclo, enquadra-se no disposto nos citados normativos, dado que ocorreu no trajecto que normalmente fazia entre o local de trabalho e a sua residência, dentro do período de tempo habitualmente gasto para o efeito, produzindo-lhe lesões corporais que lhe vieram a determinar a morte, ocorrida em 11 de Março de 2016.
Sendo por isso concluir pela verificação em concreto dos requisitos necessários à consideração do acidente de que o sinistrado foi vítima, como acidente de trabalho indemnizável.”.
Ora, como se pode constatar pela transcrição feita, as AA., não só alegaram como, lograram provar os factos necessários à qualificação do evento/queda, sofrido pelo sinistrado como acidente de trabalho. Acrescendo que, o Tribunal “a quo” dilucidou exaustivamente o argumento da ré, aqui, recorrente e, além disso, as considerações tecidas mostram-se pertinentes e correctas merecendo a nossa concordância.
Apreciou a questão do evento sofrido pelo sinistrado e concluiu verificarem-se os requisitos necessários para o considerar como acidente de trabalho, assim o qualificando.
Apesar disso, há que dizer que, em nosso entendimento, estava essa análise arredada da fase contenciosa, porque consideramos que, erradamente, a ré veio trazer à discussão a questão do “evento”, sob a veste de “as AA. não alegam as razões da queda do sinistrado”, quando tinha aceite na fase conciliatória a sua existência.
Com efeito, no auto de não conciliação, a fls. 59, consta o seguinte: “Pelo legal representante da seguradora foi dito que aceita que o sinistrado dos autos sofreu um acidente de viação in itinere em 06.03.2016 que lhe provocou a morte em 11.03.2016 (sublinhado e negrito nossos) e que se encontrava transferida para si a responsabilidade infortunístico-laboral pelos valores de €530,00 x 14 meses. “No entanto e uma vez que entendemos que o mesmo ocorre por negligência grosseira por parte do sinistro, bem como por violação das mais elementares regras estradais, já que o mesmo tinha 1,89 g/l de álcool, não aceitamos qualquer responsabilidade pelo mesmo”, nada mais tendo a declarar.”.
Verifica-se, assim, que a ré aceitou na fase conciliatória a existência de um acidente sofrido pelo sinistrado qualificável como de trabalho, apenas, não aceitando que o mesmo fosse susceptível de reparação, por considerar que se encontra descaracterizado. Apesar disso, veio trazer para a fase contenciosa, em nosso entender, como dissemos, erradamente, a questão do evento, defendendo não se poder concluir pela sua existência.
No entanto, na decisão recorrida, julgou-se fundadamente, não só ter ocorrido o evento como, face ao que resultou provado, na sequência da alegação das AA., ser ele qualificável como acidente de trabalho.
Em contraponto, a recorrente no presente recurso, limita-se a reiterar a sua posição e a manifestar discordância com a sentença recorrida, sem que traga qualquer argumento para rebater os utlizados na sentença.
Invocando, novamente, na conclusão VII que: “A Autora não só não alegou, como não demonstrou nos autos qual a razão dessa queda;”, conclui em VIII que: “Não se vislumbra, por essa razão, da matéria dada como provada, nenhum evento naturalístico, inesperado e de ordem exterior ao próprio sinistrado que tenha causado no mesmo lesões corporais;”.
Ora, sempre com o devido respeito, sem qualquer razão.
Que não é assim, decorre dos factos provados nos pontos 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12 e 13 (que a recorrente não impugna), que as AA. alegaram e provaram, demonstrando, assim, não só que o sinistrado sofreu um acidente, (consistente na queda que sofreu, quando de motociclo se deslocava no trajecto que, normalmente, utilizava para regressar do local de trabalho para casa), mas também, que esse acidente, revestiu as características necessárias para ser qualificado como acidente de trabalho, como bem se considerou na decisão recorrida, como já dissemos.
Como é evidente, o que a recorrente refere nas conclusões IX a XII da sua alegação, eventualmente, poderá levar a concluir que o acidente sofrido pelo sinistrado, pese embora, ser de trabalho, não é indemnizável, por se encontrar descaracterizado, o que é uma questão distinta daquela que aquela volta a reiterar neste recurso.
A questão de, eventualmente, terem ocorrido factos que possam concluir pela descaracterização do acidente sofrido pela vítima (marido e pai das AA.), é uma questão diferente, não significando, atentos os factos apurados, que o acidente não seja de trabalho. Pois, para que tal se mostre verificado não exige a lei, que as AA. aleguem e provem mais do que ficou assente, especificamente, as razões da queda.
E, sendo sabido que o direito ao recurso não visa conceder à parte um segundo julgamento da causa mas, apenas, permitir a discussão sobre determinados pontos concretos, que na perspectiva do recorrente foram incorrectamente mal julgados, para tanto sendo necessário que se enunciem os fundamentos que sustentam esse entendimento, devendo os mesmos consistir na enunciação de verdadeiras questões de direito, que lhe compete indicar e sustentar, cujas respostas sejam susceptíveis de conduzir à alteração da decisão recorrida. Ou seja, a recorrente deve expor ao Tribunal “ad quem” as razões da sua discordância, procurando convencer da sua pertinência, a fim de que este Tribunal se debruce sobre elas e decida se procedem ou não.
No caso, como decorre do que se disse, a recorrente não observou esse ónus, limitando-se a invocar os argumentos, que já invocou junto do Tribunal “a quo” e, ainda aí, em nosso entender, sem razão, face ao que aceitou na fase conciliatória.
Por conseguinte, inexistindo a invocação de razões que justifiquem a discordância da recorrente, acrescendo que concordamos inteiramente com o decidido pelo Tribunal “a quo”, conclui-se pela improcedência do recurso, quanto àquela primeira questão que refere na conclusão II da sua alegação.
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Passemos, agora, à segunda questão, que consiste em saber se o acidente de trabalho que vitimou o marido e pai das AA., se encontra descaracterizado, não assistindo a estas o direito à reparação que, atento o disposto no art. 2º da Lei nº 98/2009, de 04/09, reclamam na presente acção.
A decisão recorrida, considerou que não e, consequentemente, declarou-lhes esse direito e condenou a ré à sua reparação. Discorda esta, nos termos que refere nas conclusões XIII e ss. da sua alegação, defendendo haver matéria de facto suficiente (refere os pontos 25, 26 e 27) para promover a descaracterização.
Vejamos.
Na decisão recorrida a propósito desta questão ficou consignado o seguinte:
“Com respeito à situação que nos ocupa, a elevada taxa de alcoolemia no sangue (TAS) de que o A. era portador, aquando do sinistro (1,89 g/l), diminui-lhe necessariamente a atenção, concentração, capacidade de reacção, equilíbrio e reflexos.
Sendo seguro concluir – como se escreveu em sede de motivação das respostas dadas à matéria de facto – que o sinistrado ficou afectado nas suas capacidades, em consequência da TAS de que era portador, incluindo no que se refere à condução de veículos. Coisa que o próprio certamente sabia. Como saberia também, como qualquer pessoa normal, que as bebidas alcoólicas que ingeriu lhe diminuíam as capacidades e tornavam mais perigoso o exercício da condução.
Porém – como também então se escreveu – não se sabe, apesar disso, se a referida TAS teve efectivamente influência na ocorrência do concreto acidente do qual veio resultar a morte do sinistrado; e se teve, em que medida.
Não sendo possível afirmar, com toda a certeza, que não existiu outra qualquer causa para a ocorrência do acidente, visto que ninguém o presenciou. Desconhecendo-se em absoluto de que modo e porque é que o sinistrado caiu, ao chegar àquele local, incluindo se houve ou não qualquer factor externo na origem dessa queda.
Daí que não se possa concluir pela descaracterização do sinistro, com base no disposto na al. b) do n.º 1 do art. 14º, dado não se ter provado que o acidente proveio exclusivamente de “negligência grosseira” do sinistrado, caso assim se pretendesse traduzir o estado de embriaguez em que se colocou.

O mesmo sucedendo em relação às als. a) e c) do mesmo artigo, pese embora nelas se não mencione expressa e literalmente o requisito da exclusividade causal em relação à produção do sinistro, como sucede na previsão da al. b).
Com efeito, no que se reporta à al. a), conquanto a condução de veículos com motor com a TAS que o A. apresentava consubstancie infracção contra-ordenacional e criminal (cfr. arts. 81º do Cód. da Estrada e 292º do Cód. Penal, respectivamente), representando a violação de normas legais atinentes à segurança do tráfego rodoviário, o que é certo è que também aqui se exige que o acidente tenha como origem esse comportamento violador de condições de segurança legalmente previstas. Pelo que, mesmo transpondo o âmbito de aplicação da al. a) para o campo específico dos acidentes “in itinere”, faltaria a demonstração desse pressuposto da causalidade do comportamento ilegal do sinistrado em relação à eclosão do acidente.

A al. c), por seu turno, pressupõe que na génese do acidente tenha estado a privação permanente ou acidental do uso da razão por parte do sinistrado, nos termos do disposto nos arts. 138º, 152º e 257º do Cód. Civil.
A hipótese que aqui se poderia prefigurar é a da incapacidade acidental, por motivo de embriaguez, dispondo o art. 257º do Cód. Civil que “1. A declaração feita por quem, devido a qualquer causa, se encontrava acidentalmente incapacitado de entender o sentido dela ou não tenha o livre exercício da sua vontade é anulável, desde que o facto seja notório ou conhecido do declaratário.
2. O facto é notório, quando uma pessoa de normal diligência o teria podido notar”.
É facto assente que a elevada TAS com que o sinistrado circulava tornava mais perigoso, para si e para os outros, o exercício da condução, afectando-lhe necessariamente a generalidade dos sentidos e capacidades, designadamente as necessárias à condução do veículo. Podendo nessa medida afirmar-se que estaria privado do livre exercício da sua vontade.
Porém, também aqui se mostra necessário o estabelecimento de um nexo de causalidade entre esse estado de espírito e a verificação do acidente, que era ónus da R. provar, nos termos do art. 342 n.º 2 do Código Civil, por se tratar de facto impeditivo dos direitos invocados pelas AA..
Como se considerou nos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 15/11/2006 e de 26/05/1994[1], para descaracterizar um acidente de trabalho, quando o sinistrado apresenta álcool no sangue (ainda que em grau susceptível de influenciar o comportamento humano e de afectar as respectivas faculdades intelectuais ou capacidades psico-motoras) torna-se necessário demonstrar, por quem tem esse ónus, a existência do nexo de causalidade entre estado e a verificação do acidente.
E como se disse já, a matéria de facto apurada é omissa em relação ao modo como se deu o acidente, não permitindo afirmar, sem margem para dúvidas, que a queda do sinistrado se deveu ao estado alcoolizado em que se encontrava. Ou dito de outro modo, que se o A. não se encontrasse em tal estado, o acidente não teria de todo em todo ocorrido.

Em suma, perante a factualidade provada, não se pode concluir pela descaracterização do acidente, à luz do disposto no art. 14º n.º 1, als. a), b) e c).”.
Como decorre, das alegações da recorrente, nenhum argumento invoca esta que não tenha sido apreciado, pelo Mº Juiz “a quo”, nem alega que qualquer factualidade não tenha sido dada como provada, concluindo, apenas, que tendo por referência a matéria dada como provada, era possível concluir pela descaracterização, considerando haver matéria suficiente para a promover.
Ora, sempre com o devido respeito, é nosso entendimento que não assiste qualquer razão à recorrente, face à factualidade constante dos autos, tal como o considerou o Tribunal “a quo”, também nós consideramos, que não se pode concluir pela descaracterização do acidente, em análise. A matéria de facto dada como provada não permite concluir desse modo, nem assiste qualquer razão à apelante, laborando, em erro, quando nas conclusões XX e ss. da sua alegação, refere que partindo da matéria em causa, com apelo a presunções judiciais e fazendo valer a sua experiência de vida, o Mº Juiz poderia ter concluído que o acidente se ficou a dever à taxa de álcool no sangue apresentada pelo trabalhador sinistrado e dessa forma concluir pela descaracterização do acidente.
Não tem qualquer razão.
Contrariamente ao pretendido pela recorrente, dos factos dados como provados, nomeadamente, dos que constam nos pontos 25, 26 e 27, não é possível concluir pela descaracterização do acidente, pois, como o Tribunal “a quo” concluiu:”… a matéria de facto apurada é omissa em relação ao modo como se deu o acidente, não permitindo afirmar, sem margem para dúvidas, que a queda do sinistrado se deveu ao estado alcoolizado em que se encontrava.”.
Podemos adiantar, desde já, que a conclusão a que se chegou na decisão recorrida, não nos merece qualquer censura, já que é também a que consideramos correcta face a toda a factualidade que resultou provada, não se nos afigurando possível retirar desta, as conclusões que a recorrente considera, nem através de presunção, qualquer outro facto.
Pois isso, seria estar a premiar a recorrente, dando como provados, factos que não logrou provar (veja-se, em concreto, o quesito 20º da base instrutória, que não resultou provado, onde se perguntava: “Esse teor de alcoolemia que o sinistrado apresentava contribuiu para a sua queda?”) e, que seriam essenciais para que se pudesse concluir de modo ao deferimento da sua pretensão, que o acidente não teria ocorrido se não fosse o estado alcoolizado em que se encontrava o sinistrado e, desse modo, concluindo pela sua descaracterização.
Efectivamente, reiterando o devido respeito que nos merece diferente entendimento, consideramos que, sem razão, invoca a recorrente, que deveria o julgador ter seguido a via das presunções judiciais, quando é sabido, que estas não servem para substituir a prova dos factos com que a parte está onerada.
E, sendo desse modo, não se vislumbra como seria possível seguir a via pretendida pela recorrente, tendo em conta a ausência de factos provados, donde se pudessem inferir aqueles e, a noção de presunções dada pela lei (artº 349, do C.C.). Estas supõem a prova de um facto conhecido (base da presunção), do qual depois se infere o facto desconhecido, cfr. P.de Lima e A. Varela, in “CC, Anotado”, Vol. I, 3ª edição, ponto 1 da anotação ao artº 349, pág. 310.
É certo que a demonstração da realidade de um facto pode ser efectuada directamente ou pode ser extraída, por presunção judicial (art. 349º e 351º do C.C.), de outros factos provados (a base da presunção).
Todavia, estas presunções judiciais “não são, em bom rigor, genuínos meios de prova, mas antes meios lógicos ou mentais ou operações firmadas em regras de experiência, operações de elaboração das provas alcançadas por outros meios, reconduzindo-se a simples provas de primeira aparência, baseadas em juízos de probabilidade.”, cfr. o Ac. STJ de 10.09.2009, in www.dgsi.pt, citando Vaz Serra in RLJ, 108º/352.
Assentam no simples raciocínio de quem julga, inspirando-se nas máximas da experiência, nos juízos correntes de probabilidade, nos princípios da lógica ou nos próprios dados da intuição humana, cfr. ponto 2, da anotação àquele artº 349, na obra supra referida.
No entanto, a falta de prova do facto não pode ser colmatada ou suprida por presunção judicial, pois que, se um facto concreto é submetido a discussão probatória e o julgador o não dá como provado, seria contraditório tê-lo como demonstrado com base em simples presunção.
Na verdade, as presunções apenas são admissíveis para integração ou complemento da factualidade apurada nas respostas do tribunal à matéria controvertida e não já para contrariar ou modificar a matéria de facto ou mesmo suprir a falta de prova, veja-se neste sentido, entre outros, o Ac.RP de 17.09.2009 e o Ac.STJ. de 20.06.2006, ambos in www.dgsi.pt.
Sendo, deste modo, não vemos como poderia, o Mº Juiz “a quo” concluir, nos termos pretendidos pela apelante, perante a matéria de facto decidida pela 1ª instância, pela descaracterização do acidente, não se vislumbrando que tenha sido cometido qualquer erro na avaliação das provas produzidas nem a própria recorrente invoca que tenha ocorrido.

Concluiu-se, assim, na decisão recorrida, perante a factualidade provada, não se poder concluir pela descaracterização do acidente, o que subscrevemos, na íntegra.
Explicando.
As situações em que não são reparáveis os danos decorrentes de acidentes de trabalho, por estes se mostrarem descaracterizados, estão previstas no nº 1 do art. 14º da LAT, sob a epígrafe: “Descaracterização do acidente”, são quando:
“a) For dolosamente provocado pelo sinistrado ou provier de seu ato ou omissão, que importe violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pela entidade empregadora ou previstas na lei;
b) Provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado;
c) Resultar da privação permanente ou acidental do uso da razão do sinistrado, nos termos da lei civil, salvo se tal privação derivar da própria prestação do trabalho, for independente da vontade do sinistrado ou se a entidade empregadora ou o seu representante, conhecendo o estado do sinistrado, consentir na prestação.”.
O nº 2 do mesmo art. 14º dispõe que: “Para efeitos do disposto na alínea a) do número anterior, considera-se que existe causa justificativa da violação das condições de segurança se o acidente de trabalho resultar de incumprimento de norma legal ou estabelecida pelo empregador da qual o trabalhador, face ao seu grau de instrução ou de acesso à informação, dificilmente teria conhecimento ou, tendo-o, lhe fosse manifestamente difícil entendê-la.”.
E o nº 3 prescreve. “Entende-se por negligência grosseira, o comportamento temerário em alto e relevante grau, que não se consubstancie em ato ou omissão resultante de habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos da profissão.”.
A estas causas de não reparação acrescem, ainda, os casos dos acidentes que provierem de “Força maior”, nos termos prescritos no art. 15º, que não se aplica no caso.
Na situação, em análise, temos provado que, o sinistrado sofreu um acidente de viação, quando conduzia o seu motociclo e ao acercar-se do local onde veio a ocorrer o acidente, caiu no chão, juntamente com o motociclo, ficando ambos imobilizados junto à berma direita, atento o sentido de marcha em que seguia.
Em consequência dessa queda, o sinistrado sofreu lesões traumáticas crânio-meningo-encefálicas complicadas por broncopneumonia, descritas no relatório de autópsia junto a fls. 31 e ss., que lhe causaram a morte, ocorrida em 11 de Março de 2016 – cfr. certidão de assento de óbito de fls. 9.
Do relatório, junto a fls. 28, de onde consta o resultado da análise toxicológica de etanol no sangue efectuada ao sinistrado, verifica-se que o mesmo apresentava uma taxa de alcoolémia de 1,89 g/l, aquando do acidente.
Mais se apurou que a taxa de alcoolémia de que o sinistrado era portador diminui-lhe a atenção, concentração, capacidade de reacção, equilíbrio e reflexos e o sinistrado sabia que tinha ingerido bebidas alcoólicas em quantidades que lhe diminuíam as capacidades e tornavam mais perigoso – para si e para os outros – o exercício da condução.

E sendo esta a factualidade apurada, com interesse para a questão da descaracterização ou não do acidente que vitimou o sinistrado, o certo é que perante estes factos provados, se não há dúvidas, que o mesmo na altura apresentava uma taxa de alcoolémia de 1,89 g/l, também, não há dúvidas, que ficamos sem saber qual a causa que levou à queda do sinistrado, como bem considerou o Mº Juiz “a quo”: “Desconhecendo-se em absoluto de que modo e porque é que o sinistrado caiu, ao chegar àquele local, incluindo se houve ou não qualquer factor externo na origem dessa queda.”.
Pois, apesar do que consta, em concreto, daqueles pontos 25, 26 e 27 dos factos provados, “não se sabe, apesar disso, se a referida TAS teve efectivamente influência na ocorrência do concreto acidente do qual veio resultar a morte do sinistrado; e se teve, em que medida.”
E, se não podemos olvidar que o cumprimento das regras estabelecidas no código da estrada, em concreto, quanto a não conduzir veículos com motor com TAS é um elemento muito importante para diminuir a ocorrência de acidentes, o certo é que, infelizmente, mesmo quando os condutores circulam no estrito cumprimento das regras estradais, podem ocorrer e ocorrem acidentes de viação, no caso, qualificado como de trabalho.
Pois, apesar de a existência e cumprimento das regras estabelecidas no código da estrada (em concreto as que proíbem conduzir sob a influência do álcool) serem um elemento fundamental para diminuir, em elevado grau, as possibilidades de verificação de um acidente de viação, na medida em que é sobejamente sabido que o álcool diminui a atenção, concentração, capacidade de reacção, equilíbrio e reflexos dos condutores que ingerem bebidas alcoólicas em quantidades que lhe diminuam as capacidades e tornem mais perigoso, para si e para os outros, o exercício da condução, o que o sinistrado sabia tinha feito, as mesmas não afastam totalmente o perigo de que ele venha a ter lugar. Em abstracto, existe sempre a possibilidade de ocorrer um evento danoso, (acidente in itinere) durante a prática da condução.
Ou seja, a proibição de conduzir sob a influência de bebidas alcoólicas, como aconteceu, no caso, com taxa superior à permitida, visa minimizar que se verifiquem acidentes de viação, que podem ser de trabalho, mas não podem, só por si, quando cumpridas, evitar em absoluto que aqueles ocorram.

A apelante conclui que, tendo por referência a prova produzida, o Mº Juiz “a quo” fez uma errada interpretação do art. 14º da LAT, argumenta que fazendo-se valer da sua experiência de vida, poderia ter concluído que o acidente em apreço nos autos se ficou a dever à taxa de álcool no sangue apresentada pelo trabalhador sinistrado, e, dessa forma, concluir pela descaracterização do acidente tendo por referência quer a alínea a), quer a alínea b) do identificado preceito. Acrescendo que, o Autor, voluntariamente e sem causa justificativa, ingeriu bebidas alcoólicas que tornavam “muito perigoso, para si e para os outros, o exercício da condução”, defende, assim, que a sentença proferida pelo Tribunal a quo deve ser revogada, com base no entendimento de que, para se verificar a previsão da referida alínea c), não tem de resultar provado o nexo de causalidade entre a ingestão de bebidas alcoólicas e o acidente, bastando, tão-somente, a demonstração da privação da razão por parte do sinistrado.
No entanto, como já, supra dissemos, não partilhamos do seu entendimento.
Pois, ponderados os factos provados, verificamos, sem dúvida, que o comportamento do sinistrado é culposo, na justa medida em que não devia estar a deslocar-se para casa de motociclo, conduzindo depois de ter ingerido álcool na quantidade referida no exame.
Mas, apesar disso, não sabemos se o sinistrado caiu por ter bebido o álcool referido ou se foi por outra causa. Os factos provados não permitem estabelecer o nexo de causalidade entre o estado de embriaguez do condutor/trabalhador e a sua queda.
Que este estado, como dissemos, propicia muitos acidentes de viação, é um facto objectivo.
E, apesar da culpa (negligente) do sinistrado ser grosseira, por conduzir com a TAS que se apurou, não está demonstrado que o acidente ocorreu por sua culpa exclusiva. Ou seja, por conduzir naquele estado, já que não se apuraram “as razões da queda”, como bem diz a apelante.
E, sendo desse modo, como se salientou na decisão recorrida: “Não sendo possível afirmar, com toda a certeza, que não existiu outra qualquer causa para a ocorrência do acidente”, não pode o mesmo considerar-se descaracterizado.
Ao contrário do que defende a apelante, não é possível concluir da matéria de facto provada que, assim seja, pois tal como se considerou na decisão recorrida, para que assim fosse necessário seria ter-se demonstrado a existência do nexo de causalidade entre o estado de embriaguez em que o sinistrado se encontrava e o acidente que o vitimou.
E, sem dúvida, atento o disposto no art. 342º, nº 2, do CC, era à R. que incumbia provar factos que demonstrassem o estabelecimento desse nexo, o que não logrou fazer. E, como supra deixámos exposto, não colhe de modo algum, a alegação de que devido à dificuldade de prova, dos factos necessários a demonstrar o nexo causal, fosse possível estabelecer o nexo causal através de presunções judiciais.
Está provado que o sinistrado/falecido conduzia com TAS, o que o mesmo sabia e que isso lhe diminuía as suas capacidades mas, na ausência de outros factos, não podemos também concluir que aquele estado foi a causa da sua queda e morte.
No caso concreto, os factos provados não nos permitem concluir que foi o facto de o sinistrado conduzir sob a influência do álcool, incumprindo as regras estradais exigidas para quem conduz, nos termos em que o fazia, que foi aquela violação que desencadeou o acidente, pelo que não o podemos imputar, exclusivamente, a ele.
Assim, resta concluir, que por não estar provada a causa da queda que provocou a morte ao sinistrado, nem a culpa exclusiva deste na ocorrência do acidente, não se pode concluir que tenha sido aquela violação das regras estradais por parte do mesmo que esteve na origem do acidente e, por isso, não se conclui pela sua descaracterização, confirmando-se a sentença recorrida que, em nosso entender, não apenas fez boa interpretação dos factos provados, como não se vislumbra tenha violado qualquer dispositivo legal.

Improcedem, assim, todas ou são irrelevantes as conclusões da apelação.
*
III - DECISÃO
Pelo exposto, acordam as Juízas desta secção em julgar improcedente a apelação e, em consequência, mantém-se a decisão recorrida.

Custas pela apelante.
Porto, 24 de Janeiro de 2018
Rita Romeira
Teresa Sá Lopes
Fernanda Soares
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[1] Ambos citados no supra aludido acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 03/05/2007, proferido no processo n.º 1183/03.3TTCBR.C1.